Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
716/14.4TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
DEPENDÊNCIA ECONÓMICA DO PRESTADOR
Data do Acordão: 11/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUIZO DO TRABALHO DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 11.º DO CT E 115.º DO CT.
Sumário: I) Tem uma função meramente residual a equiparação legalmente estabelecida entre o contrato de trabalho e a prestação de serviço em situação de dependência económica, destinando-se tal equiparação a proteger com a legislação infortunística dos acidentes de trabalho as situações de trabalho autónomo em que a relação económica seja semelhante à que normalmente se verifica no domínio do contrato de trabalho.

II) A dependência económica pressupõe, designadamente: i) a integração do prestador, de modo tendencialmente duradouro e exclusivo, no processo empresarial de outrem, sendo com ela incompatíveis situações de prestação de serviços sem contrapartida retributiva ou, por outro lado, meramente casuais ou esporádicos; ii) a inaproveitabilidade por terceiro da atividade desenvolvida, não sendo determinante, embora possa relevar, que o trabalhador não tenha outro emprego, outro salário ou outro beneficiário da sua atividade profissional.

III) Não pode considerar-se em situação de dependência económica aquele que foi contratado para exercer as funções de operador de recenseamento eleitoral no processo de recenseamento eleitoral a realizar para as eleições legislativas do ano de 2011, em dias descontinuados, prevendo-se que tal atividade recenseadora fosse desenvolvida durante alguns e poucos meses.

Decisão Texto Integral:










Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

O autor propôs contra o réu a presente ação especial emergente de acidente de trabalho, tendo deduzido o pedido seguidamente transcrito:

Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente ação ser julgada procedente e provada, e, em consequência, ser o Réu condenado a:

a) reconhecer o acidente como de trabalho;

b) e, em consequência do dano dele resultante, pagar ao Autor as seguintes prestações:

1 - o montante de 25€ de transportes para deslocações ao Tribunal e ao Instituto de Medicina Legal;

2 - o montante de 5.194€ de gastos em assistência médica e medicamentosa, fraldas, sacos de colostomia calculados desde a data do acidente até esta data (06.2.2017), a que acrescerão as despesas que terá necessidade de efectuar após esta data (06.2.2017) e até se mostrar necessário;

3 - de indemnização por incapacidade temporária o montante de 4.471,25€ relativa aos primeiros 365 dias (70%), acrescido de 6.352,50€, reportada aos restantes 484 dias (75%);

4 - de pensão anual e vitalícia no valor de 5.040€, com início a 29.03.2013, no valor de 5.060,16 € a partir de 01.1.2014, no valor de 5.080,40 € a partir de 1.1.2016, actualizável de acordo com a Lei;

5 - de subsídio de elevada incapacidade no valor de 5.533,70 €;

6 - de prestação suplementar para assistência de terceira pessoa no montante mensal de 461,14 €, em 14 meses por ano, a partir do dia 30.05.2012 e enquanto se mantiver a situação de dependência de terceira pessoa;

7 - de prestações em espécie adequadas à sua reabilitação para manutenção do seu potencial funcional;

8 - juros de mora, nos termos legais.”.

Alegou, em resumo, que quando trabalhava para o réu sofreu um acidente de trabalho de que resultaram para si as lesões e sequelas que melhor descreve na petição, estando por isso constituído no direito às prestações infortunísticas correspondentes ao pedido deduzido.

O réu contestou, pugnando pela improcedência da ação.

Alegou, em resumo, que o autor trabalhava para si no âmbito de um contrato de prestação de serviço entre ambos outorgado, sendo que por isso não beneficia da tutela infortunística consagrada no regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho.

Por outro lado, estando em causa um acidente que foi qualificado como sendo de viação, o autor já foi indemnizado pela seguradora responsável por esse acidente pelos danos dele decorrentes para si, razão pela qual o réu deveria ser desonerado do dever de pagamento de qualquer prestação infortunística pecuniária até ao limite da indemnização já recebida.

Respondeu o autor para, em resumo, reafirmar o alegado na petição, concluir como aí tinha feito e pugnar pela improcedência da desoneração prestacional sustentada pelo réu.

O processo prosseguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:

Pelo exposto e ao abrigo dos normativos citados, julgo procedente a presente Acão de efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência;

- Declaro que o sinistrado, A..., se encontra afetado de uma Incapacidade Permanente Absoluta para todo o qualquer trabalho – IPA - desde 29/03/13, mercê do acidente de trabalho, objeto dos presentes autos;

Consequentemente,

- Condeno o Réu, Estado de Cabo Verde, a pagar ao referido sinistrado, o seguinte:

a) Uma pensão anual e vitalícia, no montante de €5.040,00 – cinco mil e quarenta euros -, com início a 29/03/13 - vd. artigo 48º, nº3, alínea a) da Lei 98/2009 de 04 de Setembro – (450,00x14 =€6.300,00x0,80=€5.040,00 - vd. artigo 71, nº3 da Lei 98/2009 de 04/09), atualizada, para €5.060,16 – cinco mil e sessenta euros e dezasseis cêntimos - desde 01/01/14 (Portaria - 378-C/2013, de 31/12 – 0,4%) e para €5.080,40 – cinco mil e oitenta euros e quarenta cêntimos - desde 01/01/16 (Portaria 162716 de 09/06- 0,4%) e para €5.105,80 – cinco mil, cento e cinco euros e oitenta cêntimos - desde 01/01/2017 (Portaria 97/2017 de 97/03 – 0,5%) e para €5.197,71 – cinco mil, cento e noventa e sete euros e setenta e um cêntimos - desde 01/01/18, (Portaria 22/2018 de 18/01 – 1,8%) e para €5.280,87 – cinco mil, duzentos e oitenta euros e oitenta e sete cêntimos -, desde 01/01/19 (Portaria 24/19 de 17/01- 1,60%);

b) A quantia de €10.675,48 – dez mil, seiscentos e setenta e cinco euros e quarente e oito cêntimos -, a título de Incapacidades Temporárias;

c) A quantia de €461,14 – quatrocentos e sessenta e um euros e catorze cêntimos - a título de prestação suplementar por dependência de 3ª pessoa, desde 29/03/13, em 14 vezes ano (1,1 IAS=€419,22x1,1), atualizada para €463,45 – quatrocentos e sessenta e três euros e quarenta e cinco cêntimos - desde 01/01/2017 (1.1 IAS=€421,32x1,1) e para €471,79 quatrocentos e setenta e um euros e setenta e nove cêntimos desde 01/01/2018 (1,1 do IAS=€428,90x1,1) e para €479,34 - quatrocentos e sessenta e nove euros e trinta e quatro cêntimos - desde 01/01/2019 (1,1 IAS=435,76x1,1);

d) A quantia de €5.533,70 – cinco mil, quinhentos e trinta e três euros e setenta e cêntimos - a título de subsídio de elevada incapacidade;

e) A quantia que se vier a apurar em execução de sentença, a título de reembolso de despesa de deslocação;

f) A quantia de €152,96 - cinquenta e dois euros e noventa e seis cêntimos - a título de despesas de médica-medicamentosas, acrescida, da que se vier a apurar em execução de sentença;

g) As quantias que se vierem a mostrar necessárias e adequadas á sua reabilitação, para manutenção do seu potencial funcional, a título de outras Prestações em espécie.


***

Condeno ainda o Réu, Estado de cabo Verde, a pagar ao sinistrado os juros de mora, à taxa legal, sobre cada uma das prestações, desde o respetivo vencimento, até integral pagamento;

Julgo improcedente a requerida pelo Réu desoneração do pagamento das quantias aqui devidas ao Autor, enquanto as mesmas coubessem no montante indemnizatório que já pagou, no âmbito do processo de acidente de viação, melhor identificado nos autos.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o réu, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:
...

Contra-alegou o autor, pugnando pela improcedência da apelação.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência da apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) saber se a sentença recorrida padece das causas de nulidade que lhe são assacadas pelo apelante;

2ª) saber se caducou o direito de ação do autor;

3ª) saber se o tribunal recorrido não podia ter concluído no sentido de que o apelado se encontrava economicamente subordinado ao apelante e se, por isso, não devia ter sido reconhecida ao apelado a tutela infortunística que lhe foi conferida na sentença recorrida;

4ª) saber se o tribunal recorrido devia ter desonerado o apelante, já nesta acção, de pagar ao autor qualquer compensação, indemnização, prestação, subsídio ou pensão referente ao acidente em causa nesta acção, até ao limite dos € 640.000,00 (seiscentos e quarenta mil euros) que o autor já recebeu por causa desse mesmo acidente e da seguradora responsável pelo mesmo enquanto acidente de viação.

III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido enunciou como provados os factos seguidamente transcritos:

1 - O autor nasceu em 22/09/1987, e, à data do acidente, tinha 23 anos de idade;

2 - O autor foi contratado no âmbito do concurso público para operador de recenseamento eleitoral;

3 - tendo sido seleccionado em 6º lugar;

4 - e iniciou as suas funções de recenseamento eleitoral, promovido em Portugal pela Embaixada de Cabo Verde, para as eleições que se iriam realizar nos inícios de 2011;

5 - Para o efeito o Autor realizou uma formação organizada pelo Réu, em Lisboa;

6 - tendo-lhe sido pagas - pelo Réu - todas as despesas de deslocação, hotel e alimentação, durante o período de formação;

7 - O trabalho desenvolvido pelo autor, era sediado no Consulado de Cabo Verde, em Coimbra, sendo, igualmente, desenvolvido em diversas localidades da região centro de Portugal, designadamente na Lousã, Figueira da Foz, Viseu;

8 - O horário de trabalho do Autor, estabelecido pelo Réu, era o horário de funcionamento do consulado do Réu em Coimbra, ou seja, das 09h00m às 15 horas com intervalo para almoço das 12h15m às 13h15m;

9 - E auferia por mês a quantia de 450 €;

10 - Era o Réu que definia, escolhia e contratualizava o local exacto onde o trabalho era desenvolvido, fora da cidade de Coimbra, e aí disponibilizava todos o material necessário para que o Autor desenvolvesse as suas funções, designadamente mesas, cadeiras, ligação à internet;

11 - No dia 30.11.2010, cerca das 11h20m, na auto-estrada A 24, ao km 125,400, no sentido Viseu – Lamego, ocorreu um acidente de viação, encontrando-se o Autor, dentro da viatura do Réu, conduzida por um motorista do Réu, para o exercício das suas funções supra mencionadas;

12 - No qual sofreu lesões, em particular: fratura grave da coluna cervical, com traumatismo medular;

13 - De tais lesões resultou, para além do mais, tetraplegia completa, de que o autor ficará afectado para toda a sua vida;

14 - necessitando, para além do mais, de meios de locomoção mecânica adequados e do auxílio de terceira pessoa, para satisfazer as suas necessidades vitais mais elementares;

15 - Foi atribuído ao Autor, como data da consolidação médico-legal das lesões o dia 28.03.2013;

16 - O Autor, desde a data do acidente até à actualidade, encontra-se afectado de incapacidade total e absoluta para o trabalho;

17 - Incapacidade total essa, que se manterá, seguramente, durante toda a sua vida;

18 - Em consequência do acidente, o Autor sofreu uma incapacidade temporária absoluta - ITA - num período total de 849 dias (de 01.12.2010 a 28.03.2013);

19 - e uma incapacidade permanente absoluta - IPA - fixável em 100%;

20 - As sequelas sofridas pelo Autor, em consequência do acidente ajuizado, determinam dependência de terceira pessoa, para todas as actividades da vida diária;

21 - designadamente para se alimentar, vestir, calçar, tomar banho, pentear, realizar cuidados básicos de higiene, cozinhar, arrumar, fazer a cama, realizar compras de supermercado e de vestuário / calçado, deslocar-se;

22 - bem como a necessidade de manter regularmente um programa de medicina física e de reabilitação, para evitar degradação física, e/ou, complicações a nível pneumológico, bem como manter seguimento nas consultas das especialidades de pneumologia e urologia;

23 - Na tentativa de conciliação que nos autos faz folhas 169 a 170 dos autos, o Réu não aceitou a responsabilidade na reparação do acidente, por não reconhecer o autor como trabalhador subordinado e não aceitou o resultado do exame médico;

24 - Após a Formação a que se alude em 5), e a partir de 01 de agosto de 2010, o Autor (juntamente com mais 3 colegas – ... – distribuídos em duas equipas compostas por um agente recenseador e um administrador, sendo que apenas tinha de estar presente, dentro do horário do funcionamento do Consulado, uma equipa completa, combinando entre eles, qual a equipa que estaria presente e em que período, geralmente em dias alternados), executou as funções próprias da categoria profissional de operador de recenseamento eleitoral, do Estado de Cabo Verde, nomeadamente as seguintes:

- receber os cidadãos cabo-verdianos e, com base no bilhete de identidade ou passaporte de Cabo Verde por estes apresentado, introduzir os dados no sistema informático do Réu (designadamente nome da pessoa a recensear e a sua morada em Portugal);

- proceder à recolha da fotografia e da assinatura digitais destes;

- imprimir o documento elaborado, após o seu preenchimento, para confirmação e assinatura daqueles;

- proceder à sincronização dos dados recolhidos no sistema informático;

25 - e estava subordinado hierarquicamente de forma direta à Drª. M..., Presidente da Comissão de Recenseamento Eleitoral do Réu, da qual recebia ordens e instruções, sobre o modo como o serviço devia ser cumprido;

26 - O Autor, no exercício das suas funções – de agente recenseador, na equipa que fazia com a ..., que era a administradora -, sempre utilizou o material, os utensílios, os objectos e demais instrumentos de trabalho, fornecidos pela Comissão Nacional de Eleições – Kit de recenseamento biométrico (Câmara fotográfica, aparelho de recolha de impressões digitais, aparelho de recolha de assinatura digital e uma impressora etc.);

27 - sendo que era a Comissão Nacional de Eleições (de cujos membros eram também membros da Embaixada) que lhe assegurava o apoio físico, material e humano de que necessitava para o exercício das suas funções;

28 - A quantia pecuniária a que se alude em 9), à data, era o único rendimento do Autor, pois que já tinha terminado a Bolsa de estudo, paga pelo estado de Cabo Verde, de que anteriormente gozou;

29 - Sempre que havia necessidade de realizar as suas funções, fora da cidade de Coimbra, era a Drª. M... que estabelecia o horário e o dia de deslocação, sendo certo que se uma das equipas não pudesse, ia a outra;

30 - E era a Drª. M... que, quando era necessário ir para fora de Coimbra, acordava com o motorista da embaixada, membro do seu quadro de pessoal, o serviço de deslocação das equipas do recenseamento eleitoral, em viatura própria da embaixada;

31 – O Autor deslocou-se ao Tribunal no dia 27/09/16 e ao Instituto de Medicina Legal, nos dias, 31/07/15 e 13/01/16 – vd. folhas 32, 105 e 169 - tendo gasto uma quantia não concretamente apurada;

32 - o Autor despendeu em assistência médica e medicamentosa, fraldas, sacos de colostomia o montante melhor constante dos documento juntos a folhas 427 a 431 e 432 verso, no valor global de €152,96 e um montante médio mensal, que não se apurou, em concreto;

33 - O Autor foi contratado pelo Réu, através da Comissão Nacional de Eleições, para realizar executar as funções a que se alude em 24), no âmbito de processo de recenseamento eleitoral, na diáspora, para as eleições legislativas, ocorridas no ano de 2011 em Cabo Verde, com vista à actualização dos cadernos eleitorais;

34 - Previa-se que tal tarefa, fosse cumprida em alguns meses, que não se apuraram em concreto, sendo que no caso do Autor e da ~..., que com ele fazia equipa, após o acidente em causa nos autos, não voltaram a trabalhar;

35 - O Réu, vem consignando esta tarefa, preferencialmente, a estudantes Cabo Verdianos, porquanto, não os impedindo de frequentar as suas aulas e cumprir com os seus currículos académicos, isso lhes permite auferir um complemento – ainda que temporalmente limitado - às suas bolsas de estudo, e/ou, outros rendimentos, para fazer face às suas despesas com os estudos;

36 - Este tipo de tarefa realiza-se apenas nos anos em que há eleições e é cumprida em poucos meses;

37 - À semelhança do que vem sendo hábito, o Réu, no ano de 2010, recrutou os estudantes, maioritariamente bolseiros, que entendeu necessários para o cumprimento da tarefa de recenseamento eleitoral;

38 - As deslocações a que se alude em 10, eram realizadas em datas pré-programadas e eram antecipadamente dadas a conhecer aos prováveis recenseandos e realizadas em horário, também ele, previamente conhecido dos utentes;

39 - O Autor, à data do acidente, encontrava-se a frequentar um curso de mestrado;

40 - A indemnização recebida, no âmbito do processo de acidente de viação - processo nº ... – foi complementada por diversos equipamentos de mobilidade e apoio, melhor constantes dos artigos 3º e 4º do documento junto a folhas 153;

41 - Para além do montante, não concretamente apurado, a que se alude em 32), o Autor gastou, a título de assistência medicamentosa e fraldas, os montantes melhor constantes dos documentos juntos a folhas 289, no valor global de €83,10;”.

B) De Direito

Primeira questão: saber se a sentença recorrida padece das causas de nulidade que lhe são assacadas pelo apelante.

Começa o recorrente por arguir a nulidade da sentença pela circunstância de nela não se ter conhecido da questão da caducidade do direito de acção do recorrido.

Ora, tanto quanto foi possível alcançar pela análise dos autos, tal questão não foi suscitada pelas partes nos articulados oportunamente apresentados, sendo certo que enquanto causa extintiva do direito do autor competia ao apelante o ónus de alegação e prova dos factos integradores dessa exceção perentória (art. 342º/2 do CC).

Por outro lado, nos termos do art. 179º/1 da LAT/2009 “O direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.”.

Dos factos provados não resulta que a alta clínica do recorrido lhe tenha sido formalmente comunicada, além de que também não resulta dos autos que essa comunicação formal tenha sido alegada pelas partes.

A significar que o tribunal recorrido não tinha o dever de se pronunciar sobre a questão da caducidade do direito de ação do recorrido, seja porque tal questão não foi suscitada pelas partes, em especial pelo apelante sobre quem recaía tal ónus de alegação, seja porque dos factos provados não resulta que tenha sido demonstrado aquele que integra o termo inicial do prazo de caducidade supra aludido.

Neste enquadramento, não foi cometida qualquer nulidade por consequência do facto de a questão da caducidade ora em equação não ter sido abordada na sentença recorrida.


Δ

Considera o apelante que a sentença recorrida é nula por nela ter sido abordada a questão da (in)existência de um contrato de trabalho entre o apelante e o apelado.

Ora, tal questão foi expressamente suscitada pelas partes: i) pelo autor, nos artigos 1º) a 21º-A) da petição, onde se alegaram factos integradores da existência de uma relação de trabalho subordinado entre o autor e o réu; ii) pelo réu, nos arts. 3º) a 20º) da contestação, onde se pugnou pela inexistência de um contrato de trabalho entre o autor e o réu e pela qualificação da relação profissional estabelecida entre os mesmos como sendo de prestação de serviço.

Assim, tendo o autor alegado, como pressuposto da tutela infortunística a que se arrogou, a existência de uma relação de trabalho subordinado entre ele e o réu, e tendo este negado tal relação, qualificando-a antes como de prestação de serviço, o tribunal recorrido estava obrigado a conhecer da questão (in)existência de um contrato de trabalho entre o apelante e o apelado, pelo que ao dela conhecer não cometeu qualquer espécie de nulidade.


Δ

Considera o apelante que existe contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, com a consequente nulidade da sentença (art. 615º/1/c do NCPC), pois que conclui pela verificação de uma situação de dependência económica do apelado perante o apelante, sendo que essa conclusão deve ter-se por postergada em face do descrito nos pontos 28º), 35º), 37º) e 39º) dos factos descritos como provados.
Nos termos do art. 615º/1/c do NCPC, é nula a sentença quando, além do mais, os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Para que se verifique esta causa de nulidade, necessário é que os fundamentos estejam em oposição com a decisão, isto é, que os fundamentos nela invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença ou o acórdão expressa.
Nestes casos de nulidade, a decisão opõe-se aos fundamentos em que repousa, verificando-se um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, uma direcção diferente - das premissas de facto e de direito extrai-se uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído[1].
Importa reter que não integra este vício aquele que emerge de uma errada subsunção jurídica dos factos dados como provados e que se traduz num erro de julgamento que não envolve a anulação da sentença em crise mas sim a sua substituição por outra decisão que elimine aquela errada subsunção.
No caso em apreço, a sentença recorrida considerou que os factos descritos como provados permitem concluir no sentido de que o autor prestava o seu trabalho ao réu numa situação de dependência económica em relação ao réu, mas sem que ocorresse uma situação de subordinação jurídica do primeiro em relação ao segundo.
São elucidativos, a este respeito, os seguintes trechos da decisão recorrida: “Daqui decorre que o regime de reparação e acidentes de trabalho e doenças profissionais, previsto na Lei nº 98/2009, de 4/09, é aplicável ao trabalhador que preste o seu serviço numa situação de dependência económica do beneficiário do serviço prestado, quando essa prestação ocorra numa situação de ausência de subordinação jurídica, o que, com o devido aspeito, por opinião contrária, é o caso dos autos, senão vejamos: …”; “Da análise das normas supra aludidas, e como supra já se referiu, o regime relativo a acidentes de trabalho e doenças profissionais, regulado na lei 98/2009 de 4/9 – LAT, aplica-se, para além das situações de laboralidade previstas no Contrato de Trabalho – trabalhadores por conta de outrem de qualquer atividade, seja ou não explorada com fins lucrativos -, também a outros casos e designadamente ao em apreço nos autos, porquanto e face à matéria provada, não obstante não se terem provado factos suficientes, para caraterizar a relação entre as partes, como se tratando de um contrato de trabalho, para além do mais pela manifesta falta de subordinação jurídica, a alegada pelo Réu, Prestação de Serviços, e/ou, trabalho autónomo, dada a dependência económica, do Autor, também provada, não afasta a possibilidade de se considerar o acidente em causa, equiparado a acidente de trabalho e como tal é-lhe aplicável o regime da LAT a que supra se alude.”.
Em concordância com o assim sustentado, o tribunal recorrido concluiu no sentido de que “… forçoso se torna concluir, com o devido respeito por opinião contrária, que face à prova produzida e ainda que no âmbito da alegada prestação de serviços, o acidente em causa, se integra no conceito de acidente de trabalho.”, reconhecendo ao autor, concordantemente com tal conclusão, a tutela infortunística prevista no regime jurídico dos acidentes de trabalho para as vítimas de acidentes dessa natureza.
Não se divisa, pois, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, antes se verifica uma coerência e conformidade entre uns e outra.
Saber se aqueles referenciados factos foram ou não erradamente subsumidos à normatividade aplicável implica uma apreciação da eventual existência de uma situação de erro de julgamento que não de oposição entre os fundamentos e a decisão.
Não se verifica, assim, a causa de nulidade em apreço.

Δ

O apelante considera que a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia, pois não conheceu da exceção arguida pelo réu na contestação e no sentido de ser desonerado “… de pagar ao Autor qualquer compensação, indemnização, prestação, subsídio ou pensão referente ao acidente de viação em causa, enquanto estas couberem no montante de indemnização no valor de € 640.000,00 (seiscentos e quarenta mil euros) já pago pela seguradora ao Autor.”, pois que o acidente relatado na petição foi simultaneamente de viação, sendo que a seguradora responsável por este último sinistro já indemnizou o autor por aquele montante.

Não vamos aqui discutir a questão suscitada pelo apelante e pelo apelado de saber se estamos perante uma simples exceção perentória arguida pelo réu ou se, ao invés, estamos perante um verdadeiro pedido reconvencional deduzido pelo réu sob a veste formal de exceção.

A discussão é inútil, porque do que se trata é, em qualquer caso, de saber se assiste ou não ao réu o direito à pretendia desoneração.

Como decorre do estatuído no art. 615º/1/d do NCPC, a nulidade por omissão de pronúncia ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

No caso em apreço o tribunal recorrido conheceu dessa pretensão do apelado e julgou-a improcedente, com o argumento de que a presente ação não constitui o meio processualmente adequado para o efeito, existindo um outro meio processual específico para dela conhecer e decidir.

Assim o demonstra o seguinte trecho da decisão recorrida: “Efetivamente e consistindo o acidente em apreço, simultaneamente, acidente de viação e acidente de trabalho, poderá o Réu, requerer a suspensão de pagamento de pensões, mas não no âmbito destes autos, antes, terá que lançar mão, querendo, de Ação Especial de Declaração de Extinção de Direitos Resultantes de Acidentes de Trabalho - artigos 151.º e seguintes do CPT -, reunidos que estejam os requisitos legais ali considerados.

Assim nesta parte, improcede, por inadmissibilidade legal, a pretensão do Réu, de desoneração do pagamentos das quantias aqui devidas, enquanto as mesmas coubessem no montante indemnizatório que já pagou, no âmbito do processo de acidente de viação, melhor identificado supra.”.

Pode concordar-se ou não com o assim decidido; o que não pode é considerar-se que o tribunal recorrido não conheceu da questão desonerativa que o réu suscitou e que, bem ou mal, obteve resposta negativa por parte do tribunal recorrido.


Δ

Finalmente, considera o apelante que a sentença recorrida é nula porque não enumera os factos não provados, não procede ao exame crítico das provas e não especifica os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.

Trata-se, pois, de vícios referentes à decisão sobre a matéria de facto.

Ora, como bem se sublinha no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/6/2007[2], a decisão proferida sobre a matéria de facto não é susceptível de enfermar das nulidades da sentença previstas no artigo 668.º do então Código de Processo Civil (actual art. 615º do NCPC) - no mesmo sentido e já ao abrigo no NCPC, decidiu este Tribunal da Relação, em acórdãos de 23/6/2017, proferido no processo 716/16.0T8CVL.C1, de 11/10/2017, proferido no processo 648/16.1T8CLD.C1, e de 21/1/2015, proferido no âmbito do processo 2996/12.0TBFIG.C1[3], os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 29/5/2014, proferido no âmbito do processo 389/12, e de 10/9/2015, proferido no processo 6615/11.4TBVNG.P1, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/12/2016, proferido no processo 1384/14.9T8FAR.E1.

Por outro lado, no âmbito do processo de acidente de trabalho, por força das disposições conjugadas dos arts. 131º/2, 68º/5 e 73º do CPT, a decisão da matéria de facto é autónoma da sentença e precede-a, sendo naquela decisão – sem necessidade de injustificável e inútil repetição da sentença – que o julgador tinha que dar proceder às indicações cuja omissão são arguidas pelo apelante.

Ora, compulsada a decisão sobre a matéria de facto datada de 30/4/2019 (referência Citius 79936952), logo se verifica que dela constam todos os elementos cuja omissão vem arguida pelo apelante como fundamento da nulidade ora em apreço.

Improcede, assim, a nulidade de que ora se conhece.

Segunda questão: saber se caducou o direito de acção do autor.

Nos termos do art. 179º/1 da LAT/09 “O direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.”.

Resulta da norma transcrita que a caducidade do direito de ação nela consagrada só ocorre se tiver existido comunicação formal ao sinistrado da data de alta clínica e se tiver decorrido mais de um ano entre a data dessa comunicação e a da participação do acidente de trabalho.

No domínio da vigência de Lei nº 2127, entendia-se, de maneira uniforme, que esse prazo de caducidade de um ano, previsto na Base XXXVIII, se iniciava no momento em que era dado conhecimento ao sinistrado da data da sua cura clínica, através da entrega do boletim de alta. Para que ocorresse a caducidade do direito de acção às prestações não bastava a cura clínica do sinistrado, impunha-se ainda o conhecimento dessa cura pelo acidentado, o que só ocorreria quando lhe fosse entregue o boletim de alta. Era a partir desta entrega que o sinistrado ficava habilitado a exercer os seus direitos.

            Este entendimento ficou reforçado com a redacção dada ao artº 32º, nº 1, da Lei 100/97, ao exigir que a “data da alta clínica” seja “formalmente comunicada ao sinistrado”.

            O mesmo acontecendo no domínio da LAT/2009 -  não estando em causa uma situação de morte, o direito de acção caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica “formalmente comunicada ao sinistrado” – art. 179º, nº 1, citado.

            Sendo à seguradora[4], a quem aproveita a caducidade, que compete alegar e provar que entregou ao sinistrado o referido boletim de alta  há mais de um ano, por se tratar de facto impeditivo do direito alegado pelo sinistrado.

            Não esquecendo que a participação do acidente constitui a primeira manifestação destinada ao exercício do direito que assiste ao sinistrado ou aos seus beneficiários legais de receber as prestações devidas como reparação por um acidente de trabalho.
            A propósito desta matéria escreveu-se, com aplicação ao caso dos autos, no Ac. desta Relação de Coimbra de 24/4/2014 (relator Azevedo Mendes), proc. 725/11.5TTCBR.C1:

            “Esta norma estabelece um prazo de caducidade do direito de acção, o qual – no caso do direito da autora - começa a correr a partir da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado. Ou seja, não basta que a sinistrada tenha recebido alta, antes é necessária a sua comunicação formal, comunicação essa que deve ter lugar, a nosso ver, nos termos previstos no art. 32.º do DL n.º 143/99, de 30/4 (diploma legal que regulamentou a LAT de 1997) – neste sentido v., entre outros, o Ac. desta Relação de 4-6-2009, proc. 309/07.2TTTMR.C1, e o Ac. do STJ de 10-7-2013, proc. 941/08.7TTGMR.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.

            É também exacto que como resulta do artigo 26.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho, nas acções emergentes de acidentes de trabalho a instância inicia-se com o recebimento da participação do acidente. Por isso, o momento a atender para efeito da caducidade do direito da acção não é o da data da propositura da acção respeitante à fase contenciosa do processo (117.º e segs. do C.P.T.), mas sim o da data da participação que marca o início do processo e da sua fase conciliatória (99.º nº 1 do C.P.T.) – neste sentido, entre outros v. Ac. da Rel. de Coimbra de 11-3-2003, in CJ, t. II, p. 56,  Ac. da Rel. de Lisboa de 14-12-2004, in CJ, t. V, p. 161 e Ac. do STJ de 11-10-2005, in www.stj.pt, proc. 05S1695. Os processos de acidente de trabalho correm oficiosamente, sem necessidade, por isso, do impulso das partes, como resulta do n.º 1 do art. 26.º n.º 2 do C.P.Trabalho. Daí que se a participação entrar no prazo de um ano a contar da alta clínica, esse facto impede a caducidade (331.º n.º 1 do Código Civil). É que então a acção emergente do acidente de trabalho está proposta.

            No caso do acidente de trabalho referenciado nos autos, a participação do acidente em juízo foi feita no dia 8-06-2011.

            Para que o prazo de caducidade do direito de acção ocorresse seria necessário que a alta clínica tivesse sido formalmente comunicada à sinistrada um ano antes dessa data.

            Como decorre do que fica dito e tal como temos entendido nesta Relação, o prazo de caducidade do direito de acção só começa a correr depois da efectiva entrega ao sinistrado do boletim da alta elaborado na forma legal, não bastando o mero conhecimento por parte deste de que lhe foi conferida a alta (v. Acs. desta Relação, entre outros, de 20-10-2005 e de 4-6-2009 – já acima indicado -, in www.dgsi.pt).

            Neste sentido, e no âmbito de aplicação temporal da Lei nº 2127, vejam-se os acórdãos do S.T.J. de 8 de Junho de 1995,  in BMJ 448/243, e de 3 de Outubro de 2000, in C.J./S.T.J., Ano VIII, Tomo III, pg. 267.

            No domínio temporal da Lei 100/97, mantendo plena actualidade em face do disposto no citado artigo da LAT /2009, considerou-se no Ac. do STJ de 20/2/2017, que “a caducidade do direito de acção ocorre se a acção não for intentada observando a triplicidade cumulativa que se enuncia:

            - não ter sido proposta no prazo de um ano;

            - a contar da data da alta clínica;

            - alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado.

            Ou seja: o prazo de um ano só começa a contar a partir da alta clínica e desde que esta observe o último requisito assinalado – o da comunicação formal dessa alta clínica ao sinistrado.

            A alta clínica, com a referida formalidade, assume aqui o elemento fulcral para que a contagem do prazo de um ano se inicie”.

            (...)

            Da análise da referida norma ressalta, em nosso entender, que no âmbito do Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais apenas a alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado despoleta o início da contagem do prazo de caducidade estipulado no nº 1, do seu art. 32º (Lei nº 100/97, de 13 de Setembro)”.

            “… Do texto dos aludidos preceitos legais não se extrai qualquer elemento interpretativo no sentido de que o prazo do direito de acção respeitante às prestações fixadas na lei se inicia com o mero conhecimento por parte do sinistrado de que lhe foi conferida a alta, antes resulta dos conjugados artigos 32.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, 32.º, nºs 2 a 4, e 63.º do Decreto-Lei n.º 143/99, que o direito de acção respeitante às prestações fixadas naquela lei caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica comunicada formalmente ao sinistrado, mediante a entrega de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente” - Ac. do STJ de 10/07/2013, nº 941/08.TTGMR.P1.S1, in www.dgsi.pt, no que constitui jurisprudência pacífica desse Supremo Tribunal – cfr. Ac., citado, de 20/2/2017.

Conforme decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/03/2019, proferido no processo 21401/16.7T8LSB-4, “2 - O prazo de caducidade do direito de ação pelos danos emergentes de acidente de trabalho só se inicia com a comunicação formal da alta clínica ao sinistrado.

 3 – A entrega de um boletim de exame ou de acompanhamento médico, ainda que dele conste a referência à alta, não é apta a desencadear as consequências relativas à caducidade.”.

Ora, os factos descritos como provados são absolutamente omissos quando à data em que a alta clinica tenha sido formalmente comunicada ao sinistrado, sendo que tal omissão impede a fixação do termo inicial do prazo de caducidade em apreço e, consequentemente, qualquer possibilidade de acolhimento da pretensão do apelante no sentido de ser declarada a caducidade do direito de acção do autor.


+

Terceira questão: saber se o tribunal recorrido não podia ter concluído no sentido de que o apelado se encontrava economicamente subordinado ao apelante e se, por isso, não devia ter sido reconhecida ao apelado a tutela infortunística que lhe foi conferida na sentença recorrida.

A este respeito começou por escrever-se assim na sentença recorrida: “Relativamente ao âmbito pessoal de aplicação da LAT/2009, (cuja, é aplicável considerando a data em que ocorreu o evento – 30/11/2010) estatui o artigo 2.º deste diploma legal, que os beneficiários do direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos da referida lei são “o trabalhador e seus familiares”, sendo que o conceito de “trabalhador” é densificado no artigo 3º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que estatui que o trabalhador abrangido, ao qual se aplica o regime previsto no diploma em causa, é “o trabalhador, por conta de outrem de qualquer actividade seja ou não explorada com fins lucrativos”.

É certo que tal preceito, numa primeira análise, parece reportar-se apenas ao trabalhador subordinado, ou seja àquele que presta trabalho a outrem no âmbito de contrato de trabalho, pois que a lei não define o que entende por contrato de trabalho, portanto há que atender à noção do artigo 11.º do CT, mesmo que o contrato seja inválido, atento o disposto no artigo 115.º do CT.

Porém o n.º 2 do mesmo normativo, dispõe que “quando a presente lei não impuser entendimento diferente presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços”.

Assim tal normativo deve interpretar-se com conjugação com o disposto no artigo 4.º, nº 1, al. c) da lei preambular do CT (Lei 7/2009 de 12/02), a qual estabelece que “o regime relativo a acidentes de trabalho e doenças profissionais, previsto nos artigos 283.º e 284.º do Código do Trabalho” se aplica “com as necessárias adaptações” “a prestador de trabalho, sem subordinação jurídica, que desenvolve a sua actividade na dependência económica, nos termos do artigo 10.º do Código do Trabalho”.

Daqui decorre que o regime de reparação e acidentes de trabalho e doenças profissionais, previsto na Lei nº 98/2009, de 4/09, é aplicável ao trabalhador que preste o seu serviço numa situação de dependência económica do beneficiário do serviço prestado, quando essa prestação ocorra numa situação de ausência de subordinação jurídica, o que, com o devido aspeito, por opinião contrária, é o caso dos autos, …

(…)

Concluímos pois, e em primeiro lugar que, e conforme explanado, a factualidade provada é reveladora da dependência económica do sinistrado, ante o Réu.

E, em segundo lugar, mesmo que assim não fosse e estivéssemos unicamente ante o funcionamento da presunção consagrada no nº2 do artigo 3º da Lei nº98/2009, ao Réu se impunha, nos termos do nº2 do artigo 350º e nº1 do artigo 344º do Código Civil, provar factualidade que permitisse concluir, não ser essencialmente com os valores recebidos do Réu, que o sinistrado fazia face às suas necessidades económicas, o que, de todo não aconteceu.

(…)

Da análise das normas supra aludidas, e como supra já se referiu, o regime relativo a acidentes de trabalho e doenças profissionais, regulado na lei 98/2009 de 4/9 – LAT, aplica-se, para além das situações de laboralidade previstas no Contrato de Trabalho – trabalhadores por conta de outrem de qualquer atividade, seja ou não explorada com fins lucrativos -, também a outros casos e designadamente ao em apreço nos autos, porquanto e face à matéria provada, não obstante não se terem provado factos suficientes, para caraterizar a relação entre as partes, como se tratando de um contrato de trabalho, para além do mais pela manifesta falta de subordinação jurídica, a alegada pelo Réu, Prestação de Serviços, e/ou, trabalho autónomo, dada a dependência económica, do Autor, também provada, não afasta a possibilidade de se considerar o acidente em causa, equiparado a acidente de trabalho e como tal é-lhe aplicável o regime da LAT a que supra se alude.

(…)

Logo, quanto a esta primeira questão, forçoso se torna concluir, com o devido respeito por opinião contrária, que face à prova produzida e ainda que no âmbito da alegada prestação de serviços, o acidente em causa, se integra no conceito de acidente de trabalho.”.

Decorre de quanto acaba de transcrever-se que a sentença recorrida decidiu no sentido de que: i) o sinistrado não pode ser considerado trabalhador subordinado do apelante, por ausência de subordinação jurídica, razão pela qual não pode ser com esse fundamento que pode reconhecer-se-lhe o direito à tutela infortunística do regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho; ii) apesar do referido em i), é trabalhador para efeitos do regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho aquele que presta a sua actividade profissional a outrem na dependência económica deste, ainda que sem subordinação jurídica ao mesmo; iii) o aqui sinistrado apenas tem direito às prestações infortunísticas previstas no regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho e que lhe foram reconhecidas na sentença recorrida porque, ainda que no âmbito de uma relação de prestação de serviço, deve considerar-se que se encontrava na dependência económica do apelante e, apenas por isso, deveria considerar-se como trabalhador para efeitos daquele regime jurídico.

As partes não se insurgiram contra o consignado nas alíneas i) e ii) acabadas de enunciar, com o consequente trânsito em julgado do aí e assim decidido.

Por outro lado, decorre do exposto que o fundamento único com base no qual se reconheceram ao autor aquelas prestações radica da referenciada dependência económica.

Assim, tais prestações não poderão ser reconhecidas no caso de se ter por indemonstrada a dita dependência económica, pugnando o apelante, justamente e nesta apelação, pela revogação do segmento da decisão recorrida em que essa dependência se teve por verificada e, com base nela, se reconheceram ao apelado as prestações infortunísticas enunciadas na decisão impugnada.

Ora, comece por sublinhar-se que para os efeitos ora em análise tem uma função meramente residual[5] a equiparação legalmente estabelecida entre o contrato de trabalho e a prestação de serviço em situação de dependência económica, destinando-se tal equiparação a proteger com a legislação infortunística dos acidentes de trabalho as situações de trabalho autónomo em que a relação económica seja semelhante à que normalmente se verifica no domínio do contrato de trabalho (acórdãos da Relação de Lisboa de 21/5/2014, proferido no processo 186/09.9TTLRA.L1-4, e da Relação de Guimarães de 15/3/2016, proferido no processo 762/11.0TTVCT.G1), sendo que, por regra, a relação deste último tipo é de natureza tendencialmente duradoura[6], razão pela qual, ao menos tendencialmente, deve exigir-se idêntica durabilidade à relação a que pretenda associar-se  a “dependência económica” do prestador ao beneficiário.

Por outro lado, como ensina Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, Almedina, 2013, pp. 792 e ss.): “O problema reside em saber quando se deve considerar que existe dependência económica nos termos do art. 3.º, n.º 2 da LAT. Por um lado, a dependência económica pressupõe a integração do prestador da actividade no processo empresarial de outrem e, por outro, o facto de a actividade desenvolvida não poder ser aproveitada por terceiro. Já não parece de aceitar que se enquadre na noção de dependência económica o facto de o prestador da actividade carecer da importância auferida para o seu sustento ou o da sua família (vd. supra § 14.1).

A integração no processo produtivo da empresa beneficiária, que será talvez o factor relevante para a existência de dependência, pode ser coadjuvada com a continuidade no exercício da actividade, pois, por via de regra, não haverá integração num processo produtivo empresarial se a actividade é desenvolvida de forma esporádica. Não sendo o empregador uma empresa, dificilmente quem prestar serviços com autonomia poderá considerar-se na dependência económica da pessoa servida, até porque o legislador pretendeu, de algum modo, excluir do âmbito da Lei dos Acidentes de Trabalho os acidentes ocorridos na execução de trabalhos de curta duração fora do seio empresarial (art. 16.º, n.º 1, da LAT).

Por outro lado, a dependência económica pressupõe que a actividade desenvolvida por quem presta o serviço só aproveita ao seu beneficiário, de molde a não poder conferir quaisquer vantagens a terceiros. Será o que ocorre no caso de o trabalhador autónomo realizar certa actividade, cujo resultado, sendo rejeitado pelo beneficiário, não poderá ser aproveitado por outrem.”.

Acresce dizer que a dependência do sinistrado em relação ao beneficiário da actividade prestada por aquele tem implícita, por regra, a afectação do prestador, de forma exclusiva, à prossecução da actividade prosseguida pelo complexo organizacional produtivo organizado pelo beneficiário para a realização dessa actividade – acórdão do STJ de 22/1/2015, proferido no processo 481/11.7TTGMR.P1.S1.

Assim, a dependência económica pressupõe, designadamente: i) a integração do prestador, de modo tendencialmente duradouro e exclusivo, no processo empresarial de outrem, sendo com ela incompatíveis situações de prestação de serviços sem contrapartida retributiva ou, por outro lado, meramente casuais ou esporádicos[7]; ii) a inaproveitabilidade por terceiro da actividade desenvolvida, não sendo determinante, embora possa relevar, que o trabalhador não tenha outro emprego, outro salário ou outro beneficiário da sua actividade profissional.

Reportando-nos à situação em apreço, temos que o autor foi contratado pelo réu para exercer as funções de operador de recenseamento eleitoral (ponto 2º dos factos provados), sendo que essa contratação se circunscrevia temporalmente ao processo de recenseamento eleitoral a realizar para as eleições legislativas do ano de 2011 em Cabo Verde (ponto 33º dos factos provados), o que aponta inequivocamente para um carácter pontual e esporádico da actividade contratada que é, como visto e por regra, incompatível com a integração do prestador  da actividade num processo produtivo empresarial do beneficiário dessa actividade que deve exigir-se para se ter por verificada a dependência económica que estamos a considerar, tanto mais quanto é certo que resultou provado que tal actividade apenas se realiza nos anos em que há eleições (ponto 36º dos factos provados).

Previa-se que tal actividade recenseadora fosse desenvolvida durante alguns e poucos meses (pontos 34º e 36º dos factos provados), o que aponta igualmente e de modo mais consistente para o carácter pontual e esporádico da actividade contratada a que supra se aludiu e que é incompatível com a aludida dependência económica.

Além disso, o carácter temporalmente limitado, ab initio, da relação contratual estabelecida entre o apelante e o apelado contraria, igualmente, o carácter duradouro que tendencialmente deve estar presente numa relação profissional por referência à qual se pretenda afirmar a dependência económica do prestador ao seu beneficiário.

Finalmente, nem sequer se tratava de uma prestação temporalmente continuada, ficando ao critério dos prestadores os dias em que essa prestação ocorria (ponto 24º dos factos provados.

Face a quanto acaba de referir-se deve concluir-se no sentido de que: i) a relação económica entre o apelado e apelante é completamente distinta da que normalmente se verifica no domínio do contrato de trabalho, situando-se a mesma e de modo claro fora do âmbito residual de tutela infortunística que o legislador dispensou, por força do regime conjugado dos arts. 3º/2 da LAT/09 e artigo 4º/1/c da lei preambular do CT, aos prestadores de trabalho sem subordinação jurídica mas em situação de dependência económica; ii) o apelado não se encontrava numa situação de dependência económica para com o apelante, não sendo para tanto bastante, como resulta do acima exposto, que o mesmo não dispusesse de outros rendimentos para lá daqueles que auferia no desempenho da actividade para que foi contratado pelo réu; iii) foi elidida a presunção iuris tantum de dependência económica a que se reporta o art. 3º/2 da LAT/09 e de que o apelado beneficiava (art. 350º/1/2 CC).

Não se verificando essa situação de dependência económica não beneficia o autor da tutela infortunística do regime de reparação dos acidentes de trabalho, devendo revogar-se a sentença apelada que, com base nesse regime, reconheceu ao autor o direito às prestações infortunísticas enunciadas no correspondente dispositivo.

Quarta questão: saber se o tribunal recorrido devia ter desonerado o apelante, já nesta ação, de pagar ao autor qualquer compensação, indemnização, prestação, subsídio ou pensão referente ao acidente em causa nesta ação, até ao limite dos € 640.000,00 (seiscentos e quarenta mil euros) que o autor já recebeu por causa desse mesmo acidente e da seguradora responsável pelo mesmo enquanto acidente de viação.

O decidido a respeito da terceira questão prejudica o conhecimento desta quarta questão.
IV - Decisão

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se o réu da condenação que lhe foi imposta pela sentença recorrida.

Custas pelo apelado.

Coimbra, 13/11/2019.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Paula Maria Roberto)

(Ramalho Pinto)



***


[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume 5º, p. 141, Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª. edição, p. 671, Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 670, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, p. 246, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª. edição, pp. 36 e 37; acórdãos do STJ de 23/11/2006, proferido no processo 06B4007, e da Relação de Évora de 19/01/2012, proferido no processo 1458/08.5TBSTB, e de 19/12/2013, proferido no processo 538/09.4TBELV.
[2] Proferido no processo n.º 07S670.
[3] Com anotação favorável de Miguel Teixeira de Sousa que pode consultar-se em https://blogippc.blogspot.pt/2015/01/jurisprudencia-69.html
[4] Ou, em situação como a dos autos, a quem for convocado como responsável pela reclamada tutela infortunística.
[5] Acórdãos do STJ de 9/11/2005, proferido no processo 05S2334, de 9/5/2007, proferido no processo 07S363, do Tribunal da Relação do Porto de 8/11/2018, proferido no processo 1813/16.7T8AGD.P1
[6] Acórdãos do STJ de 12/2/2009, proferido no processo 08S2573, de 10/12/2009, proferido no processo 1168/07.0TTLSB.SB.S1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 4/2/2016, proferido no processo 2/15.2TBFIG.C1, do Tribunal da Relação do Porto de 19/10/2009, proferido no processo 254/07.1TTVLG.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 5/6/2013, proferido no processo 107/13.4TTBRR-A.L1-4.
[7] Acórdãos do STJ de 16/9/2008, proferido no processo 08S459, de 27/5/2004, proferido no processo 04S013, da Relação de Guimarães de 15/3/2016, proferido no processo 762/11.0TTVCT.G1.