Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3112/13.7TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA
REQUISITOS
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST.LOCAL – SEC. CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 239º, Nº 1, 243º, 244º, TODOS DO CIRE
Sumário: I – O CIRE veio introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condições fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.

II - O procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º do CIRE.

III - Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.º 239º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

IV - A cessação antecipada da exoneração ocorre:

- logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – art.º 243º, nº 4, do CIRE;

– sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e

- sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.

V - Esta última situação ocorrerá a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos casos tipificados no nº 1 do art.º 243º do CIRE:

a) se o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência incumprido algumas das obrigações que lhe incumbem em relação à cessão do rendimento disponível – art.º 243º, n.º 1, a), e 239º;

b) se vier a ser apurado supervenientemente algum dos fundamentos de in­deferimento liminar previstos nas alíneas b), e) e f) do art.º 238º - art.º 243º, nº 1, b);

c) quando a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver con­cluído pela culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência – art.º 243º, nº 1, c).

VI - A verificação da violação da condição prevista no artº 239º, nº 4, al. c), do CIRE – entrega ao fiduciário a parte dos rendimentos objecto de cessão - só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante do nº 1, a), do art.º 243º do CIRE, pois é exigido que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Decisão Texto Integral:

Por decisão datada de 18 de Setembro de 2013 transitada em julgado, foi declarada a insolvência de P..., sendo posteriormente – 11.12.2013 – liminarmente deferido o seu pedido de exoneração do passivo restante e o processo encerrado.

Nesse despacho, transitado em julgado, determinou-se, além do mais:

“Pelo exposto, decide-se:

1. admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo de­vedor e determinar que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que venha a auferir se considere cedido ao fiduciário, com exclusão dos créditos indicados nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 233º, deixando-se consignado ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 237º que a exoneração será concedida uma vez observadas pelos devedores as condições previstas no artigo 239º durante os cinco anos posteriores ao encerra­mento do processo de insolvência;

2. nomear para desempenhar o cargo de fiduciário o Dr. N..., que desempenha já as funções de administrador da insolvência no âmbito do presente processo;

3. declarar o encerramento do processo de insolvência com fundamento na alínea e) do artigo 230º (no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237º).

Notifique o devedor (com indicação expressa dos deveres que sobre si recaem, previstos no artigo 239º, n.º 4 e 5), os credores reclamantes e o Administrador da insolvência (alertando este último para o cumprimento do n.º 5 do artigo 233º)

Registe e publicite, nos termos previstos nos artigos 230º, n.º 2, e 247° do C.I.R.E..

Proceda à devolução da execução fiscal apensa.

Notifique o Fiduciário que deverá dar início ao período de cessão nos termos do n.º 2 do artigo 239º, acordando com o devedor insolvente o rendimento disponível que este pode ceder-lhe – consignando-se que o sustento mensal “minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” corresponde a uma quantia balizada entre um valor equivalente ao salário mínimo nacional e um valor máximo que não deve exceder três vezes o salário mínimo nacional sendo o restante rendi­mento disponível para cessão – comunicando esse valor ao processo.

Mais deverá o fiduciário prestar nos autos informação sobre o estado da sua administra­ção, bem como a apresentação de contas, com uma frequência anual, dando cumprimento do disposto no artigo 241º.”.

O Administrador da Insolvência veio em 11.2.2014 informar os autos de que foi atribuído ao insolvente o valor de 1,5 SMN, bem como o comprovativo da notificação a este de que deve entregar-lhe mensalmente os valores acima daquele montante, com a inclusão do subsídio de férias e de natal nos respectivos meses e de qualquer rendimento auferido a título excepcional.

Em 31.3.2015 o Banco A..., S. A., alegando que do relatório elaborado pelo Fiduciário nos termos do n.º 2, do art.º 240º do CIRE consta que o Insolvente não cumpriu as obrigações impostas por força do deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, pois não entregou àqueles os montantes objecto de cessão, requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

Na mesma data o Administrador da Insolvência informa o tribunal de que o período de cessão do rendimento disponível teve o seu início em Fevereiro de 2014 e o Insolvente desde essa data e até Janeiro de 2015 não contribuiu com qualquer montante apesar de ter sido apurado o valor de € 508,00.

Com esta informação junta correspondência trocada com o Insolvente donde resulta que este recebeu:

- em Maio de 2014 - € 300,00

- em Junho de 2014 - € 425,00

- em Julho de 2014 - € 720,00

- em Agosto de 2014 - € 2105,00

- em Setembro de 2014 - € 700,00

- em Outubro de 2014 – € 500,00

- em Novembro de 2014 - € 950,63, e

- em Dezembro de 2014 - € 487,00.

Encontra-se ainda junta cópia da declaração de IRS do Insolvente referente aos rendimentos de 2013, tendo sido declarado um rendimento de € 840,00.

O Administrador da Insolvência na sequência da notificação do requeri­mento apresentado pelo Banco A..., S. A. veio aos autos declarar que nada opõe a que seja fixado um prazo para o Insolvente liquidar as quantias em atraso.

O credor P..., S. A. manifestou a sua concordância com a posição assumida pelo Banco A..., S. A..

O Insolvente veio ao abrigo do disposto no art.º 243º, n.º 3, do CIRE in­formar que não pagou a quantia de € 508,00 relativamente ao primeiro ano de cessão do seu rendimento disponível por ter enfrentado sérias dificuldades financeiras, que exercendo funções de mediador imobiliário aufere rendimentos incertos quer quanto ao seu montante quer quanto à data do seu recebimento; que  nesse contexto de imprevisibilidade de rendimentos tem dificuldade em fazer face a todas as despesas do seu agregado familiar.

Acordou com o Administrador de Insolvência em que a periodicidade de entrega do rendimento excluído seria semestral.

Declarou ainda ir proceder em Julho de 2015 à próxima entrega do seu rendimento disponível, cujo cômputo terá em conta os rendimentos obtidos durante o 1º semestre se 2015, propondo-se liquidar a quantia de € 508,00 em falta no mês de Julho de 2015.

O credor P..., SARL pronunciou-se pela cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.

Com data de 14.5.2015 foi proferido despacho com o seguinte conteúdo:

“Tendo em conta os motivos invocados pelo insolvente a fls. 167 e 168, os quais são atendíveis, determina-se que os autos aguardem, por ora, até ao final do mês de Julho de 2015, data que o devedor prevê entregar a quantia em falta ao fiduciário.

Após, notifique o Sr. fiduciário para vir informar se o insolvente entregou a quantia a que se propôs.

Junta tal informação, abra conclusão a fim de o Tribunal se pronunciar relativamente ao requerimento de cessação antecipada de exoneração do passivo restante de fls. 109.”.

Em 10.9.2015 o Administrador da Insolvência deu conhecimento que o In­solvente não regularizou a quantia em dívida de € 508,00.

Notificado o Insolvente para esclarecer porque não procedeu ao paga­mento em atraso daquele montante o mesmo nada disse.

Foi proferida decisão em 14.10.2015 nos seguintes termos:

“Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 243º, nº 1, alínea a) e 239º, nº 4, alínea c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, recuso a exoneração do passivo restante do devedor P... e declaro antecipadamente cessado o respectivo procedimento.”.

O Insolvente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

I – O despacho ora recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE e artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

II – Nos termos do artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE, é necessário veri­ficarem-se dois pressupostos cumulativos, para que seja recusada a exoneração por violação das obrigações impostas pelo artigo 239.º do CIRE:

a) que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave;

b) que a sua actuação cause um prejuízo para os credores.

III – O Insolvente enfrentou sérias dificuldades financeiras devido à insta­bilidade da sua vida profissional, não tendo actuado com dolo ou negligencia grave.

IV – O prejuízo para os Credores, deve, em nosso entendimento, ser um prejuízo relevante, por equiparação com o regime previsto no artigo 246.º do CIRE, pois quer a cessação antecipada quer a revogação da exoneração, geram a mesma consequência na esfera jurídica do Insolvente.

V – A actuação do Insolvente não causou um prejuízo relevante, que colo­que em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência, dado ao valor diminuto do rendimento disponível não entregue ao Fiduciário, em comparação com o valor total do seu passivo.

VI – A decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasi­ado gravosa para o Insolvente, quando comparada com o prejuízo mínimo causado aos Credores, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Conclui pela procedência do recurso.

O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão proferida.

1. Do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente cumpre apreciar a seguinte questão:

Os factos apurados não são idóneos para a cessação antecipada da exo­neração do passivo restante concedido ao Insolvente?

2. Os factos

 Os factos julgados provados são os seguintes:

1. O devedor apresentou-se à insolvência no dia 13 de Setembro de 2013, requerendo simultaneamente a concessão do benefício de exoneração do passivo restante;

2. Foi declarado insolvente por sentença proferida a 18 de Setembro de 2013;

3. Por despacho proferido a 11 de Dezembro de 2013, foi admitido o inci­dente de exoneração do passivo restante;

4. O processo de insolvência foi encerrado por decisão proferida no mesmo dia;

5. De Fevereiro de 2014 a Janeiro de 2015, o insolvente não contribuiu com qualquer montante para a fidúcia, apesar de ter sido apurado o valor de € 508,08;

6. O insolvente comprometeu-se a entregar tal quantia durante o mês de Julho de 2015;

7. Até à presente data, o insolvente não entregou a referida quantia e, noti­ficado para justificar a sua omissão, nada disse.

3. O direito aplicável

O CIRE veio introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerra­mento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condi­ções fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.

Este incidente é uma solução que não tem correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente. [1]

É indiscutível que se não ocorresse a declaração de insolvência o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas sem prejuízo da eventual prescrição, a qual pode atingir o prazo de 20 anos segundo a lei civil portuguesa. [2]

O procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despa­cho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º do CIRE.

Neste contexto, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em compor­tamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuí­ram ou a agravaram [3].

Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exonera­ção do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciá­rio, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reem­bolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvên­cia e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o art.º 241º do CIRE.

No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados. – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.

Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica ads­trito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.º 239º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

A cessação antecipada da exoneração ocorre:

-  logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – art.º 243º, n.º 4, do CIRE;

– sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e

- sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.

Esta última situação ocorrerá a requerimento fundamentado de algum cre­dor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos casos tipificados no n.º 1 do art.º 243º do CIRE:

a) se o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência incumprido algumas das obrigações que lhe incumbem em relação à cessão do rendimento disponível – art.º 243º, n.º 1,  a) e 239º;

b) se vier a ser apurado supervenientemente algum dos fundamentos de in­deferimento liminar previstos nas alíneas b), e) e f) do art.º 238º - art.º 243º, n.º 1, b);

c) quando a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver con­cluído pela culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência – art.º 243º, n.º 1, c).

Nos termos do disposto no n.º 2 do preceito citado, o requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.

Este requerimento deve ser fundamentado, devendo ser especificado o facto que justifica a cessação antecipada do procedimento de exoneração. O prazo para a sua apresentação é de um ano a contar da data do conhecimento do facto, equiparando a lei ao conhecimento o desconhecimento imputável ao requerente.[4]

No caso que nos ocupa a cessação antecipada do procedimento de exone­ração foi declarada com fundamento na violação pelo Insolvente da obrigação que sobre o mesmo impendia e contida no art.º 239º, n.º 4, al. c), do CIRE, presumindo que essa infracção foi praticada com negligência grave, dada a inexistência de qualquer justificação para a sua conduta.

O insolvente tem a obrigação, entre outras – art.º 239º, n.º 4, do CIRE –, de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos rendimentos objecto de cessão – al. c).

Efectivamente está demonstrado que o Insolvente não entregou ao Admi­nistrador de Insolvência a quantia de € 508,00, pese embora lhe tenha sido concedido uma moratória coincidente com a possibilidade por si anunciada para efectuar essa entrega.

A verificação da violação dessa condição, só por si não conduz ao preen­chimento do requisito constante do n.º 1, a), do art.º 243º do CIRE, pois é exigido que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Em situação em tudo idêntica àquela que nos ocupa e à qual aderimos consta do acórdão deste tribunal de 3.4.2014, acessível em www.dgsi.pt  [5]:

Nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido exoneração releva como causa de revogação do benefício: a lei é terminante em exigir, de um aspecto, que se trate de um prevaricação dolosa e, cumulativamente, de outro, que tenha prejudicado, de forma relevante, a satisfação dos credores da insolvência. A doutrina adiciona a estes dois requisitos um terceiro: o da existência de um nexo causal entre a conduta dolosa do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos.

Embora se conceba, sem dificuldade, que a violação dos deveres do insol­vente – v.g., o de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – possa resultar da inobservância de um dever de cuidado, a verdade é que lei não se contenta, para tornar lícita a revogação da exoneração, com a negligência: exige o dolo. Em contrapartida, na ausência de qualquer distinguo, é relevante qualquer modalidade de dolo.

O dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo. O insol­vente actua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está adstrito durante o período da cessão, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o insolvente actua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não directamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possua a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito. O dolo é intenção – mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta.

Além disso, o insolvente só actua dolosamente quando se decida pela ac­tuação contrária ao direito. Se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo directo; se essa violação não é directamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.

A violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há-de provo­car um resultado: a afectação relevante da satisfação dos créditos da insolvência. Não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (artºs 243 b) e 246 nº 1,in fine, do CIRE). Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante.

A relevância desse prejuízo deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério quantitativo, portanto, em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência. Mas a essa aferição não deve ser estranha a natureza do crédito e a qualidade do credor. Na verdade, na valoração da relevância do prejuízo, não há-de ser indiferente, a par do quantum da insatisfação dos credores da insolvência, o facto de o crédito insatisfeito ter, por exemplo, natureza laboral e por titular um trabalhador, ou de se tratar de uma entidade de reconhecida – ou presu­mida - solvabilidade económica, como, por exemplo, uma instituição bancária ou um segurador, em que os custos do incumprimento são uma variável tomada em linha de conta na estrutura dos preços oferecidos no mercado.

A isto pode obtemperar-se que a avaliação da relevância do dano a partir do valor do rendimento disponível cedido e do seu cotejo com o valor dos créditos – e da qualidade destes e do respectivo credor – terá como consequência, sempre que o rendimento cedido seja diminuto, em termos absolutos, ou por comparação com o valor dos créditos sobre a insolvência, a atribuição à obrigação de entrega imediata do rendimento disponível ao fiduciário de uma natureza puramente semântica, já que a sua violação, por mais intenso que seja o dolo do devedor, nunca seria susceptível de fundamentar – por falta de preenchimento do requisito do prejuízo relevante – a revogação da exoneração. Dito por outras palavras: se o valor diminuto do rendi­mento objecto da obrigação de dare que vincula o exonerado impedir, em caso de violação da obrigação de entrega, a revogação da exoneração, o despacho inicial redunda, logo, de certo modo, verdadeira e materialmente, numa concessão dessa mesma exoneração. Desde que, nesta hipótese, o insolvente sempre estará subtraído à revogação da exoneração – por ausência do preenchimento do requisito da relevância do dano - o cumprimento ou não cumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível será de todo indiferente; quer cumpra quer não – ainda que com dolo grave – sempre estará excluída a revogação da exoneração e a consequente reconstituição dos créditos extintos (art.º  246 nº 4 do CIRE). Mas isto só será assim, por regra, no tocante a actos de incumprimento esporádicos ou isolados, dado que, no caso de não cumprimento reiterado, sem a alegação de um motivo justificante, a acumulação do débito – dado o arco temporal de duração do período da cessão – acabará por redundar em dano relevante para os credores do insolvente, de todo incompatível com a cláusula de merecimento que se entende subjazer à concessão da exoneração.

Mas aquela consequência corresponde inteiramente à lógica da exigência da relevância do prejuízo e pode explicar-se por uma ideia ou princípio de proporci­onalidade – que possui um claro fundamento constitucional e é, por isso, transversal a toda a ordem jurídica - e que encontra, mesmo no plano estrito do direito privado, inúmeras concretizações, de que são meros exemplos, entre muitos outros, a recusa ao credor do direito potestativo de resolução do contrato com base numa falta leve ou insignificante do devedor, o apelo ao abuso do direito, sempre que se verifique uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respectivo sujeito passivo ou para terceiros, portanto, em que é patente um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas ou o princípio da proporcionalidade da penhora (art.º 18 nº 2 da Consti­tuição da República Portuguesa).

A gravidade das consequências para o devedor da revogação da exonera­ção – com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência, só detida pelo prazo ordinário da prescrição – impõem, por aplicação de um princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela revogação só possa fundamentar-se numa conduta dolosa do devedor que seja causa de um dano relevante pata os seus credores, objectivamente imputável àquela conduta.

O pensamento da lei é, assim, em traços largos, este: o comprometimento da finalidade da exoneração do passivo restante – a concessão ao devedor insolvente de um fresh start, de uma nova oportunidade, a reabilitação económica do devedor e a sua reintegração plena na vida económica, liberto das grilhetas do passivo que sobre ele pesava - só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que o insolvente está vinculado durante o período da cessão, cause aos credores um dano relevante, grave ou significante.

Ora, no caso dos autos provou-se que o Insolvente não entregou o mon­tante semestral ao fiduciário a que estava obrigado, não cumprindo assim a sua obrigação.

A decisão recorrida tem a nossa concordância quando caracteriza a viola­ção dessa obrigação como dolosa, pois e retomando o acórdão atrás citado de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, julga-se irrecusável que aquele insolvente conhecia sabia, representou correctamente ou tinha consciência da sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível e do não cumprimento dessa obrigação: a verificação do momento intelectual do dolo é, assim, irrecusável. E o mesmo sucede como o elemento volitivo desse mesmo dolo já que é patente a verificação, no caso de uma vontade dirigida a esse não cumprimento. Assim, mesmo que se conceda que aquele não cumprimento não foi o verdadeiro fim da conduta do apelante – e, portanto, que o dolo não é directo – tem-se por certo, a presença, no caso de um dolo necessário ou de segundo grau: o não cumprimento surge, não como pressuposto ou grau intermédio para alcançar a finalidade da conduta – mas como sua consequência necessária, no preciso sentido de consequência inevitável, se bem que lateral relativamente ao fim da conduta: o não cumprimento da obrigação e entrega do rendimento disponível cedido ultrapassou a mera representação dessa consequência como possível, para se ter como certa ou pelo menos altamente provável. O insolvente ao afectar os seus recursos a despesas do agregado alegada­mente inadiáveis, não pode deixar de representar como certa ou altamente provável – em face da exiguidade e da inelasticidade das suas receitas – o não cumprimento da obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível que se considera cedido.

No entanto a lei não se satisfaz como atrás dissemos para a cessação ante­cipada da exoneração do passivo restante com a conduta do Insolvente, exigindo que do seu incumprimento tenha resultado prejuízo relevante para os credores.

Decerto que o incumprimento daquela obrigação causa aqueles credores um prejuízo. Mas este dano, se se tiver em conta o valor do rendimento que se considera cedido, o montante da quantia não entregue e o valor global dos créditos sobre a insolvência, e a qualidade dos credores afectados – não suporta a qualifica­ção de relevante. [6]

Não sendo o prejuízo causado pela conduta do Insolvente relevante, não se pode considerar preenchido este requisito legal, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida.

Decisão:

Pelo exposto, julgando-se procedente o recurso e revoga-se a decisão re­corrida.

Sem custas.

                                                                      Coimbra, 7 de Abril de 2016.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                  Jaime Ferreira

[1] Cfr. preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março.

[2] Assunção Cristas, in Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edi­ção especial, pág. 166-167.

[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 188-190, da ed. de 2005, da Quid Júris

[4] Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, ed. 2013, pág. 675, Almedina.

[5] Relatado por Henrique Antunes.

[6]  Acórdão citado.