Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
318/10.4JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 72º, DO C. PENAL
Sumário: A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios. Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo padrão de casos que o legislador teve em mente à partida, aí haverá um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) n.º 318/10.4JACBR que corre termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi imputada ao arguido A... a prática de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do C. Penal.
Realizado o julgamento, por acórdão de 29 de Junho de 2011, foi decidido condenar o arguido, como autor do citado crime de homicídio, na pena de 12 (doze) anos de prisão.
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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 28/7/2011, o arguido, defendendo, em síntese, a sua revogação e substituição por outra que o condene numa pena “no mínimo de 4 anos de prisão”, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1. O ora recorrente foi condenado, pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 131.º, do C. Penal, na pena de doze anos de prisão.
2. Pelas razões invocadas, ao arguido não deveria ter sido aplicada pena superior a 4 anos de prisão.
3. O recorrente foi erradamente condenado pelo crime de Homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º, do C. Penal.
4. A conduta do recorrente encontra-se confinada ao tipo legal do artigo 133.º, do C. Penal, e nunca ao tipo do artigo 131.º.
5. No âmbito do recurso, o recorrente pretende ver sindicada a reapreciação da prova gravada, insuficiência para a decisão da matéria dada como provada, erro na apreciação da prova, errada qualificação jurídica e medida da pena.
6. Importa anexar aos autos a transcrição integral da prova.
7. Muitas dúvidas se colocam sobre o preenchimento do tipo legal de crime de homicídio simples, imputado ao recorrente.
8. O arguido recorrente não tem antecedentes criminais de relevo, goza de bom comportamento, é de humilde condição sócio-económica e no meio onde vive é respeitado e respeitador.
9. Está bem inserido familiarmente.
10. Conquanto tudo o que consta dos autos, não apresenta perigosidade de maior, sendo bem aceite na localidade onde reside, reconhecendo a censura que lhe cabe face ao comportamento delituoso cometido que atribuiu a uma conduta que ainda hoje não consegue explicar, mas que deve ficar longe da punição infligida.
11. Desta forma, violou, por ter feito errada interpretação, entre outros:
12. Andou mal o tribunal a quo na interpretação da letra e de um espírito encarnado no artigo 127.º, do CPP, que não admite decisões arbitrárias e sem fundamento, como é aludido em toda a doutrina.
13. Sendo que, como já se referiu, in casu, estão falidos os pressupostos do artigo 131.º, do C. Penal, devendo, desde logo, e no que diz respeito ao ora recorrente, deveria ter sido feita a convolação ad minus para o artigo 133.º, do citado diploma.
14. Sem prescindir, entende a defesa que foi erradamente fixada a medida concreta da pena, sendo violados os artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º e 72.º, do Código Penal.
15. Logo, a pena aplicada ao ora recorrente é excessiva, desproporcionada e de severidade injustificada, tendo sido ultrapassada em muito a medida da culpa.
16. O Tribunal a quo foi longe de mais nas conclusões obtidas e a convicção final ficou muito longe da realidade.
17. Pelo que o Tribunal errou ao considerar a prova, presumindo factos que não encontram sustento factual.
18. O que, no mínimo, implicava que se usasse o princípio in dubio pro reo.
19. A pena deverá ser reformada e substancialmente reduzida.
20. Não se aludem a condenações do género ou de qualquer outro imputados ao arguido e o tribunal a quo deveria ter retirado disso a necessária consequência, como, aliás, manda o artigo 71.º, n.º 2, alíneas a), b) e d), do Código Penal. Com efeito, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, nos factos relativos à conduta do agente se perfilham a vida anterior, o passado criminal, o dano “tout court” causa que in casu não foi nenhuma.
21. Não foram tomadas em devido relevo as circunstâncias externas redutoras da culpa.
22. Assim, e em suma, o recorrente deveria ter sido condenado numa pena no mínimo de 4 anos de prisão: é o que se requer.
Qualquer albitre que Vªs Exªs considerem não deixarão de fazer. JUSTIÇA.
NORMAS VIOLADAS:
a) Artigo 133.º, do C. Penal;
b) Artigo 32.º, da C.R.P.;
c) Artigos 127.º, 374.º, 379.º e 410.º, n.º 2, todos do C.P.P.;
d) Artigos 40.º, 41.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 70.º, 71.º, 72.º, n.º 1, todos do C. Penal.
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido, em 29/7/2011, apresentou resposta na qual defendeu a manutenção da decisão recorrida, terminando com as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada, enumerando os elementos probatórios que contribuíram para a formação da sua convicção, com indicação dos depoimentos prestados pelas testemunhas em audiência e das razões que os dotaram de relevância e credibilidade. Ademais, tal tarefa foi realizada com conhecimentos lógicos e objectivos e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, bem como nos documentos juntos aos autos e invocados na motivação fáctica;
2. Também no que respeita à medida concreta da pena, concordamos integralmente com a posição e fundamentação constante da decisão recorrida, pelo que entendemos que a mesma não merece qualquer reparo.
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O recurso foi, em 8/8/2011, admitido.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 16/8/2011, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando, de modo integral, a resposta dada em 1ª instância.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
O arguido encontra-se em prisão preventiva, desde 6 de Julho de 2010, no E.P. de Leiria, tendo sido detido, em 4 de Julho de 2010, para ser sujeito a primeiro interrogatório.
Colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
“(…) II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
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Após a realização da audiência de discussão e julgamento, entende o Tribunal provado, com relevância para a decisão a proferir, o seguinte conjunto de factos:
1 – o arguido e B... – ambos de nacionalidade brasileira e amigos desde diversos anos a essa parte – estiveram juntos toda a noite do dia 3 e a madrugada do dia 4 de Julho de 2010, passando em vários locais de diversão da cidade da Figueira da Foz, onde ingeriram diversas bebidas alcoólicas, designadamente whisky e cerveja, e ainda algumas bebidas (apelidadas de) “energéticas” (“Red Bull”);
2 – assim, entre, sensivelmente, as 2 horas e um pouco antes das 7 horas da madrugada do dito dia 4 de Julho de 2010, permaneceram no recinto do parque de diversões instalado no denominado “Parque das Gaivotas”, sito na Avenida de Espanha, na Figueira da Foz;
3 – em tal parque de diversões, e já algo “liberto” pelo poder do álcool, o B... abordou diversas pessoas que por aí deambulavam – e que o referido B... não conhecia –, com o único propósito de fazer evidenciar a sua presença, intervindo então o arguido, por mais do que uma vez, no sentido do apaziguamento dos ânimos e da cessação do comportamento do seu companheiro;
4 – um pouco antes das 7 horas da manhã, e ainda no recinto do aludido “Parque das Gaivotas”, o B... decidiu postar-se ao volante do automóvel ligeiro de matrícula …, a ele emprestado pela sua companheira, a testemunha C... (melhor identificada nos autos), e realizar um ou dois “piões”, vindo até a embater em uma roulotte de venda de bebidas e sandes ali existente, amolgando o automóvel;
5 – devido ao estado de embriaguez em que o B... . se encontrava, o arguido, pensando estar em melhores condições para conduzir, tentou convencer aquele a confiar-lhe o volante do automóvel em causa, para assim regressarem a casa, o que o B... . não aceitou;
6 – deste modo, no regresso ao prédio n.º …, na Figueira da Foz – onde viviam o arguido no rés-do-chão centro e o B... . no 3º andar centro –, continuou o B... . a conduzir o mencionado automóvel;
7 – já à porta do 3º andar centro do dito prédio o B... . e o arguido começaram a discutir em voz alta, pensando o B... . que o arguido iria falar à sua companheira do “toque” dado no automóvel, acusando-o, além do mais, de não ser seu amigo e de lhe estragar a sua vida;
8 – em tal contexto, um pouco depois das 7 horas da manhã do mencionado dia 4 de Julho de 2010, o arguido, bastante enervado após a discussão com o B... . – e em cujo decurso foi também agredido fisicamente (a soco e a pontapé) por este último no interior fronteiro à porta de acesso ao 3º andar centro do dito prédio e também no corredor de acesso a esse mesmo 3º andar centro –, dirigiu-se à sua residência, sita no rés-do-chão centro de tal prédio, com o objectivo de se munir de uma faca, o que fez;
9 – acto seguido, e munido de uma faca de cozinha, com uma lâmina com cerca de 20,80 centímetros de comprimento e 3 centímetros de largura, o arguido dirigiu-se novamente ao corredor de acesso ao 3º andar centro do aludido prédio, local onde ainda se encontrava o B... .;
11 – então, o arguido empunhou a dita faca e desferiu no corpo do B... . vários golpes ao nível do tórax, do abdómen, dos membros superiores e dos membros inferiores;
12 – assim, tais golpes desferidos pelo arguido provocaram ao nível do tórax do B... . uma ferida corto-perfurante, 1 centímetro abaixo da clavícula esquerda e 5 centímetros da linha média, orientada para baixo e para o meio, com cauda inferior a 1,50 centímetros e medindo 28 milímetros por 9 milímetros, bem como uma ferida corto-perfurante superficial, 1 centímetro para baixo e para a esquerda daqueloutra ferida, medindo 7 milímetros por 3 milímetros de afastamento de bordos; provocaram também, ao nível do tórax, uma ferida corto-perfurante 5,50 centímetros para a esquerda da linha média, abaixo das feridas anteriormente aludidas, com 2,50 centímetros oblíqua para baixo e para fora em direcção ao mamilo esquerdo, com o topo inferior em “V” e o superior redondo, com pequena cauda inferior; os mesmos golpes causaram ainda uma ferida corto-perfurante, 1,50 centímetros à direita da linha média, ao nível da terceira articulação condro-costal direita, oblíqua da direita para a esquerda e de cima para baixo, com 3,50 centímetros por 1 centímetro, e o topo superior redondo e o inferior em “V”; e causaram também uma ferida cortante superficial em forma de “semi-lua”, fazendo o contorno supero-lateral da auréola mamária esquerda, com 2 centímetros por 4 milímetros; e causaram uma ferida corto-perfurante, 4 centímetros à direita da linha média, um pouco abaixo e para fora da ferida mencionada em quarto lugar, oblíqua para baixo e para fora, medindo 21 milímetros por 7 milímetros de afastamento e com o bordo inferior escoriado; e causaram ainda uma ferida corto-perfurante, 5 centímetros abaixo do mamilo esquerdo, sobre a linha mamilar, com o formato de um “pescoço de ave”, com o bico virado para a linha média, medindo 24 milímetros por 0,50 centímetros; e causaram também uma ferida cortante transversal fusiforme, sobre o bordo costal inferior esquerdo, 3 centímetros à esquerda da linha média, com 22 milímetros por 7 milímetros de afastamento de bordos, oblíqua para baixo e para dentro; e causaram uma ferida corto-perfurante na região dorsal direita, na transição da face lateral para a posterior com 21 milímetros por 0,50 centímetros de afastamento de bordos, com cauda em “rabo de peixe” e extremidade oposta em “V”, com um pequeno entalhe no bordo inferior, oblíqua para baixo e para fora; e causaram ainda uma ferida corto-perfurante na face lateral esquerda, transversal, 14,50 centímetros para baixo e para trás do início da linha axilar posterior com 25 milímetros por 7 milímetros de afastamento de bordos, com entalhe no bordo inferior junto da extremidade posterior em “V”;
13 – os golpes desferidos pelo arguido provocaram ao nível do abdómen do B... . uma ferida corto-perfurante, transversal e mediana, na região púbica, com 28 milímetros por 8 milímetros de afastamento de bordos, com bordo inferior irregular e desnível inferior esquerdo, sugerindo bisel superior esquerdo;
14 – os ditos golpes desferidos pelo arguido provocaram ao nível dos membros superiores do B... . uma ferida cortante na parte média da região deltóide, de forma irregular (“bacalhau deitado”), com 1,50 centímetros por 1 centímetro, sugerindo bisel póstero-superior esquerdo, com um retalho cutâneo saliente do bordo superior para a abertura da ferida, e também equimose arroxeada pulpar, com 3 centímetros por 2 centímetros, à esquerda da ferida acabada de aludir, e equimose avermelhada, vertical, com 4 centímetros por 2 centímetros, abaixo da anterior equimose; e provocaram uma ferida corto-perfurante, fusiforme, na face medial do braço esquerdo, a 6 centímetros do cotovelo, com 18 milímetros e extremidades atípicas; e uma ferida corto-perfurante no terço superior do bordo medial do antebraço esquerdo, em “semi-lua”, com 18 milímetros por 4 milímetros; e uma ferida corto-perfurante vertical, em ziguezague, no terço superior da face posterior do antebraço esquerdo, a 7 centímetros do cotovelo, com 2,50 centímetros por 9 milímetros;
15 – por fim, os referidos golpes desferidos pelo arguido provocaram ao nível dos membros inferiores do B... . uma ferida corto-perfurante, fusiforme e vertical, no terço médio da face medial da coxa direita, com 2 centímetros e as extremidades em “V”; e uma ferida cortante oblíqua de trás para a frente e de cima para baixo, com 7 centímetros por 12 centímetros, da face medial para a anterior do joelho direito, em “meia-lua”, com o bordo inferior curvo e as extremidades em “V”; e igualmente uma ferida corto-perfurante, vertical, do terço inferior da face posterior da coxa direita, a 4 centímetros do cavado poplíteo, com 4,50 centímetros por 1 centímetro; e ainda uma ferida cortante, fusiforme, na face anterior da perna direita, terço médio, ligeiramente oblíqua da esquerda para a direita e de cima para baixo, com 5,50 centímetros por 0,50 centímetros e as extremidades em “V”;
16 – as lesões acabadas de descrever nos pontos 11 a 15 (dos presentes factos assentes) provocaram a morte do B... .;
17 – imediatamente após desferir os golpes no B... ., o arguido foi para o exterior do prédio dito no ponto 6 (da presente factualidade provada) e partiu a faca de cozinha descrita no ponto 9 (igualmente desta matéria fáctica provada) em três pedaços, atirando-os para sítios diferentes, tendo sido tais pedaços recuperados pela Polícia de Segurança Pública da Figueira da Foz (o corpo do meio da lâmina) e pela Polícia Judiciária (ponta da lâmina e cabo), sendo o corpo do meio da lâmina encontrado no dia 4 de Julho de 2010 junto a um passeio próximo do dito prédio, a ponta da lâmina encontrada no dia 5 de Julho de 2010 no interior de um terreno murado pertencente a uma moradia sita na Rua …, e o cabo da faca encontrado no dia 5 de Julho de 2010 no telhado das garagens do prédio referido no ponto 6 (destes factos assentes);
18 – apesar de ter ingerido algumas bebidas alcoólicas nas horas que antecederam os factos ora em causa, e se sentir bastante enervado, agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de tirar a vida ao B... ., resultado que representou;
19 – sabia, de igual modo, que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;
20 – está arrependido dos factos por si praticados;
21 – o arguido encontra-se em Portugal há cerca de 10 anos e meio, onde reside, devidamente autorizado;
22 – é casado e pai de dois filhos, com 11 e 2 anos de idade;
23 – a sua mulher é cabeleireira;
24 – o arguido concluiu no Brasil o equivalente ao 6º ano de escolaridade do ensino português;
25 – sempre trabalhou na área da marcenaria e restauro e, ocasionalmente, na construção civil, por conta de outrem;
26 – no entanto, à época da prática dos factos ora em discussão nos presentes autos encontrava-se desempregado, o que contribuiu para que, com alguma frequência, abusasse do consumo de bebidas alcoólicas;
27 – é tido por pessoa bem comportada junto daqueles que consigo conviviam na cidade da Figueira da Foz;
28 – no estabelecimento prisional tem continuado os seus estudos, aguardando a obtenção de equivalência ao 9º de escolaridade, e realiza trabalhos de faxina e na distribuição de alimentação;
29 – vai tendo aí, aos fins-de-semana, o apoio da sua família;
30 – à data da prática dos factos em causa nos presentes autos havia sido já o arguido julgado e condenado, em Portugal, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;
31 – o falecido B... . vivia com a sua companheira e o filho de ambos, (então) com cerca de um ano de idade.
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Não há factos não provados.
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O Tribunal alicerçou a sua convicção judicativo-decisória na análise crítica do conjunto da prova produzida – e não produzida –, “peneirada” à luz das regras normais da experiência da vida [cfr. art. 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.)], ou seja, das «(…) definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judicio, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade» (Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Curso de processo penal”, volume II, Lisboa, 1988, pág. 30). E tais regras da experiência da vida (não desacompanhadas, como é evidente, de elementos probatórios consistentes) foram, pois, importantes no caso para a formação da convicção quanto a um ou outro ponto.
Assim, e desde logo, nas declarações por si prestadas assumiu o arguido o essencial da factualidade descrita pela acusação pública, procurando, depois, traçar uma ideia global do contexto em que essa mesma factualidade teve lugar. Falou da natureza da sua relação de amizade com o falecido B... ., bem como do tipo de personalidade (algo belicosa) que este evidenciava, sobretudo quando “tocado” pelo álcool. A propósito, esclareceu também o tipo de noite e madrugada (pautadas pela excessiva ingestão de bebidas alcoólicas) que ambos experimentaram até ao desembocar dos fatídicos factos em questão nos presentes autos. Afirmou, por outro lado, que a agressividade patenteada pelo B... . não teve da banda do arguido – até, obviamente, ao esfaqueamento – uma causa ou uma reacção que pudesse legitimar aquele comportamento do B... .. No tocante à dinâmica mais especificamente ligada ao desferir dos golpes, referiu o arguido haver “perdido o controlo” da situação após ter sido agredido (ao soco e ao pontapé) pelo B... ., indo buscar a sua casa o instrumento que estava mais “à mão” e subindo depois as escadas e vendo-se novamente confrontado com o B... ., o qual, no patamar do 3º andar do prédio, avançou na sua direcção e disse algo como “Espera aí, vamos conversar…”, agredindo de novo o arguido (que, entretanto, baixara a faca por si empunhada…). Nesta última parte do relato, todavia, não soube o arguido esclarecer convenientemente como é que espetou a faca (supostamente por si baixada…) no corpo do B... . de modo a causar-lhe cerca de 20 golpes (!!!) que se revelaram mortais, até porque o mesmo arguido admitiu também que a vítima não se “atirou” para cima da faca (necessariamente se concluindo, pois, pela ideia de voluntariedade da atitude do arguido, direccionada para a vibração daqueles mesmos golpes…). E, sobretudo, ficou por perceber qual a necessidade experimentada pelo arguido de, tendo terminado a “confusão” com o B... ., no 3º andar, na zona de entrada do apartamento por este ocupado, descer ao rés-do-chão, à sua (dele, arguido) própria casa de habitação, munir-se de uma faca de cozinha com uma lâmina com cerca de 20,80 centímetros de comprimento e voltar ao 3º andar, esfaqueando seguida e repetidamente aquele B... . no tórax, abdómen, membros superiores e membros inferiores… Ou seja, e em súmula, as declarações do arguido revelaram inegável interesse para ajudar a perceber o contexto em que os factos ocorreram, embora não tenham (obviamente) tais declarações dispensado uma análise crítica e madura, à luz das já referidas regras da experiência.
Depois, a testemunha D... é a mulher do arguido e referiu haver acordado, pouco depois das 7 horas da manhã, com os gritos e berros do seu marido e da vítima, que foi encontrar muito embriagados à entrada do apartamento do 3º andar centro – o arguido no chão e o B... . a bater-lhe –, acabando por conseguir separá-los com a ajuda da testemunha E... e convencer o arguido a ir para casa descansar. Ficando no patamar do 3º andar a conversar com a vítima – pessoa que, nas palavras da depoente, era algo violenta mas lhe guardava respeito –, a testemunha D... viu, passado algum tempo, regressar o seu marido com uma faca na mão e agarrar-se ao B... ., não presenciando mais nada já que, pressurosa, se dirigiu aos Bombeiros para pedir auxílio…
C... era a companheira da vítima e pouco ou nada adiantou quanto ao desenrolar do punctum crucis dos esfaqueamentos, já que disse, no essencial, aperceber-se da chegada atribulada do seu marido, em discussão com o arguido (tendo sido até ela a abrir a porta do apartamento), saindo de seguida para junto do seu filho de um ano de idade, que tentou preservar daquele cenário. Diga-se, a propósito, ser estranho não ter visto esta depoente a testemunha D... nem algo de mais substancial para além da segunda vinda do arguido ao 3º andar, desta feita com uma faca na mão (altura em que a depoente subiu, com o seu filho nos braços, para o terraço) e, ainda mais tarde, o seu companheiro esvaído em sangue à porta do apartamento…
F... é outra (sub)inquilina do apartamento também ocupado pela vítima e apenas presenciou, primeiramente, a discussão entre o arguido e o B... . (chutando este aquele) e, mais tarde, conseguiu espreitar, pelo óculo da porta de entrada do apartamento, a nova chegada do arguido ao patamar do 3º andar.
Quanto à já acima referida E..., dona (ou “ocupante principal”) do apartamento do 3º andar que vimos mencionando, também só terá presenciado a primeira parte dos acontecimentos, a saber, a contenda a que ajudou a pôr termo juntamente com a mulher do arguido, ficando depois a conversar no hall de entrada com a D..., o B... . (com o filho nos braços) e a companheira C..., já com os ânimos mais serenos, até ao momento em que surgiu, vindo do rés-do-chão, o arguido (que, curiosamente, a testemunha E... não vislumbrou, apenas se apercebendo da sua presença, com a porta do apartamento fechada, através dos gritos no corredor desse 3º andar…).
G... e H... são filhos da testemunha acabada de referir e nada de útil trouxeram à liça: tentaram preservar o seu espaço, nos respectivos quartos do apartamento em questão, sem se exporem à briga que opôs o arguido e a vítima…
É evidente que os depoimentos que vêm sendo focados – praticamente todos eles – denotaram, em maior ou menor medida, a vontade de não comprometimento “excessivo” em relação ao (triste) episódio objecto da causa e, nessa medida, pode ser-lhes surpreendida a atitude de alguma “neutralidade” perante um quadro que, prima facie pelo menos, deixa o arguido (pessoa relativamente bem considerada pelas testemunhas) a braços com uma atitude de explicação delicada. No entanto, ajudaram a perceber, crê-se, o essencial da factualidade ocorrida, sem daí retirarmos algo mais que visões algo (estranhamente ou nem tanto…) sincopadas…
Já o depoimento da testemunha J... foi útil na medida em que esteve com o B... . (que já conhecia relativamente bem, por ser amigo de sua mãe) e o arguido quase toda a madrugada que antecedeu a eclosão dos factos e, da sua roulotte de bebidas e sandes no “Parque das Gaivotas”, pôde constatar o estado alcoolicamente “avançado” daqueles (os quais, no entanto, com posturas algo diversas: o B... . “destemido”, e o arguido mais refreado e atento à necessidade de refrear os ímpetos do seu companheiro…).
K..., L… e M… são elementos policiais (o primeiro da Polícia de Segurança Pública da Figueira da Foz e o segundo e o terceiro da Polícia Judiciária) que prestaram diversos esclarecimentos acerca do iter investigatório empreendido (o primeiro logo após os factos, encontrando o arguido encostado à parede exterior do prédio, de mãos ensanguentadas, e o segundo o terceiro no âmbito da investigação que se seguiu).
Quanto à percepção do perfil de personalidade, modus vivendi e história do arguido, valeram as declarações deste último, bem como o relatório de fls. 416 a 419 dos autos, para além do que “respingou”, ao cabo e ao resto, dos depoimentos prestados pela generalidade das testemunhas residentes no prédio em causa.
Por fim, refiram-se ainda os elementos de fls. 4 a 6 (essencialmente do Instituto Nacional de Emergência Médica), 16 a 20 (fotografias), 35 (cópia do título de residência do arguido em Portugal), 44 a 46 (relatório de exame relativo ao arguido), 92 (auto de exame directo a vestuário), 93 a 102 (relatório de exame tanatológico ao cadáver), 104 a 106 e 115 a 120 (relatórios de exame a componentes da faca utilizada na perpetração dos factos), 195 a 197 (relatório pericial relativo a vestígios biológicos e estudo comparativo com a vítima), 264 a 267 (relatório de autópsia), e 466 e 467 (certificado do registo criminal português do arguido).
Da conjugação crítica e concatenada de todos os elementos acabados de mencionar, e sempre à luz das já várias vezes apontadas normais regras da experiência, resultou, pois, para o Tribunal a ideia de serem os mesmos idóneos à demonstração da factualidade dada como provada (não havendo factos relativamente aos quais não se tenha produzido actividade probatória alguma).
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
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Não obstante a sua inexorabilidade e inevitabilidade, a morte constitui, amiúde, o fenómeno de mais difícil enfrentamento (e afrontamento) para o ser humano.
Talvez por este simples (mas indesmentível) facto tenha desde sempre o tema da morte exercido um (óbvio) fascínio aos mais variados níveis do entendimento e expressão humanos.
Para não irmos muito atrás no tempo, pensemos apenas, e a título de mero exemplo, na obra cinematográfica do realizador norte-americano Woody Allen (mesmo na sua recente comédia do ano de 2007, intitulada “Scoop”) ou na brilhante carreira literária do escritor, também norte-americano, Philip Roth, claramente pautadas pelas interrogações acerca do porquê da morte e da irrisão absoluta do ser humano perante tal inevitabilidade [sendo deste último Autor, na sua excelente obra “Património” (tradução portuguesa, Lisboa, 2008, pág. 20), as seguintes e impressionantes palavras: «Se não está ninguém no cemitério para nos observar, somos capazes de fazer coisas muito loucas para que os mortos pareçam qualquer outra coisa em vez de mortos. Mas mesmo que consigamos e nos emocionemos o suficiente para sentirmos a sua presença, não deixamos de nos vir embora sem eles. O que os cemitérios provam, pelo menos a pessoas como eu, não é que os mortos estão presentes, mas sim que partiram e, por enquanto, nós não. Isto é fundamental e, por muito inaceitável que possa ser, facilmente compreensível»].
Ora, sem entrarmos no (interessantíssimo) campo da convicção religiosa quanto ao valor e significado da morte, diremos apenas ser óbvia e claramente compreensível a dimensão que a vida humana assume em qualquer sociedade moderna, assente no essencial respeito pela pessoa e sua dignidade enquanto tal. Isto é, para além das reflexões filosóficas (qual a razão de ser do fenómeno da morte? porque morremos?) e religiosas (constituirá a morte o meio de acesso à verdadeira compreensão da transitória passagem pela vida terrena?), ou até das indagações (mais ou menos) poéticas que possamos ensaiar acerca da morte, este é um fenómeno que sempre dimana, em qualquer contexto civilizacional humanista e eticamente fundado, incontornáveis consequências individuais e colectivas.
Pois bem, a refracção penal (campo jurídico que, obviamente, mais nos interessa ora) do dado da morte é, mercê da dimensão de ultima ratio do direito penal, uma das manifestações mais marcantes e decisivas do valor que a vida humana encerra para qualquer comunidade civilizacional como tal estruturada: «(...) torna-se, pois, mais fácil ou quase intuitivo perceber que há todo um continente normativo onde a problemática da morte se mostra de modo particularmente agudo. Esse território é, sem dúvida alguma, o campo fecundo do direito penal» (Prof. Faria Costa, “O fim da vida e o direito penal”, in “Linhas de Direito Penal e de Filosofia: alguns cruzamentos reflexivos”, Coimbra, 2005, pág. 114).
Vejamos, pois, em que termos concretos a morte (e que “tipo” de morte) suscita, no caso dos autos, a intervenção penal.
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Como de todos é sabido, a responsabilização jurídico-penal de um indivíduo carece, em tese geral, da verificação dos seguintes requisitos: a prática, por acção ou omissão, de um facto típico (correspondente a um certo tipo legal de crime), ilícito (violando ou pondo em perigo o bem jurídico protegido por esse tipo) e culposo (fundamento do juízo ético de censura dirigido ao agente, seja a título de dolo ou de negligência). Por fim, é fundamental a conexão objectiva (em termos causais) da conduta do indivíduo à produção de um certo resultado ou evento.
Nos presentes autos, vem o arguido acusado da prática, como autor material, de um crime de homicídio, p. e p. no art. 131º C.P..
Se a nossa lei penal prevê vários tipos legais que punem os autores de condutas que causam a morte de outra pessoa, o art. 131º C.P. (consagrador do crime de homicídio simples) é o tipo base de todos estes crimes, que dele se distinguem em função da ilicitude e da culpa.
Assim, neste domínio dos crimes de homicídio, a norma matricial rege no sentido de que «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos» (art. 131º C.P.).
O comportamento tipicamente relevante é (quase ocioso será dizê-lo) aquele que consiste em matar outra pessoa, não prescindindo o preenchimento objectivo do tipo, pois, de um certo resultado, a saber, a morte de outrem (que em casos de dúvida na sua determinação deverá atender ao momento da cessação da actividade cerebral – neste sentido, cfr. Profs. Juan Carlos Carbonell Mateu e José Luis González Cussac, “Derecho Penal. Parte Especial”, 3ª edición actualizada, Valencia, 2010, págs. 47 e 48).
Por outro lado, trata-se de um tipo doloso, exigindo o dolo «(…) el conocimiento y la voluntad de realizar las circunstancias del tipo objetivo, es decir, saber que se mata a otra persona y querer hacerlo. Basta con el dolo eventual, o sea que es suficiente con que el autor haya previsto la muerte de otra persona como una consecuencia probable de su acción y a pesar de ello haya actuado» (Prof. Muñoz Conde, “Derecho Penal. Parte Especial”, 14ª edición revista e actualizada, Valencia, 2002, pág. 41).
Bastarão estas simples notas para percebermos que o homicídio (e, agora, em qualquer uma das suas múltiplas variantes) é, pois, o crime por excelência contra as pessoas, destinando-se a proteger o bem jurídico mais lidimamente intrínseco ao ser-se pessoa enquanto tal, isto é, o ter-se vida. Nas autorizadas palavras do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, estamos perante o bem jurídico correspondente à «(…) vida de outra pessoa e, por conseguinte, (…) à vida humana» (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 4). Os tipos legais consagradores do homicídio correspondem, assim, ao garantir dos «(...) bens fundamentais da individualidade física e moral da pessoa» (Prof. Santoro-Passarelli, “Teoria Geral do Direito Civil”, tradução portuguesa, Coimbra, 1967, pág. 30), fundados na ideia de dignidade da pessoa humana, que constitui um dos pressupostos do Estado de Direito Democrático e está, por isso mesmo, constitucionalmente consagrada [cfr. arts. 1º e 24º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.)].
Se a protecção da vida humana é uma das marcas indeléveis de qualquer sociedade pautada por valores de dignidade, respeito e humanidade, representa igualmente o fruto ou produto de uma longa mas sustentada sedimentação daquilo que constitui o património axiológico fundamental de uma comunidade em certo estádio da sua evolução, sendo o direito (e, maxime, o direito penal), assim, a intenção normativa que assimila esse mesmo património axiológico (Prof. António Castanheira Neves, “A revolução e o direito”, in “Digesta, Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros”, volume I, Coimbra, 1995, pág. 56).
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Mergulhando na análise concreta do caso, e perscrutando a matéria factual acima dada como assente, não temos como negar a evidência de haver o arguido tirado a vida a B... . através dos diversos golpes desferidos com a faca de cozinha por ele utilizada, causadores das múltiplas lesões corporais conducentes ao falecimento da vítima.
O elemento objectivo do tipo está, pois, indiscutivelmente preenchido (consubstanciado – já acima ficou dito – no acto de matar outrem).
Mas também o elemento subjectivo ocorre in casu, dado ter actuado o arguido de forma livre, voluntária e consciente.
Provado ficou, no entanto, todo um contexto no âmbito do qual agiu o arguido, e cuja interpretação e indagação jurídico-penais não pode, pois, deixar de ser feita.
E, basicamente, a questão é a seguinte: terá sentido imputar ao arguido – como o faz a acusação pública – a prática de um homicídio simples ou, diversamente, a factualidade provada em audiência legitima (rectius, impõe) uma outra subsunção jurídica (e, na afirmativa, qual)?
Portanto, e sem que se evite a análise da questão da qualificação (ou não) do homicídio, importará talvez perceber, desde logo, se as circunstâncias que rodearam a prática do crime permitem (ou impõem) a adopção de uma perspectiva mais ou menos “benigna” do homicídio.
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Já acima se disse que a responsabilização jurídico-penal de uma pessoa depende (e entre outros requisitos, que agora não importa considerar) da prática, pela mesma, de um facto ilícito e culposo. Equivale isto a dizer que não pode interceder em favor do agente uma qualquer causa de exclusão da ilicitude da conduta (que faça com que a mesma, na verdade, nunca tenha constituído crime) nem uma causa de exclusão da culpa do seu autor.
O agente que pratica um facto a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude actua de uma forma não reputada de ilícita «(...) pela ordem jurídica considerada na sua totalidade» (art. 31º C.P.), pressuposta que é uma ideia de unidade do sistema jurídico na axiologia normativa em que se escora.
No caso dos presentes autos, entende a acusação pública que o arguido cometeu um crime de homicídio simples (voluntário-doloso) em uma atitude deliberada, consciente e livre.
Ora, será que atendendo à matéria de facto provada poderemos refutar esta ideia, substituindo-a por uma outra segundo a qual a actuação do arguido teria surgido condicionada e “obrigada” por um conjunto de circunstâncias “externas”?
Concretizando: agiu o arguido em legítima defesa?
Ponderemos.
De acordo com o art. 32º C.P., «constitui legítima defesa o facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão actual e ilícita de quaisquer interesses legitimamente protegidos do agente ou de terceiro».
São, pois, elementos da causa de exclusão de ilicitude acabada de mencionar a verificação de uma agressão, actual, ilícita, não podendo, por fim, ser tal agressão pré-ordenada.
Vejamos, e ainda que sumariamente, cada um destes elementos.
A legítima defesa só ganha sentido perante um ataque agressivo, geralmente um facere ou actuação positivos (não sendo todavia de excluir a hipótese de um omitere agressivo).
A característica da actualidade exige que, tendo-se iniciado a execução da agressão, se não tenha ainda verificado a sua definitiva consumação.
Depois, a agressão tem de ser anti-jurídica (como tal valorada por qualquer ramo de direito). Por fim, o ataque agressivo dolosamente provocado pelo ofendido não servirá de base a uma legítima defesa, pois traduzirá, ao cabo e ao resto, uma situação gerada por uma atitude ilícita – ela sim – da suposta “vítima”, que procurou alcançar por meio ínvio a impunidade de um ataque por si arquitectado e desencadeado (sobre todos estes pontos, cfr. Prof. A...Correia, “Direito Criminal”, volume II, reimpressão, Coimbra, 1988, págs. 37 ss., e Dr. Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, 8ª edição, Coimbra, 1995, págs. 276 a 279, e referências jurisprudenciais aí constantes).
Passando aos requisitos da defesa, dir-se-á, com o Prof. Jorge de Figueiredo Dias (“Direito Penal”, Faculdade de Direito de Coimbra, 1975, pág. 188), que «(...) só quem age com conhecimento da situação e com a vontade de se defender – animus deffendendi – pode justificar-se, ainda que outros fins (...) concorram com tal vontade defensiva. Ou seja, é fundamental este intuito de defesa perante a agressão vinda de outrem, evitando-a ou tentando diminuir as suas consequências».
Para além do citado animus deffendendi, fundamental é também a necessidade do meio de defesa. A legítima defesa tem de ser necessária e adequada a salvar o bem jurídico, devendo o defensor escolher o meio menos gravoso para o agressor (de entre os aptos ou idóneos a acautelar aquele bem). Daí o art. 32º C.P. falar de «(...) facto praticado como meio necessário para repelir a agressão», o que bem revela estar o exercício do direito de legítima defesa (como, aliás, qualquer outro direito) orientado por limites ético-jurídicos imanentes [sendo também importante chamar aqui à colação a ideia – embora não totalmente pacífica do ponto de vista doutrinário – de que na indagação sobre a necessidade do meio se apure da eventual (im)possibilidade de o defendente se socorrer eficazmente da autoridade pública para repelir a agressão].
Assim, todo o ora exposto permite a ilação de que a legítima defesa será uma das formas excepcionais de fazer cumprir a consagração constitucional de direito de resistência ou afastamento perante agressões ilícitas (art. 21º C.R.P.), ou seja, perante aquilo a que o Prof. Hans-Heinrich Jescheck chama de agressões que tornam “objectivamente vulnerável” o ordenamento jurídico (“Tratado de Derecho Penal, Parte General”, tradução espanhola, volume I, Barcelona, 1978, pág. 465).
Ora, crê-se que a breve análise acabada de ensaiar nos permite concluir, e salvo o devido respeito por opinião diversa, que o arguido não actuou em legítima defesa, nos termos do art. 32º C.P..
Basta pensar-se na característica da actualidade do comportamento agressivo, isto é, na ainda não consumada agressão de que a vítima esteja a ser alvo no momento em que pratica o facto defensivo: no nosso caso, lembremos que o arguido e o B... . acabaram a sua refrega [a qual, porventura, poderia ser pensável nos termos do art. 143º/n.º 3-a) C.P.], descendo então aquele (arguido) do 3º andar até ao rés-do-chão, entrando em casa e recolhendo uma faca de cozinha para, depois, voltar ao 3º andar e desferir os golpes no corpo do B... .. Com efeito, por muito censurável que a atitude anterior do falecido tenha sido (“atitude anterior” no sentido de prévia à descida do arguido ao rés-do-chão, note-se), não vislumbramos da parte do B... ., no momento dos esfaqueamentos, a manutenção de uma agressão actual a justificar uma eventual defesa legítima por banda do arguido (defesa legítima que se existisse, aliás – e já vimos que não existiu –, não poderia nunca sair dos quadros normativos do excesso, previsto no art. 33º/n.º 1 C.P., a deixar intocada a ilicitude do facto…).
Portanto, repete-se, não actuou o arguido a coberto de uma situação de legítima defesa.
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Mas já sabemos que a prática dos factos teve lugar em um contexto específico, com agressões prévias perpetradas pelo B... . sobre o arguido.
Haverá a possibilidade de se ter verificado a prática de um crime de homicídio privilegiado, p. e p. no art. 133º C.P.?
Como defende o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, a figura acabada de referir abarca os casos em que o agente actua «(…) dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa (…)» (art. 133º C.P.), consagrando, ao cabo e ao resto, uma cláusula de exigibilidade diminuída quanto ao facto praticado pelo agente, por forma a que a diminuição da culpa deste «(…) não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente», implicando a verificação de um estado de afecto no agente (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 47).
Mas entende-se não haver razão bastante para distinguir no preceito (art. 133º C.P.) dois grupos de hipóteses – um a englobar a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero, outro a tocar os motivos de relevante valor social ou moral. É que «também a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero privilegiam não quando afectam o poder de resistência do agente à pulsão interior (o indiferenciado “poder de agir de outra maneira”), mas (…) apenas quando diminuem de forma sensível a exigibilidade de outro comportamento e são, por conseguinte, tal como o motivo de relevante valor social ou moral, elementos exclusivamente atinentes à culpa (ou, se se quiser, ao tipo de culpa) do agente» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 48; em sentido essencialmente coincidente, Dr. João Curado Neves, “O homicídio privilegiado na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”, R.P.C.C., Ano 11, fascículo 2º, pág. 192, e Dra. Teresa Serra, “Homicídios em série”, “Jornadas sobre a revisão do Código Penal”, Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, págs. 136 e ss.).
Diferente posição tem, por exemplo, o Dr. Amadeu Ferreira, para quem a redacção do art. 133º C.P. consagra duas causas de atenuação especial da culpa de natureza diversa: «na primeira parte do art. 133º, a menor culpa do agente deriva dos reflexos da emoção violenta sobre a sua inteligência e a sua vontade; na segunda parte, é a pressão intolerável de determinados motivos, positivamente valorados pela ordem jurídica, a razão da diminuição sensível da culpa» (“Homicídio privilegiado”, 3ª reimpressão, Coimbra, 2000, pág. 143; no mesmo sentido, Prof. Maria Fernanda Palma, “Direito Penal. Parte Especial. Crimes contra as pessoas”, Lisboa, 1983, págs. 81 a 85). Para esta última tese, a emoção violenta compreensível atenua a culpa por via de uma quase imputabilidade diminuída, enquanto a compaixão, o desespero e o relevante valor social ou moral do motivo da actuação do agente fazem decrescer a culpa através da exigibilidade diminuída de um comportamento diverso do adoptado por tal agente.
Ora, desde já dirá o Tribunal ser seu firme entendimento o de a figura típica do art. 133º C.P. apenas ter sentido se iluminada pela ideia de exigibilidade diminuída em relação ao comportamento do agente. E isto porque, no essencial, fazer incidir a emoção violenta sobre algo que leve a um estado de espírito próprio da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída equivale a tentar fazer caber na norma do art. 133º C.P. o que lá não está. Com efeito, «o art. 133º não faz referência a qualquer estado psíquico anormal (…), se a emoção violenta é compreensível, não pode ser de origem patológica» (Dr. João Curado Neves, estudo citado, pág. 191). A ideia do legislador parece ter sido a de evitar, sem mais, o privilegiamento do homicídio a partir de circunstâncias meramente endógenas ao agente (sob pena, até, e no limite, de ser esvaziada de sentido a “válvula de escape” geral do art. 20º C.P., com todas as funestas consequências que daí poderiam advir). Valendo tudo isto para afirmar, e «tal qual sempre sucede com a ideia de exigibilidade como componente da culpa jurídico-penal, pois», que «o efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico-penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 48). A emoção violenta tem, portanto, que nascer de circunstâncias estranhas ou exógenas à pessoa do agente, criando depois, a um prudente observador externo, a normal e ponderada convicção de que aquelas mesmas circunstâncias exógenas fizeram diminuir (mas não desaparecer), de forma sensível, a exigibilidade de um comportamento conforme aos ditames do direito por parte do agente (a propósito, cfr. também Dra. Teresa Quintela de Brito, “Homicídio privilegiado: algumas notas”, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra, 2003, págs. 905 e 906).
Esta é, assim, uma primeira nota a reter.
Depois, quanto aos concretos elementos privilegiadores do homicídio, o aspecto que, de facto, maiores dificuldades hermenêuticas e heurísticas encerra é o da compreensível emoção violenta, definida pelo Prof. Jorge de Figueiredo Dias como «(…) um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas da sua verificação (…). Pode, assim, deste ponto de vista, retirar-se um certo paralelo (…) entre esta situação e a que, para diversos efeitos, o direito penal português anterior a 1982 conhecia sob o designativo de provocação (…). O requisito da “compreensibilidade” da emoção (…) representa por isso ainda uma exigência adicional relativamente ao puro critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito». Assim, «(…) deve considerar-se que a compreensibilidade assume ainda um qualquer cunho objectivo (…) de “participação” do julgador nas conexões objectivas de sentido que moveram o agente. (…) Que se exija da emoção violenta que seja compreensível, mas já não da compaixão ou do desespero, é coisa que se aceita quando se considere que aquela exigência adicional vale para estados de afecto esténicos (…) mas já não para estados de afecto asténicos» (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, págs. 50 e 51).
Parecerá, por fim, que a emoção violenta tem de assumir um peso e uma abrangência que impeçam a normal actuação do agente [por isso se falando, por vezes, da exigência de “proporcionalidade” entre o facto que gera a emoção e o facto praticado – cfr., a propósito, Ac. S.T.J. de 26/11/86, B.M.J. n.º 361, pág. 283, e a crítica do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 51, à terminologia (“proporcionalidade”) utilizada em tal aresto]; importará, igualmente (e repisando um pouco o que já acima ficou dito), não ter sido a emoção violenta determinada por facto imputável ao próprio agente (cfr. Ac. S.T.J. de 16/1/85, B.M.J. n.º 343, pág. 189).
Outros elementos privilegiadores do homicídio são, como refere o próprio tipo legal (art. 133º C.P.), a compaixão, o desespero ou o motivo de relevante valor social ou moral.
A compaixão traduz, também ela, um estado de afecto, mas ligado à solidariedade ou à comparticipação no sofrimento de outra pessoa (podendo enquadrar-se aqui certos casos de eutanásia, não confundíveis, evidentemente, com o homicídio a pedido da vítima, p. e p. no art. 134º C.P. – sobre o tema, cfr. Prof. Jorge de Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 51).
Por seu turno, o desespero, «embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide, em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança. Nada impede que o acto do desesperado seja longamente reflectido, mas trata-se de uma reflexão viciada, transtornada devido à pressão intolerável que a situação exerce sobre ele e ao estado em que se encontra» (Dr. Amadeu Ferreira, estudo citado, págs. 68 e 69). É em esta cláusula privilegiadora que são integráveis certas situações denominadas de “humilhação prolongada”, nas quais «o grau de humilhação atingido pelo autor é tão forte que mata para dele se libertar. E não se diga que não há aqui um motivo que vai ao encontro da própria salvaguarda da dignidade humana, positiva e objectivamente valorado pela ordem jurídica» (Dr. Amadeu Ferreira, estudo citado, pág. 70, onde se espelha como exemplo possível deste estado de afecto ligado à depressão e à revolta o de uma mulher que é obrigada pelo marido à prática frequente do coito anal, contra a sua vontade, o que lhe provoca grandes dores e mal estar, além de ser espancada várias vezes, tudo a deixando em um ponto no qual só a morte do “carrasco” se apresenta como saída viável para o seu desespero).
Por último, o motivo de relevante valor social ou moral susceptível de conduzir ao privilegiamento do homicídio tem de revelar-se à luz de uma bitola objectiva, qual seja, a da ordem axiológica suposta pela ordem jurídica (e, mais especificamente, pela própria ordem jurídico-penal), e não à luz das concepções morais ou filosóficas do agente ou do aplicador do direito ou, sequer, do conjunto de concepções sociais e morais da chamada “moralidade média” (a propósito, Drs. Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal de 1982”, volume II, Lisboa, 1986, pág. 42).
Pois bem, o que dizer do caso dos autos?
Que, e salvaguardando sempre o máximo de respeito possível por opinião diversa, não se vislumbra qualquer fundamento de privilegiamento do facto praticado pelo arguido.
Com efeito, se nem sequer valerá a pena falar de compaixão, o que dizer de uma eventual situação de desespero a condicionar (e a guiar) o estado de afecto do arguido? Será que a factualidade descrita desencadeou, sem mais, o efeito de uma menor exigibilidade no comportamento do arguido e foi susceptível, por isso, de uma diminuição sensível da culpa do mesmo?
Crê-se que não.
Inexistem factos bastantes para que devamos falar, por exemplo, de uma situação de “humilhação prolongada” sofrida pelo arguido, pois só “ficcionando” poderíamos nós dizer não ter ele – no concreto contexto do caso, com o terminus de uma “noite de álcool” que “correu” mal, é certo – outra saída que a adopção do comportamento que acabou por tomar.
Por muito que (humanamente) isso lhe custasse, não poderia (rectius, não deveria) o arguido adoptar outra atitude, depois da cessação das agressões de que foi alvo (e que não podem desenquadrar-se da discussão mantida entre si e a vítima)?
É que a diminuição sensível da culpa pressupõe um necessário abrandamento do juízo de censura em que a culpa, afinal, se traduz, por o agente ter agido como agiu.
Assim, poderemos dizer – e repita-se – que, in casu, o grau de humilhação do arguido foi tal que só a morte do B... . o poderia libertar dessa mesma humilhação?
Pensa-se que a resposta tem de ser negativa, pois a atitude irritante e desgastante do B... . (e evidenciadora – perdoe-se-nos a expressão – de “mau vinho”) para com o arguido não assumiu, bem vistas as coisas, outra feição para além da insensibilidade e do desrespeito pela amizade que o arguido – admite-se – nutria pela vítima. Defender-se, no entanto, que isso correspondeu ao “encurralar” do arguido em um manto férreo e inexorável de humilhação, revolta e desespero é algo que, no entender do Tribunal, e à luz de uma observação conforme ao que é expectável, em uma sociedade civilizada, do comum dos cidadãos “fieis ao direito”, não tem cabimento.
Logo, a entender-se que o enervamento de que o arguido foi tomado constitui um estado de afecto de desespero, não lhe faz o mesmo, todavia, diminuir sensivelmente a sua culpa.
E o que acaba de ser dito pode, na opinião do Tribunal, aplicar-se, mutatis mutandis, a uma qualquer hipótese eventualmente pensada de relevante valor moral ou social. Qual, aliás, poderia ser o valor em causa, para além do sentimento de desrespeito “turvado” pelo álcool?
E, portanto, entende o Tribunal não haver fundamentos para a integração da conduta do arguido no crime de homicídio privilegiado.
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Importa, agora, no entanto, e perante a brutalidade objectiva do modo de perpetração do homicídio (mais de 20 golpes de faca distribuídos pelo tórax, abdómen, membros superiores e membros inferiores), indagar se estará ou não verificada in casu qualquer uma das circunstâncias qualificativas previstas no n.º 2 do art. 132º C.P., recondutíveis a uma ideia de especial censurabilidade ou perversidade.
Com efeito, dispõe o n.º 1 do art. 132º C.P. que «se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos».
Vem sendo maioritariamente defendido (e bem, segundo o Tribunal) que a norma acabada de citar consagra a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a chamada técnica dos “exemplos-padrão”, contidos no n.º 2 do referido art. 132º C.P..
Portanto, a qualificação do crime de homicídio não resulta de forma automática ou inexorável da verificação de uma ou várias das circunstâncias enumeradas no art. 132º/n.º 2 C.P., sendo necessário que as mesmas revelem especial censurabilidade ou perversidade.
O crime de homicídio qualificado mais não é, portanto, do que uma forma agravada do homicídio simples, encontrando-se o plus dessa mesma agravação na “especial censurabilidade ou perversidade” do agente.
Como escreveu o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, «(…) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrita com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integram o tipo de culpa qualificador. Deste modo, devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º/n.º 2» (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 26).
Ainda a propósito da razão de ser da enunciação exemplificativa adoptada pela lei, saliente-se que «muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º/n.º 2, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 27).
A ideia da lei é, pois, a «(…) de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 29).
Para o que ora nos interessa, determina o n.º 2-e) do art. 132º C.P. que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1 da mesma norma legal, e entre outras, a circunstância de o agente praticar o facto determinado por qualquer motivo torpe ou fútil. Face à factualidade assente nos autos, parece certo, ao cabo e ao resto, que a base do tristíssimo episódio sub judicio parece ter sido o “álcool desenfreado” que tomou ambos – arguido e vítima –, e nada mais que isso. Nada, portanto, de muito substancial do ponto de vista da axiologia dos valores e princípios éticos, humanos ou sociais postos em causa pela disputa havida entre o arguido e o B... .. Só que a apreciação humana das situações não pode esquecer todo o contexto em que estas mesmas situações ocorrem… E – já o vimos com abundância – se todo o comportamento adoptado pela vítima para com o arguido não eximiu a ilicitude nem privilegiou o comportamento deste, não deixou de ser, também ele, bastante censurável, apto a desgastar e a minar os propósitos de alguma contenção (por estar com um amigo) que o arguido, ao longo da noite e da madrugada, foi evidenciando até desembocar naquilo em que lamentavelmente desembocou. E em todo este quadro, não se sente o Tribunal habilitado a empreender um juízo de especial censurabilidade ou perversidade em relação ao comportamento levado a cabo pelo arguido.
Tudo valendo por dizer, em suma, não se verificar uma situação de homicídio qualificado mas tão-somente (como bem advogou a acusação pública) de homicídio simples, pelo qual o arguido terá de ser condenado.
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Quanto à medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tomar-se-á em consideração o critério geral previsto no art. 71°/n.os 1 e 2 C.P., que apela à culpa do agente e às exigências de prevenção de futuros crimes.
Sabemos que na aplicação de penas a defesa da ordem jurídico-penal é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre um mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e um máximo consentido pela culpa do agente. Entre esses limites, satisfazem-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (cfr., a este propósito, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Lisboa, 1993, págs. 227 e ss.).
A culpa do agente surge como fundamento e, sobretudo, como limite máximo da sanção a não ultrapassar em caso algum (n.º 2 do art. 40º C.P.), e as exigências preventivas gerais de integração (isto é, que se prendem com as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas violadas) e especiais de ressocialização darão, em última análise, a solução do problema [sendo que, como defende o Prof. Claus Roxin (in “Culpabilidad y prevención en derecho penal”, tradução espanhola, Reus, 1978, pág. 103), a pena adequada à culpa do agente deve satisfazer as exigências preventivas especiais já que, no seu grau mínimo, cobrirá sempre as necessidades de prevenção geral de integração, limiar mínimo este que nunca poderá ser desrespeitado]. O que nos leva a admitir a possibilidade de uma sanção inferior à que seria dada apenas pela culpa (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” citado, págs. 257 e ss., 298 e 299, e “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra, 2001, pág. 105).
Ora, o bem jurídico protegido e tutelado pelo tipo em causa nos presentes autos é, óbvia e indiscutivelmente, o mais valioso para a manutenção da pessoa humana enquanto tal, já que se trata da própria vida.
Depois, e como se sabe, para a escolha e determinação da medida concreta da pena há que tomar em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido (art. 71º/n.º 2 C.P.).
Há, assim, que ponderar no caso sub judicio:
- o grau de ilicitude (que apela ao número e sentido de violação dos interesses ofendidos, aspecto em que importará realçar a elevada carga ilícita do brutal comportamento empreendido pelo arguido, próprio de um perigosíssimo instinto momentaneamente “à solta”), o modo de execução (a intensidade e o desvairado número de golpes vibrados pelo arguido) e as consequências dos factos praticados (consequências a atender não só quanto à vítima – o que não nos pode levar a um proibido ne bis in idem – mas também quanto à companheira e ao filho menor que se vêem privados da pessoa falecida);
- o dolo do arguido (que se revela directo, pois provado ficou ter actuado ele de modo consciente, determinado e lúcido, embora não possa deixar de ser também considerado o contexto de álcool em que os factos ocorreram e o desgaste emocional causado pela irritante e também censurável atitude da vítima para com o arguido, com tudo o que isso implicou);
- a personalidade do arguido (propenso a alguma debilidade perante o poder aditivo da ingestão de substâncias alcoólicas, ficando no entanto a nota de ter havido arrependimento e alguma consciencialização, pelo mesmo arguido, do sentido negativo do seu acto) e o seu percurso de vida (parecendo também algo marcado por dificuldades de orientação e motivação existencial, embora seja claro o enquadramento laboral e comunitário do mesmo);
- a praticamente “não notícia” de condenações criminais anteriores em Portugal (apenas uma, sem relevo para o caso, relativa a um crime de condução de veículo em estado de embriaguez).
Tomando em consideração todos os aspectos mencionados (e sem esquecer estarmos em zona geográfica onde, quase ciclicamente, ilícitos deste jaez vão acontecendo), entende o Tribunal correcta a aplicação de uma pena de 12 anos de prisão para o crime de homicídio cometido pelo arguido.
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Tratando-se o arguido de cidadão estrangeiro com residência permanente em Portugal, importa aferir da eventual necessidade de aplicar, como pena acessória da pena principal acima cominada, a expulsão do arguido, nos termos conjugados dos arts. 65º C.P. e 151º da Lei n.º 23/2007, de 4/7.
Com efeito (e para o que ora nos interessa), sabemos que a pena acessória de expulsão pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro residente em Portugal, condenado por crime doloso em pena superior a 1 ano de prisão, devendo, porém, ter-se em conta, na sua aplicação, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, a eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal, sendo que para um cidadão estrangeiro com residência permanente no nosso país a pena de expulsão só poderá ser aplicada quando a sua conduta constituir uma ameaça suficientemente grave para a ordem pública ou segurança nacional (n.os 2 e 3 do art. 151º da Lei n.º 23/2007).
Percebendo nós que a pena acessória em questão não é de funcionamento automático, importa perguntar in casu: a conduta (obviamente grave em si mesma e que, portanto, já obteve a correspectiva sanção detentiva) do arguido, cidadão estrangeiro com residência permanente em Portugal, importa uma ameaça grave o bastante para a ordem pública ou para a segurança nacional?
Entende-se que a resposta tem de ser negativa, bastando para tal uma simples aproximação aos conceitos em questão.
A ideia de segurança nacional «tem por pressuposto a defesa da soberania do Estado e da integridade do território contra a ameaça externa (segurança externa), conjugada com a defesa do interesse público interno da ordem e segurança das populações (segurança interna). O conceito de segurança nacional ultrapassa a velha dicotomia segurança externa/segurança interna, face às modernas ameaças do mundo globalizado, perante as quais perdeu sentido a referida separação. Não é difícil, com efeito, deparar com ameaças externas à segurança interna, como acontece com o terrorismo ou os vários tráficos, nomeadamente de pessoas, de droga ou de armas, cujo combate exige muitas vezes uma actuação conjugada das forças armadas e das forças e serviços de segurança»; por outro lado, «ordem pública é locução que tem por fundamento definitório um interesse fundamental da sociedade, portanto geral, que se pode manifestar pela importância na prevenção de danos sociais à tranquilidade (manutenção da ordem na rua, lugares públicos, etc.), da segurança (prevenção de acidentes, defesa contra catástrofes, prevenção de crimes) e da salubridade (águas, alimentos, etc.)» (Drs. Júlio A. C. Pereira e José Cândido de Pinho, “Direito de estrangeiros. Entrada, permanência, saída e afastamento”, Coimbra, 2008, pág. 69).
In casu, lidamos com alguém residente em Portugal há mais de 10 anos, com uma normal imagem comunitária junto daqueles que consigo convivem, e que, de um modo geral, se foi mantendo fiel aos ditames essenciais do dever ser jurídico-penal. No mais, crê-se que o facto ilícito pelo qual está a ser julgado, a despeito – repete-se – da sua enorme gravidade, não é de molde a pôr em causa as realidades inerentes à ordem pública ou à segurança nacional de Portugal (não mudando esta constatação a circunstância de lidarmos com um estrangeiro, pois que a caracterização e localização do crime foi bem definida, dizendo respeito a uma clara e evidente intersubjectividade pessoal).
Consequentemente, entende-se não se justificar uma eventual expulsão do arguido de Portugal.
(…)”
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III. Apreciação do Recurso:
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais para se obter o reexame da matéria que foi sujeita à apreciação da decisão recorrida e não vias jurisdicionais para um novo julgamento.
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques ., “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões a conhecer são as seguintes:
1 – saber se o tribunal recorrido apreciou mal a prova produzida em audiência e se, por causa disso, há que alterar determinados factos dados como assentes;
2 – saber se existe violação do princípio in dubio pro reo;
3 – saber se o arguido deve ser punido apenas como autor material de um crime p. e p. pelo artigo 133.º, do C. Penal;
4 – saber se a medida concreta da pena é excessiva.
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1 – Da impugnação de facto:
É necessário deixar claro, para que não restem dúvidas quanto à abordagem feita à primeira questão suscitada no recurso, qual o tipo de impugnação trazido aos autos.
Salvo o devido respeito, não prima pela clareza a posição do recorrente.
Na verdade, na sua Motivação, o recorrente começa por afirmar que é “necessário reapreciar toda a prova gravada durante toda a audiência”, e, logo de seguida, argumenta que há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova.
O recorrente pretende, ao fim e ao cabo, invocar vícios oficiosos do artigo 410º, do CPP, assim impugnando a matéria de facto dada como provada, ou pretende reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP? Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. **** Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques ., Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques ., Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
O erro de julgamento, por seu turno, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.: «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.Ora, no caso em apreço, o recorrente, ao referir-se ao artigo 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP, conforme fls. 508 e, ainda, fls. 515 (n.º 5 das conclusões), poderia, num primeiro momento, levar a pensar que a impugnação da matéria de facto estaria no âmbito do previsto na forma mais restrita de impugnação. Porém, o recorrente está claramente no âmbito do disposto no artigo 412.º, do CPP.
Tanto assim é que, a fls. 510 e 511, na sua Motivação, para fundamentar que, na sua perspectiva, a prova foi mal apreciada, faz apelo às declarações genéricas do arguido e a parte do depoimento da testemunha D..., ou seja, recorre a elementos estranhos à decisão em si (impugnação ampla).
**** Ora, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto nos termos acabados de mencionar, tem de respeitar as regras previstas na lei, ou seja, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4). A especificação dos “concretos pontos de facto só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação. Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão. Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).
Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”. Acresce que a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação. Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas: - Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante; - Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou - Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas. Mas tal não basta. Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135. Tudo o que vem de ser exposto significa, pois, que as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Antes de avançarmos para a análise concreta do caso, importa, ainda, sublinhar que, no domínio da Lei n.º 59/98, de 25-08, impunha o artigo 412.º, n.º 4, do CPP, que as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 se fizessem por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. E como decorria da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após a identificação, no recurso, dos suportes técnicos de gravação, haveria que proceder à transcrição do que fosse relevante – não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que se mostrassem previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que se lhe impunha a referida norma do artigo 412.º, n.º 4. A transcrição era um acto posterior que incumbia, não ao recorrente, mas ao tribunal efectuar (cfr. Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003, de 16-01-2003, in DR, I série-A, de 30-01-2003), nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, destinando-se a permitir (rectius, a facilitar) então ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada. A Lei n.º 48/2007, de 29-08, mudou radicalmente o regime de impugnação da matéria de facto e, entre outras alterações, afastou a transcrição da prova, no caso regra de utilização da gravação magnetofónica ou audiovisual (artigo 364.º, n.º 1, do CPP). A prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso, uma vez cumpridas todas as formalidades previstas no artigo 412.º, n.º s 3 e 4, proceder ao controlo dessa prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (artigo 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4).
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No caso em apreço, não restam dúvidas de que o recorrente, em determinado momento do recurso, individualiza os factos que tem por indevidamente julgados, por referência à factualidade dada como provado pelo tribunal de 1.ª instância – pontos 8, 9, 11 e 18 do Acórdão recorrido (fls. 510).
Quanto a tal aspecto da questão, nada há que censurar no recurso.
Todavia, quanto ao mais a que estava obrigado, temos de convir que o recorrente não indica especificadamente as provas que impõem relativamente a cada ponto uma decisão diversa quanto à matéria de facto.
Em boa verdade, o recorrente limita-se, de um modo vago, a defender que a decisão “omite que a vítima dá início à agressão”, sem levar em consideração o que foi dito pelo arguido e pela acima aludida testemunha, ou seja, apresenta só a sua própria avaliação da prova produzida.
Acontece que, quando o recorrente indica os meios de prova que, no seu entender, justificam decisão diversa, aponta apenas, em termos genéricos, para parte do depoimento da testemunha D...e para o que foi afirmado por A..., sendo certo que o arguido não elenca, em concreto, qual ou quais as passagens que impõem uma decisão diversa quanto à matéria de facto em causa.
Nada é apresentado de assertivo e objectivo no sentido pretendido.
Por um lado, no que tange às declarações do arguido, nem sequer uma passagem é citada no recurso, o que impede, à partida, qualquer análise ao seu teor.
Por outro lado, no tocante ao depoimento da testemunha, apenas é feita referência, no âmbito do ponto 8, e sem situar na respectiva gravação, ao seguinte. “…que, quando chegou, viu o marido no chão com a boca a sangrar e a vítima em cima dele…o mesmo dizia…eu vou matá-lo”, e “o arguido afastou-se…e a vítima pretendia agredi-la…e foi neste momento que o arguido subiu as escadas e agarraram-se um ao outro a lutar…”, sendo certo que estas passagens não poderiam impor, por si só, a alteração pretendida, pois demonstram apenas que a testemunha presenciou parte da dinâmica do confronto que teve lugar, até porque resulta já dos factos provados que a vítima agrediu o arguido momentos antes deste a atingir com a faca.
Resumindo, o recorrente não deixou explicitado, nos termos previstos no artigo 412.º, do CPP, por que razão a prova indicada impõe decisão diversa da recorrida, facto a facto.
Não basta enunciar certos depoimentos, há que explicar o motivo pelos quais os mesmos justificam uma diferente configuração dos factos, sendo certo que isso não foi feito no recurso.
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Aqui chegados, importa retirar as consequências do que até agora ficou exposto.
De acordo com posição constante do Supremo Tribunal de Justiça, o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido Cfr. v.g., Acs. de 04-10-2006, proc. n.º 812/06-3.ª; 08-03-2006, proc. 185/06-3.ª; 04-01-2007, proc. n.º 4093-3.ª; e de 10-01-2007, proc. 3518/06-3.ª.. Daí que o artigo 417.º, n.º 3, do CPP, imponha o dever de convite tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”. Se o recorrente não faz, como no presente caso, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, nos seus precisos termos, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite Neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-06-2002 (proc. n.º 101/02) - DR, II Série de 13-12-2002. . Em suma, não pode este tribunal de recurso sindicar, pelas razões supra expostas, a decisão proferida sobre matéria de facto, pelo que o acervo factológico mostra-se definitivamente fixado nos precisos termos em que o tribunal de 1.ª instância o definiu.
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2 – Da violação do princípio in dubio pro reo:
Não se argumente que foi violado o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
Há que deixar, desde já, bem claro que não assiste qualquer razão ao recorrente, a menos que o citado princípio seja interpretado de uma forma incorrecta.
Não estamos perante qualquer violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos. O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”. Ora, o alegado processo não pode ser uma válvula de escape para um “buraco negro”, devendo assentar em alicerces bem precisos e fundamentados. Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997. Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto.
A fundamentação de facto acima transcrita é consistente e racional.
O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.
O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo (a dúvida reside apenas nos recorrentes e não no Tribunal).
A fundamentação do Tribunal a quo é cristalina, nomeadamente quando se refere ao número de golpes desferidos na vítima e à necessidade que o arguido sentiu de ir buscar a faca, após ter terminado a “confusão”. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede com a análise feita pelo recorrente, sem qualquer conteúdo probatório susceptível de pôr em causa os meios de prova e análise critica em que repousa a decisão impugnada. Entende-se, portanto, que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133). Para concluir, nenhum reparo merece a apreciação da prova feita pelo Tribunal, acima transcrita.
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3 – Da errada qualificação jurídica: Face à pretensão do recorrente de ver a sua conduta subsumida no tipo privilegiado do artigo 133.º do Código Penal, cumpre averiguar se a matéria de facto provada sustenta a mesma, se os factos dados por provados integram crime de homicídio privilegiado, tornando-se necessário avaliar se tais factos permitem concluir que se verificava em relação ao recorrente o motivo por si invocados – a compreensível emoção violenta, já que estão fora de causa estados de medo, desespero ou pânico - se agiu dominado por algum deles e se resultou desse estado uma concreta situação de exigibilidade diminuída, a justificar uma sensível diminuição da sua culpa. Vejamos, então, das hipóteses de integração do ocorrido no âmbito da cláusula redutora «compreensível emoção violenta».
Note-se que o recorrente alega, na Motivação, que “foi dominado pela emoção – lembremos que agente e vítima eram amigos e estavam embriagados. E essa emoção levou o agente ao crime (causalidade).
Como ensina Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 47, § 1, “O art.133º consagra hipóteses de homicídio privilegiado em função, em último termo, de uma cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada.
A emoção violenta compreensível, a compaixão, o desespero ou um motivo de relevante valor social ou moral privilegiam o homicídio (…) quando diminuam sensivelmente a culpa do agente. (…) Esta diminuição não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.
Sobre esta matéria, com a devida vénia, passamos a destacar parte do Douto Acórdão do S.T.J., de 14/7/2010, Processo n.º 408/08.3PRLSB.L2.S1, 3 ª Secção, relatado pelo Exmo. Conselheiro Raul Borges, acessível em www.dgsi.pt., no qual é descrita, além do mais, de forma proficiente, a evolução havida ao nível da doutrina e da jurisprudência (nomeadamente quanto à “compreensível emoção violenta”), no que diz respeito ao crime ora em causa:
As cláusulas previstas no preceito não funcionam automaticamente, por si e em si mesmas, não bastando para privilegiar o crime a verificação do elemento privilegiador. Como refere Figueiredo Dias, na obra citada, pág. 48, “Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos, (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue “dominado” por aqueles estados ou motivos” - cfr. versando este ponto, os acórdãos do STJ, de 23-06-2005, processo n.º 2047/05-5.ª; de 07-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207; de 03-10-2007, processo n.º 2791/07 - 3ª. Da mesma forma, Fernando Silva, in Direito Penal Especial, págs. 95/96, esclarece que a diminuição da culpa não é automática pela presença de um dos elementos previstos no tipo, aos quais se pode atribuir um sentido indiciador idêntico aos exemplos padrão do art. 132.º, n.º 2, aduzindo que a estrutura e funcionamento do tipo decorrem um pouco à semelhança do crime de homicídio qualificado, em que não basta a presença de uma das circunstâncias privilegiadoras para operar a aplicação do tipo. Este apenas funcionará se o dolo do agente for fundado unicamente pelos factores de perturbação em que se encontra, e se tiver a culpa diminuída. Pois, podem ocorrer outras circunstâncias que impeçam que o facto possa ser considerado menos exigível. Tem-se por certo que a acção homicida levada a cabo pelo recorrente nada tem a ver com um sucesso inesperado, com algo que tivesse irrompido abruptamente, com a eclosão de um acontecimento que surgisse de forma inopinada, que correspondesse a um ímpeto, que fosse sequente a um choque emocional, a grande irritação de momento, ou a um súbito arrebatamento, cumprindo averiguar-se então se a sua conduta pode ser encarada como consequência de uma afectividade fortemente perturbada, de um bloqueio afectivo, de um conflito espiritual, ou como consequência de um estado de alma perturbado, ou de um abalo, ou de choque profundo e descontrolador, sendo expressão de afectação de um estado de afecto, se terá o arguido agido com a inteligência, vontade e livre determinação afectadas, enfraquecidas ou obnubiladas, sob uma forte e intensa perturbação, ou se o recorrente terá agido num quadro de vida em que o facto se possa traduzir como descarga de emoção. Mais cumprirá indagar se se estará perante um razoável descontrolo, face a uma reacção humana aceitável, plausível, desculpável, justificável, tolerável, enfim, compreensível, ou se estaria o arguido sob pressão intolerável, insuportável, que o arrastasse para o crime, tendo-se presente nessa análise o quadro e o contexto de vida em que o arguido recorrente se encontrava à data dos factos. (sublinhado nosso) Importará descortinar o real motivo que terá determinado a perpetração do crime, pois não há crime gratuito ou sem motivo, sendo o privilégio ora em causa indissociável da motivação do agente, com base na qual se forma a sua vontade criminosa.
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Ora, no nosso caso, ficou provada, definitivamente assente, uma intenção de matar sem contornos susceptíveis de conduzir a um qualquer tipo de atenuação, pela via do homicídio privilegiado.
O Tribunal aceita que o arguido tenha agido sob o efeito da emoção. É lógico que, em condições normais, todo aquele que discute com outrem sofra alterações ao nível do seu estado emotivo.
Simplesmente, a conduta do arguido foi para além do compreensível.
Estava o arguido sob pressão intolerável e insuportável, no momento em que desferiu os golpes na vítima? Estes surgiram de um modo súbito, incontrolável?
Há que responder negativamente, por uma razão muito simples.
Na verdade, arguido e vítima separaram-se após a discussão verbal e já depois de terem ocorrido as agressões físicas, tendo o ora recorrente se dirigido para a sua residência.
Logo, a contenda poderia ter ficado por aí.
Tal não aconteceu, como já vimos.
Ora, ainda que tudo tenha acontecido depressa, o que é certo é que o arguido pensou em se munir de uma faca e esse seu gesto, em conjugação com o regresso ao local onde estava quem o tinha agredido e ao modo como a usou, só pode ser visto como intenção de matar.
Pois bem, esta emoção violenta não pode ser entendida como compreensível, sob pena da nossa sociedade regredir em direcção da barbárie.
A sociedade não pode permitir que uma discussão entre dois homens, ainda que toldados, em certa medida, pelo álcool, acabe da forma descrita nos autos, ao ponto de privilegiar, sob o ponto de vista penal, a conduta do agressor.
Tal seria um retrocesso civilizacional de séculos.
Por todo o exposto, é de improceder a pretensão do recorrente, mantendo-se a qualificação pelo crime de homicídio, p. p. pelo artigo 131.º do Código Penal.
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4 – Da medida da pena:
Em nenhum outro momento o Juiz incorpora tão dramaticamente a Justiça, como quando fixa a pena aplicável, sendo certo que a lei não conhece indivíduos, prevendo apenas espécies – cf. R. Salleilles, “ La Individualisation de la Peine”, Étude de Criminalité Sociale, Paris, 1927, pág. 267. Conforme disse Montesquieu, «a justiça das penas, mais do que a sua severidade, é o que consagra a força das leis», tanto mais que uma pena não deve visar a retaliação sobre quem cometeu um crime, antes deve dirigir-se para a respectiva ressocialização. É indubitável que os factos que ficaram provados são de extrema gravidade. O arguido atacou o bem jurídico mais valioso da nossa sociedade – a Vida humana.
Nas suas conclusões, o recorrente pugna por redução de pena, partindo, essencialmente, do pressuposto que deve ser punido enquanto autor de um homicídio privilegiado.
Ora, como já vimos, não há razão para considerar a existência de um crime p. e p. pelo artigo 133.º, do C. Penal, pelo que, segundo este prisma, é de afastar, liminarmente, a pretensão do arguido. Logo, a medida da pena a ter em consideração é de 8 a 16 anos de prisão (crime p. e p. pelo artigo 131.º, do C. Penal). Dentro da moldura referida funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente: - O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; - A intensidade do dolo ou da negligência; - Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; - As condições pessoais do agente e a sua situação económica; - A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; - A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Como todos sabem, a pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como, desde logo, se depreende do art.º 13º CP ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. A culpa não constitui, assim, apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se no seu limite máximo, o que significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo. De facto aqui ao referirmo-nos a culpa, fazemo-lo atendendo à personalidade do agente revelada no facto (neste sentido vide Figueiredo Dias in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 219). É, pois, correcto afirmar que a culpa em sede de determinação da medida da pena se traduz numa atitude interna sempre actualizada no facto. De acordo com a teoria da margem de liberdade, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, devendo intervir os outros fins das penas, actualmente referidos de forma expressa no art.º 40º CP (cfr. Claus Roxin “Culpabilidade y Prevencion en Derecho Penal”, tradução F. Munõz Conde, Bosch, 1981, pág. 94). A escolha do tipo de pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, nada tendo a ver com a determinação da sua medida, a qual depende fundamentalmente da culpa do agente. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve evitar a quebra da inserção social do agente e servir para a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos. Em síntese, o ilícito deve ser valorado em função da gravidade do ataque ao objecto em particular, nomeadamente os danos ocasionados, a extensão e gravidade dos efeitos produzidos, em suma, o efeito externo, sem esquecer o próprio desvalor do comportamento delituoso.
Revertendo ao caso dos autos:
Urge, pois, fazer apelo aos critérios estatuídos no citado art.º 71º, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Como circunstância agravante de relevo, deve ser tido em conta que o arguido agiu com elevado grau de ilicitude, desferindo na vítima mais de 20 golpes de faca distribuídos pelo tórax, abdómen, membros superiores e inferiores, o que revela brutalidade no modo de execução.

Ainda com acentuado carácter agravante, há que considerar o dolo directo do arguido. Além disso, ainda com carga negativa para o arguido, a sua conduta, extremamente agressiva, revela uma personalidade incapaz de controlar reacções desproporcionadas perante uma situação como a descrita nos autos. Já a favor do arguido milita o facto de o mesmo ter interiorizado o desvalor da sua conduta, estar integrado socialmente e não ter antecedentes criminais, a não ser uma condenação pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez. Já vimos que o arguido não pode pretender que a pena aplicada seja reduzida pela via de se considerar estarmos perante um homicídio privilegiado, na medida em que cometeu um crime p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal. E poderá o recorrente beneficiar, em termos gerais, da atenuação especial prevista no artigo 72.º, do Código Penal? Para responder a esta pergunta, há que ter presentes as linhas gerais do regime jurídico da atenuação especial, previstas na citada norma. Nesta, estabelece-se que “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”. Conforme ensina a doutrina, o legislador sabe estatuir, à partida, as molduras penais atinentes a cada tipo de factos que existem na parte especial do Código Penal e em legislação extravagante, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles tipos pode assumir. Porém, entende, ainda, a doutrina, que o sistema só pode funcionar de forma justa e eficaz se contiver válvulas de segurança, vendo estas como circunstâncias modificativas. Por isso, quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo padrão de casos que o legislador teve em mente à partida, aí haverá um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. Resumindo a tendência dominante na nossa jurisprudência, que segue a par a mencionada doutrina, podemos afirmar que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios. Conforme se acentua, na linha do que vem de ser exposto, no Acórdão de 17/10/02, do S.T.J., Processo n.º 3210/02, da 5.ª Secção (Relator: Conselheiro Pereira Madeira): «Como instituto, a atenuação especial da pena surgiu em nome dos valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade. Surgiu da necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais - quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva - a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa». Posto isto, pode a consideração global da conduta do arguido, à luz do que vem de ser dito, preencher circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, apresentando-se com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tal hipótese quando estatuiu os limites normais da moldura correspondente ao tipo de homicídio em questão? A resposta só pode ser negativa. Na realidade, da análise da matéria de facto considerada provada não se extraem elementos que permitam o recurso à drástica alteração da moldura penal prevista para o facto, no sentido da sua atenuação especial. Não se nega que o recorrente, momentos antes de desferir os golpes na vítima, foi agredido por esta e que mostrou arrependimento perante a prática dos factos. No que tange ao arrependimento, trata-se de um sentimento perfeitamente normal e que nenhum tratamento especial merece. Mau seria que o arguido, enquanto ser humano, não o sentisse, perante os factos dados como provados!... Por sua vez, a frequência com que ocorrem discussões verbais, com subsequentes agressões físicas, numa sociedade civilizada, não pode justificar nunca uma reacção como aquela que aconteceu, por mais difícil que seja conter emoções. Sublinhe-se que o arguido se afastou no local da discussão com o objectivo de ir buscar uma faca, nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 8, a fim de voltar ao mesmo sítio (facto provado n.º 9), em vez de ficar recolhido na sua casa à espera que os ânimos se acalmassem.

O recorrente invoca, na sua Motivação, que não tem antecedentes criminais de relevo, goza de bom comportamento, é de humilde condição sócio-económica e no meio onde vive é respeitado e respeitador.
Quanto a isto, as circunstâncias indicadas pelo recorrente não podem ser relevantes ao ponto de acarretarem uma acentuada diminuição da culpa ou da ilicitude ou mesmo da prevenção. Como já vimos, a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, o que não se verifica no caso em apreço. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”, sendo certo que, no caso em apreço, a pena aplicada é adequada, razoável e proporcional, não merecendo censura o que consta do acórdão recorrido em sede de medida concreta da pena. São intensas as necessidades de prevenção geral. Na realização dos fins das penas as exigências de prevenção geral constituem nos casos de homicídio uma finalidade de primordial importância. O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo o crime a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - artigo 24.º da Constituição da República – estando-se face à mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito. O direito à vida é a conditio sine qua non para gozo de todos os outros direitos. A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição. Como expende Figueiredo Dias em O sistema sancionatório do Direito Penal Português inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A...Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”. Como referido em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3.ª, a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes. No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, assaz brutal, a qual revela um reduzido valor que atribui à vida humana. Uma pena inferior à aplicada na decisão ora em crise não implicaria para o arguido uma dissuasão necessária para nele reforçar o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir. Seria banalizar o seu comportamento, assim como de outros que reagissem como ele, em circunstâncias semelhantes. E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora a única que faz sentido em sede de prevenção especial. Nestas condições e tendo em conta todo o exposto, cremos que será de manter a pena aplicada pelo homicídio, atenta a moldura penal abstracta a ter em conta, de 8 a 16 anos de prisão, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – artigo 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrido. ****
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IV. Decisão:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5 ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em seis UC.

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(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)
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Coimbra, 28 de Setembro de 2011
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(José A...Martins)
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(Maria José Nogueira)