Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4818/19.2T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
FALTA DE NARRAÇÃO DE FACTOS INDICIADOS E NÃO INDICIADOS
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: INVÁLIDA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), 308.º, N.º 2, E 123.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: O despacho de não pronúncia que não especifique os factos indiciados e, sobretudo, não indiciados, padece de irregularidade, vício que, porque afecta o valor daquele acto decisório, é de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral:







Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do proc. n.º 4818/19.2T9CBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Coimbra – Juízo Inst. Criminal – Juiz 3, pelo assistente J. foi deduzida acusação particular contra os arguidos M. e MR., imputando-lhes a prática “em coautoria, na forma consumada, um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 180.º, n.º 1 do Código Penal e um crime de injúria p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 181.º, n.º 1 do Código Penal”, acusação essa que o Ministério Público não acompanhou.

2. Requerida que foi pela arguida a fase de instrução, finda a mesma foi proferida decisão instrutória de não pronúncia em relação a ambos os arguidos.

3. Inconformado com a decisão recorreu o assistente J., formulando as seguintes conclusões:

I. O processo penal português pauta-se por ditames de humanismo, com a intenção de serem propugnadas as suas finalidades, sobretudo no que se refere à descoberta da verdade material e realização da justiça.

II. Face ao antagonismo demonstrado entre a versão apresentada pelos arguidos e assistente, foi descurada a versão apresentada pelas testemunhas ouvidas em sede de inquérito, considerando o juízo de instrução criminal que os arguidos seriam incontornavelmente absolvidos em sede de julgamento;

III. O Assistente apresentou acusação particular e os arguidos requereram a abertura de instrução, tendo invocado a nulidade da acusação particular, por não identificar devidamente os arguidos, não circunstanciar os factos no tempo e no lugar e não requerer o julgamento dos arguidos, pugnando pela sua não pronúncia;

IV. A nulidade foi ultrapassada pelo juízo de instrução criminal, uma vez que inexistia nulidade, contudo foi proferido despacho de não pronúncia dos mesmos, pelo facto de o juízo de instrução criminal de Coimbra considerar que chamar “cabrão”, entre outros impropérios, não tem dignidade bastante para ter lugar uma condenação em sede de audiência de julgamento;

V. É incontornável que existem indícios suficientes de que os arguidos cometeram os crimes de difamação e injúria contra o Assistente, pois toda a prova ruma nesse sentido, sobretudo a prova documental onde se encontra exarado o depoimento das testemunhas e do assistente, que concretizam de forma inequívoca que a honra deste último foi (é) vilipendiada, de forma reiterada, pelos arguidos;

VI. Não podemos aceitar que chamar nomes a alguém – sobretudo num jargão inaceitável para quaisquer padrões societário, mesmo os mais liberais – não seja ofensivo;

VII. Não podemos chamar “puta”, “cabra”, “cabrão”, “vaca” ou dizer a alguém que “vá à merda” ou “vá para o caralho” sem que tal seja considerado ofensivo, especialmente quando existe animosidade e uma intencionalidade de foro criminoso;

VIII. A liberdade de expressão não pode ser chancela para ofendermos terceiros e tal foi precisamente o que os arguidos fizeram e continuarão a fazer, uma vez que não sejam responsabilizados pela linguagem indecorosa que utilizam quando se dirigem de forma provocatória ao arguido e aos seus familiares – e a tantas pessoas;

IX. O Assistente, com a conduta dos arguidos sentiu-se veramente vexado e ofendido na sua honra devido à conduta dos arguidos e tal não pode ser descurado pela Justiça;

X. Não devemos utilizar linguagem imprópria com pessoas que não partilham da nossa falta de educação, pois estamos a violar um dos seus direitos de personalidade, nomeadamente o seu direito ao bom nome;

XI. Chamar “cabrão” a alguém, ou dizer, “lá vem o cabrão”, entre outras expressões, é inequivocamente ofensivo, mormente quando a intenção é precisamente a de ofender a honra, a de atingir uma esfera jurídica pessoal e inviolável;

XII. Bem sabemos que o art.º 37.º da CRP protege a liberdade de expressão, mas, se nos permitem a ousadia, não podemos chamar nomes a terceiros a “torto e a direito” ou simplesmente porque nos apetece.

XIII. É admitido pelo Tribunal a quo que os arguidos proferiram expressões impróprias e ofensivas, contudo qualifica-as, de acordo com a posição doutrinária por si, sufragada, como jurídico-penalmente irrelevantes, o que não é de todo admissível pois se de facto estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de injúria, mesmo que não estivesse o de difamação, existindo prova nos autos, para além daquela produzida em sede de audiência de julgamento, que confirma os factos praticados pelos arguidos, outra solução não deveria restar ao Tribunal a quo senão pronunciar os arguidos, pelo menos pelo crime de injúria;

XIV. Temos a convicção de que se encontram reunidos os pressupostos exigidos pelo art.º 283. N.ºs 1 e 2, por referência ao art.º 308.º n.º 1, ambos do C. P. Penal com vista a ser proferida uma decisão de pronúncia, em virtude de existirem indícios mais do que suficientes de que os arguidos, M., filho de (…), nascido em (…), natural da (...), residente na Rua (…), n.º 2, (…), e MR, filha de (…) e de (…), nascida em (…), natural da freguesia de (…), Município de (…), residente na Rua da (…), n.º 2, (…), cometeram os crimes de difamação, p. e p. pelos artigos 14.º n.º 1, 180.º, n.º 1 do C. Penal e um crime de injúria, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 181.º, n.º 1 do C. Penal porquanto os elementos probatórios – reconhecidos inclusivamente pelo Tribunal a quo – rumam no sentido de os arguidos terem ofendido deliberada e conscientemente a honra de J., quer diretamente, quer perante terceiros, com a intenção de enxovalhar e causar mau estar neste, violando a sua esfera jurídica.

XV. Existindo indícios suficientes, o juízo de instrução deveria ter pronunciado os arguidos e não ter efetuado, se nos permite a ousadia, um juízo antecipado de absolvição, nem julgado antecipadamente a causa, pois não é essa a sua função.

XVI. Existindo um juízo de probabilidade razoável de condenação, conforme ditou este Tribunal Superior, no Acórdão proferido no processo n.º (…), de (…), cujo relator fora Orlando Gonçalves, revela-se imprescindível que os arguidos sejam submetidos a julgamento e ver a sua responsabilidade escrutinada e determinada,

Assim se fazendo a vossa acostumada justiça!

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso interposto pelo assistente não merece provimento, mostrando-se realizadas todas as diligências investigatórias pertinentes e inexistindo nos autos elementos que apontem para a suficiente indiciação da prática, pelos arguidos M. e MR., dos crimes de difamação e de injúria, p. e p. pelos art. 180º, n.º 1 e 180º, n.º 2 do Código Penal:

1. Nenhuma das testemunhas ouvidas se referiu de forma específica às datas constantes da acusação particular e descreveu os factos que aí se fez constar, os arguidos negaram a prática dos factos, o assistente limitou-se a confirmar genericamente o teor da queixa.

2. Dificilmente a factualidade descrita na acusação particular, ainda que suficientemente indiciada nos autos, seria suficiente para fazer incorrer os arguidos na prática dos crimes de injúria e de difamação.

3. Os factos descritos na acusação particular são insuscetíveis de consubstanciar o crime de difamação, uma vez que, de acordo com tal peça processual, o assistente estaria presente nas três ocasiões concretas que descreveu; assim, quando muito, estaria em causa a prática, pelos arguidos, de três crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Código Penal.

4. Relativamente à palavra “puta”, teria sido dirigida à filha do assistente, que declarou não desejar procedimento criminal nos autos.

5. “Gestos indecorosos”, não foram efetivamente concretizados nem descritos na acusação particular, pelo que, nesta parte, são também os factos insuscetíveis de responsabilizar criminalmente os arguidos.

6. A expressão “cabrão”, confirmada por algumas testemunhas, ainda que sem referência às circunstâncias espácio-temporais em que possa ter sido proferida e a quem se dirigiu e a quem se dirigiu, surge descontextualizada, como um mero impropério insuscetível de atingir a honra do visado, quer encarada na vertente pessoal, quer na sua honra exterior ou objetiva, ou reputação, ou consideração.

Deve, assim, o douto despacho de não pronúncia ser mantido, nos seus precisos termos.

V. Exas., como sempre, decidirão como for de Justiça.

6. Também os arguidos reagiram ao recurso, concluindo:

1º O assistente J., inconformado com a douta sentença judicial de instrução que decidiu a não pronúncia dos arguidos M. e MR, “… pelos factos que lhes são imputados na acusação particular, alegadamente suscetíveis de os constituírem coautores materiais de um crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181º.º do Código Penal…”, apresentou o presente recurso.

2º Em sede, das Conclusões da Motivação do Recurso, o assistente alega resumidamente as razões da sua discordância, com a douta decisão tirada.

3º Desde logo quanto ao argumento utilizado pelo assistente, no que diz respeito às nulidades deduzidas pelos arguidos á acusação particular, o Tribunal de Instrução já se pronunciou sobre tal matéria, no sentido de indeferimento das mesmas, decisão que os arguidos respeitaram e acataram, não se tendo oposto á mesma, pelo que deixa de ter qualquer interesse o assistente levantar a questão, por no entender dos arguidos ser questão resolvida.

4º Quanto ao argumento de que existem indícios suficientes de que os arguidos cometeram os crimes de difamação e injúria contra o assistente, alicerçado em que o depoimento das testemunhas vai nesse sentido, tal não corresponde de todo á verdade.

5º Consultados os autos, nomeadamente o depoimento do assistente e das testemunhas, resulta claro, para qualquer interveniente processual que nenhuma testemunha corroborou a queixa do assistente, antes falando tão só numa relação conflituosa e insultuosa, entre arguidos e assistente, mas de forma vaga e não concreta, que não permite como o assistente quer fazer crer, no recurso ora apresentado, que os depoimentos vão de encontro á confirmação da queixa. Pelo que, resulta claro não terem sido recolhidos indícios suficientes que permitissem imputar aos arguidos a prática de qualquer crime.

6º Isto mesmo já tinha concluído o Ministério Publico, quando proferiu despacho de encerramento do inquérito, ao considerar não existirem indícios suficientes da prática dos crimes de denúncia caluniosa e de perseguição, nem tão pouco de difamação ou injuria, pelo declarou não acompanhar a acusação particular.

7º E não tendo sido carreada qualquer outra prova para os autos em sede de instrução, andou muito bem o Meritíssimo Juiz de Instrução, quando na sua decisão instrutória diz que: “… temos que dos elementos probatórios carreados para os presentes autos e supra enunciados não podemos considerar existirem indícios suficientes, em termos de sustentação da acusação particular, da factualidade na mesma narrada. Com efeito, os arguidos negaram a prática dos factos; Todas as demais testemunhas inquiridas aludiram a uma relação conflituosa entre os arguidos e o assistente, pautada por múltiplos desentendimentos; Contudo, quando ouvido, o assistente limitou-se a confirmar o conteúdo da queixa; A testemunha MJ, filha do assistente, confirmou a relação conflituosa, todavia, nenhum dos episódios concretizou em termos de tempo, espaço e modo (designadamente, no que respeita a que arguido fez o quê); OM, vizinha de arguidos e assistente, aludiu diversas expressões, proferidas “várias vezes” pelos arguidos, todavia, não as circunstanciando temporalmente, nem referindo às que são imputadas na douta acusação particular (“cabrão”); AC, também, vizinho, disse referiu, apenas, igualmente, sem concretizar espácio-temporalmente, que o arguido M. (não aludindo á coarguida MR), profere palavras como “cabrão” e “filho da puta”); o vizinho JH igualmente não corroborou as expressões vertidas na acusação, embora referindo ter escutado ambos os arguidos – não precisando quando e onde, nem a quem se referindo – afirmando “estou rodeado de putas e cabrões” e “lá está a mula á janela”.

Inexiste, portanto, homogeneidade nas declarações e nos depoimentos que permita sustentar a factualidade concretamente imputada aos arguidos na acusação particular.”

8º Pelo que resulta claro para os arguidos M. e MR, como resultou para o Ministério Publico e para o Tribunal de Instrução, que não foram recolhidos, nem no inquérito, nem na instrução, quaisquer indícios de que os arguidos tenham cometido quaisquer crimes contra o assistente J..

9º Quanto ao argumento de que “Chamar "cabrão" a alguém, ou dizer, "lá vem aquele cabrão", entre outras expressões, é inequivocamente ofensivo…”, diga-se desde logo que tal afirmação efetuada de forma singela e desgarrada, não pode configurar qualquer crime, isso mesmo encontra-se muito bem explicado pelo Acórdão da Relação do Porto de 05.11.2008, citado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução.

10º Entendimento que o Meritíssimo Juiz de Instrução subscreveu e explicitou dizendo na sua decisão que: “… a subscrição do ilícito não se pode circunscrever e/ou limitar-se á valoração isolada e objetiva das expressões proferidas, máxime tratando-se – e este é o caso – de mero juízo de valor. Importará analisa-las como e por quem foram proferidas, no circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas.”

11º Assim, atento o supra exposto não podem os arguidos, deixar de concordar com a boa decisão do Tribunal de Instrução de que para uma qualquer expressão constituir ofensa a um individuo, terá sempre de ser enquadrada num contexto, num tempo, num modo, num lugar e contra quem é proferida. Só assim, se poderá avaliar se a expressão proferida, é ou não, suscetível de ser ofensiva, o que não é o caso dos autos.

12º Para além disso, também não é verdade que o Tribunal de Instrução tenha admitido que os arguidos tenham proferido expressões improprias e ofensivas, tendo-as, porém, qualificado jurídico-penalmente irrelevantes de acordo com a “posição doutrinária por si, sufragada”.

13º Do relatado na douta decisão instrutória resulta claro que o Tribunal de Instrução se limitou a colocar uma mera hipótese e não a admitir que os arguidos tenham chamado o que quer que seja ao assistente, já que, o que o Tribunal de Instrução disse foi que: “Por outro lado, ainda que se entendesse existir prova bastante de que os arguidos epitetaram o assistente de cabrão, não poderíamos considerar que tal expressão, como os alegados e não concretizados gestos indecorosos, integrariam a tipicidade objetiva da difamação ou da injúria.”

14º Acresce ainda dizer que o Tribunal de Instrução não assumiu qualquer posição doutrinária, pois como resulta claro da decisão tirada, esta baseou-se em ampla e diversa jurisprudência e doutrina, sendo a mesma devidamente citada e assertiva ao caso em discussão nos autos, não constituindo qualquer posição doutrinária.

15º Finalmente não corresponde de todo á verdade que o Tribunal de Instrução tenha efetuado “um juízo antecipado de absolvição, nem julgado antecipadamente a causa”.

16º Entendeu e bem o Tribunal de Instrução que:

“Destarte, temos que as imputadas expressões surgem descontextualizadas, não podendo concluir-se pelo seu significado de “individuo que consente ou ignora ser alvo de traição amorosa ou conjugal. = chifrudo, corno, cornudo”, apresentando-se, antes, como uma vulgar falta de urbanidade e cortesia, com emprego de linguagem boçal e rude, como um mero impropério no âmbito de desentendimento de vizinhança e de um relacionamento conflituoso, mas não merecedor de tutela jurídico-penal, não sendo a expressão suscetível de atingir a honra do visado, quer encarada na vertente pessoal – como “valor interior da pessoa na dignidade humana […] que a pessoa apresenta á luz das referencias de valor para si determinantes “, quer na sua honra exterior ou objetiva, ou reputação, ou consideração (sendo certo que, como perpassa de tudo o supra exposto, o objeto da tutela normativa da difamação e da injuria é, efetivamente, a honra e não a cortesia, a urbanidade ou a suscetibilidade individual).

Por conseguinte, não se descobre uma probabilidade, pelo menos, razoável, de uma futura condenação dos arguidos, em sede de julgamento, pelos factos que lhes são imputados pelo assistente na acusação particular…”

17º Do supra explanado, resulta claro que o Tribunal de Instrução limitou-se e bem, a exercer a sua função e a desempenhar e as suas competências, pois o que lhe é pedido é que avalie se existem ou não indícios suficientes do cometimento de um crime, e caso existam, se tais indícios são suficientes para levar um sujeito a julgamento, com a maior probabilidade de ser condenado. Caso assim, não o entenda, deverá então proferir despacho de não pronuncia, que foi o que efetivamente fez.

18º Pelo que, andou bem o Tribunal de Instrução ao decidir, nos termos em que decidiu, não tendo em momento algum julgado antecipadamente a causa e/ou absolvendo os arguidos, devendo ao contrário do argumentado pelo assistente manter-se a douta decisão tirada, de não pronúncia dos arguidos.

Termos em que,

E nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o Tribunal da Relação manter a douta decisão proferida, de não pronúncia dos arguidos M. e MR., não dando provimento ao recurso apresentado pelo assistente, fazendo assim a acostumada Justiça!

7. Na Relação o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso merecer provimento.

8. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, nenhum dos sujeitos interessados reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, importa, em princípio, apreciar se contêm os autos indícios suficientes dos factos imputados aos arguidos na acusação particular e, bem assim, se errou o tribunal a quo afastou o caráter não lesivo da honra e consideração da expressão “cabrão”, dirigida ao assistente.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho em crise [transcrição parcial]:

I

Admitido a intervir nos autos como assistente, J. deduziu acusação particular contra:

1. M. (…); e

2. MR. (…),

imputando-lhes a prática, “em coautoria, na forma consumada, um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 180.º, n.º 1 do Código Penal e um crime de injúria p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 181.º, n.º 1 do Código Penal” [sic], nos termos dos factos constantes daquela douta peça processual, os quais aqui se dão por reproduzidos.


*

O Ministério Público não deduziu acusação.

*

Discordando da douta acusação, requereu a arguida a abertura da instrução, invocando a nulidade da acusação particular, por não identificar devidamente os arguidos, não circunstanciar os factos no tempo e no lugar e não requerer o julgamento dos arguidos, bem como pugnando pela não pronúncia, em conformidade com o que consta do respetivo douto requerimento, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido.

*

II.

Da finalidade da instrução:

(…)


*

Da prova produzida em sede de inquérito e de instrução:

Na fase processual de inquérito, foram coligidos nos autos, designadamente, os seguintes elementos documentais:

(…).


*

Realizou-se debate instrutório, em conformidade com o que consta da respetiva ata.

(…)


*

Da invocada nulidade da acusação particular:

 (…)

No entendimento do Tribunal, não padece, pois, a acusação particular dos assacados vícios.

Pelo exposto, julgo não verificadas as invocadas nulidades.


*

(…)

Da suficiência ou insuficiência de indícios da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança:

Dos imputados crimes de difamação e de injúria:

Sob a epígrafe “difamação”, tendo em vista a proteção deste bem jurídico, preceitua o art.º 180.º do Código Penal: “1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 - A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.

3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 - A boa-fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”.

O art.º 181.º, n.º 1, do Cód. Penal, sanciona criminalmente a conduta de “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração.”

O art.º 182.º do mesmo compêndio substantivo alarga o âmbito punitivo destas normas à expressão escrita, gestual, figurativa ou a qualquer outro meio de expressão.

Em torno da conceptualização da honra enquanto objeto de tutela jurídico-penal têm surgido, na doutrina, algumas divergências, que se sintetizam em duas vertentes essenciais – as conceções fácticas e as conceções normativas.

No âmbito dos conceitos fácticos de honra, deve rejeitar-se liminarmente aquele de honra interior ou subjetiva – que consiste na opinião, sentimento ou juízo valorativo que cada pessoa faz de si própria – em virtude de, por um lado, e em bom rigor, ela jamais poder ser lesada, estando sempre a coberto de agressões, por pertencer ao mundo interior de cada um, e de, por outro, colocar fora da tutela penal as pessoas incapazes, por qualquer motivo, de sentir a ofensa ou que se consideram indignas de honra e atribuir maior proteção a titulares de exacerbada autoestima (..).

Sobra, nesta sede, a conceção de honra exterior ou objetiva, entendida como a “representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente” (..).

Mas uma compreensão da honra em uma perspetiva estritamente objetiva é, ainda, insuficiente, não apenas por aquela sujeitar a proteção penal a fatores externos da pessoa e alheios à sua própria dignidade, com as variações inerentes aos diversos contextos sociais em que a pessoa está inserida, como também pelos problemas que levanta quando estão em causa pessoas sem relações sociais.

As conceções normativas veem na honra a “merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interação social em que é chamada a viver” (..) (conceito normativo-social), ou antes um “aspeto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade”10 (conceito normativo-pessoal).

A dimensão social da honra implica o perigo de se pretender conceber a comunidade, ou, antes, as múltiplas comunidades em que cada pessoa se integra como o fundamento da pretensão de respeito, acarretando, de uma banda, uma fragmentação da honra por esses vários contextos sociais, e, de outra, o sério risco de o valor pessoal do indivíduo se reduzir à sua importância enquanto pertença a determinada categoria social e com a negação de honra àqueles que a não integrem.

A vertente pessoal traduz um objeto ideal, resguardado, portanto, da possibilidade de agressões por parte de terceiros, as quais só podem verificar-se quanto à exigência de respeito emergente do valor honra, sendo esta exigência o objeto da ação criminosa dos crimes de injúria e difamação, com o que o próprio bem jurídico honra se mostra, pois, esvaziado de conteúdo.

O ordenamento jurídico-penal português superou a antinomia entre as conceções fácticas da honra e aqueloutras de carácter normativo, elevando ambos os entendimentos à categoria de bens jurídicos tutelados pelas incriminações da difamação e da injúria, refletindo o manto protetor lançado pela Lei Fundamental sobre o bom nome e a reputação (art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa) (..) e acolheu uma conceção dual, aliando a conceção fáctica à conceção normativa, concebendo a honra “como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior”(..).

Gizado este quadro normativo e doutrinário, temos que dos elementos probatórios carreados para os presentes autos e supra enunciados não podemos considerar existirem indícios suficientes, em termos de sustentação da acusação particular, da factualidade na mesma narrada. Com efeito, os arguidos negaram a prática dos factos; Todas as demais testemunhas inquiridas aludiram a uma relação conflituosa entre os arguidos e o assistente, pautada por múltiplos desentendimentos; Contudo, quando ouvido, o assistente limitou-se a confirmar o conteúdo da queixa; A testemunha MJ, filha do assistente, confirmou a relação conflituosa, todavia, nenhum dos episódios concretizou em termos de tempo, espaço e modo (designadamente, no que respeita a que arguido fez o quê); OM, vizinha de arguidos e assistente, aludiu diversas expressões, proferidas “várias vezes” pelos arguidos, todavia, não as circunstanciando temporalmente, nem referido às que são imputadas na douta acusação particular (“cabrão”); AC, também, vizinho, disse referiu, apenas, igualmente, sem concretizar espácio-temporalmente, que o arguido M. (não aludindo à coarguida MR.), profere palavras como “cabrão” e “filho da puta”); o vizinho JH igualmente não corroborou as expressões vertidas na acusação, embora referindo ter escutado ambos os arguidos – não precisando quando e onde, nem a quem se referindo – afirmando “estou rodeado de putas e cabrões” e “lá está a mula à janela”.

Inexiste, portanto, homogeneidade nas declarações e nos depoimentos que permita sustentar a factualidade concretamente imputada aos arguidos na acusação particular.

Por outro lado, ainda que se entendesse existir prova bastante de que os arguidos epitetaram o assistente de cabrão, não poderíamos considerar que tal expressão, como os alegados e não concretizados gestos indecorosos, integrariam a tipicidade objetiva da difamação ou da injúria.

Neste conspecto, bem se escreve no Ac. da RC de 18/09/2013: “Se as normas dizem claramente que difamar mais não é que imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, e que injuriar é praticar os mesmos factos na presença do ofendido, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão dos artigos 180.º e 181.º do Código Penal.

A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais.

Dizemos a este propósito, fazendo nosso o que se escreveu no acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Abril de 1998, que «Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros. (...). Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte (regras) que estabelecem a “obrigação e o dever” de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o direito penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências.». (..)

Há que conciliar, pois, o direito à honra e consideração, com o direito à crítica, pois um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, ilimitados.

Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua otimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.

Até onde vai o exercício do direito e quando passa ele a ser ilegítimo? O art.334.º do Código Civil permite-nos perceber até aonde vai o exercício de um direito e quando ele passa a ser ilegítimo, ao estatuir que «é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.».

Para a correta determinação dos elementos objetivos do tipo importa atender ao contexto em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da “honra ou consideração” são produzidos. Escreve a este propósito o Prof. Cuello Calon, que para apreciar se os factos, palavras e escritos são injuriosos será de ter em conta os antecedentes do facto, o lugar, ocasião, qualidade, cultura e relações entre ofendido e agente, de modo que factos, palavras e escritos que em determinados casos ou circunstâncias se reputam gravemente injuriosos, podem noutros não se considerar ofensivos ou tão-somente constitutivos de injúria leve. (..)

Também o Prof. José Faria Costa alerta para que «o cerne da determinação dos elementos objetivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correta determinação dos elementos objetivos do tipo.». (..).

Idêntico caminho é trilhado no Ac. da RC de 23/05/2012: “De facto, se unanimemente vem sendo entendido que nem todo o facto que envergonha, perturba ou humilha é injurioso ou difamatório, "... tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa" - cfr. Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal, 37 -, mais relevantemente cumpre considerar a natureza subsidiária do direito penal, decorrente do princípio da necessidade enquanto matriz orientadora em matéria de direitos fundamentais, e erigida esta a princípio jurídico-constitucional, com assento no preceito geral contido no art. 18, nº 2 da Lei Fundamental.

Decorrendo de tal natureza subsidiária um princípio de intervenção mínima do direito penal, ou última ratio da intervenção da juridicidade, significa isso que não deve tal intervenção ocorrer quando seja possível proteger o bem jurídico – com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares - neste mesmo sentido vide Faria Costa, Comentário Conimbricense do CP, 1-683 (anotação ao art. 187°).

Ora, injúria (e a difamação não é senão uma forma de injúria “indireta”) é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo, ou vilipêndio contra alguém, dirigida, tal manifestação, ao próprio visado. Com a incriminação de manifestações conducentes a tal resultado pretende-se salvaguardar, prevalentemente, a chamada honra subjetiva, ou seja, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal - cfr. Nelson Hungria, citado no Ac. da RL de 26.10.00, in CJ, IV-154. A injúria não se pode confundir com a mera indelicadeza ou mesmo com a grosseria, como se nos afigura ser o caso agora em análise: efetivamente, a expressão proferida verbalmente não ultrapassa o nível discursivo da indelicadeza ou grosseria, apta a qualificar pejorativamente quem a produziu, mas inócua para atingir as referenciadas honorabilidade ou respeitabilidade da pessoa a quem são dirigidas.

Não deve considerar-se ofensiva da honra e consideração de outrem, aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais – Prof. Beleza dos Santos in RLJ 92-168. […]

Como refere o Ac. desta Relação de 06-01-2010, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 42, “a ofensa à honra e consideração, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal não é suscetível de confusão com a ofensa às normas de convivência social ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras ainda que direcionadas para pessoa identificada”. […]

Como salienta o Cons. O. Mendes in ob. cit. pág. 38, “há um consenso na generalidade das pessoas sobre o que razoavelmente se não deve considerar ofensivo…Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros”. […] Mas como salienta o Cons. O. Mendes, ob. cit. pág. 39, “os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito”, mas “efetivamente, o direito penal, neste particular, não deve, nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências” (..).

Estribando-nos, ademais, no Ac. da RP de 09/03/2011, com outras referências jurisprudenciais: “Como se sabe o direito penal tem carácter subsidiário ou fragmentário, como decorre expressamente do art. 18.º, n.º 2 da C. Rep., ao preceituar que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Assim e muito embora, tanto a descrição típica do crime legal de injúria, como de difamação, não exijam que a correspondente ofensa da honra ou consideração tenham, pela sua natureza, efeitos ou circunstâncias, que ser consideradas como graves, como sucede com o Código Penal Espanhol [art. 208.º, § 2.º] (..), somos de crer que a vinculação constitucional ao citado art. 18.º, n.º 2, estabelece um efetivo critério limitador.

Tanto assim é, que a jurisprudência desta Relação, tem vindo paulatinamente a considerar, como sucedeu com o Ac. de 2002/Jun./12 (..), que “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”.

Daí que, como recentemente se motivou no Ac. de 2008/Nov./05 (..), “Para determinar se certa expressão, imputação ou formulação de juízos de valor têm relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra há que considerar o contexto em que o agente atuou, as razões que o levaram a agir como agiu, a maior ou menor adequação social do seu comportamento, etc.”

Para o efeito já se considerou que em certos circunstancialismos, designadamente no decurso de uma discussão, que a alusão “não era padre; não era nada” (..), apelidar um outro de “maluco” (..) ou que entende “mais de vinho do porto que de pombos e que manipula melhor a garrafa que os alados”(..) ou então alguém dirigir-se a outrem dizendo-lhe “que ele lhe devia dinheiro, pedindo-lhe o pagamento”(..) seriam expressões criminalmente atípicas e, como tal, destituídas de qualquer carga injuriosa.

Estamos, nestes casos, naquela margem do nosso relacionamento social, que se deve ter como jurídico-penalmente aceitável, por não revestir, naqueles concretos circunstancialismos, qualquer imputação objetivamente ofensiva da honra ou consideração dos visados.

Assim e muito embora se aceite que o assistente não tenha aprovado e até ficado melindrado com as expressões com que o arguido se referiu a si no decurso de uma audiência de julgamento, dizendo, como consta na acusação particular que aquele era “desarrumado e desleixado, quer com os seus objetos pessoais, quer com os profissionais” [item 3.º], chegando mesmo a dizer “que existiam testes espalhados pelo chão da casa e até disse que chegou a apanhar testes da rua” [item 4.º] bem como que “o Assistente andava sempre com a barba por fazer, que tinha mau aspeto” [item 5.º], “Que deixava o cabelo crescer, que não se penteava e que tinha odor de não tomar banho”[item 6.º] ou então que “não tinha qualquer trato e que andava com a roupa suja” [item 7.º], o certo é que não podemos encontrar neles uma relevância injuriosa, atento o circunstancialismo em que tais expressões foram proferidas.»

Subscreve-se por inteiro o entendimento deixado expresso.

De sorte que, o caso concreto importa subordiná-lo e ajuíza-lo à luz dos princípios de cariz constitucional da adequação, da razoabilidade, da necessidade.

Na que concerne, nomeadamente, ao carácter subsidiário da lei penal substantiva.

Nesta, não se exige, como na vizinha Espanha e como fica transcrito, que: “Solamente serán constitutivas de delito las injurias que, por su naturaleza, efectos y circunstancias, sean tenidas en el concepto público por graves”

Mas, aqui, como além-fronteira, a verificação do ilícito não se pode circunscrever e/ou limitar-se à valoração isolada e objetiva das expressões proferidas, máxime tratando-se – e este é o caso – de mero juízo de valor.

Importará analisá-las como e por quem foram proferidas, no circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas. (..)

Como de algum modo ressuma do texto transcrito – assim, na inferência do princípio da necessidade decorrente do artigo 18º/2 da Lei Fundamental (C.R.P.) – não nos podemos olvidar que os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos não conferem direitos absolutos. (..)

Não se pode olvidar que “O homem é um ser cultural que carrega a responsabilidade de construir a sua história em comunidade e que realiza essa tarefa pela harmonização de tensões e contradições, num «modo de ser dialético» (..)

O direito de liberdade de expressão é um direito constitucionalmente protegido como é o direito ao bom nome e à reputação” (..).

Destarte, temos que as imputadas expressões surgem descontextualizadas, não podendo concluir-se pelo seu significado de “indivíduo que consente ou ignora ser alvo de traição amorosa ou conjugal. = chifrudo, corno, cornudo”16, apresentando-se, antes, como uma vulgar falta de urbanidade e cortesia, com emprego de linguagem boçal e rude, como um mero impropério no âmbito de desentendimento de vizinhança e de um relacionamento conflituoso, mas não merecedor de tutela jurídico-penal, não sendo a expressão suscetível de atingir a honra do visado, quer encarada na vertente pessoal – como “valor interior da pessoa baseado na dignidade humana […] que a pessoa apresenta à luz das referências de valor para si determinantes”(..), quer na sua honra exterior ou objetiva, ou reputação, ou consideração (sendo certo que, como perpassa de tudo o supra exposto, o objeto da tutela normativa da difamação e da injúria é, efetivamente, a honra e não a cortesia, a urbanidade ou a suscetibilidade individual).

Por conseguinte, não se descobre uma probabilidade, pelo menos, razoável, de uma futura condenação dos arguidos, em sede de julgamento, pelos factos que lhes são imputados pelo assistente na acusação particular, restando concluir pela não pronúncia.


*

III

DECISÃO:

Pelo exposto, não pronuncio os arguidos, M., (…) e MR. (…), pelos factos que lhes são imputados na acusação particular, alegadamente suscetíveis de os constituírem coautores materiais de um crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181.º do Código Penal, determinando, consequentemente, o oportuno arquivamento dos autos.

(…)

3. Apreciação

Defende o recorrente resultar da prova produzida no decurso do inquérito indícios suficientes dos factos imputados na acusação particular, insurgindo-se, ainda, contra o juízo formulado pelo tribunal a quo quanto à natureza não ofensiva das expressões que lhe teriam sido dirigidas, designadamente “cabrão”.

Tem sido objeto de discussão na jurisprudência a necessidade de o despacho de não pronúncia especificar os factos indiciados e, sobretudo, não indiciados, assistindo-se a um incremento da posição no sentido da afirmação de semelhante exigência, entendimento que perfilhamos.

Com efeito, o despacho de não pronúncia, proferido numa fase jurisdicional reveste a natureza de ato decisório, mostrando-se, assim, sujeito ao dever genérico de fundamentação - de facto e de direito - que decorre do n.º 5, do artigo 97.º do CPP, impondo-se que especifique os factos considerados indiciados e não indiciados, especificação que a decisão sub iudice omite, apesar de, com referência à prova produzida, não deixar de colocar em crise a suficiência de indícios dos factos imputados pelo assistente aos arguidos, só após se detendo na questão da idoneidade, ou não, de determinada expressão para atingir a honra e consideração do primeiro.

A circunstância de o despacho de não pronúncia, transitado, formar caso julgado formal, mas, por incidir sobre a relação material controvertida, também material [impondo-se fora do processo em que foi proferido], impedindo que determinado sujeito uma vez não pronunciado em função de não se mostrarem indiciados os factos que lhe foram imputados na acusação (ou requerimento para abertura da instrução), torne por estes a ser perseguido criminalmente confere, cremos, a maior consistência à posição aqui defendida.

No mesmo sentindo se pronunciou o acórdão do TRG de 09.07.2009 (proc. n.º 504/07.4GBVVD-A.G1), salientando a importância da fixação da temática factual no despacho de não pronúncia para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia “quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, situação em que deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respetivos fundamentos ou motivação, pois só dessa forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa (…)”, concluindo tratar-se do cumprimento de uma exigência essencial “para a fixação dos (…) efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia”, cuja inobservância afeta o valor do despacho – [vide, também assim, entre outros, os acórdãos do TRL, de 28.09.2017 (proc. n.º 2633/15.1TDLSB.L2-9), de 18.3.2015 (proc. n.º 884/10.4JDLSB-A.1-3), 29.09.2021 (proc. n.º 5819/17.0T9LSB.L1 -3), TRC, de 16.06.2015 (proc. n.º 12/11.9GTLRA.C1), TRG, de 23.10.2017 (proc. n.º 781/14.4GBGMR.G1), 10.09.2018 (proc. n.º 117/16.0GAVFL.G1), 27.05.2019 (proc. n.º 134/17.2T9TMC.G1)].

E outra coisa não se retira das palavras de Maia Costa, quando refere: “o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (…), a tomada de posição sobre aqueles factos terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é” – [cf. “Código de Processo Penal Comentado”, 2014, Almedina, pág. 1024]. Posição sufragada por Pinto de Albuquerque, ao considerar fundamental a narração dos factos que não estão suficientemente indiciados no despacho de não pronúncia, pois é sobre esses factos que incide o efeito do caso julgado, pelo que “a delimitação objetiva e subjetiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui (…) a garantia última da segurança jurídica do arguido” – [cf. “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Portuguesa, pág. 779; em sentido idêntico vide Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da ação penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, pág. 557].

Aqui chegados, importa decidir sobre a natureza da invalidade verificada no despacho recorrido, domínio em que a jurisprudência se encontra dividida, havendo quem encare a ausência da fixação da temática factual (especificação dos factos indiciados e não indiciados) na decisão de não pronúncia como nulidade de conhecimento oficioso, nulidade relativa ou, tão só, irregularidade.

Respeitando, embora, diferente entendimento, perfilhamos a orientação que vê na omissão de descrição factual do despacho de não pronúncia, que se debruça sobre o mérito, uma irregularidade – [cf., advogando esta posição, entre outros, os acórdãos do TRL de 28.09.2017, do TRG de 09.07.2009, de 23.10.2017, de 27.05.2019, todos disponíveis em www.dgsi.pt.], comungando da fundamentação, a propósito, expendida no citado acórdão do TRG, de 27.05.2019, enquanto, reconhecendo o princípio da legalidade das nulidades vigente no nosso sistema processual penal (artigo 118.º, n.º 1, CPP), consigna: “E o certo é que não há norma que determine a nulidade como consequência da omissão ou deficiência da fundamentação das decisões jurisdicionais em geral, nem, tão pouco, qualquer norma específica que comine com a nulidade a omissão ou deficiência de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia. Contrariamente, aliás, com o que acontece com as sentenças e decisões instrutórias de pronúncia, nas quais se impõe a enunciação dos factos provados/indiciados, sob pena de nulidade”, para concluir estar-se na presença de uma irregularidade que por influir na decisão da causana medida, em que só depois da enumeração dos factos indiciados e/ou não indiciados se podia decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento, pelo crime imputado na acusação particular”, consubstanciando um “hiato parcial da respetiva decisão jurisdicional, que afeta o seu valor e impede que o Tribunal ad quem sobre ela se pronuncie”, deve ser oficiosamente ordenada a sua reparação – artigo 123.º, n.º 2, do CPP.

Resulta, assim, prejudicado o conhecimento das concretas questões, colocadas no recurso.

III. Dispositivo

Termos em que, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar inválida a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que sane a omissão consistente na ausência de especificação (enumeração) dos factos indiciados e/ou não indiciados, por referência aos descritos na acusação particular.

Sem tributação.

Texto processado e revisto pela relatora.

Coimbra, 7 de Dezembro de 2021

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)