Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3238/06.3TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: VENDA DE BENS DE CONSUMO
GARANTIA
PRAZO
CADUCIDADE
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 5º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI N.º 24/96, DE 31.7), DL N.º 67/03, DE 8.4, DL N.º 84/08, DE 21.5 E ART.º 12.º, N.º 2, 2.ª PARTE DO CC
Legislação Comunitária: DIRECTIVA N.º 1999/44/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 25.5
Sumário: I - Dedicando-se a Ré à actividade de promoção e desenvolvimento de negócios imobiliários, no âmbito do que construiu e vendeu à A. uma moradia para aí constituir o seu lar, o regime legal contratual aplicável é o da venda de bens de consumo decorrente da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31.7) e do DL n.º 67/03, de 8.4, que transpos para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.5;

II - Porque se trata de legislação de cariz proteccionista, é aplicável imediatamente a lei nova (DL n.º 84/08, de 21.5) que aumentou de 6 meses para 3 anos o prazo de caducidade subsequente à denúncia de defeitos de construção do imóvel (art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte do CC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            1. Relatório

            A... propos no 5.º Juízo Cível de Leiria a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário contra B..., pedindo a sua condenação na reparação dos defeitos enunciados na petição inicial e a indemnizar a A. a título de danos não patrimoniais pelos prejuízos decorrentes desses defeitos, em montante a liquidar ulteriormente.

Alegou, para tanto, que a Ré se dedica à actividade de promoção e desenvolvimento de negócios imobiliários e que, no exercício dessa actividade, construiu, entre os anos de 2001 e 2003, duas moradias geminadas em (...), (...), uma das quais lhe vendeu em 22.12.2003 [1] e logo no primeiro semestre de 2004 o imóvel evidenciou defeitos, que denunciou em 16.07.2004 e que a Ré reconheceu, prometendo repará-los e procedendo a algumas reparações no decorrer do segundo semestre de 2004, em 18.01.2005 seu pai denunciou novos defeitos entretanto surgidos, alegando ainda ter procedido a uma notificação judicial avulsa, concretizada em 22.11.2005, instando a Ré a proceder a obras de eliminação dos defeitos que subsistiam, alegando, finalmente, ter sofrido desgostos e aborrecimentos por não poder desfrutar da sua habitação com comodidade, higiene e salubridade.

Citada, a Ré contestou, excepcionando a caducidade do direito de a Autora pedir a reparação dos defeitos, pois que, tendo a acção entrado em juízo no dia 23.05.2006, decorreu mais de um ano desde a denúncia dos defeitos e a instauração da acção, alegou que a Autora, aquando da entrega do imóvel, aceitou, sem reservas, a situação relatada no artº 40º da petição “à vertical da caixa de colectores, localizada na caixa da cozinha, encontra-se exposta a manga de protecção do tubo “tex” da parede para o chão”, sendo certo que tal, aliás, não consubstancia um defeito ou que, a sê-lo, é aparente e não oculto, pelo qual o empreiteiro não responde.

Por outro lado, tal pretenso defeito não foi denunciado no ano seguinte ao seu conhecimento, nomeadamente durante o ano de 2004, tendo caducado o direito de pedir judicialmente a sua eliminação, sendo que tal caducidade também atinge o direito à indemnização pela “má execução das obras de canalização que tiveram na base de três inundações na habitação ocorridas em Janeiro, Junho e Julho de 2004”.

Concluiu a Ré pela improcedência da acção e deduziu incidente de intervenção acessória provocada de “Construções C..., Lda.”, empresa que executou os trabalhos de construção e de edificação do imóvel, por ter sobre ela direito de regresso caso venha a ser condenada no pagamento das quantias peticionadas pela Autora.

A Autora replicou, pugnando pela improcedência da deduzida excepção, designadamente alegando que a Ré sempre reconheceu a existência dos defeitos e que se está perante um contrato de compra e venda (e não de empreitada), destinando-se o imóvel a um uso não profissional e sujeito, por isso, ao regime especial da Lei n.º 24/96, de 31.7 e DL n.º 67/03. de 8.4.

Foi admitida a intervenção acessória provocada da sociedade “Construções C ..., Lda.”, a qual, citada, não deduziu contestação.

Proferido despacho saneador, em que se relegou para final o conhecimento da excepcionada caducidade, procedeu-se à elaboração dos factos assentes e da base instrutória, com reclamação apresentada pela Ré, parcialmente atendida.

Foi efectuada perícia ao imóvel.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações.

Proferida sentença, foi a acção julgada procedente e a Ré condenada a executar os trabalhos de reparação dos defeitos descritos nos factos nela provados sob os pontos n.ºs 16, 18, 26, 28 a 38 e 40 a 45, bem como a pagar à A. o montante que vier a liquidar-se a título de indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da existência de tais defeitos.

Inconformada com o assim decidido apelou a Ré, apresentando alegações que rematou com as seguintes úteis conclusões:

a) – Na escritura pública junta aos autos consta ter sido outorgada no dia 22.12.03 e não 22.12.04, pelo que enferma de lapso de escrita o facto dado como provado no ponto n.º 11 da sentença recorrida;

b) – A presente acção deu entrada em tribunal a 23.5.06;

c) – De acordo com a matéria de facto dada como provada a recorrente apenas reconheceu de modo claro, concreto e inequívoco o “problema da canalização na casa de banho do r/c, as fissuras entre degraus do logradouro frontal e a fachada de habitação e assentamentos diferenciais no pavimento (em elementos pré-fabricados em betão)”, não tendo a recorrida logrado provar, como lhe competia, que a Ré reconheceu, de modo claro, inequívoco, concreto e preciso quer as demais “deficiências” elencadas no ponto 18 da facticidade dada como provada, quer os “defeitos” denunciados a 18.1.05;

d) – Não resultam provadas quais as reparações e que concretas e precisas “deficiências” foram efectuadas pela Ré no 2.º semestre de 2004, sendo que para efeito de reconhecimento do direito incumbia à recorrida provar quais as reparações concretas que a recorrente efectuou e de que concretas deficiências, para que opere o efeito do impedimento da caducidade do direito;

e) – Da facticidade dada como provada decorreria que após 22.11.05 a A. podia exercer judicialmente os direitos que a lei lhe confere, nomeadamente os previstos no art.º 4.º do DL n.º 67/03, de 8.4, pelo que sempre seria esse momento a partir do qual começou a  correr o prazo de caducidade de 6 meses previsto no art.º 5.º, n.º 4, do citado DL e também por esse motivo, aquando da propositura da acção já havia caducado o direito que a A. pretendia fazer valer nestes autos, valendo igual raciocínio se se entender aplicável o disposto no art.º 917.º do CC;

f) – Mesmo segundo a tese perfilhada pelo tribunal, pelo menos quanto aos defeitos comunicados a 18.1.05, enumerados nos pontos n.ºs 26 a 43 dos factos provados, sempre teria caducado o direito da A. a exigir a sua reparação.

Concluiu pela revogação parcial da sentença, julgando-se procedente a excepção da caducidade do direito da recorrida, com excepção das deficiências elencadas no ponto 20 dos factos provados, absolvendo-se a recorrente da condenação a executar os trabalhos de reparação de todos os demais “defeitos”, bem como deve ser revogada a sentença recorrida na parte que condena no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da existência dos direitos respeitantes a defeitos não reconhecidos pela recorrente.

Não houve lugar a resposta por parte da A. recorrida.

Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – A rectificação do erro de escrita quanto à data da escritura de compra e venda do imóvel da Ré à A.

b) – A caducidade do direito à reparação dos defeitos, para lá dos, como tal, reconhecidos pela recorrente e a consequente indemnização pelos danos não patrimoniais.


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2. Fundamentos

a) – De facto

A sentença recorrida ateve-se aos seguintes factos provados, que não foram impugnados nem esta Relação tem motivos para oficiosamente os alterar:

1. A R. dedica-se à actividade de promoção e desenvolvimento de negócios imobiliários (Alínea A) dos factos assentes);

2. No âmbito desta sua actividade, a R. adquiriu, em Julho de 2001, um prédio urbano sito em (...), (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria, freguesia de ( ...), sob o nº x ... (Alínea B) dos factos assentes);

3. Com o intuito de ali proceder à construção de duas moradias geminadas e de, posteriormente, proceder à sua venda, por forma a obter assim uma mais valia (Alínea C) dos factos assentes);

4. Deste modo, a R. requereu junto dos competentes serviços do Município de Leiria um alvará de licença para construção de duas moradias geminadas a edificar no prédio indicado em b) (Alínea D) dos factos assentes);

5. O respectivo processo correu termos no Departamento de Obras Particulares da Câmara Municipal de Leiria sob o nº 1082/00 (Alínea E) dos factos assentes);

6. Tendo sido emitido, no âmbito deste processo, o Alvará de Licença de Obras Particulares nº 1127/01 (Alínea F) dos factos assentes);

7. A construção destas duas moradias ocorreu entre os anos de 2001 a 2003 (Alínea G) dos factos assentes).

8. Em Julho de 2002 a R. impôs ao prédio identificado em 2. uma propriedade horizontal, composta por duas fracções autónomas, destinadas a habitação, designadas pelas letras A e B (Alínea H) dos factos assentes);

9. Cada uma delas correspondente a cada uma das moradias ali edificadas, ambas compostas de cave destinada a garagem e arrumo, rés-do-chão e primeiro andar para habitação e logradouro (Alínea I) dos factos assentes);

10. Em Maio de 2003, a R. vendeu a indicada fracção A a D... e E... (Alínea J) dos factos assentes);

11. E, por escritura pública outorgada perante o 2º Cartório Notarial de Leiria, em 22.12.2004, a R. vendeu à A. a já indicada fracção B (Alínea L) dos factos assentes);

12. A A. habita desde então nesta moradia (Alínea M) dos factos assentes);

13. A A. promoveu a notificação da ré através de notificação judicial avulsa que correu os seus termos no 4º Juízo Cível deste Tribunal sob o n. 3305/05.0TBLRA (Alínea N) dos factos assentes),

14. Tendo esta dado entrada neste Tribunal em 09.05.2005 (Alínea O) dos factos assentes);

15. E sido concretizada em 22.11.2005 (Alínea P) dos factos assentes);

16. À vertical da caixa de colectores, localizada na entrada da cozinha, encontra-se exposta a manga de protecção do tubo “tex” da parede para o chão (Alínea Q) dos factos assentes);

17. Para financiar a aquisição, a Autora contratou junto da F... , pelo menos um contrato de mútuo com hipoteca, no montante de € 90.000,00 (resposta ao facto nº 1 da base instrutória);

18. Logo no ano de 2004, a Autora comunicou à Ré que o imóvel apresentava as seguintes “deficiências”:

Lado do jardim:

- Degraus da porta principal com folga excessiva entre eles.

- Parte inferior da varanda do quarto com manchas.

- Parede exterior entre a janela da sala e o muro do jardim com racha e deformação.

Cozinha:

- Vários azulejos partidos.

- Parede junto à porta da casa de banho com fungos.

- Ombreira da porta interior da covinha com infiltrações de humidade na parte inferior.

Quarto do lado do quintal:

- Cedência do chão/rodapé nas proximidades da janela.Quarto do lado do quintal com varanda:

- Cantarias laterais da porta da varanda desalinhadas.

Quarto da frente:

- Paredes da cabeceira e janela com reboco caído.

- Persiana com mau funcionamento.

Escadaria Interior:

- Vários degraus manchados.

Garagem:

- Teto com manchas causadas pelas diversas inundações devido a problemas de canalização.

Antecâmara:

- Paredes com fungos originados pelas inundações havidas.

Quintal:

- Grande área de pavimento abatido.

- Muros com rachas.

- Degrau partido entre quintais.

- Escadaria de acesso ao prédio com folga junto ao patamar.

- Fossa com derrame para o exterior.

- A canalização de água não oferece garantia (resposta ao facto nº 2 da base instrutória);

19. Tais defeitos já haviam sido anteriormente comunicados verbalmente à Ré (resposta ao facto nº 3 da base instrutória);

20. A Ré, na sequência, deslocou-se à moradia e reconheceu apenas o problema da canalização na casa de banho do rés-do-chão, as fissuras entre degraus do logradouro frontal e a fachada de habitação e assentamentos diferenciais no pavimento (em elementos pré-fabricados de betão) (resposta ao facto nº 4 da base instrutória);

21. Tendo-se comprometido, perante a A., em proceder às respectivas reparações no decorrer do verão de 2004 (resposta ao facto nº 5 da base instrutória);

22. Na sequência desta denúncia, a notificada foi procedendo a obras de reparação dos defeitos no decorrer do segundo semestre de 2004 (resposta ao facto nº 6 da base instrutória);

23. Sem que tenha cobrado ou exigido qualquer pagamento por tais serviços (resposta ao facto nº 7 da base instrutória);

24. Em 18.01.2005, o pai da A. remeteu via postal nova comunicação à A., na qual manifestou o sua preocupação face ao tacto de grande parte dos defeitos denunciados em Julho de 2004 ainda não estarem reparados (resposta ao facto nº 8 da base instrutória);

25. Tendo estabelecido um prazo até 28.02.2005 para a conclusão das obras (resposta ao facto nº 9 da base instrutória);

26. E ainda denunciado novos defeitos entretanto surgidos, tais como:

- Mau funcionamento de algumas persianas

- Desnivelamento do portão principal

- Esgoto à entrada da garagem sem escoamento (resposta ao facto nº 10 da base instrutória);

27. Os defeitos subsistiam no imóvel, em Março de 2005, nomeadamente (resposta ao facto nº 11 da base instrutória);

28. A fachada sul apresenta fissuras na ligação entre o muro de suporte logradouro frontal com a habitação (resposta ao facto nº 12 da base instrutória);

29. Fissuras horizontais entre vãos (janelas) (resposta ao facto nº 13 da base instrutória);

30. Uma fissura horizontal sobre o vão de entrada na garagem (resposta ao facto nº 14 da base instrutória);

31. E ainda fissuras diversas na parede exterior da fachada (resposta ao facto nº 15 da base instrutória);

32. A fachada nascente apresenta fissuras na sua parede exterior (resposta ao facto nº 16 da base instrutória);

33. E fissuras entre degraus do logradouro e a fachada da habitação (resposta ao facto nº 17 da base instrutória);

34. O interior da habitação apresenta fissuras no paramento interior da cozinha, com azulejos partidos (resposta ao facto nº 18 da base instrutória);

35. Fissuras na comunicação vertical entre pisos, com cantaria de revestimento partida (resposta ao facto nº 19 da base instrutória);

36. Fissuras nas paredes do quarto principal do 1º andar, com pedra decantaria partida (resposta ao facto nº 20 da base instrutória);

37. E ainda fissuras, com azulejos partidos, na casa de banho confinante coma parede exterior sul (resposta ao facto nº 21 da base instrutória);

38. O pavimento do quarto apresenta-se com superfície irregular (resposta ao facto nº 22 da base instrutória);

39. Após 22/11/2005, a ré não realizou quaisquer obras, nem contactou a autora para o que quer que fosse (resposta ao facto nº 24 da base instrutória);

40. A má execução das obras de canalização esteve na base de três inundações na habitação, ocorridas em Janeiro, Junho e Julho de 2004 (resposta ao facto nº 25 da base instrutória);

41. Em consequência destas inundações, as pedras de revestimento das escadas interiores encontram-se manchadas (resposta ao facto nº 26 da base instrutória);

42. E as ombreiras das portas (cozinha, sala e casa de banho) encontram-se danificadas nas respectivas bases (resposta ao facto nº 27 da base instrutória);

43. No logradouro, o dreno na entrada da garagem não tem qualquer ligação a descarga ou outro meio receptor, pelo que, sempre que chove com alguma intensidade, a garagem fica inundada (resposta ao facto nº 28 da base instrutória);

44. Ainda no logradouro, verificam-se assentamentos diferenciais no pavimento (em elementos pré-fabricados de betão) (resposta ao facto nº 29 da base instrutória);

45. E ainda fissuras entre degraus do logradouro frontal (resposta ao facto nº30 da base instrutória);

46. A A. denunciou os defeitos atrás mencionados à R., através de notificação judicial avulsa referida em N) (resposta ao facto nº 31 da base instrutória);

47. Na mesma notificação, a A. intimou a R. para proceder às obras de eliminação dos indicados defeitos, com início no prazo máximo de 15 dias após a recepção da notificação (resposta ao facto nº 32 da base instrutória);

48. A autora adquiriu a moradia com intenção de ali constituir família, sendo este o seu lar conjugal (resposta ao facto nº 33 da base instrutória);

49. Em virtude dos defeitos, a A. não pode desfrutar da sua habitação com a comodidade e com as condições de higiene e salubridade com que contava no momento em que a adquiriu (resposta ao facto nº 34 da base instrutória);

50. Sofrendo de um profundo desgosto (resposta ao facto nº 35 da base instrutória);

51. Não se sentindo bem na sua própria casa (resposta ao facto nº 36 da base instrutória).

52. Sofreu com inundações que ocorreram na habitação (resposta ao facto nº38 da base instrutória);

53. E com as inundações que ocorrem na garagem, sempre que chove com alguma intensidade (resposta ao facto nº 39 da base instrutória).


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            b) – De direito

            Como é sabido e flui do disposto nos art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do CPC na redacção aplicável anterior à reforma introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24.8, são as conclusões do recurso que delimitam o thema decidendum, só podendo conhecer-se de questões nelas não versadas se forem de conhecimento oficioso.

            Começando pela 1.ª acima enunciada, da rectificação da data da escritura de compra e venda do imóvel em causa, face ao documento de fls. 28 é manifesto o lapso de escrita na sentença recorrida que, ao abrigo do disposto no art.º 249.º se rectifica de 22.12.34 para 22.12.03.

            Quanto à caducidade, vejamos o quadro legal em que a excepção deve ser apreciada.

            Respigando da matéria de facto provada, a Ré dedica-se à actividade de promoção e desenvolvimento de negócios imobiliários e foi nesse âmbito que, em 22.12.03, vendeu à A. a moradia identificada nos autos, que adquiriu com intenção de aí constituir família e onde habita, desde então, esse sendo o seu lar conjugal.

            Em causa está, pois, um contrato de compra e venda celebrado entre um profissional e um consumidor, na definição do art.º 2.º da Lei de Defesa do Consumidor (LDC) (Lei n.º 24/96, de 31.7) que considera consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

            Daí que a essa factiespecie contratual seja aplicável não só esse diploma legal como o DL n.º 67/03, de 8.4, que transpos para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.5, relativa à venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas com vista à protecção dos interesses dos consumidores (art.ºs 1.º e 2.º).

            Dispõe o n.º 1 do art.º 2.º desse diploma legal que o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda e o n.º 2, alín. d), que se presume que os bens de consumo não são conformes com o contrato se não apresentarem as qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem (…).

              O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue e as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de 2 ou de 5 anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade (n.ºs 1 e 2 do art.º 3.º).

            O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos n.ºs anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais (n.º 5).

            Quanto ao prazo de garantia dispõe o art.º 5.º que “o comprador pode exercer os direitos previstos no art.º anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de 2 ou 5 anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel” (n.º 1), que “para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de 2 meses, caso se trate de bem móvel ou de 1 ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado” (n.º 3).

            “Os direitos conferidos ao consumidor nos termos do n.º 1 do art.º 4.º caducam findo qualquer dos prazos referidos nos n.ºs anteriores sem que o consumidor tenha feito a denúncia, ou decorridos sobre esta 6 meses” (n.º 4).

            “O decurso dos prazos suspende-se durante o período em que o consumidor se achar privado do uso dos bens em virtude das operações de reparação da coisa” (n.º 5).

            Por seu turno, o n.º 1 do art.º 12.º da LDC confere ao consumidor o direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da prestação de serviços defeituosos.

            Constitui causa impeditiva de caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido (n.º 2 do art.º 331.º do CC).

            Perante este quadro legal e a factualidade assente, mormente a resultante da resposta dada ao art.º 4.º da base instrutória, no sentido de a Ré haver reconhecido apenas os vícios no imóvel relativos ao “problema da canalização na casa de banho do r/c, fissuras entre degraus do logradouro frontal e a fachada da habitação e assentamentos diferenciais no pavimento (em elementos pré-fabricados em betão”) e a data de propositura da acção, só relativamente a esses defeitos a caducidade não era operante.

            Quanto aos demais, porque não reconhecidos, estariam sujeitos ao prazo de caducidade acima referido, ou seja, dentro do prazo de garantia de 5 anos, a sua denúncia estaria sujeita ao prazo máximo de 1 ano e, efectuada esta em tempo, ainda ao prazo limite de 6 meses para propositura de acção.

            Assim, porque as denúncias foram efectuadas ou pelas cartas de 16.7.04 ou 18.1.05 ou pela notificação judicial avulsa de 22.11.05, teria decorrido o subsequente prazo de 6 meses sem que a A. tivesse proposto a correspondente acção, ainda que, quanto à última denúncia, por um dia, apenas, sendo que o correspondente dia 22.5.06 fora uma 2.ª feira (art.ºs 296.º e 279.º, alín. c), do CC).

            É essa a posição da recorrente.

            Acontece, porém, que foi, entretanto, publicado o DL n.º 84/08, de 21.5, para entrar em vigor a 21.6.08 (art.º 5.º) que, mantendo o conceito de consumidor a que a legislação de defesa do consumidor é aplicável[2] revogou nomeadamente os n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 5.º do DL n.º 67/03 acima referidos e, no que ao caso vertente importa, aditou o art.º 5.º-A em cujo n.º 2 alterou o prazo de caducidade, após decorrência do prazo de denúncia, de 6 meses para 3 anos.

            De acordo com o preâmbulo desse novo diploma, as alterações visaram “ajustar o regime à realidade do mercado e colmatar as deficiências que a aplicação daquele diploma [DL n.º 67/03] revelou” (…), devendo-se a alteração e diferenciação dos prazos de 2 meses e 6 meses para 2 anos e 3 anos, respectivamente, nos casos de bens móveis e imóveis, “à complexidade de preparação de uma acção judicial (…)”.

            Ora e na falta de definição legal, a questão que aqui se coloca é a de saber qual a lei temporalmente aplicável – se o DL n. 67/03 na versão original vigente à data de celebração do contrato, em que o direito da A. recorrida estaria caducado (por 1 dia, mas seria o bastante), se a nova redacção dada pelo DL n.º 84/08, em que passou de 6 meses para 3 anos o prazo de propositura da acção (a esgotar-se, assim, em 22.11.08) e em que o exercício (judicial) do direito (23.5.06) foi atempado.

            De acordo com o disposto no art.º 12.º, n.º 1, do CC a lei só dispõe para o futuro e ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos e, o n.º 2, que, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entende-se que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor.

            A propósito da aplicação da lei no tempo às situações jurídicas contratuais nem sempre será de respeitar o doutrinalmente denominado “estatuto do contrato”, ou seja, da aplicação da lei vigente à data da conclusão do contrato, entendimento este sobre que foram gizadas as alegações recursivas ao aplicar o prazo de caducidade de 6 meses subsequente ao prazo de denúncia da redacção original do DL n.º 67/03, em vez do prazo de 3 anos introduzido pela nova versão do DL n.º 84/08.

            Socorrendo-nos da lição de J. Baptista Machado[3]o chamado “estatuto do contrato” (ou melhor, o estatuto da autonomia privada sempre foi um “estatuto” subordinado relativamente aos restantes “estatutos”. Por isso mesmo toda a LN que seja de qualificar como respeitante ao estatuto das pessoas ou dos bens, ou como relativa à organização da economia, à defesa dos direitos das pessoas ou à tutela das categorias sociais, “mais fracas” (de cariz dirigista ou de cariz proteccionista, portanto), restringe o domínio da autonomia contratual e será em regra de aplicação imediata” e, concluindo, “o “estatuto do contrato” é determinado em face da lei vigente ao tempo da conclusão do mesmo contrato. Sempre que, porém, as cláusulas de um contrato celebrado na vigência da LA e por esta consideradas válidas briguem (conflituem) com as disposições da LN com incidência sobre os efeitos dos contratos, sendo o teor de tais disposições ditado por razões atinentes ao estatuto das pessoas ou dos bens, a princípios estruturantes da ordem social ou económica, estas disposições prevalecem sobre aquelas cláusulas”.

            Ora, é indiscutível que o quadro legal especial em que nos movemos, de defesa dos consumidores, é assumidamente proteccionista e transnacional (mercado único europeu).

            Daí que, seguindo o preclaro entendimento do Ilustre Professor tenhamos por aplicável a nova redacção do DL n.º 67/03 e, assim, o prazo de caducidade mais dilatado de 3 anos.

            Porque as sucessivas denúncias dos defeitos se reportaram a 16.7.04, 18.5.05 e 22.11.05 e porque a acção foi proposta em 22.5.06, não decorreu o prazo de caducidade do exercício dos direitos da A.

            Eis por que, embora com diversa fundamentação, seja de manter a sentença condenatória recorrida, mormente no que tange à subsistência da indemnização pelos danos não patrimoniais correspondentemente a todos os defeitos, como tal reconhecidos pela recorrente ou não.


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            3. Sintetizando

            I - Dedicando-se a Ré à actividade de promoção e desenvolvimento de negócios imobiliários, no âmbito do que construiu e vendeu à A. uma moradia para aí constituir o seu lar, o regime legal contratual aplicável é o da venda de bens de consumo decorrente da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31.7) e do DL n.º 67/03, de 8.4, que transpos para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.5;

II - Porque se trata de legislação de cariz proteccionista, é aplicável imediatamente a lei nova (DL n.º 84/08, de 21.5) que aumentou de 6 meses para 3 anos o prazo de caducidade subsequente à denúncia de defeitos de construção do imóvel (art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte do CC).


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar, embora com fundamentação diversa, a sentença recorrida.

            Custas da apelação pela recorrente.


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Francisco M. Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] Deve-se a manifesto lapso a indicação de 2004.
[2] O art.º 1.º-A dispos que o presente DL é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores e o 1.º-B, alín. a) definiu como “consumidor” aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31.7 e a alín. c) definiu como “vendedor” qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional.
[3] “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1983, pág. 241 e 242.