Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3852/18.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
INCÊNDIOS
CASO DE FORÇA MAIOR
CASO FORTUITO
DANO DA PRIVAÇÃO DE USO
Data do Acordão: 05/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - TONDELA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 483, 563, 564, 566, 790 CC
Sumário: I - O artº 790º do CC admite um conceito lato de impossibilidade objetiva da prestação – i.e. tanto na vertente naturalista e lógico volitiva, como na ótica filosófica do juízo équo – e encerrando em si os conceitos de caso fortuito ou de força maior.

II - O caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: o facto não se pôde prever, mas seria evitável se se tivesse previsto.

III - O caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências.

IV -O dano parcial num veículo automóvel, guardado pela ré nas suas instalações, provocado pelos enormes e intensos incêndios de outubro de 2017, e nem sequer diretamente pelas chamas mas apenas indiretamente pelas sua fortes ondas de calor, está, porque facto inevitável ao menos nos seus efeitos, acobertado e justificado pela força maior.

V - A indemnização pela privação do uso de automóvel exige a prova, posto que algo aliviada, da sua necessidade, bem como do prejuízo dela decorrente.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 3852/18.4T8Vis.C1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

F (…) intentou contra M (…), LDA, ação declarativa, de condenação, com  processo comum.

Peticionando a condenação da Ré:

A) A pagar ao autor a quantia de 123,50€ a título de despesas que o autor suportou com o transporte da viatura M  (...), modelo E 270 CDI, com a matrícula TI  (...), das instalações da ré para as instalações da F (…)em Viseu, despesas que seriam evitáveis, caso a viatura circulasse;

B) A suportar a expensas suas a reparação dos danos causados na viatura M  (...), modelo E 270 CDI, com a matrícula TI  (...) propriedade do autor enquanto à guarda da ré, nomeadamente:

- O montante de 507,99€ já pago pelo Autor e referenciado em 24º desta peça.

- O remanescente do orçamento elaborado pela F (…) –Concessionário e oficina Autorizada M  (...) , na quantia de 3.440,17€ (IVA incluído);

C) A pagar ao autor a quantia global de 6.700,00€ correspondente ao montante diário de 100€ por cada dia (67 dias) em que o autor esteve privado de usar o veículo a título de indemnização por privação de uso da viatura;

D) A pagar ao autor um quantitativo diário de 100€ por cada dia em que o veículo estiver a ser reparado a título de indemnização por privação de uso da viatura, cuja liquidação se relega para execução de sentença;

E) A pagar ao autor, a indemnização de 1,500,00 Euros a título de indemnização por danos não patrimoniais;

F) A pagar ao autor, todas aquelas quantias, acrescidas de juros à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Alegou, sumariamente, que:

(i) No âmbito do processo de execução nº. 5558/16.0T8VIS, em que era exequente a ré e executado o autor, que correu termos no Tribunal Judicial da comarca de Viseu – Juízo de Execução, em 2.2.2917, o veículo do Autor com a matrícula TI  (...) foi penhorado, sendo que o agente de execução designou a Ré como fiel depositária do mesmo;

(ii) No dia 07 de Fevereiro de 2018, em sede dos embargos de executado que correram termos sob o apenso A do processo referido em 2), o aqui autor (executado no identificado processo) e a aqui ré (exequente no referido processo) realizaram uma transacção, sendo que a Ré se comprometeu a entregar a viatura;

(iii) No dia 12 de Fevereiro de 2018, o autor deslocou-se às instalações da ré com o intuito de levantar a supra identificada viatura, sendo que, chegado ao local, o autor verificou que a viatura apresentava as ópticas traseiras derretidas, estando empoladas/encolhidas e negras, situação extensível ao para-choques.

(iv) O gerente da Ré declarou ao Autor que, para proceder ao levantamento do carro, teria de assinar uma declaração a afirmar que o veículo não tinha danos, sendo que o Autor declarou recusar assinar a mesma;

(v) Em consequência, entre 12 de Fevereiro de 2018 e 20 de Abril de 2018, o autor e família viram-se impedidos de se deslocar para onde quisessem e quando quisessem.

*

A Ré contestou.

Disse que o veículo foi guardado nas suas instalações por ordem do agente de execução que teve de acatar.

Que os danos não lhe podem ser imputados, mas antes ao mega incêndio incontrolável que deflagrou na zona.

Que foi o autor que, perante os danos do veículo, se recusou a levar o mesmo das suas instalações.

Concluiu, propugnando a improcedência da ação.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo supra exposto, julga-se a acção totalmente improcedente e, consequentemente, decide-se:

A) Absolver a Ré M (…), LDA do peticionado;

B) Condenar o Autor (…) no pagamento das custas processuais.»

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 - O recorrente não se conforma com a douta sentença de fls… proferida nos autos que absolveu a ré M (…) Lda. do peticionado.

2 – O presente recurso versa exclusivamente sobre matéria de direito colocando à apreciação de V. Exas. duas questões a decidir, a saber:

a) A averiguação da existência de responsabilidade contratual da ré por violação dos seus deveres de guarda e cuidado.

 b) A nulidade da douta sentença proferida por omissão de pronuncia quanto ao dano de privação de uso do autor.

 Da responsabilidade extra contratual da ré;

 3 - O Tribunal recorrido concluiu que naufragaram os pressupostos da responsabilidade extracontratual consignada no artigo 483º do Código Civil, soçobrando qualquer culpa da ré. 4 - São pressupostos da responsabilidade civil a) um facto humano; b) ilicitude; c) a culpa; d) a existência de danos; e) o nexo de causalidade entre o facto e os danos.

 5 - No âmbito do processo de execução nº5558/16.0T8VIS, em que era exequente a ré e executado o autor, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Execução, o veículo indicado em 1) foi penhorado, sendo que o agente de execução designou a ré/recorrida como fiel depositária do mesmo – facto provado no ponto 2 da douta sentença recorrida.

6 - A penhora judicial a penhora de um bem constitui facto sine qua non da sua apreensão, sendo o depositário judicial um auxiliar da justiça que que tem a responsabilidade acrescida de fazer a guarda e depósito do bem penhorado.

7 – Na administração do bem o depositário judicial deve actuar com a diligência e zelo de um bom pai de família (bónus pater familiae) nos termos consagrados no artigo 487.º n.º 2 do Código Civil.

8 - Esta função é uma obrigação e deve ser cumprida. Por isso, o depositário judicial incorre em responsabilidade se não cumprir aquilo a que está adstrito.

 9 –Sofrendo o bem penhorado, danos resultantes da violação, pelo depositário judicial, do dever de guarda, é o mesmo responsável pela sua deterioração.

10 – O tribunal ad quo julgou ter resultado de um evento extrínseco e de força maior, nomeadamente o incêndio que afectou a localidade de Tondela em 15 de Outubro de 2017, os danos sofridos pelo veículo penhorado assim soçobrando qualquer culpa da ré/recorrida.

11 -Salvo o devido respeito por opinião contrária não resulta dos factos provados que o incendio florestal que afectou a localidade de Tondela em 15 de Outubro se afigure um caso de força maior.

13- O incêndio atrás referenciado não reúne as características de excepcionalidade e imprevisibilidade. E isto porque;

 14 - É sabido e notório que Portugal é assolado, todos os anos por incêndios florestais de grande dimensão.

15 - Os quais têm a sua maior incidência na Zona norte do País, sendo o Distrito de Viseu um dos distritos que mais ocorrências, focos de incêndio, regista anualmente.

 17 – Na data referida (15 de Outubro de 2017) e para o Distrito de Viseu, a Autoridade Nacional de Proteção Civil emitiu um alerta de GRAU DE RISCO EXTREMO consubstanciado em situação de perigo extremo, com possibilidade da ocorrência de fenómenos de intensidade excecional, dos quais é muito provável que resultem danos muito relevantes e uma redução muito significativa da segurança das pessoas, podendo ameaçar a sua integridade física ou mesmo a vida, numa vasta área.

18 - A ré/recorrida, conhecedora dos riscos, poderia e deveria ter removido o veículo das suas instalações abrigando-o em local seguro. Até porque;

 19 - Os danos que resultaram no veículo – facto provado 6 – não resultaram de contacto direto com o incêndio, mas antes do calor indirecto que provinha do mesmo.

 20 –Sendo suficiente abrigar o dito veículo para que os danos não tivessem ocorrido.

 21 - Ao colocar o veículo, embora dentro das sua instalações, mas ao relento e desabrigado, a ré/recorrida foi a causadora da situação determinante do risco para o veículo do autor.

 22 – No caso em apreço, tendo a ré/recorrida conhecimento de que existia um alerta de grau de risco extremo para a Zona de Tondela, e sendo o bem um bem móvel, facilmente removível e transportado para local diverso, não o fazendo no sentido de proteger o bem penhorado a ré contribui de forma inexorável para que veículo sofresse os danos identificados no facto provado em 6 da douta Sentença proferida pelo Tribunal ad quo.

 23 - Na região geográfica em questão, o incêndio florestal não é contemplável como um caso de força maior ou fortuito e, por isso, não representa uma anomalia resultante de uma cumulação extraordinária de circunstâncias, imprevisível para um cidadão medianamente diligente colocado na posição da ré, (apenas) perante a qual soçobraria o nexo de imputação exigido para o acionamento da responsabilidade civil.

24- Acresce que, o ónus da prova dos factos que integram o conceito de força maior –um conceito de grande complexidade fática- está a cargo de quem o invoca, nos termos do disposto no artº 342º/2 do Código Civil.

25- No caso sub judice os factos provados –vide factos 4, 5 e 6 da douta Sentença - revelam que nos dias 15 e 16 de Outubro de 2017, a região centro foi afectada por incêndio de grandes proporções que afectou o concelho de Tondela e a zona industrial da Adiça.

 26 - E que em consequência do sobredito incêndio o calor que provinha do mesmo causou danos ao veículo do autor/recorrente, nomeadamente os descritos no facto provado 6.

27-Salvo melhor opinião, ficou, assim, por provar a causa excludente em toda a sua extensão, já que a ré/recorrida não provou, como lhe competia, que os danos do veículo ocorreram não só em face do incêndio, mas da sua inevitabilidade e de acontecimento natural fora do alcance do poder humano, sem que para essa “causa” não tenha concorrido qualquer acto ou omissão do devedor, ou seja que o facto também não proceda de culpa da ré/recorrida.

 28- A prova obtida não nos dá senão a visão da verificação do evento. Um evento lesante ocorrido na zona industrial da Adiça, nas instalações da ré/recorrida, local para onde havia sido removido o veículo do autor/recorrente. As condições capazes de excluir a responsabilidade ficaram por evidenciar.

29- Assim, considerando os deveres de guarda consagrados no artigo 760º do Código de Processo Civil, no caso em apreço a existência de um nexo de causa efeito entre o evento lesivo – a violação dos deveres de guarda pela ré/recorrida e os danos verificados no veículo.

 30 - Demonstrado que o veiculo danificado se encontrava à guarda da ré/recorrida, na qualidade de depositária judicial –factos provados 1, 2 e 3 da douta Sentença –e que enquanto à sua guarda o mesmo sofreu danos, sem que ocorresse qualquer causa de exclusão da responsabilidade da ré/recorrida;

31 - Conclui-se, por se encontrarem preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, que a ré/recorrida é responsável pela reparação ao autor dos danos sofridos pelo seu veículo.

Da nulidade da sentença por omissão de pronuncia;

32- Nos termos do artigo 615.º sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença” diz-se no seu nº1 que é nula a sentença quando: “d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”

33 - Sob o ponto C) do pedido constante da Petição Inicial o autor/recorrente peticionou a condenação da ré/recorrida a pagar ao autor/recorrente a quantia global de 6.700 euros correspondente ao montante diário de 100€ por cada dia (67 dias) em que o autor esteve privado de usar o veículo a título de indemnização por privação de uso da viatura.

 34– A ré obrigou-se, em sede de embargos de executado, com o pagamento da primeira prestação a entregar ao executado do veículo de matrícula PI  (...), que o executado se comprometeu a ir levantar na sede da exequente. Facto provado 7 da douta sentença recorrida.

 35 – No dia 12 de Fevereiro de 2018, o autor/recorrente deslocou-se às instalações da ré para levantar a viatura, tendo constatado os danos de que a viatura sofria. Facto provado 10.

36 – Ao autor/recorrente não foi permitido levantar a viatura.

 37 – No dia 23 de Fevereiro o autor/recorrente deslocou-se novamente às instalações da ré/recorrida para levantar a viatura, sendo-lhe novamente exigido a assinatura de uma declaração, e novamente ao autor/recorrente não foi permitido levantar o veículo. Factos provados em 12º e 13º da douta sentença recorrida.

38 – Finalmente em 8 de Março a ré/recorrida permitiu o levantamento da viatura sem que para esse efeito o autor/recorrente tivesse assinado qualquer declaração. Facto provado em 16 da douta sentença recorrido.

41 – A ré/recorrida recusou de forma ilegítima e ilegal a entrega da viatura ao autor/recorrente, violando aquilo a que se obrigou em sede de transação judicial. Facto provado 7.

42 – Dessa forma, é responsável pelas despesas arcadas pelo recorrente consignadas nos factos provados em 13 e 16 da douta sentença recorrida.

43- E durante 25 dias, entre 12 de Fevereiro de 2018 e 8 de Março de 2018, privou o recorrente de usar e fruir das utilidades de tal veículo, o qual se encontrava circulável.

42 – Quer as despesas supra referenciadas, quer a privação de uso no período mencionada não se reconduzem à responsabilidade da ré pelos danos que o veículo sofreu.

43 – Antes dizem respeito a uma recusa ilegítima da ré/recorrida de entregar a viatura, pelo período de 25 dias.

44 - Vindo mais tarde, a ré recorrida, em clara contradição com o seu comportamento anterior a entregar a viatura ao autor sem que para esse efeito exigisse qualquer declaração.

45 - Dispõe o art. 754º do CC que “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.

46 - Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, no CCAnotado, Vol. I, 2ª ed. rev. e act., pág. 697, “Para que exista direito de retenção, nos termos do artigo 754º, é necessário, em primeiro lugar que o respectivo titular detenha (licitamente: cfr. art. 756º, alín. a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em segundo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão (debitum cum re junctum), nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados)”.

47-Se o exercício do direito de retenção foi ilegítimo, ilícito, a ré/recorrida terá, então, de ressarcir o autor/recorrente dos prejuízos que lhe causou.

 48 - Só assim não seria se se verificasse uma cláusula de exclusão da ilicitude (erro sobre os pressupostos daquele direito), por ter actuado sem culpa, e de boa fé.

49 - In casu, a ré/recorrida apenas teria um direito de retenção legitimo caso o autor/recorrente não tivesse liquidado a primeira prestação no âmbito do acordo celebrado em celebrado no dia 7 de Fevereiro de 2018 e homologado por sentença.

 50 – O que não sucedeu, aliás a ré/recorrida acabou por entregar a viatura ao autor/recorrente, o que não teria sucedido caso este não tivesse cumprido o acordado.

51 – Sobre esta questão a douta sentença recorrida é omissa, quer nos factos provados e não provados quer na sua fundamentação.

 51 - Existe uma clara omissão de pronuncia da douta sentença proferida, que nos termos da al.d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, configura nulidade da sentença que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

52- Com efeito, resulta do regime previsto no artigo 615º nº1 al. d) que o Juiz na Sentença “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

53- E salvo o devido respeito o meritíssimo juiz ad não se pronunciou sobre questão submetida a sua apreciação e que não é prejudicada pela solução dada a outra. Porque;

54 - Reitera-se, à privação de uso do autor no período de 12 de Fevereiro a 8 de março de 2018 não importa a responsabilidade dos danos no veículo, mas antes a recusa ilegítima de o entregar por parte da ré.

55 - É certo, em regra, por um lado, gozar o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305º do Código Civil).

56 - E, por outro, dever o agente que, ilícita e culposamente violar aquele direito, indemnizar o referido proprietário dos danos que lhe causar (artigos 483º, nº 1, do Código Civil).

57 - A afectação ou lesão desses direitos não pode deixar de se considerar, a nosso ver, e independentemente de outros danos que se provem, que atribui o direito a um valor indemnizatório para ressarcir o seu titular dessa afectação ou lesão, sob pena de violação daquele princípio basilar, consagrado no art.º 562º citado, de que a lesão do direito de outrem constitui o lesante na obrigação de reparar os danos resultantes dessa acção.

58-Só assim não acontecerá nos casos, raros, em que o titular do bem não consegue fazer a prova de pretender gozar, fruir ou dispor do bem ou a contraparte faz a prova de que o requerente não podia gozar, fruir ou dispor do bem. O que não é manifestamente o caso, face à concludente prova do uso diário do veículo em causa pelo requerente –Facto provado 20.

59 – Com efeito, antes da penhora, o veiculo TI  (...) era utilizado pelo autor e esposa nas suas vidas pessoais e profissionais. O que nos leva a concluir que, extinta tal penhora o autor e esposa retomariam o uso da viatura no seu dia a dia.

60 - Devendo o Tribunal julgar equitativamente, dentro dos limites que tiver por provado se não puder averiguar o valor exacto dos danos (artigo 566º, nº 3, do Código Civil).

61 - Nesta medida, não tendo sido provado que “o custo diário do aluguer de um veículo idêntico ao enunciado em 1) corresponde a 100 euros, impõe-se que o tribunal julgue equitativamente nos termos do nº 3 do art.º 566º do Código Civil.

62 – Sendo que naquele juízo equitativo importa ponderar o valor médio do aluguer de uma viatura, como um referencial máximo, por corresponder ao valor que, em termos correntes, alguém teria que dispender para lograr obter pelo menos o gozo e fruição de uma viatura média e ainda o tipo de utilização que o requerente fazia da viatura (mais ou menos intensa) de utilidade (para fins laborais ou familiares) ou de lazer e o período de privação do uso.

63 - Cumprindo ao Tribunal superior suprir, em sede de recurso, eventual nulidade que decorra de total omissão de pronúncia, que tenha sido expressamente invocada em sede de recurso e que não tenha sido suprida em 1.ª instância, nos termos do nº1 do artigo 684º do Código de Processo Civil.

64 – Em face do supra exposto a acção sempre teria de proceder e ao decidir como decidiu o meritíssimo juíz ad quo violou as normas insertas nos artigos, 483º,562º e1035º todos dos Código Civil e artigos 760º e 615 nº1 al. d) do Código de Processo Civil.

Contra alegou a ré pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

I. Vem a Recorrente interpor recurso da sentença supra identificada a qual, no nosso entendimento, não merece censura por parte desse Venerando Tribunal ad quem.

II. O Tribunal “a quo” concluiu que a ação deduzida pelo Autor, ora Recorrente, era totalmente improcedente por demonstrada a intervenção de um evento extrínseco e de força maior, o qual perpetrou de forma imediata e inexorável a afectação do veiculo do autor, soçobrando, qualquer culpa da Ré, ora Recorrida, naufragando os pressupostos da responsabilidade extra-contratual, e por não se ter verificado uma ação injustificadamente impeditiva do levantamento do veículo.

 III. O Recorrente, movido pelo desiderato indómito de indexar danos à Ré, ora Recorrida, vem alegar que ao contrário da decisão ora em crise “a Ré/recorrida foi causadora da situação determinante do risco para o veículo do autor”, e que se verifica uma «omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença» quanto ao dano de privação de uso do autor. IV. Porém, sem razão.

V. De facto, quanto à (ir)responsabilidade da Ré, estribou-se a convicção do tribunal a quo nos factos essenciais dados por provados 1), 2) 3) 4) 5) e 6), e da análise crítica dos depoimentos e dos documentos carreados, designadamente fotografias, certidão e declaração emitidas pela Câmara Municipal de Tondela, ínsitas no processo que secundam, a bem da verdade, o facto notório e fortuito, repetidas vezes sublinhado na decisão a quo, dos quais resulta clarividente as características de imprevisibilidade e inevitabilidade e do incêndio de “grandes proporções” dos dias 15 e 16 de Outubro de 2017, e as condições guarda diligente do veículo levadas a cabo pela Recorrida nas suas instalações, as quais se encontravam vedadas, sendo irrelevante para a produção concreta do dano provocado pelo incêndio no veículo, segundo a teoria da adequação ou da causalidade adequada, na sua formulação negativa, a conduta da Ré, uma vez que, desconsiderando o inadmissível argumento segundo o qual é razoável exigir-se à Ré a assunção de outra(s) medida(s) manifestamente arbitrárias – o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe -, nenhuma outra medida, para além das que tomou no cumprimento diligente do dever de guarda e administração, seria exigível à Ré-Recorrida que tomasse em face das circunstâncias conhecidas ou previsíveis.

VI. É um facto público e notório (conforme bem e repetidamente salientou a douta sentença da 1.ª instância), porque de conhecimento geral, não carecendo de prova nem de alegação nos termos do artigo 412.º do CPC – a verificação do mega-incêndio ou de “grandes proporções” que, na tarde e noite do fatídico dia 15 de Outubro de 2017, deflagrou e assolou o Norte e Centro do País, envolvendo oito distritos das regiões Centro, entre eles, Aveiro, Castelo Branco, Coimbra, Guarda, Leiria e Viseu, e Norte, entre eles, Braga e Viana do Castelo, atingindo, com inesperada violência e imprevisibilidade, entre outros, os concelhos da Lousã, Pampilhosa da Serra, Leiria, Seia, Arganil, Vale de Cambra, Sertã, Monção, Vagos, Ilhavo, Mira, Nelas, Mangualde, Gouveia, Oliveira do Hospital, Oliveira de Frades, Tábua, Penacova, Mortágua, Santa Comba Dão, e Tondela, neste último, atingindo, concretamente, entre outros locais, o Parque Industrial Municipal (PIM) de Tondela – Adiça.

VII. Fogos ocorridos no decurso da tarde/noite de domingo para segunda, em pleno mês de Outubro, e que semearam a destruição em grandes áreas territoriais, afetando não só espaços florestais, como também espaços urbanos, áreas agrícolas, matas nacionais, infraestruturas empresariais, equipamentos, instalações, mais de 220 habitações particulares, vias de comunicação rodoviária, incluindo auto-estradas e estradas municipais, provocando no país, lamentavelmente, 49 vítimas mortais e mais de 70 feridos.

VIII. Procedendo o dano de caso fortuito, não agiu a Ré com culpa.

IX. Sendo a deterioração da coisa não imputável, porque imprevista e inevitável, é o depositário exonerado, apesar da diligência que o depositário colocou na sua guarda.

 X. De facto, um dos requisitos da obrigação de indemnizar, no contexto da responsabilidade civil ex contractu, é que exista um facto voluntário e um nexo de causalidade entre a conduta do responsável, aqui Recorrida, e os danos sofridos pelo lesado por essa actuação culposa.

 XI. Não havendo conexão entre a ação (ou omissão) e o dano resultante, inexiste uma particular ligação que permita afirmar que o dano é imputável à Ré, isto é, que a alegada omissão da Ré seja uma das concretas condições do evento e que, em abstracto, seja apropriada ao seu desencadeamento.

XII. Em consequência, os danos no veículo suscitados pelo Autor-Recorrente e as reparações que lhe estão associadas, não podem assacadas à Ré-Recorrido.

XIII. Por outro lado, ficou demonstrado, ao contrário do que pretende o Autor Recorrente, não ter havido qualquer recusa ilegítima de entrega ou uma ação injustificadamente impeditiva do levantamento do veículo por parte da Ré Recorrida, que justifique a reparação por privação do uso.

XIV. Pelo contrário, que a causa impeditiva do levantamento do veículo se deu porque o Recorrente entendia que os danos eram imputáveis à Recorrida e que esta tinha obrigatoriamente de os suportar, conduta essa que, como bem salienta o Tribunal a quo, “enformou, inexoravelmente, as incidências disruptivas dos días 12 e 23 de Fevereiro de 2018”.

 XV. Do mesmo modo que, quanto a este segmento, à data do seu levantamento, o veículo não estava em condições de proporcionar as utilidades que o Recorrente reclama que o veículo teria por equivalência à data da sua imobilização, desde logo por força do danos provocados pelo incêndio mas também da sua imobilização prolongada.

XVI. Tendo sido demonstrado que o Recorrente não dispunha do veículo – porque subtraído por ordem judicial, desde Fevereiro de 2017, e que durante esse período de penhora de mais de 12 meses, socorreu-se de outros meios alternativos, não tendo sido provado que o Recorrente, por força de uma alegada privação, se tenha visto impedido de se deslocar para onde e quando quissesse.

XVII. Donde bem se pronunciou o Tribunal a quo sobre as questões ora suscitadas.

 XVIII. Diferentemente do exposto pelo Recorrente, entendemos que na sentença reclamada a prova foi produzida e as questões jurídicas ora invocadas convenientemente abordadas e conhecidas, independentemente do percurso trilhado coincidir, ou não, com o desejado pelo Autor.

XIX. Foi, aliás, partindo desse conhecimento e tratamento que se formou translúcida a convicção formulada pelo tribunal de 1ª instância

XX. Assim sendo, atenta a factualidade em apreço e os justos e acertados termos da sentença recorrida, deve a pretensão da recorrente soçobrar in totum, devendo o Tribunal ad quem indeferir

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Responsabilização da ré por o incêndio não reunir as características de excecionalidade e imprevisibilidade

2ª – Nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização por privação do uso.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. A propriedade do veículo automóvel de marca M  (...), modelo E 270 CDI, com a matrícula TI  (...), afigura-se registada em nome do Autor.

2. No âmbito do processo de execução nº. 5558/16.0T8VIS, em que era exequente a ré e executado o autor, que correu termos no Tribunal Judicial da comarca de Viseu – Juízo de Execução, em 2.2.2917, o veículo indicado em 1) foi penhorado, sendo que o agente de execução designou a Ré como fiel depositária do mesmo.

3. Em decorrência do enunciado em 2), o veículo foi removido da casa do autor sita em Viseu para as instalações da Ré sitas no Parque Industrial Municipal de Tondela/ Zona Industrial da Adiça, (…)  em Tondela, as quais se afiguravam vedadas, onde foi colocado na zona adjacente dos serviços administrativos da Ré.

4. Nos dias 15 e 16 de Outubro de 2017, toda a região centro foi afetada por um incêndio de grandes proporções, o qual atingiu o concelho de Tondela e também o Parque Industrial Municipal de Tondela/Zona Industrial, em Adiça.

5. O incêndio mencionado em 4) propagou-se pelas instalações da empresa C (…), Lda, as quais confinam a sul com as instalações da Ré referenciadas em 3).

6. Em consequência do sobredito incêndio, o calor que provinha do mesmo provocou danos no veículo com a matrícula TI  (...), designadamente, o mesmo ficou com as ópticas traseiras e o friso do para-choques derretidos e com o forro do tejadilho descolado.

7. No dia 07 de Fevereiro de 2018, em sede dos embargos de executado que correram termos sob o apenso A do processo referido em 2), o aqui autor (executado no identificado processo) e a aqui ré (exequente no referido processo) realizaram uma transacção, a qual foi homologado por sentença, consignando, designadamente, que:

“1 – Acordam em reduzir a quantia exequenda para o montante de 4.000,00€.

 2 – Além da quantia aludida no ponto anterior, o executado compromete-se a pagar à exequente a título de compensação de custas e encargos com o processo o montante de 2.000,00€.

 3. O pagamento das referidas quantias seria feito em prestações mensais e sucessivas de 500,00€, com inicio em Fevereiro de 2018 (…)

 4. Com o pagamento da primeira prestação o exequente procederá à entrega ao executado do veículo de matrícula PI  (...), que o executado se compromete a ir levantar na sede da exequente. (…)

8. No dia 12 de Fevereiro de 2018, o autor deslocou-se às instalações da ré com o intuito de levantar a supra identificada viatura.

9. Sucede que, chegado ao local, o autor verificou que a viatura apresentava as ópticas traseiras derretidas, estando empoladas/encolhidas e negras, situação extensível ao para-choques.

10. No circunstancialismo mencionado em 9), o gerente da Ré declarou ao Autor que, para proceder ao levantamento do carro, teria de assinar uma declaração de conteúdo não concretamente apurado, sendo que o Autor declarou recusar assinar a mesma.

11. Na sequência do citado em 10), o Autor ausentou-se do local sem poder proceder ao levantamento da viatura.

12. Em 19.2.2018, o Autor remeteu carta registada com aviso de recepção à Ré/r à ré, consignando, designadamente, que:

“No dia 12 de Fevereiro, estive presente nas V/instalações, em Tondela, para proceder ao levantamento da minha viatura marca M  (...), matrícula TI  (...) (…)

Contudo, constatei no local que a viatura apresentava as ópticas traseiras derretidas, estando empoladas/encolhidas e negras, situação extensível à mala e parachoques (…)

Sendo da sua incumbência a reparação de tais danos (…) comunico que irei diligenciar pelo transporte da mesma para a M  (...), par orçamentar os custos da sua eliminação, da sua responsabilidade (…)”

13. No dia 23 de Fevereiro de 2018, o Autor deslocou-se à sede da ré, com o objectivo de levantar a viatura e a transportar para a M  (...) em Viseu, tendo para o efeito contratado um camião-reboque e despendido a quantia de 62,00€ (sessenta e dois euros).

14. Chegados ao local, o gerente da Ré declarou que, para autorizar o levantamento da viatura, o Autor teria que assinar uma declaração de conteúdo não concretamente apurado, o que o autor declarou recusar.

15. No dia 2.3.2018, a gerência da Ré remeteu uma missiva para o Autor, informando que o veículo descrito em 1) se encontrava disponível para levantamento nas instalações da mesma sitas em Tondela.

16. No dia 8 de Março de 2018, o Autor procedeu ao levantamento do veículo nas instalações da ré e procedeu ao seu imediato transporte para a M  (...) na cidade de Viseu, tendo despendido com o transporte do veículo a quantia de 61,50€ (sessenta e um euros e cinquenta cêntimos).

17. Na decorrência do exposto, no dia 15 de Março de 2018, a F(…)–Concessionário e oficina Autorizada M  (...)- para veículos ligeiros, sita na (…), em Viseu, apresentou ao autor um orçamento para reparação dos danos descritos em 6) e 9), no valor de 3.440,17€ (três mil, quatrocentos e quarenta euros e dezassete cêntimos).

18. Por carta registada datada de 23 de Março de 2018, o Autor remeteu à Ré o orçamento enunciado em 17).

19. Em 25.5.2018, o Autor procedeu à reparação das ópticas traseiras do antedito veículo, tendo despendido a quantia de 507,99€ (quinhentos e sete euros e noventa e nove cêntimos).

20. Até à penhora indicada em 2), o predito veículo era utilizado diariamente pelo Autor e esposa nas suas vidas pessoais e profissionais.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

O julgador, depois de teorizar, curialmente, na sua essencialidade relevante, quanto aos pressupostos da responsabilidade aquiliana, decidiu a causa alcandorado no seguinte, sinótico, discurso argumentativo:

«…atesta-se linearmente que os anteditos danos no veículo TI foram induzidos pelo incêndio que, nos dias 15 e 16 de Outubro de 2017, atingiu toda a região centro, o qual atingiu o concelho de Tondela e também a zona industrial onde se localizam as instalações da Ré, que foi afectada pelo calor emanado das chamas.

Infere-se, assim, que o predito incêndio consubstanciou um evento extrínseco e de força maior, o qual perpetrou de forma imediata e inexorável a afectação do veículo do Autor, soçobrando, assim, qualquer culpa da Ré, i.e., não foram provados consubstanciadores da violação pela mesma dos seus deveres de guarda e cuidado, e naufragando os pressupostos da responsabilidade extra-contratual consignada no art.º 483.º, do Código Civil, pelo que os danos invocados pelo Autor são insusceptíveis de indexação à Ré.»

Já o recorrente entende que :

«o depositário judicial deve actuar com a diligência e zelo de um bom pai de família (bónus pater familiae) nos termos consagrados no artigo 487.º n.º 2 do Código Civil…

 O incêndio …não reúne as características de excepcionalidade e imprevisibilidade. E isto porque;

 É sabido e notório que Portugal é assolado, todos os anos por incêndios florestais de grande dimensão…

 Na data referida (15 de Outubro de 2017) e para o Distrito de Viseu, a Autoridade Nacional de Proteção Civil emitiu um alerta de GRAU DE RISCO EXTREMO consubstanciado em situação de perigo extremo, com possibilidade da ocorrência de fenómenos de intensidade excecional, dos quais é muito provável que resultem danos muito relevantes e uma redução muito significativa da segurança das pessoas, podendo ameaçar a sua integridade física ou mesmo a vida, numa vasta área.

A ré/recorrida, conhecedora dos riscos, poderia e deveria ter removido o veículo das suas instalações abrigando-o em local seguro. Até porque;

 Os danos que resultaram no veículo – facto provado 6 – não resultaram de contacto direto com o incêndio, mas antes do calor indirecto que provinha do mesmo.

 Sendo suficiente abrigar o dito veículo para que os danos não tivessem ocorrido.»

Perscrutemos.

No Código de Seabra os conceitos de caso fortuito e de força maior tinham consagração expressa.

Efetivamente, no artº  705º nº1 do CC de 1867, correspondente ao atual artº 790º nº1:

 «recorria-se a uma enumeração de conteúdo positivo, para discriminar os casos em que o devedor ficava exonerado de responsabilidade: esses casos eram os de o obrigado ter sido impedido de cumprir por facto do credor, por força maior ou por caso fortuito.»

Já o artº 790º do atual Código, sob a epígrafe «impossibilidade objetiva» estatui, no seu nº1:

«1. A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor

Verifica-se assim que o novo código:

 «usa uma fórmula de recorte negativo (não ser a causa de impossibilidade da prestação imputável ao devedor), semelhante à dos Códigos italiano, alemão, suíço e grego.

É mais ampla do que a do Código anterior, pois abrange o caso de a impossibilidade ser imputável a terceiro ou à própria lei, que a outra não abarcava no seu texto, além de tocar directamente as duas notas fundamentais (impossibilidade da prestação, por um lado; e não imputabilidade da causa ao devedor, por outro) justificativas da exoneração da responsabilidade do obrigado» -- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª ed., vol. II, p. 264.

 (sublinhado nosso).   

A assim ser, não  queda inaceitável e indefensável, antes pelo contrário, que, não obstante a não referência expressa a estas figuras, a previsão do citado segmento normativo do artº 790º do CC outrossim as inclua ou admita.

O conceito de impossibilidade objetiva da prestação, pode ser encarada perante duas vertentes ou perspetivas, a saber:

«Entendendo-se como um conceito naturalístico, lógico e volitivo impossível identifica-se "quid non volit non potest - tese consagrada …em Itália, Espanha, Portugal (maioritariamente) e Alemanha (minoritariamente).

Contrapondo-se-lhe um entendimento filosófico - jurídico mais amplo, nascido na Alemanha, repassado pelo elemento correctivo da boa fé (X 242 CC Al) será impossível o que não possa de modo équo ser exigido ao devedor.

"Uma prestação que só possa ser realizada sob um esforço externo e com aplicação de meios totalmente desproporcionados não deve mais ser tratada como possível pela ordem jurídica" - Misch.» -  Ac. do STJ de 27.09.1994, p. 084991, in dgsi.pt.

A previsão do artº 790º nº1 admite estas duas interpretações.

Podendo ele integrar as figuras do caso fortuito ou de força maior urge atentar nas possíveis definições destes conceitos.

Assim, e desde logo numa perspetiva de Direito Administrativo:

 «força maior é o facto imprevisível e não querido pelo agente que o impossibilita absolutamente de agir segundo as resoluções de vontade própria, quer paralizando-a, quer transformando o indivíduo em cego instrumento de forças externas irresistíveis.» - Marcelo Caetano  in Manual de Direito Administrativo, II, 9ª ed., 1306, apud Ac. RP de 26.02.2004, p. 0430314, in dgsi.pt.

Numa ótica mais civilista,  mas com a mesma essência e sentido teleológico, entende-se que:

«O caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências.

O caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: o facto não se pôde prever, mas seria evitável se se tivesse previsto» - Ac. do STJ de 27.09.1994, cit.

Ademais, e na conflitualidade/dialética que sempre surge entre a realização da justiça e a obtenção da certeza e segurança que a ordem jurídica outrossim clama, urge atentar que:

«…no direito norma, apura-se o interesse tutelado a actio legis, aferidos os valores.

…no direito judiciário, na aplicação do direito do caso concreto, há que alargar o campo de sensibilização axiológica do direito ao facto concreto, com características naturalistas, históricas e sociológicas próprias, numa aproximação dialéctica de facto à norma, indutivamente» - Ac. do STJ. cit.

6.1.2.

Volvendo ao caso vertente.

Provou-se, nuclearmente, que:

Em «15 e 16 de Outubro de 2017, toda a região centro foi afetada por um incêndio de grandes proporções, o qual atingiu o concelho de Tondela e também o Parque Industrial Municipal de Tondela/Zona Industrial, em Adiça.

5. O incêndio mencionado em 4) propagou-se pelas instalações da empresa C (…), Lda, as quais confinam a sul com as instalações da Ré referenciadas em 3).

6. Em consequência do sobredito incêndio, o calor que provinha do mesmo provocou danos no veículo com a matrícula TI  (...), designadamente, o mesmo ficou com as ópticas traseiras e o friso do para-choques derretidos e com o forro do tejadilho descolado.»

(sublinhado nosso)

Pode admitir-se que estes factos não permitem concluir pela  existência de uma situação  de caso fortuito.

 Pois que dos mesmos não pode retirar-se a caraterística da total imprevisibilidade do incêndio para a ré.

Na verdade, considerando os incêndios que já tinham existido na região nesse verão, em junho, e as cautelas que as entidades competentes  terão aconselhado – tal como o alegado, mas não provado, Aviso mencionado na conclusão 17 – para interiorizar, prevenir e combater possíveis incêndios, a ré sabia, ou, o que é o qb, era-lhe exigível que soubesse, que tais incêndios poderiam ocorrer e, assim, tomasse as medidas necessárias para obstar aos,  e combater os, seus efeitos nocivos, vg.  como o que ora nos ocupa.

Porém, de tais factos, devida, sensata e razoavelmente interpretados,  já se pode concluir que estamos perante um caso de força maior.

Efetivamente, os incêndios de outubro de 2017 atingiram uma dimensão e uma intensidade inintuíveis pelo homem médio, e  inevitáveis e  incontroláveis nos seus efeitos.

Assim sendo, esta dimensão e intensidade não eram previsíveis para ninguém, e muito menos para o normal homo prudens, como, à míngua de prova em contrário noutro sentido, se devem taxar os gerentes da ré.

Facto frisante e decisivo no sentido da inimputabilidade à ré, é que o veículo  não foi atingido diretamente pelas chamas mas antes e apenas foi parcialmente afetado pelo efeito indireto do calor do fogo; o que demonstra a dimensão e a intensidade inusitadas do sinistro.

Daqui se pode retirar a, possível e admissível, interpretação de que estando o veículo guardado nas instalações da ré elas não confinavam diretamente com material combustível,  pelo que a existência de um incêndio relativamente menos intenso e mais pequeno e localizado não seria suficiente para danificar o carro, ao menos apenas através das suas ondas de calor.

Assim, e em termos de uma certa normalidade, situação esta em direito relevante e atendível, o veículo estava bem guardado.

Por conseguinte, tal dano só  foi possível porque os incêndios atingiram proporções monumentais com uma dimensão e intensidade calórica excecionais que originou a projeção de  ondas de calor a maiores distâncias e a uma temperatura ainda suscetível de provocar danos como os  do presente jaez.

Mas a assim ser, como se entende, então a final conclusão a retirar é que a ré, mesmo estando cônscia, ou sendo-lhe exigível que estivesse, que um incêndio podia ocorrer, não podia prever, nem lhe era exigível que previsse, a sua magna dimensão, intensidade e consequências, ie. fosse de tal modo intenso e calórico que as  suas «simples» ondas de calor ainda pudessem danificar o veículo, ou outros bens, que guardava nas suas instalações.

6.2.

Segunda questão.

Há efetivamente omissão de pronúncia.

Como diz o recorrente, o pedido de privação do uso não queda inelutavelmente prejudicado pelo indeferimento do pedido da reparação dos danos.

É que tal pedido assenta na  recusa ilegítima da ré/recorrida de entregar a viatura, pelo período de 25 dias.

Estamos, pois, perante um pedido e causa de pedir alicerçante autónomos, e que, repete-se, assim, não são, necessariamente, prejudicados pelo indeferimento do outro pedido.

Nos termos do artº 665º nº 1 do CPC urge declarar tal nulidade e  conhecer deste pedido.

Conhecendo.

Reitera-se aqui o que,  nesta matéria e a  este propósito, foi expendido por este mesmo coletivo no Ac. RC 16.03.2016, p. 288/14.0T8LRA.C1,   publicado in dgsi.pt:

«Sobre este tema da privação do uso, máxime de uso de veículo, desenham-se duas posições na nossa jurisprudência.

Uma, que julgamos minoritária, no sentido de que a mera indisponibilidade do bem constitui, só por si, dano indemnizável, independentemente da sua utilização efetiva – cfr. Ac. do STJ de  08.05.2013, p. 3036/04.9TBVLG.P1.S1

 Outra,  que supomos maioritária, que propende para a obrigação de ser provada a necessidade do veículo e a existência de prejuízos; porém sem a exigência de os demonstrar minuciosamente, concedendo-se algum alívio probatório, pois que os danos decorrentes de tal privação, dimanam, desde logo - perante a premência da necessidade do automóvel na moderna sociedade -, das regras da lógica e da experiencia comum - Cfr. Acs. do STJ de 13-12-2007, dgsi.pt, p.07A3927, de 16-09-2008, p.8A2094,  de 30-10-2008, p.08B2662, de 30-10-2008  p. 07B2131 e  de 10.01.2012, p. 189/04.0TBMAI.P1.S1., de  04.07.2013, p. 5031/07.7TVLSB.L1.S1 e de 30.04.2014, p. 353/08.2TBVPA.P1.S1.

Adere-se a esta última corrente, na consideração, não, apenas, de se tratar de posição maioritária, mas, também, de ela se enquadrar melhor no nosso sistema jurídico, que faz depender a obrigação de indemnizar da existência concreta de danos.

É o que resulta, desde logo, do princípio geral da responsabilidade civil, estabelecido no n.º 1 do artigo 483.º do CCivil, e, depois, dos preceitos específicos sobre a matéria, nomeadamente os artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566.º.

Na verdade, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil depende da existência de danos e pressupõe a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu  -artº 563º do CC.

Assim, a simples privação da possibilidade de uso do veículo  não é fator de atribuição de equitativa indemnização,  sendo ainda necessário demonstrar a concreta utilização que o lesado daria ao mesmo durante o período em que não o pode utilizar, a não ser que alegue outros prejuízos para além dessa privação.

É que os juízos de equidade não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável derivado de facto ilícito lato sensu, porque o referido suprimento só ocorre em relação ao cálculo do respetivo valor em dinheiro.

Acresce que, em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos – artº 566º, nº 2, do CC.

A referida regra de cálculo da indemnização em dinheiro, inspirada pelo princípio da diferença patrimonial, não dispensa o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afetada.

Assim a mera privação do uso de um veículo automóvel é insuscetível de, só por si, fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, pois que pode não ter qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante.

Porque, vg. existiam outros meios de transporte à  disposição do dono ou porque acabou por deles não necessitar.

Donde que seja um ónus do lesado não apenas a alegação em abstrato de danos decorrentes da privação da viatura por falta de reparação da entidade responsável, sendo necessária a alegação e prova concreta das situações em que a viatura deixou de ser fruída, mesmo que essa fruição ou gozo se traduza em atividades não lucrativas e se enquadre em aspetos úteis, lúdicos ou beneméritos.  

Isto, repete-se, sem prejuízo de entendermos que a prova a efetivar pelo lesado deve ser algo aliviada, não devendo exigir-se como reportada a factos minuciosos, pois que efetivamente, as regras da experiencia e da normalidade das coisas nos inculcam a ideia que, nos dias que correm e atenta a hodierna organização económico-social, a perda do uso de um veículo automóvel, por regra, acarreta afetações negativas e até prejuízos para o seu dono- Cfr. Ac. do STJ de 15.11.2011, dgsi.pt., p. 6472/06.2TBSTB.E1.S1 e de 30.04.2014, citado.»

Ora no caso vertente não se apuraram factos bastantes para atribuir ao recorrente indemnização pela privação do uso.

Primeiro, porque não se apurou – rectius, o recorrente não logrou provar, como era seu ónus -  que o motivo pelo qual o recorrente não levou o veículo logo em 12 e 23  de fevereiro de 2018 seja  imputável à ré/recorrida.

Efetivamente, apenas se apurou que  para o levantamento a ré exigiu ao autor o preenchimento de uma declaração que este  recusou; mas não se apurou o teor de tal declaração.

Queda, pois, impossível de averiguar se o teor da declaração permitia ou não, ao autor efetivar a sua recusa; sendo que só naquele caso a atuação da ré poderia ser censurável e responsabilizante a este título.

Ademais, e versus o alegado pelo recorrente, do facto 16 não dimana que a ré  deixou  de levantar o veículo sem exigência de qualquer declaração ou outro requisito: apenas se provou que ele em tal data o levantou.

Em segundo lugar, porque  o autor não provou a utilização que daria ao veículo; e  do facto 20 não pode concluir-se por uma sua  utilização posterior da mesma índole; a qual poderia não ter-se verificado; por vários motivos: porque pode ter outro veículo, porque alguém lhe emprestou um  graciosamente, porque alterou o seu modo de vida,  etc.

Em terceiro lugar, e em todo o caso, porque inexistem nos autos elementos suficientes  para fixar, equitativamente, o valor da indemnização.

Efetivamente, equidade não pode ser confundida com arbitrariedade.

Destarte, a decisão alicerçada no juízo équo apenas pode  emergir quando existam elementos fáctico circunstanciais objetivos e fidedignos que a amparem; tudo de modo a que ela possa ser sindicada na sua justeza, como exige  a Constituição e a Lei -  artºs 208º nº 1 da Constituição e 154º nº 1 do CPC.

O que in casu não se verifica, até porque é o próprio autor que, na sua contestação, alegou que não alugou qualquer veículo – artº 61.

Improcede o recurso.

7.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - O artº 790º do CC admite um conceito lato de impossibilidade objetiva da prestação – i.e. tanto na vertente naturalista e lógico volitiva, como na ótica filosófica do juízo équo – e  encerrando em si os conceitos de caso fortuito ou de força maior.

II - O caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: o facto não se pôde prever, mas seria evitável se se tivesse previsto.

III - O caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências.

IV -O dano parcial  num veículo automóvel, guardado pela ré nas suas  instalações, provocado pelos  enormes e intensos incêndios de outubro de 2017, e nem sequer diretamente pelas chamas mas apenas indiretamente pelas sua fortes ondas de calor, está, porque facto inevitável ao menos nos seus efeitos, acobertado e justificado pela força maior.

V - A indemnização pela privação do uso de automóvel exige a prova, posto que algo aliviada, da sua necessidade, bem como do prejuízo dela decorrente.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2020.05.05

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos