Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5165/18.2T8VIS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÕES ABSOLUTAS
PRESUNÇÕES RELATIVAS
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 186.º, N.º 2 E N.º 3 DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (C.I.R.E.)
Sumário: I) O artigo 186.º, n.º 2, do C.I.R.E., consagra presunções absolutas de insolvência culposa.

II) O artigo 186.º, n.º 3, do C.I.R.E., consagra presunções relativas de insolvência culposa, que não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido.

III) Relativamente às alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do C.I.R.E. deve ser colocada alguma exigência no preenchimento de tais alíneas, no sentido de dever exigir-se alguma “densidade” factual para poder dar como provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada” constantes das mesmas.

Decisão Texto Integral:




            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

H…, divorciado, residente no …, em 12 de novembro de 2018 apresentou-se à insolvência e foi declarado insolvente por sentença proferida em 29 de novembro de 2018, transitada em julgado.

Na sentença de declaração de insolvência não foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.

A credora F… alegou o carácter culposo da insolvência, indicou o insolvente como a pessoa que deve ser afetada pela qualificação e requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência. Alegou, em síntese, que, desde março de 2015, o insolvente tem conhecimento que lhe deve a quantia de €25.942,68, que no dia 3 de julho de 2017 foi celebrada escritura de partilha da herança aberta por óbito do pai do insolvente e que, apesar do seu quinhão hereditário não ser inferior a quinhentos mil euros, alegadamente, só recebeu o montante de quarenta mil euros a título de tornas.

Indicou como fundamento da qualificação as alíneas a), d) e f) do n.º 1, do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, o Administrador da Insolvência apresentou parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita referindo, em síntese, que não dispõe de elementos que lhe permitam aferir parte da matéria alegada no requerimento inicial, manifestou a discordância em relação ao valor dos bens e indicou as explicações que obteve junto do insolvente ou de terceiros. Remetidos os autos ao Ministério Público para os termos do n.º 4 do artigo 188.º, este emitiu parecer a secundar a posição assumida pelo Administrador da Insolvência, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita.

Notificada do teor daqueles pareceres, a requerente do incidente pronunciou-se no sentido do prosseguimento dos autos.

Nos termos previstos no n.º 6 do artigo 188.º, procedeu-se à notificação do insolvente que deduziu oposição, alegando, em síntese que as áreas dos prédios não correspondem à realidade, que não aceita o valor dos prédios, que está a trabalhar para quem explora a propriedade dos seus familiares, que não se desfez dos bens, que vive com a mãe, que a sua ex-companheira e filho de ambos residem na casa da sua mãe em andares diferentes, que ao longo dos anos, por várias vezes, os seus pais, sempre que podiam, auxiliaram-no, fazendo empréstimos de dinheiro em mão e por transferência e pagaram diversas dívidas. Concluiu pelo indeferimento do pedido de qualificação da insolvência como culposa.

A requerente F… pronunciou-se sobre os documentos apresentados com a oposição.

Com dispensa de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, que verificou a regularidade da instância e fixou o valor da causa.

Foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova, que não foram objecto de reclamação.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, com recurso à gravação dos depoimentos prestados, após o que foi proferida a sentença de fl.s 425 a 450 v.º, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final, se decidiu o seguinte:

Termos em que:

1. Qualifico a insolvência de H…, divorciado, contribuinte fiscal n.º…, como culposa;

2. Declaro afetado pela qualificação o insolvente H… e, em consequência:

a. Decreto a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros pelo período trinta meses;

b. Declaro-o inibido para o exercício do comércio durante o período de trinta meses, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

c. Determino a perda de quaisquer créditos que detenha sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente;

d. Condeno ainda H…., até às forças do respetivo património, o que inclui todos os seus bens suscetíveis de penhora, a indemnizar os seus credores na totalidade dos créditos não satisfeitos.

3. Custas do incidente de qualificação da insolvência a cargo do insolvente, sem prejuízo de não ser devida tributação.”.

Inconformado com a sentença proferida, dela interpôs recurso o insolvente, H…, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 594), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se o incidente de qualificação da insolvência é intempestivo e, por isso, inadmissível;

B. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos factos constantes dos itens 13.º e 14.º dos factos provados, devendo acrescentar-se, quanto ao 13.º, “que a distribuição dos imóveis pelos herdeiros de SA…, contante da partilha, resulta do cumprimento dos legados, constantes do seu testamento” e, relativamente ao 14.º, não se pode dar como provado que os valores dos imóveis ali referidos se reportem às datas do óbito do pai do insolvente (Abril de 2017); à data da partilha (Julho de 2017) nem à data da insolvência (Novembro de 2018);

C. Qualificação da insolvência: se a mesma é de qualificar como fortuita ou culposa;

D. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, c), do CPC e;

E. Se o recorrente litiga de má fé.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1.Datado de 27 de novembro de 2001, entregue no dia seguinte, foi emitido pelo pai do agora insolvente, cheque sacado sobre uma conta bancária de que era titular no Banco …, agência de …, com o n.º…., no montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), emitido à ordem de F..., destinado ao pagamento do sinal relativo à compra pelo insolvente de um apartamento na cidade da ….

2.No período de 24-03-2002 a 19-11-2009 foi transferido da conta bancária da mãe do insolvente para a conta deste o montante total de €39.098,97, em regra destinado ao pagamento das prestações relativas ao empréstimo bancário contraído para aquisição daquele apartamento, nas datas e montantes seguintes:

i. 24-03-2002 €350,00

ii. 26-04-2002 €350,00

iii. 22-05-2002 €350,00

iv. 26-06-2002 €350,00

v. 26-07-2002 €350,00

vi. 26-08-2002 €350,00

vii. 29-09-2002 €350,00

viii. 25-10-2002 €350,00

ix. 23-11-2002 €350,00

x. 24-01-2003 €350,00

xi. 25-02-2003 €350,00

xii. 26-03-2003 €250,00

xiii. 28-04-2003 €250,00

xiv. 26-05-2003 €250,00

xv. 25-06-2003 €250,00

xvi. 24-07-2003 €250,00

xvii. 12-08-2003 €300,00

xviii. 23-08-2003 €250,00

xix. 28-09-2003 €250,00

xx. 24-11-2003 €250,00

xxi. 27-12-2003 €250,00

xxii. 26-02-2004 €250,00

xxiii. 21-03-2004 €1.000,00

xxiv. 24-03-2004 €250,00

xxv. 23-04-2004 €250,00

xxvi. 25-05-2004 €250,00

xxvii. 25-06-2004 €250,00

xxviii. 23-07-2004 €500,00

xxix. 26-08-2004 €250,00

xxx. 25-09-2004 €250,00

xxxi. 26-10-2004 €400,00

xxxii. 26-11-2004 €400,00

xxxiii. 23-12-2004 €250,00

xxxiv. 28-01-2005 €250,00

xxxv. 26-02-2005 €250,00

xxxvi. 24-03-2005 €250,00

xxxvii. 25-04-2005 €250,00

xxxviii. 27-05-2005 €250,00

xxxix. 27-06-2005 €500,00

xl. 26-07-2005 €250,00

xli. 27-08-2005 €250,00

xlii. 02-09-2005 €500,00

xliii. 23-09-2005 €250,00

xliv. 26-11-2005 €500,00

xlv. 26-12-2005 €250,00

xlvi. 25-01-2006 €500,00

xlvii. 27-02-2006 €500,00

xlviii. 27-03-2006 €500,00

xlix. 26-04-2006 €500,00

l. 30-05-2006 €500,00

li. 25-06-2006 €500,00

lii. 30-07-2006 €500,00

liii. 25-08-2006 €500,00

liv. 29-09-2006 €500,00

lv. 26-10-2006 €500,00

lvi. 30-11-2006 €500,00

lvii. 23-12-2006 €500,00

lviii. 24-01-2007 €500,00

lix. 26-02-2007 €500,00

lx. 26-03-2007 €499,00

lxi. 26-04-2007 €499,99

lxii. 25-05-2007 €499,99

lxiii. 23-06-2007 €499,99

lxiv. 29-07-2007 €300,00

lxv. 26-08-2007 €300,00

lxvi. 25-09-2007 €300,00

lxvii. 25-10-2007 €300,00

lxviii. 25-11-2007 €300,00

lxix. 27-12-2007 €300,00

lxx. 05-01-2008 €1.000,00

lxxi. 25-01-2008 €300,00

lxxii. 23-02-2008 €350,00

lxxiii. 19-03-2008 €300,00

lxxiv. 09-04-2008 €2.000,00

lxxv. 21-04-2008 €300,00

lxxvi. 21-05-2008 €300,00

lxxvii. 19-06-2008 €300,00

lxxviii. 21-07-2008 €300,00

lxxix. 25-08-2008 €300,00

lxxx. 18-09-2008 €300,00

lxxxi. 22-10-2008 €300,00

lxxxii. 21-11-2008 €300,00

lxxxiii. 22-12-2008 €300,00

lxxxiv. 21-01-2009 €300,00

lxxxv. 19-02-2009 €300,00

lxxxvi. 20-03-2009 €300,00

lxxxvii. 10-04-2009 €300,00

lxxxviii. 19-04-2009 €300,00

lxxxix. 20-05-2009 €300,00

xc. 19-06-2009 €300,00

xci. 20-07-2009 €300,00

xcii. 20-08-2009 €300,00

xciii. 18-09-2009 €300,00

xciv. 19-10-2009 €300,00

xcv. 28-12-2009 €2.400,00

xcvi. 01-03-2010 €200,00

xcvii. 01-04-2010 €200,00

xcviii. 03-05-2010 €200,00

xcix. 01-07-2010 €200,00

c. 02-08-2010 €200,00

ci. 01-09-2010 €200,00

cii. 19-11-2009 €300,00

3.Em relação aos valores entregues ao insolvente, o seu pai referia que o agora insolvente tinha de fazer o ajuste e o encontro de contas com as irmãs, o que aquele aceitou.

4.O insolvente trabalhou para os pais no âmbito da “S…, Lda.”, que foi dissolvida em 27 de março de 2009;

5.Na data da dissolução daquela sociedade a exploração agrícola e comercial que era levada a cabo por aquela foi transmitida para o insolvente.

6.Datado de 20 de setembro de 2011, SA… e mulher M…, como primeiros outorgantes, e S…, solteira, professora, como segunda outorgante, subscreveram o documento junto à oposição, intitulado “contrato de comodato” nos termos do qual os primeiros, na qualidade de proprietários, dos “terrenos de cultura e pastagens sitos à …., freguesia de …., …., inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 1059”, declararam emprestar, gratuitamente, à segunda outorgante, aquele prédio, tendo esta declarado que aceitava o empréstimo e que se obrigava a entregá-lo livre e devoluto, findo o prazo do contrato, com início no dia 1 de outubro de 2011 e termo em 24 de outubro de 2025, podendo ser renovado por acordo das partes, ficando a segunda outorgante autorizada e realizar benfeitorias necessárias à exploração agrícola do prédio, sem direito a reembolso das mesmas.

7.O documento mencionado no artigo anterior foi apresentado nos Serviços do Ministério da Agricultura em 26 de novembro de 2012.

8.Em 28 de novembro de 2012, F… intentou ação de declaração, sob a forma de processo comum, contra H…, que, sob o n.º 575/12.1TTLMG, correu termos na extinta Secção Única do Tribunal do Trabalho de Lamego, onde peticionou a condenação do insolvente a pagar-lhe a quantia de €37.953,30, relativa a indemnização pelo despedimento ilícito, retribuição de férias, subsídios de férias e de natal, subsídio de alimentação e retribuições que deixou de auferir desde o despedimento.

9.Por sentença proferida naqueles autos a 3 de dezembro de 2013, o insolvente foi condenado a pagar a F…, as seguintes quantias:

i. indemnização pelo despedimento ilícito €4.400,00 (quatro mil e quatrocentos euros)

ii. retribuição de férias, subsídio de férias e de natal proporcionais ao ano da cessação do contrato de trabalho no valor de €745,89 (setecentos e quarenta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos);

Acrescidos de juros de mora às sucessivas taxas legais desde a citação até efetivo e integral pagamento;

iii. retribuições que deixou de auferir, desde 28-10-2012 até ao trânsito em julgado da decisão, relegando-se para ulterior liquidação a dedução do subsídio de desemprego, que a autora entretanto recebeu, e da retribuição paga pelo trabalho prestado para a Junta de Freguesia de Castainço;

iv. subsídios de férias e de natal vencidos desde 2005 até 2012, à razão de €550,00, perfazendo o valor total de €7.700,00 (sete mil e setecentos euros), acrescidos de juros de mora às sucessivas taxas legais em vigor, desde o respetivo vencimento e até efetivo pagamento.

10.Tendo a autora interposto recurso de apelação de tal decisão, em 9 de fevereiro de 2015, veio a ser proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado em 9 de março de 2015, no qual foi julgada parcialmente procedente a apelação, tendo o agora insolvente sido condenado a pagar à autora os subsídios de alimentação previstos nas convenções coletivas celebradas entre a ACDV, Associação Comercial do Distrito de Viseu, e o CESP, Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços, nos dias úteis entre 31-12-2004 e 14-06-2012, com exceção dos períodos de férias, montante a liquidar, mantendo-se no mais a decisão recorrida.

11.Em face da falta de pagamento das quantias referidas nos artigos 9.º e 10.º, em 17 de abril de 2015, a requerente F… instaurou contra o agora insolvente execução de sentença, autuada sob o n.º 575/12.1TTLMG.1, com vista a obter o pagamento do montante global de €23.467,38 (vinte e três mil, quatrocentos e sessenta e sete euros e trinta e oito cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal que, naquela data, foram computados em €2.475,30 (dois mil, quatrocentos e setenta e cinco euros e trinta cêntimos).

12.O pai do insolvente faleceu em 15 de abril de 2017.

13.No dia 3 de julho de 2017, no Cartório Notarial de …., M…, H…, C…, L… e marido P…, declararam perante Notária, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de “partilha”, o seguinte:

- Conforme consta da Escritura de Habilitação de Herdeiros, outorgada na mesma data, no dia quinze de abril de dois mil e dezassete, faleceu SA…, no estado de casado com M…, sob o regime da comunhão de adquiridos, em primeiras núpcias de ambos;

- O falecido deixou testamento outorgado no mesmo Cartório Notarial no dia cinco de agosto de dois mil e dezasseis, no qual dispôs de alguns legados;

- Que lhe ficaram a suceder como únicos herdeiros legitimários a cônjuge sobreviva, M…., e os seguintes três filhos: H…, C… e L…;

- Que, sendo eles os únicos herdeiros e estando de perfeito acordo, por aquela escritura, procediam à partilha dos seguintes bens pertencentes à herança do falecido SA…:

- Verba um: Fração autónoma, designada pela letra “I”, com o valor patrimonial e para efeitos de IMT de €139.940,05, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Quinta das …., Lote 7, na …., concelho de …., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4575, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1023, aí inscrito a favor do autor da herança e mulher;

- Verba dois: Rústico, composto de terra de cultura arvense, lameiro, pastagem e plantação de castanheiros, sito à .., …., da freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial de €4.263,43 e para efeitos de IMT de €9.464,81, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1059, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 110 e aí inscrito a favor do autor da herança e mulher;

- Verba três: Rústico, composto de terra de lameiro e pastagem, sito ao …, na freguesia de …, concelho de …, com o valor patrimonial de €12,06 e para efeitos de IMT de €60,14, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 17, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 675 e aí inscrito a favor do autor da herança e mulher;

- Verba quatro: Rústico, composto de terra de sequeiro, fruteiras e pastagem, sito à …, na freguesia de …, concelho de …., com o valor patrimonial de €181,94 e para efeitos de IMT de €5.909,99, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 342, descrito na Conservatória do Registo Predial de ….. sob o número 639 e aí inscrito a favor do autor da herança e mulher;

- Verba cinco: Um sexto indiviso do rústico, composto de terra de cultura, pinhal e pastagem, sito ao …., na freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial correspondente à fração de €1.171,88 e para efeitos de IMT correspondente à fração de €3.771,33, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 323, descrito na Conservatória do Registo Predial de ….. sob o número 1017 e aí inscrito a favor do autor da herança, na indicada proporção;

- Verba seis: Rústico, composto de terra de cultura, sito ao …, na freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial de €73,63 e para efeitos de IMT de €236,97, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 909, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1022 e aí inscrito a favor do autor da herança;

- Verba sete: Um sexto indiviso do rústico, composto de terra de cultura, castanheiros e pomar de macieiras, sito às …., na freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial correspondente à fração de €572,45 e para efeitos de IMT correspondente à fração de €1.842,20, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 797, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1020 e aí inscrito a favor do autor da herança, na indicada proporção;

- Verba oito: Metade indivisa do rústico, composto de vinha com oliveiras, sito ao …., na freguesia de …., concelho de ..., com o valor patrimonial correspondente à fração de €875,58 e para efeitos de IMT correspondente à fração de €2.817,77, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 242, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1016 e aí inscrito a favor do autor da herança, na indicada proporção;

- Verba nove: Metade indivisa do rústico, composto de pastagem, sito à …, na freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial correspondente à fração de €0,39 e para efeitos de IMT correspondente à fração de €1,06, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 849, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1021 e aí inscrito a favor do autor da herança, na indicada proporção;

- Verba dez: Rústico, composto de terra de cultura, sito às …., na freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial de €48,83 e para efeitos de IMT de €157,14, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 687, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1019 e aí inscrito a favor do autor da herança;

- Verba onze: Rústico, composto de terra de cultura com macieiras, sito ao …., na freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial de €43,78 e para efeitos de IMT de €140,54, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 368, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1018 e aí inscrito a favor do autor da herança;

- Verba doze: Urbano, composto de casa de um pavimento, destinada a arrecadação e arrumos, sito na …., na freguesia de …., concelho de …., com o valor patrimonial e para efeitos de IMT de €2.090,00, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 407, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número 1024 e aí inscrito a favor do autor da herança, a que atribuíram a todos o mesmo valor que o patrimonial;

- Verba treze: Crédito da herança no montante global de trinta e cinco mil euros relativo aos empréstimos e pagamentos de dívidas contraídas pelo herdeiro, H…, no âmbito da sua atividade profissional e empresarial, cujo pagamento foi feito pelo autor da herança e mulher, ao longo dos últimos dezassete anos.

- Que os bens identificados sob as verbas um, dois, três, quatro e treze, com o valor atribuído de €190.374,99 (cento e noventa mil trezentos e setenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos), são bens comuns do dissolvido casal e nos termos da lei, vai o valor atribuído ser dividido em duas partes iguais de €95.187,50 (noventa e cinco mil cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos), cada, sendo uma a meação da viúva e a outra a meação do falecido;

- À referida meação do falecido, no valor de €95.187,50 (noventa e cinco mil cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos) soma-se o valor global dos bens próprios, ou seja, o valor de €11.057,01 (onze mil e cinquenta e sete euros e um cêntimos), perfazendo o valor de €106.244,50 (cento e seis mil duzentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), dividido em três partes iguais, no montante de €35.414,83 (trinta e cinco mil quatrocentos e catorze euros e oitenta e três cêntimos), correspondendo uma delas à quota disponível;

- Que se à meação do falecido se deduzir o valor da quota disponível, resta o valor de €70.829,67 (setenta mil oitocentos e vinte e nove euros e sessenta e sete cêntimos), valor que vai ser dividido em quatro parte iguais, por tantos serem os herdeiros, cabendo a cada um o valor de €17.707,42 (dezassete mil setecentos e sete euros e quarenta e dois cêntimos) a título de legítima;

- A viúva tem direito ao valor de €95.187,50 (noventa e cinco mil cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos) a título de meação, somando a esse valor o quinhão hereditário na herança do falecido no referido valor de €17.707,42 (dezassete mil setecentos e sete euros e quarenta e dois cêntimos), perfazendo a soma total de €112.894,92 (cento e doze mil oitocentos e noventa e quatro euros e noventa e dois cêntimos);

- Que cada filho tem direito a um quinhão hereditário no referido valor de €17.707,42 (dezassete mil setecentos e sete euros e quarenta e dois cêntimos);

- Tendo o falecido feito um legado em testamento no montante de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros), legado esse identificado na verba treze, a imputar em primeiro lugar na legítima do segundo outorgante (o ora insolvente) no valor referido de €17.707,42 (dezassete mil setecentos e sete euros e quarenta e dois cêntimos), sendo o excesso de €17.292,58 (dezassete mil duzentos e noventa e dois euros e cinquenta e oito cêntimos) a imputar na quota disponível;

- Que o montante de €18.122,25 (dezoito mil cento e vinte e dois euros e vinte e cinco cêntimos) referente ao valor da quota disponível do de cujus é distribuído em quatro partes iguais por tantos serem os herdeiros cabendo a cada um o valor de €4.530,56 (quatro mil quinhentos e trinta euros e cinquenta e seis cêntimos);

- Assim à viúva cabe o valor total de €117.425,42 (cento e dezassete mil quatrocentos e vinte e cinco euros e quarenta e oito cêntimos);

- A terceira e quarta outorgantes, têm direito, cada uma, ao referido quinhão hereditário de €17.707,42 (dezassete mil setecentos e sete euros e quarenta e dois cêntimos) e à proporção no valor sobrante da quota disponível, o que perfaz o valor global de €22.237,98 (vinte e dois mil duzentos e trinta e sete euros e noventa e oito cêntimos);

- O segundo outorgante (insolvente) tem direito ao valor global de €39.530,56 (trinta e nove mil quinhentos e trinta euros e cinquenta e seis cêntimos).

- E que procedendo à partilha a fazem nos termos seguintes:

- O quinhão do segundo outorgante, H…, é preenchido pela compensação do crédito identificado sob a verba treze, na importância de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros), que leva a menos do que aquilo a que tem direito no montante de €4.530,56 (quatro mil quinhentos e trinta euros e cinquenta e seis cêntimos), valor que declara ter recebido naquela data em mãos, pago em dinheiro;

- À primeira outorgante, M…, é adjudicado e fica a pertencer a verba um, com o valor atribuído de €139.940,05 (cento e trinta e nove mil novecentos e quarenta euros e cinco cêntimos), pelo que leva a mais do que aquilo tem direito no valor de €22.514,57 (vinte e dois mil quinhentos e catorze euros e cinquenta e sete cêntimos), que paga de tornas aos partilhantes que a menos levam;

- À terceira outorgante, C…, são adjudicados e ficam a pertencer os prédios identificados sob as verbas dois, oito, nove, dez, onze e doze, com o valor atribuído de €14.671,32 (catorze mil seiscentos e setenta e um euros e trinta e dois cêntimos), pelo que leva a mais do que aquilo a que tem direito a importância de €7.566,66 (sete mil quinhentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos) que pagou de tornas aos partilhantes que a menos levam;

- À quarta outorgante, L…, são adjudicados e ficam a pertencer os prédios identificados sob as verbas três, quatro, cinco, seis e sete, com o valor atribuído de €11.821,63 (onze mil oitocentos e vinte e um euros e sessenta e três cêntimos), pelo que leva a menos do que aquilo a que tem direito a importância de €10.417,35 (dez mil quatrocentos e dezassete euros e trinta e cinco cêntimos) que recebeu de tornas dos partilhantes que a mais levam, valor que declara ter recebido na mesma data em mãos, pago em dinheiro.

 14.Nas datas do óbito de SA…, da partilha da sua herança e da insolvência o valor venal dos imóveis mencionados na escritura mencionada no artigo anterior era, pelo menos, o seguinte:

- Verba um: €114.082,72 (cento e catorze mil e oitenta e dois euros e setenta e dois cêntimos);

- Verba dois: €768.115,94 (setecentos e sessenta e oito mil, cento e quinze euros e noventa e quatro cêntimos);

- Verba três: €7.256,24 (sete mil, duzentos e cinquenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos);

- Verba quatro: €32.290,03 (trinta e dois mil, duzentos e noventa euros e três cêntimos);

- Verba cinco: €76.364,48 (setenta e seis mil, trezentos e sessenta e quatro euros e quarenta e oito cêntimos);

- Verba seis: €3.381,64 (três mil, trezentos e oitenta e um euros e sessenta e quatro cêntimos);

- Verba sete: €12.662,76 (doze mil, seiscentos e sessenta e dois euros e setenta e seis cêntimos);

- Verba oito: €2.849,12 (dois mil, oitocentos e quarenta e nove euros e doze cêntimos);

- Verba nove: €67,65 (sessenta e sete euros e sessenta e cinco cêntimos);

- Verba dez: €5.410,63 (cinco mil, quatrocentos e dez euros e sessenta e três cêntimos);

- Verba onze: €628,02 (seiscentos e vinte e oito euros e dois cêntimos);

- Verba doze: €4.952,38 (quatro mil, novecentos e cinquenta e dois euros e trinta e oito cêntimos).

15.A herança aberta por óbito de SA… era ainda composta pelos seguintes bens móveis (1/2):

i. Trator agrícola da marca Ford, com a matrícula …., a que foi atribuído o valor de €100,00, tendo sido declarado que tinha sido adquirido em 12-02-1990 pelo valor de €1.000,00;

ii. Trator agrícola da marca Same, com a matrícula …., a que foi atribuído o valor de €150,00, tendo sido declarado que tinha sido adquirido em 07-11-2001 pelo valor de €1.000,00;

iii. Reboque agrícola da marca Herculano, com a matrícula …., a que foi atribuído o valor de €50,00, tendo sido declarado que tinha sido adquirido em 04-05-1990 pelo valor de €500,00;

iv. Veículo ligeiro de mercadorias marca Land Rover, com a matrícula …., a que foi atribuído o valor de €500,00, tendo sido declarado que tinha sido adquirido pelo valor de €1.500,00 em 25-03-2015;

v. Arma marca Vitor Sarasqueta com o n.º de livrete …., a que foi atribuído o valor de €50,00, tendo sido declarado que tinha sido adquirida pelo valor de €100,00;

vi. Arma marca Smith Wesson com o n.º de livrete …., a que foi atribuído o valor de €50,00, tendo sido declarado que tinha sido adquirida pelo valor de €100,00;

16.No dia 30 de novembro de 2017 S… e A…, respetivamente como primeira e segundo outorgantes, subscreveram o documento junto à oposição do insolvente, intitulado “contrato de subarrendamento rural (florestal)” nos termos do qual a primeira, na qualidade de comodatária do prédio rústico denominado “Quinta da M…” declarou dar de subarrendamento ao segundo, e este declarou tomar de subarrendamento, uma parcela de 95 hectares da Quinta da M…, com extensão definida nos anexos, que a parcela destinava-se à respetiva exploração florestal, designadamente à manutenção, desenvolvimento e exploração dos respetivos procedimentos florestais, não lhe podendo ser dado outro fim, que o prazo do subarrendamento é de doze anos, com início em 30-11-201 e termo em 30-11-2019, não havendo lugar a renovação do prazo, que a renda anual é de €14.400,00, a pagar semestralmente devendo o segundo outorgante pagar à primeira o valor de €7.200,00, correspondente a cada semestre até 30-04 e 31-10.

17.Em 05-03-2018 o insolvente publicitou a venda no “OLX” dos seguintes bens, com indicação do seu número de telemóvel:

i. Pulverizador de 1000litros €3.500,00

ii. Máquina de polir metais (ouro e prata) €1.200,00

iii. Trator Massey Ferguson 2600 4x4 €10.000,00

iv. Land Roover série II 4x4, …. €10.000,00

18.A propriedade do veículo de matrícula …. desde 11-01-1988 que está registada a favor de SA….

19.A venda dos bens mencionados nas alíneas i, ii, e iii do artigo 17.º foi publicitada a pedido de amigos do insolvente que pretendiam vender aqueles bens.

20.H… apresentou-se à insolvência por petição inicial que deu entrada em juízo em 12 de novembro de 2018;

21.Foi declarado insolvente por sentença proferida em 29 de novembro de 2018, publicada no Portal Citius em 30 de novembro de 2018, transitada em julgado.

22.No relatório previsto no artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Sr. Administrador da Insolvência declarou que “a empresa dirigida pelo progenitor do insolvente [S…, Lda.], tinha na altura [quando cessou a sua atividade] resultados negativos, problemas com as Finanças, que por informação do aqui insolvente me deu se esforçou denodadamente por cumprir, não tendo, todavia, conseguido”.

23.O Administrador da Insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos a que alude o artigo 129.º, n.º 1, do CIRE, que não foi impugnada, onde foram incluídos os seguintes credores:

i. Autoridade Tributária e Aduaneira (Serviço de Finanças de S. João da Pesqueira), com um crédito no montante total de €8.623,62

ii. F…, com um crédito no montante total de €30.215,44

24.Não foi apresentada relação de créditos não reconhecidos e não resultam reclamados outros créditos.

25.Os pais do insolvente tinham conhecimento da dívida à credora F….

26.Datado de 1 de maio de 2019, A… e o insolvente, respetivamente como primeiro e segundo outorgantes, subscreveram o documento junto à oposição intitulado “contrato de trabalho a termo certo” nos termos do qual o segundo foi admitido ao serviço do primeiro para desempenhar as funções próprias da categoria profissional de trabalhador florestal, não constando do documento a remuneração, a duração do contrato e o local de trabalho.

27.No âmbito daquele contrato, o insolvente desenvolveu trabalhos para que foi contratado, entre outros, no prédio denominado M….

28.Em 4 de maio de 2020 A… emitiu declaração de situação de desemprego onde fez constar que o contrato celebrado com a insolvente tinha cessado em 30-04-2004 por caducidade.

29.O insolvente e a testemunha S… viveram em união de facto até, pelo menos, 2015 e têm um filho em comum, HT…, nascido a 24 de outubro de 2011.

30.Desde a data que deixaram de se relacionar como marido e mulher, com exceção do período mencionado no artigo seguinte, o insolvente, a mãe do insolvente, S… e o filho residem na mesma casa em andares diferentes.

31.O insolvente durante cerca um ano e até março de 2020 esteve a residir com a mãe no apartamento correspondente à verba número um da escritura de partilha.

2. Factos não Provados:

a) Em relação aos factos alegados no artigo 16.º da oposição só se provou o que consta dos artigos 1.º e 3.º.

b) Os montantes mencionados nos artigos 1.º e 2.º reportam-se às relações comerciais e abonos auferidos pelo insolvente na qualidade de trabalhador da S…, Lda.

c) Em relação aos factos mencionados nos artigos 32.º a 36.º do requerimento inicial quanto ao valor dos prédios só resultou provado o que consta do artigo 14.º dos factos provados.

d) O insolvente vendeu os bens mencionados no artigo 17.º e integrou o valor de €24.700,00 no seu património.

e) O insolvente vendeu um semirreboque por mil euros e um semeador por trezentos e cinquenta euros que destinou a pagar a pensão de alimentos à sua filha M….

f) F… é a única credora da insolvência.

g) Na sequência da morte do progenitor do insolvente, a credora F… na qualidade de exequente, no processo de execução mencionado nos factos provados, por requerimento datado de 03/05/2017, indicou à penhora o quinhão hereditário aberto por óbito de SA….

h) As irmãs do insolvente tinham conhecimento da dívida do insolvente à credora F…;

i) A mãe e irmãs do insolvente colaboraram com o insolvente na ocultação e desvio do seu património;

j) O insolvente, com a conivência da sua mãe, M…, e das suas irmãs,  C… e L…, procederam à escritura de partilha em face do requerimento de penhora do quinhão hereditário.

k) A partilha efetuada entre o Insolvente, mãe e irmãs foi feita com o único propósito de prejudicar a credora F….

l) O quinhão hereditário do insolvente na herança aberta por óbito do pai não seria inferior a €500.000,00.

m) O pomar sito em …., conhecido por M… (art. 1059), não obstante ter sido adjudicado por escritura de partilha à sua irmã C…, continua a ser explorado pelo insolvente, que retira dele os proventos ainda que não de forma declarada, mas sim oculta.

n) No referido prédio (pomar de maçãs), o insolvente explora o mesmo de forma intensiva e vende as maçãs para empresas de distribuição e para pequenos comerciantes.

o) Os atuais exploradores do prédio “M…” pediram ao insolvente para os ajudar.

p) Os contratos mencionados nos artigos 6.º, 13.º, 16.º e 26.º são “forjados”.

q) O insolvente e S… continuam a viver em união de facto, são vistos a passear de carro e frequentam cafés e restaurantes em …, … e em …., sendo tidos como marido e mulher pelos residentes e vizinhos.

(…)

C. Qualificação da insolvência: se a mesma é de qualificar como fortuita ou culposa.

Relativamente à qualificação da insolvência, como fortuita ou culposa, que constitui a questão central do presente recurso, defende o recorrente que a mesma se tem de qualificar como fortuita, porque a forma como foi feita a partilha se limitou a cumprir os legados instituídos pelo seu pai no testamento que deixou, pelo que o recorrente não criou e/ou agravou, dolosamente ou com culpa grave, a situação de insolvência, apenas lhe cabendo a quantia de 39.530,56 €, a que foi imputada a quantia de 35.000,00 €, a que se refere a verba 13 da escritura de partilhas, pelo que recebeu tornas.

A recorrida, entende que a insolvência se tem de considerar como culposa uma vez que os valores declarados na escritura de partilhas não correspondem aos valores reais, o que acarretou uma repartição manifestamente desigual dos bens a partilhar, originando que o recorrente tenha recebido uma verba muito inferior àquela a que tinha direito, apenas vindo a receber tornas, o que equivale a dissipação do seu património.

Na sentença recorrida, qualificou-se como culposa a insolvência em causa, por se considerar estarem verificados os pressupostos/fundamentos previstos no artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE, em resumo, por se considerar que da partilha resulta um claro benefício para as restantes herdeiras, dada a enorme discrepância entre os valores reais dos bens a partilhar e os tidos em conta/declarados na partilha, que originou que o insolvente ficasse privado de bens suficientes para cumprir as suas obrigações perante os seus credores, nos termos, que adiante, melhor se referirão.

Vejamos, então, como deve qualificar-se, no que a esta perspectiva se refere, a insolvência em apreço, desde já, se adiantando, não nos merecer censura a decisão recorrida.

Notando-se, desde logo, que o objecto do recurso não sejam exactamente as alíneas do artigo 186.º, do CIRE, referidas pelo recorrente, mas sim a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) dos apelados; ou seja, para confirmar ou revogar tal qualificação culposa, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar regras diferentes das invocadas, atribuir às regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 5.º/3 do CPC), sem embargo, como é óbvio, de tal questão só se poder apreciar e decidir, por reporte à factualidade assente.

Segundo o art. 186.º/1 do CIRE – “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores[1], de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

“Definição” esta que é complementada, nos n.º 2 e 3 do art. 186.º, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular[2] sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos.

Interpretando tal art. 186.º do CIRE, a jurisprudência vem entendendo[3] que as alíneas do n.º 2 correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa; e começou por entender que as alíneas do n.º 3 apenas consagram presunções relativas de culpa qualificada (nos comportamento omissivos aí referidos), ou seja, para a insolvência ser dada como culposa com base no art. 186.º/3, seria necessário que a presunção de culpa qualificada não fosse ilidida e, ainda, que fosse feita a prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186.º/1 do CIRE – o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Posição esta sobre o art. 186.º/3 do CIRE – que a jurisprudência maioritariamente começou por adoptar – de que nos afastamos, por tal preceito, assim interpretado, ser vazio de sentido útil[4]; razão porque – procurando encontrar o seu sentido útil e interpretando-o em conjunto e em harmonia com todo o art. 186.º do CIRE – entendemos que as presunções do art. 186.º/3 não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido, tendo antes que ser vistas como presunções relativas (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência (o mesmo é dizer, presunções relativas de insolvência culposa)[5].

“Conjunto de presunções” que pela não homogeneidade dos comportamentos aí descritos (nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE) nos deve fazer reflectir e concluir que não estão sempre em causa e enunciados em todas as alíneas do n.º 2 e 3 do art. 186.º comportamentos, directa e imediatamente ligados à criação ou agravamento da situação de insolvência.

Analisando as alíneas a) a g) do n.º 2 do art. 186.º vemos que estão em causa factos/actos[6] em que há um denominador comum de delapidação do património do devedor, em que existe (em abstracto) um nexo lógico entre os respectivos factos/actos e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[7], em que, sendo assim, pode dizer-se que o legislador mais não fez do que mandar presumir a causalidade (que era latente) entre eles e a insolvência;

Ao invés, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas duas alíneas do n.º 3 já não se consegue ver onde é que possa estar o nexo lógico, a conexão substancial entre o facto/acto que dá origem à presunção e a criação ou o agravamento da situação de insolvência; do que se trata, em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3, é de enunciar factos que fazem suspeitar a existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência, ou seja, por outras palavras, os factos enunciados – a não organização ou desorganização da contabilidade, a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a não elaboração e depósito das contas – fazem supor que, se assim se procedeu, é porque pode haver alguma coisa a esconder, é porque podem ter sido praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, sendo estes os factos (que se quis/quer ocultar e porventura causais da criação ou agravamento da situação de insolvência[8]) que estão implicitamente presumidos (ou, se preferirmos, ficcionados) nos factos enunciados em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 e cuja verificação desencadeia a insolvência culposa.

Em síntese, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal entre eles e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[9]; estando em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE), sendo em função da violação de tais deveres legais que a lei a supõe que foram praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, o que determina a aplicação do regime da insolvência culposa a estas situações.

Temos pois que a lei (art. 186.º do CIRE), além da cláusula geral contida no n.º 1 (em que define a insolvência culposa), enumerou, nos seus n.º 2 e 3, um conjunto de factos que desencadeiam como consequência a qualificação da insolvência como culposa; factos enumerados em que, “em vez de se limitar a desenvolver, casuisticamente, o enunciado geral [contido no n.º 1], acrescenta alguns casos de insolvência (…) que não se subordinam aos requisitos da noção geral de insolvência culposa – a sua submissão ao mesmo regime resulta de um juízo diferente ou de uma distinta valoração. Em síntese, as alíneas a) e g) são factos/actos que se reconduzem ainda à cláusula geral; havendo nos factos/actos apurados indícios sérios de que a insolvência se deve a tais actos/factos, não surpreendendo ou repugnando que consubstanciem presunções. Mas, nas alíneas h) e i) o caso é diverso. Só muito remotamente algum dos factos/actos pode ser considerado causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento. Constituindo, por um lado, a violação de um dever específico do comerciante e, por outro lado, a violação de um dever elementar de todo o insolvente, é legítimo supor que houve culpa qualificada do sujeito – mas culpa qualificada no acto praticado ou omitido e não na insolvência, como é exigido pela norma geral do n.º 1. E, no entanto, desencadeiam os mesmos efeitos da insolvência culposa.

O legislador terá entendido submetê-los também ao regime da insolvência culposa não porque eles pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um acto ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também. Na base desta opção legal está, portanto, como se disse, uma valoração diferente daquela que terá estado na origem da disciplina. Deve, por isso, considerar-se que a lei estabeleceu, nestes dois pontos, não presunções, mas – passe o paradoxo – verdadeiras ficções.[10]

Evidentemente, não o podemos ignorar, assim vistas as coisas, serão muitos os casos em que a insolvência será declarada culposa; uma vez que o insolvente tem que combater a presunção legal de insolvência culposa do n.º 3 ou, pior ainda, que se conformar com as consequências da insolvência culposa caso se verifique algum dos factos do n.º 2, em que a presunção é iuris et de iure.

Porém, a nosso ver, é mesmo este o sentido da lei.

Abarca os casos em que se verifica a culpa qualificada e o nexo de causalidade integrantes da noção de insolvência culposa, nos termos do art. 186.º/1; ou seja, os casos em que tenha havido uma conduta do devedor, ou dos seus administradores, de facto e de direito, que (a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência, que (b) se trate de actuação dolosa ou com culpa grave, e que (c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo.

Além e fora disso, sujeita aos efeitos da insolvência culposa os casos em que se verifique alguma das situações/presunções constantes do n.º 2 e 3 do art 186.º do CIRE; presunções que também foram estabelecidas, para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os devedores que violaram obrigações legais.

Solução, esta, porventura excessiva, especialmente quanto às alíneas h) e i) do n.º 2, em que não é detectável uma diferença sensível em relação às alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º (em que a presunção pode ser ilidida)[11]; razão pela qual – tendo isto presente, procurando aproximar as alíneas h) e i) do art. 186.º do tratamento das alíneas do n.º 3.º – entendemos que pode/deve ser colocada alguma exigência na preenchimento de tais alíneas h) e i), entendemos que pode/deve ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”, constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º.

Embora, a própria doutrina não seja unânime, quanto à melhor interpretação dos preceitos em causa.

Por exemplo (para além do já acima referido), Alexandre de Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, a pág.s 362/3, defende ser de considerar culposa a insolvência, se a respectiva situação “foi criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, de devedor ou seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (art.186.º, 1). Assim, a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de certo lapso de tempo (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência). A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa”.

Incluindo-se na actuação dolosa, todas as modalidades de dolo ou com culpa grave.

Acrescentando que o CIRE contém um “duplo sistema de presunções legais”, contendo-se no n.º 2 do artigo 186.º “algumas presunções de culpa que não admitem prova em contrário («sempre culposa»). As presunções ali estabelecidas dizem respeito à culpa e não à situação de insolvência.”.

Ao passo que, no n.º 3 do artigo 186.º, se contém “hipótese de cuja verificação resulta uma presunção legal de culpa grave que admite prova em contrário”.

Reiterando, a pág.s 376/7 que o artigo 186.º, n.º 2 “não só presume a culpa, mas também o nexo de causalidade quanto à criação ou agravamento da situação de insolvência. Porém, a prova de algum dos factos ali enumerados não significa que se presuma a situação de insolvência”.

Reforçando a ideia, a pág. 380 que na previsão do artigo 186.º, n.º 3, as presunções ali previstas “apenas dizem respeito à actuação do devedor. Será, ainda, necessário provar que tal actuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência”.

Aqui chegados, do que acaba de ser dito sobre o modo como interpretamos todo o art. 186.º do CIRE – consagrando as alíneas do n.º 2 presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do n.º 3 presunções (relativas) de insolvência culposa[12] (e não meras presunções relativas de culpa grave, o que, como se referiu, esvaziaria a utilidade destas presunções) – irradia para o caso dos autos e do recurso o seguinte:

Como acima já referido, a sentença recorrida apenas teve em linha de conta para a qualificação da insolvência, o que se acha disposto na alínea d), do n.º 2, do artigo 186.º do CIRE, desconsiderando as suas alíneas a) e f), por não se ter demonstrado a factualidade que lhes subjaz, o que o recorrente não coloca em causa, nem se vislumbram razões para censurar.

Relativamente à alínea d), estabelece-se na mesma que a insolvência é culposa, no caso de o devedor ter “Disposto dos bens seu interesse pessoal ou de terceiros”.

Na sentença recorrida, justifica-se a qualificação da insolvência em apreço como culposa, nos seguintes termos:

Em relação à alínea d), seguindo de perto o citado Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, os atos de disposição correspondem aos que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor, como os que, não implicando necessariamente tal saída, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade deles, colocando-os na disponibilidade de outrem, dos quais resulte proveito apenas para o devedor ou para um terceiro.

O conteúdo da partilha constitui uma repartição manifestamente desigual dos bens que constituíam a herança aberta por óbito do pai do insolvente, na medida em que ao insolvente só foi adjudicado um crédito que, nos termos da partilha, corresponde a uma dívida sua, no montante de €35.000,00 (parte da dívida corresponde a um crédito que pertencerá à mãe do insolvente), e a importância de €4.530,56, quando, como se referiu, o valor do seu quinhão, mesmo com a compensação daquele crédito, é superior a cem mil euros.

Por outro lado, considerando apenas as declarações prestadas pelo insolvente, aceitou partilhar um bem (verba número 2 – prédio denominado “M…”) cujo valor, na sua ótica, seria de, pelo menos, cerca de €140.000,00, pela importância de €4.263,43, correspondente ao seu valor patrimonial, montante este que, de acordo com o declarado pela testemunha S…, corresponde sensivelmente ao valor que alega pagar a título de renda à irmã do insolvente, a quem foi adjudicado o prédio, e que também é inferior ao valor da renda estabelecida para parte do prédio nos termos que constam do artigo décimo sexto dos factos provados.

Da partilha celebrada resulta um claro benefício para as restantes herdeiras de SA…, com o correspondente prejuízo para o insolvente e os seus credores, que se viram privados do património que o insolvente deixou de receber e consequentemente de obterem a satisfação dos seus créditos.

A alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor (…) quando [tenha] disposto dos [seus] bens (…) em proveito pessoal ou de terceiros”.

No que se refere à partilha dos bens que integravam a herança aberta por óbito do pai do insolvente, considerando os valores dos imóveis e os bens que foram adjudicados ao insolvente, está em causa, como se referiu, um negócio que originou prejuízo para o insolvente e um benefício para as restantes herdeiras que, desse modo, de forma injustificada obtiveram uma vantagem indevida.

É, assim, notório que o insolvente retirou da sua esfera jurídica o património passível de constituir garantia patrimonial dos credores e que o seu comportamento integra a previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º, ex vi do n.º 4 da mesma disposição, que constituiu uma presunção inilidível de insolvência culposa, o que determina necessariamente a verificação da insolvência culposa (cfr., no mesmo sentido, em relação a situações de partilha o Acórdão da Relação do Porto de 24-11-2015, proferido no processo n.º 2525/13.9T2AVR-B.P1).

Em face da factualidade provada não resulta verificada a previsão da alínea f) do n.º 2 do artigo 186.º já que nada se provou quanto ao uso dos bens do devedor.

Considera-se, assim, preenchida a alínea d) do n.º 2, do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicada ao caso dos autos adaptadamente, por força do n.º 4 do artigo 186.º.

Está em causa uma presunção inilidível de insolvência culposa, aplicável à insolvência de pessoas singulares (citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2017, processo n.º 733/14.4TJPRT-C.P1.S1), não sendo admissível prova em contrário da presunção nela contida (“considera-se sempre culposa a insolvência”), é de qualificar a insolvência como culposa por força da referida alínea, já que não é necessário provar que a ação em causa causou ou agravou a insolvência e ou que o devedor atuou com dolo ou culpa grave, sendo certo também que esta disposição veda a prova de que a ação em questão não causou ou agravou a situação de insolvência e de que não atuou com dolo ou culpa grave (citado Acórdão da Relação de Coimbra de 17-03-2020). Porém, não se pode deixar de referir que ao proceder à partilha nos termos mencionados nos factos provados, o insolvente agravou a situação de insolvência, na medida em que teria a possibilidade de obter os meios necessárias a liquidar as suas dívidas.

Em conclusão é de qualificar a insolvência como culposa nos termos previstos na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º.”.

Concordamos com o que ora se deixou dito.

Efectivamente, por força de se ter considerado que valor dos bens a partilhar era o patrimonial, resultou que o quinhão do insolvente, que ascendia a mais de 100 mil euros, ficasse reduzido à verba n.º 13 – no valor de 35.000,00 €, acrescido de tornas, no montante de 4.530,56 €.

Esta discrepância resulta do facto de os valores reais dos bens a partilhar serem muito superiores ao tido em conta na partilha, como resulta do que consta do item 14.º, de molde a que o devedor como que “prescindiu/renunciou” à maior parte do quinhão hereditário a que tinha direito, o que originou a que ficasse sem bens que permitissem solver a dívida que tem para com a recorrida, em benefício dos demais herdeiros que, assim, na realidade, vieram a receber mais do que aquilo a que tinham direito.

Encontra-se, por isso, verificado o condicionalismo previsto no artigo 186.º, n.º 2, al. d), do CIRE, irrelevando não se ter demonstrado que as demais herdeiras agissem com a intenção de prejudicar os credores do insolvente. Para a qualificação da insolvência, basta a disposição dos bens do devedor em proveito de terceiros, o que se verifica, pelos motivos acima referidos, atento a que se traduzem no empobrecimento do património do devedor, como refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2.ª Edição, pág. 272.

Como se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 17 de Março de 2020, Processo n.º 2274/17.9T8CBR-C.C1, disponível no respectivo sítio do itij, em que é Relator o ora 1.º Adjunto, seguindo o conceito de negócios onerosos defendido por Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, Vol. II, Almedina, 1968, pág. 220, a alínea d) em apreciação “compreende a transmissão da propriedade de um bem, da qual resulte proveito apenas para os administradores de facto ou um terceiro”.

Ora, fazendo-se a partilha, como se fez, tendo por referência os valores patrimoniais dos bens a partilhar, muito inferiores aos reais, o insolvente abdicou de grande parte do seu quinhão hereditário, em benefício das co-herdeiras.

Não está em causa o respeito pela observância dos legados instituídos no testamento deixado pelo pai do insolvente, que a partilha teria de respeitar. O que para este efeito releva é que o insolvente foi inteirado na partilha apenas pela verba n.º 13, recebendo as acima referidas tornas, sem que lhe fosse adjudicado qualquer dos bens imóveis que faziam parte do acervo a partilhar, com um valor real muito superior ao considerado, o que acarretou um empobrecimento do seu património, em benefício das co-herdeiras, verificando-se, por isso, como decidido em 1.ª instância, tratar-se de um caso de insolvência culposa, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, al. d), do CIRE, nada havendo, quanto a tal, a censurar.

Pelo que, também, quanto a esta questão, improcede o recurso.

(…)

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida; nem se condena o recorrente por litigância de má-fé.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 25 de Maio de 2021.


[1] Cfr. art. 6.º do CIRE.
[2] Sem prejuízo do 186.º/4 mandar aplicar, “com as necessárias adaptações”, os n.º 2 e 3 à actuação da pessoa singular.
[3] Cfr., v. g., Ac. Rel. de Guimarães de 12/03/2009, in CJ online, ref. 5220/2009; e Ac. Rel. de Coimbra de 20/04/2010, in CJ online, ref. 3246/2010, e de 08/02/2011, in CJ online, ref. 741/2011.

[4] Desde logo por entre os factos omitidos referidos nas alíneas a) e b) do art. 186.º/3 do CIRE (incumprimento do dever de apresentação à insolvência e incumprimento do dever de elaboração e depósito das contas) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência não ser vislumbrável, em abstracto, a possibilidade de vir a existir um nexo lógico ou uma qualquer conexão, o que, evidentemente, tornaria inatingível a prova, em concreto, do nexo de causalidade exigido e redundaria – exigindo-se a prova de tal nexo causal – na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE (enquanto enumeração de actos/factos susceptíveis de desencadear como consequência a qualificação da insolvência como culposa).
[5]Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respectivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura económica ou as condições de mercado” - Cfr. Catarina Serra, in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março de 2008, pág. 69
[6] Que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja pessoa singular, se configuram como infracções ao dever geral de fidelidade consagrado no art. 64.º/1/b) do CSC.
[7] Como é evidente, a delapidação de património causa ou pode causar, pela diminuição de recursos que gera, impossibilidades de cumprimento e/ou activos manifestamente inferiores ao passivo (cfr. art. 3.º/1 e 2 do CIRE).
[8] Como refere Catarina Serra, local citado, pág. 65, “entre o facto conhecido – não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos – e o facto desconhecido ou presumido – insolvência culposa – interpõe-se um outro que não chega a ser conhecido”.

[9] É também e justamente por isto que dissemos que a exigência da prova do nexo causal entre os factos do n.º 3 e a criação ou agravamento da situação de insolvência redundaria na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE.
[10] Catarina Serra, local citado, pág. 68/69.
[11] Efectivamente, não existindo nas alíneas h) e i) do art. 168.º/2 do CIRE um nexo lógico ou uma conexão substancial entre o acto/facto aí referido e o facto presumido (insolvência culposa), parece que, também aqui, devia ser concedida a possibilidade do devedor se defender mostrando que a sua conduta, apesar de ilícita e culposa não causou a insolvência.
[12] Neste sentido, Ac. Rel. do Porto de 05/02/2009, in CJ online, ref. 2737/2009, e Ac. Rel. de Coimbra de 26/01/2010; e, na doutrina, além de Catarina Serra, locais citados, Cassiano Santos, Direito Comercial, Vol. I, pág. 214/5, e Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, pág. 34.