Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78/17.8JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO
DESTINO DOS BENS APREENDIDOS
Data do Acordão: 11/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 109.º E 111.º DO CP; ART.ºS 186.º, N.º 2 E 374.º, N.º 3, AL. A), DO CPP
Sumário: Após o trânsito do acórdão que não conheceu nem decretou o perdimento a favor do Estado dos objectos apreendidos nos autos, pertencentes ao arguido/recorrente, cuja detenção é lícita por particulares, não pode, em despacho posterior, ser suprida a omissão praticada, antes deve ser observado o disposto no n.º 2 do art.º 186.º do CPP, e, consequentemente, proceder-se à restituição de tais bens ao proprietário.
Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

Por acórdão de 6 de Dezembro de 2018, proferida no processo comum colectivo nº 78/17.8JACBR do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 2, já transitado em julgado, além de outro, foi o arguido AC condenado pela prática de um crime de burla qualificada tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, a), 202º, b), 217º e 218º, nº 1, a) do C. Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo art. 366º, nº 1 do C. Penal, na pena de seis meses de prisão, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d) do C. Penal, na pena de um ano de prisão e em cúmulo, na pena única de três anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período.

Mais foi o arguido condenado no pagamento das custas por si devidas.

Em 26 de Fevereiro de 2019 o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu que os objectos apreendidos e identificados a fls. 276, 304 e 305 dos autos, pertencentes ao arguido, fossem declarados perdidos a favor do Estado, por poderem oferecer risco sério de voltarem a ser utilizados no cometimento de novos crimes de burla e de falsificação.   

Em 6 de Março de 2019 a Mma. Juíza a quo proferiu o seguinte despacho:

Considerando que os objectos identificados a fls. 276, 304 e 305, serviram para a prática dos crimes pelos quais os arguidos foram condenados e dado que os mesmos – que são pertença do arguido AC – se restituídos ao seu proprietário, atentas as suas características e natureza e a personalidade do arguido, espelhada nos factos vertidos no acórdão condenatório, poderia oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes de burla e falsificação, como promovido, declaram-se tais objectos perdidos a favor do Estado – artigo 109º, nº 1 do Código Penal


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            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

49. Através do despacho judicial datado de 6 de Março de 2019 proferido no âmbito dos presentes autos a fls._ (referência citius 83806353) veio o Douto Tribunal a quo declarar perdidos a favor do estado os objectos identificados a fls. 276, 304 e 305, isto quando tinha já transitado em julgado o acórdão condenatório proferido nos presentes autos a fls._ o qual é completamente omisso quanto ao destino a dar aos referidos bens, ou seja, quando se tinha esgotado já o poder jurisdicional do Tribunal sob tal matéria;

A) Assim, entende o recorrente que transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no artº 186º, nº 2 do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos em favor do Estado dado que a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão, estando já esgotado o poder jurisdicional.

B) Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso, daí que, como já se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 30-06-2004: “Os bens apreendidos no processo penal não podem ser declarados perdidos a favor do Estado, em despacho proferido após a sentença”;

C) Assim, por ter sido proferido já após o trânsito em julgado do douto acórdão condenatório proferido a fls. _ , o Despacho Judicial datado de 6 de Março de 2019 proferido no âmbito dos presentes autos a fls. _ (referência citius 83806353) que declarou os objectos identificados a fls. 276, 304 e 305 perdidos a favor do estado violou, na sua interpretação e aplicação, o disposto no artigo 613.º do Código de Processo Civil, aplicável por for força do artigo 4.º do C.P.P., no n.º 2 do art. 186.º do CPP e, por fim, o disposto no art.º 374.º, n.º 3, al. c) do CPP, pelo que, deverá tal despacho judicial ser revogado e ser substituído por decisão que determine a entregue dos referidos bens ao arguido ora recorrente;

D) A interpretação feita pelo Tribunal recorrido quanto aos artigos 109.º e 111.º da CP, de que poderia ter declarado os bens apreendidos nestes autos perdidos a favor do estado já depois de esgotado o seu poder jurisdicional, sem audição do arguido, e após transitada a decisão condenatória, é ainda inconstitucional por violadora das normas do artigo 32.º da CRP, inconstitucionalidade que se deixa arguida para todos os efeitos legais.

E) Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, sempre se dirá que só podem ser declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tenham servido ou se destinassem a servir qualquer facto ilícito típico e seja possível prognosticar que esses objetos podem colocar em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou que a sua devolução se traduzisse num sério risco de utilização para a prática de novos factos ilícitos típicos;

F) Acontece que estamos perante objetos banais, de livre, licita e até corriqueira aquisição e utilização por qualquer pessoa, sem qualquer tipo de perigosidade, uns (tais como garrafas de vinho) destinados a consumo humano e outros (tais como quadros, esculturas, aparelhos de som, …) destinados a rechear um restaurante ou até uma habitação;

G) Para lá disso temos que no acórdão condenatório entendeu-se existir um juízo de prognose favorável ao arguido no sentido de estar o tribunal crente que o arguido dispõe de condições pessoais para levar uma vida normativa, motivo pelo qual foi a pena de prisão que lhe foi aplicada suspensa na sua execução;

H) Entende assim o recorrente que, salvo o devido respeito, o Despacho Judicial datado de 6 de Março de 2019 proferido no âmbito dos presentes autos a fls. _ (referência citius 83806353) que declarou os objectos identificados a fls. 276, 304 e 305 perdidos a favor do estado violou, na sua interpretação e aplicação, o disposto no artigo 109 n.º 1 do CPP dado que não se mostram preenchidos os requisitos ali constantes, pelo que, deverá ser revogado e substituído por diferente decisão que determine a entrega e restituição dos referidos bens ao arguido ora recorrente;

Pelo exposto, e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente recurso, por provado, nos termos constantes das alegações e conclusões, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público alegando, em síntese, que não é pacífica na jurisprudência a questão suscitada pelo recorrente quanto às consequências da omissão, na sentença, do destino dos objectos apreendidos nos autos, sendo uma das posições admissíveis a de que tal é possível mesmo depois do trânsito em julgado da sentença pelo que, sendo esta a adoptada pelo despacho recorrido, não enferma o mesmo de violação de lei nem de ofensa à Constituição da República Portuguesa, e que, devendo a perigosidade dos objectos apreendidos ser vista sob uma perspectiva objectiva e também sob uma perspectiva subjectiva isto é, sob o ponto de vista do seu relacionamento com o agente, mostra-se justificada a declaração de perdimento, pelo risco sério de serem de novo usados na prática de futuros crimes, dadas as suas objectivas características e a personalidade do recorrente, espelhadas no texto do cordão condenatório proferido nos autos, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, subscrevendo e reafirmando a argumentação da resposta, e concluiu, num evidente equívoco, pelo provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

            Respondeu o arguido, reafirmando a argumentação da motivação e concluindo pela procedência do recurso.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A tempestividade do despacho que declarou o perdimento a favor do Estado dos objectos apreendidos nos autos e identificados a fls. 276, 304 e 305;

- A verificação ou não, dos pressupostos da declaração de perdimento a favor do Estado desses objectos;

- A inconstitucionalidade da decisão por violação do art. 32º da Constituição, incluindo a violação do contraditório [omissão da notificação ao recorrente da promoção do Ministério Público, promovendo o perdimento].


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Da tempestividade da declaração de perdimento de objectos a favor do Estado

1. Alega o recorrente – conclusões A) a C) – que tendo o acórdão condenatório transitado em julgado sem que nele se tenha decidido sobre o destino a dar aos objectos relacionados com o crime, a posterior decisão sobre tal destino viola o caso julgado e as garantias de defesa, antes devendo ser dado cumprimento ao disposto no art. 186º, nº 2 do C. Processo Penal, estando em causa como está, in casu, objectos cuja detenção é licita por particulares.

Oposta é, como se disse supra, a posição do Ministério Público.

A questão não é nova, nem tem sido uniformemente decidida pela jurisprudência. Com efeito, há quem entenda que nada tendo decidido a sentença já transitada quanto ao destino dos objectos apreendidos, devem os mesmos ser restituídos a quem de direito, salvo quando se trate de objectos cuja detenção por particulares é ilícita, caso em que devem ser declarados perdidos a favor do Estado (cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos da R. de Lisboa de 22 de Maio de 2018, processo nº 174/11.5GDGDM-I.L1-5, da R. do Porto de 20 de Janeiro de 2014, processo nº 549/11.0JAPRT-A.P1 e de 2 de Julho de 2017, processo nº 803/14.9JABRG.P2, da R. de Évora de 16 de Abril de 2013, processo nº 28/11.5GBORQ.E1 e da R. de Guimarães de 21 de Outubro de 2013, processo nº 316/09.0JABRG-F.G1, todos in www.dgsi.pt). Para outros, numa posição que cremos minoritária, a sentença que omitiu a declaração de perdimento dos bens apreendidos não forma caso julgado sobre a omissão pois esta, em bom rigor, não integra o objecto do processo, podendo por isso ser proferido posterior despacho declarando o perdimento (cfr. neste sentido, acórdãos da R. de Lisboa de 11 de Julho de 2013, processo nº 5855/09.0TDLSB.L1-3 e da R. do Porto de 6 de Abril de 2011, processo nº 538/06.6GNPRT.P1, ambos in www.dgsi.pt).

Vejamos.

2. Dispõe o art. 109º, nº 1 do C. Penal [na redacção em vigor na data da prática dos factos] que, são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.  

Por sua vez, dispõe a alínea c) do nº 3 do art. 374º do C. Processo Penal que o dispositivo da sentença contém a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime.

Finalmente, dispõe o nº 2 do art. 186º do C. Processo Penal que, logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.

Da conjugação destas disposições legais resulta que o momento próprio para conhecer do destino a dar aos objectos apreendidos nos autos é o da prolação da sentença. E bem se compreende que assim seja, pois é nesta altura do processo, produzida que foi a prova, que o tribunal está em condições de fixar a matéria de facto e de proceder à sua qualificação jurídico-penal, sendo certo que é desta que depende o destino dos bens aprendidos.

Como nota João Conde Correia (Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, 2012, PGR/INCM, pág. 138 e ss.), é demasiado frequente o esquecimento, na sentença, da declaração de perdimento dos instrumenta e producta sceleris, só se dando conta da omissão quando o processo é remetido para o arquivo.  

Quando tal acontece – e este é o caso dos autos –, proferida a sentença, esgotado ficou o poder jurisdicional (cfr. art. 613º, nº 1 do C. Processo Civil).

Sendo a perda de coisas e direitos relacionados com o crime um instituto de natureza especial das consequências jurídicas do crime, o conhecimento, na sentença, da perda ou não dos instrumenta e producta sceleris – que não se reduz, apenas, ao exigido pela alínea c) do nº 3 do art. 374º do C. Processo Penal – é questão que o tribunal deve apreciar ou conhecer pelo que, quando tal não ocorre, estamos perante uma omissão de pronúncia, nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do art. 379º do mesmo código (em sentido diverso, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 950 e ss., para quem se trata de mera irregularidade, enquadrável no regime previsto na alínea a) do nº 1 art. 380º também do mesmo código e, por isso, sanável).

As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (art. 379º, nº 2 do C. Processo Penal). O Ministério Público, porém, não recorreu.

O acórdão proferido nos autos em 6 de Dezembro de 2018 transitou a 21 de Janeiro de 2019, não sendo pois admissível, a posterior correcção da omissão verificada, através do despacho recorrido de 6 de Março de 2019.

A única ressalva a fazer prende-se com a circunstância de os bens a restituir não poderem ser licitamente detidos por particulares, como seja, v.g., uma arma de guerra ou uma substância estupefaciente.

Não é, no entanto, o caso dos objectos mencionados nos autos de busca e apreensão de fls. 275 a 276 e de fls. 304 a 305 que são as garrafas de vinho, as esculturas, o quadro, o estojo de acessórios e os aparelhos eléctricos elencados nos pontos 15 e 16 dos factos provados do acórdão de 6 de Dezembro de 2018, todos eles de detenção lícita por qualquer cidadão.

Em conclusão, subscrevendo a posição da jurisprudência maioritária, entendemos que, após o trânsito do acórdão que não conheceu nem decretou o perdimento a favor do Estado dos objectos apreendidos nos autos, pertencentes ao recorrente, cuja detenção é lícita por particulares, não pode, em despacho posterior, ser suprida a omissão praticada, antes deve ser observado o disposto no nº 2 do art. 186º do C. Processo Penal e, consequentemente, proceder-se à restituição de tais bens ao proprietário.


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A decisão que antecede prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.


III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, inexistindo quaisquer outras razões que o impeça, dê cumprimento ao disposto no nº 2 do art. 186º do C. Processo Penal.

Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).


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Coimbra, 6 de Novembro de 2019

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta.