Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
159/16.5PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
CRIME CONTINUADO
CRIME DE EXECUÇÃO PERMANENTE OU CONTINUADA
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DE CALDAS DA RAINHA– SECÇÃO CRIMINAL – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 30.º E 347.º DO CP
Sumário: I - No crime de resistência e coacção sobre funcionário, o bem jurídico que a lei quis especialmente proteger é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e a liberdade de actuação do seu funcionário ou membro de força armada, posta em causa pelo emprego de violência ou resistência do agente arguido.

II - A protecção do funcionário que no exercício das suas funções executa as tarefas que lhe são cometidas é um meio para permitir essa actuação, tratando-se tão só de uma protecção funcional ou reflexa, pois a liberdade do funcionário importa na estrita medida em que representa a liberdade do Estado.

III - No caso dos autos, ao opor-se, na mesma ocasião e da forma descrita, a que os dois agentes da PSP praticassem um acto relativo ao exercício das suas funções – reposição da ordem pública –, o arguido cometeu um só crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, por a tal situação corresponder, numa compreensão global da conduta do arguido, uma unidade de sentidos de ilicitude típica.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No processo sumário n.º 159/16.5PBCLD, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Caldas da Rainha – Instância Local – Secção Criminal – J1, por sentença de 17 de Março de 2016, depositada na mesma data, o arguido A..., já melhor identificado nos autos, foi condenado pela prática de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, na pena única, em resultado do cúmulo jurídico efectuado, de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 1 ano sujeita a regime de prova e ao cumprimento de determinadas regras de conduta.

2. Inconformado, recorreu o Ministério Público, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1.O recurso que agora se interpõe prende-se com o facto de a sentença recorrida ter condenado o arguido pela prática de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, previstos e punidos pelo art.347.º, n.º1, do Código Penal, porquanto se entende que a factualidade dada como provada apenas é susceptível de integrar a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo art.347.º, n.º1, do Código Penal.
2.A questão a decidir é, portanto, a de saber se a conduta do arguido perante os dois agentes da PSP para se opor a que aqueles exercessem “as suas funções legítimas de reposição da ordem pública”, integra a prática de dois crimes crime de resistência e coacção a funcionário ou apenas um só crime de resistência e coacção sobre funcionário.
3. Para tal importa, desde logo, atender à redacção do citado art.347.º, n.º1, do Código Penal.
4.Por outro lado, igualmente relevante se mostra a inserção sistemática no Código Penal de tal ilícito.
5.Ora, da sua inserção sistemática, do teor e redacção da própria norma incriminadora e bem ainda da sua razão de existir resulta que o bem jurídico protegido não é eminentemente pessoal cifrando-se antes na “autonomia intencional do funcionário”, só acessoriamente se protegendo a integridade física do funcionário.
6.Não se trata, portanto, de um crime eminentemente pessoal, traduzindo-se a protecção do funcionário, que no exercício das suas funções executa as tarefas que lhe são cometidas, apenas um meio para assegurar essa mesma autoridade.
7. Acresce que, tendo presente o disposto no art.30º, nº1 e nº3, do Código Penal, verifica-se existir, no caso em apreço, atentos os factos provados, apenas uma única resolução criminosa do arguido, pelo que a conduta do mesmo preencheu uma única vez o tipo de crime em apreço, em consequência do que cometeu apenas um único crime, e não dois.
8.Em face do exposto comete um só crime o agente que na mesma ocasião emprega ”violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física” contra vários funcionários, membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.
9.Consequentemente, conclui-se que nos presentes autos o arguido cometeu um só crime de resistência e coacção sobre funcionário, apesar de na mesma ocasião se ter oposto, pela forma descrita nos factos provados, a que os dois agentes da PSP presentes exercessem “as suas funções legítimas de reposição da ordem pública.”
10.No sentido aqui pugnado veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 28/03/2007, proferido no processo nº98/2007-3, disponível in www.dgsi.pt e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28/04/1999, in CJSTJ, tomo II, pág. 193, e de 18/02/2004, in CJSTJ, tomo I, pág. 205, citados pelo Acórdão supra mencionado. Veja-se igualmente Paulo Pinto de Albuquerque, in Ob. cit., p.911, e bem ainda Cristina Líbano Monteiro, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 2001, III Vol., p.347.
11.Diante do exposto, ao condenar o arguido pela prática de dois crimes de resistência e coacção a sentença recorrida violou o disposto no art.347º, nº1, e 30º, nº1 e nº3, ambos do Código Penal, termos em que não pode a mesma ser mantida nessa parte, devendo, em consequência, ser substituída por outra que condene o arguido na prática de um crime de resistência e coacção e o absolva pela prática do outro crime de resistência e coacção que lhe vinha imputado.

Termos em que deve o presente recurso ser considerado procedente, devendo a sentença recorrida ser revogada na parte em que condena o arguido pela prática de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário e, consequentemente, substituída por uma outra que condene o arguido na prática de um só crime de resistência e coacção sobre funcionário e o absolva pela prática do outro crime de resistência e coacção sobre funcionário que lhe vinha imputado, assim se fazendo JUSTIÇA.»
3. O arguido não respondeu ao recurso.
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, subscrevendo na íntegra a motivação de recurso, emitiu parecer no sentido de que o recurso deve proceder.
5. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP([1]), o arguido nada disse.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão

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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«1. No dia 28 de Fevereiro de 2016, pelas 12:00 horas, o arguido dirigiu-se ao Café (...) , sito na Rua Augusto Batista de Carvalho, Caldas da Rainha, área desta instância.

2. Após ali ter estado por duas vezes, na sequência de desentendimentos ocorridos consigo, o arguido A... voltou ao local e neste estavam dois elementos da PSP de Caldas da Rainha, agente B... e agente C... .

3. Estavam ambos devidamente uniformizado e identificados enquanto agentes policiais.

4. A agente B... dirigiu-se ao exterior do café e abordou o arguido, questionando-o sobre o que queria do estabelecimento.

5. Respondeu que queria falar com o seu pai e foi informado por esta agente que o seu pai já não se encontrava no local.

6. Abandonou o local novamente, voltando logo de seguida.

7. A agente B... deslocou-se ao exterior do estabelecimento e dirigiu-se ao arguido, solicitando para que fosse embora.

8. Nessa ocasião, o arguido encostou a cara dele à da agente B... .

9. Esta advertiu-o para cessar com o seu comportamento, o que o arguido ignorou e, de seguida, cuspiu na direcção da sua cara.

10. Nesse momento a agente B... usou força para que o arguido se afastasse de si e aquele não acatou tal ordem.

11. Então, o arguido dirigiu-se aos dois agentes da PSP proferindo as seguintes palavras “SEUS FILHAS DA PUTA, VOU-VOS MATAR, SOIS UNS MERDAS, VOCÊS VÃO VER, VOU-VOS MATAR”.

12. A agente B... voltou a insistir para qr respondendo este: “SEUS FILHOS DA PUTA, QUANDO VOS ENCONTRAR À CIVIL VOU-VOS MATAR, POIS TENHO AMIGOS CIGANOS QUE VOS VÃO FAZER A FOLHA, TENHO UMA ARMA E ERA PARA A TRAZER, AINDA BEM QUE NÃO A TENHO AQUI, SE NÃO MATAVA-VOS, PODEM TER A CERTEZA QUE QUANDO SAIR DAQUI VOU FAZER MERDA, VÃO TER TRABLAHO TODA A NOITE, VOU FODER A MINHA MADRASTA”.

13. O arguido A... sabia que os ofendidos B... e C... eram agentes da PSP e encontravam-se em exercício de funções.

14. O arguido A... agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito de impedir os ofendidos B... e C... de exercerem as suas funções legítimas de reposição da ordem pública.

15. O arguido A... sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que:

16. O arguido tem averbado ao seu Certificado de Registo Criminal a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, praticado em 30.05.2014, pelo qual foi julgado no âmbito do processo n.º 389/14.4 PBCLD; um crime de furto qualificado, praticado em 16.09.2014, pelo qual foi julgado no âmbito do processo n.º 596/14.0 PBCLD; um crime de furto qualificado, praticado em 6.04.2015, pelo qual foi julgado no âmbito do processo n.º 108/15.8 GCCLD; um crime de furto simples, praticado em 7.08.2014, pelo qual foi julgado no âmbito do processo n.º 520/14.0 PBCLD.

17. O processo de socialização de A... decorreu em contextos familiares caracterizados por variáveis fortemente desestruturantes, associadas a disfuncionalidades educativas/afetivas e materiais, com vivência de privações e maus tratos que influenciaram o seu desenvolvimento psicoafectivo e a interiorização de valores socialmente adaptados.

18. A integração, quer no agregado da mãe quer no do pai, revelou-se problemática, não revelando estas figuras parentais competências educativas para lidar com a instabilidade comportamental do arguido, sobretudo a partir dos 10 anos, idade em que começou a manifestar comportamentos de risco, o que determinou a intervenção dos serviços da segurança social.

19. Com 13 anos de idade A... , no âmbito de uma medida de promoção e protecção, foi integrado numa instituição (Casa (...) ), onde permaneceu até aos 17 anos. Durante este período, habilitou-se com o 9º ano de escolaridade e beneficiou de apoio psiquiátrico.

20. Os contactos com a família e a manutenção dos vínculos afectivos foram assegurados por um irmão consanguíneo, que se constituiu como suporte relacional.

21. Em Agosto de 2013, após a sua saída da instituição, integrou o agregado familiar deste irmão que se organizou para lhe proporcionar alguma estabilidade afectiva e material. O arguido revelou acentuadas dificuldades para respeitar as regras e as orientações que lhe foram transmitidas, manifestando um comportamento muito instável com expressão no abandono de um curso de turismo com equivalência ao 12º ano, no reforço da ligação a pares pró criminais e numa atitude de desafio e de revolta, num quadro de notória vulnerabilidade emocional, acentuada pelo consumo de drogas.

22. Na decorrência de um clima de grande tensão e desgaste, A... decidiu, em Dezembro de 2013, procurar o apoio da mãe, com quem passou a residir. Este contexto familiar, caracterizado pela inconsistência afectiva e pouco responsabilizante, em nada contribuiu para alterar as rotinas de A... , demonstrativas de um progressivo processo de desinserção social, adotando comportamentos de risco que determinaram a instauração de vários processos judiciais.

23. Na atualidade A... reside num prédio abandonado com o irmão e outros individuas com estilos de vida associais.

24. A mãe, com quem mantém um relacionamento pouco equilibrado, tem feito algumas tentativas para se aproximar e para lhe garantir algum suporte, nomeadamente alimentar, nem sempre aceite.

25. Sem hábitos de trabalho interiorizados, nunca desenvolveu qualquer actividade profissional, revelando uma atitude pouco proactiva para ultrapassar esta situação.

26. Atendendo ao facto de não apresentar rendimentos próprios e do apoio pontual da mãe se circunscrever a alimentos, suscitam à DGRS grande apreensão a forma como financia as suas outras necessidades, nomeadamente aditivas, área ainda pouco clarificada dada a atitude que tem manifestado perante os serviços de saúde.

27. Muito embora verbalize motivação para integrar uma comunidade terapêutica, tem revelado muitas dificuldades para cumprir os procedimentos (exames diagnóstico, consultas) que lhe têm sido definidos pelos serviços de saúde, o que tem comprometido e atrasado todo o processo.

28. Perspectiva-se a sua integração numa unidade de desabituação, encontrando-se já seleccionada a comunidade terapêutica onde, posteriormente, será admitido caso venha a cumprir os procedimentos exigidos pelo respectivo serviço de saúde.

29. Ao nível do seu funcionamento pessoal A... apresenta-se como um jovem imaturo e emocionalmente fragilizado, com fracas capacidades para perspectivar o seu futuro a curto e médio prazo e para se mobilizar para o cumprimento de acções que exijam algum esforço da sua parte. Com dificuldades para aceitar regras e limites, adota uma atitude reativa quando confrontado com situações percepcionadas como adversas, aspeto que poderá ser determinado pelos seus défices de competências pessoais e sociais e por um eventual problema da área da saúde mental, que terá determinado, no passado, a sujeição a acompanhamento e medicação específica.

30. Manifesta um pensamento desfavorável às convenções, que tende a não respeitar, num padrão de fraca ressonância afectiva.

31. Revela distorções cognitivas sobre o funcionamento da justiça, que reforçam os seus sentimentos de impunidade.

32. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos descritos na acusação.»

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1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida(transcrição):

«Inexistem factos de relevo para a decisão da causa que não tenham resultado provados em audiência de discussão e julgamento.»

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1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«O Tribunal alicerçou a sua convicção quanto aos factos constantes da acusação, com base nas declarações prestadas pelo arguido que, de forma espontânea e aparentemente sincera, confessou integralmente e sem reservas os factos descritos na acusação.

Referiu que se encontrava arrependido, tendo atuado de forma irreflectida e inconsequente, bem sabendo ter ofendido os Agentes da PSP em causa e ainda ter atuado com vista a que os mesmos não cumprissem os seus legais deveres.

No que respeita aos seus antecedentes criminais foi tido em conta o teor objetivo do seu Certificado de Registo Criminal de fls. 12 e ss. e no que se refere às suas condições pessoais, foi observado o relatório social de fls. 36 e ss..»

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1.4. Da sentença recorrida consta a seguinte fundamentação quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos (transcrição):

«O arguido vem acusado da prática de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art.º 347.º, n.º 1, do Código Penal.

Pratica o crime previsto no art.º 347.º, n.º 1, do Código Penal "Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até cinco anos.".

Com esta incriminação visa-se proteger a autonomia intencional das forças de segurança, ou seja, a não colocação de entraves à actividade destas por parte dos destinatários dos seus actos, por forma a salvaguardar a paz e segurança de toda a comunidade.

No que concerne ao tipo objetivo, pratica o crime em causa quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções mas contrário aos seus deveres.

Por seu turno e no que concerne agora ao elemento subjetivo, o tipo doloso preenche-se sempre que alguém pratique, consciente e voluntariamente, um dos actos acima descritos.

Fazendo a subsunção jurídica acabada de mencionar aos factos que resultaram provados em audiência de julgamento, não restam ao tribunal quaisquer dúvidas de que o arguido, ao actuar do modo que resultou demonstrado, preencheu todos as parcelas que compõem quer o elemento objetivo, quer o subjetivo do tipo, já que tinha pleno conhecimento de que os agentes da PSP a quem se dirigia e que, relativamente a uma, adotou uma postura de ameaça contra a sua integridade física e cuspiu na face, após a tendo injuriado e difamado e, relativamente a outro, injuriou, difamou e ameaçou relativamente à sua integridade física e vida, tudo com vista a impedi-los de praticar as suas funções, tinham aquela função, uma vez que se encontravam no local devidamente uniformizados.

Por outro lado, bem sabia o arguido que os atos que praticava eram ilícitos e tinha como única finalidade intimidar os agentes da autoridade, assim visando o constrangimento destes últimos a que praticassem livremente os seus deveres funcionais e assim assegurassem a paz e tranquilidade públicas.

Não obstante estar ciente de tal situação, o arguido não se coibiu de, de forma expressa e injustificada, actuar como descrito.

Acresce que não se mostram verificadas quaisquer circunstâncias que excluam a ilicitude ou a culpa, tendo o arguido referido conhecer o carácter censurável e proibido da sua conduta.

Cometeu, por isso, dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, por que vinha acusado e terá de ser, pelos mesmos, punido.»

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2. Apreciando

Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

Assim, a questão objecto do presente recurso consiste em saber se a factualidade provada integra a prática de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, conforme decidiu a sentença recorrida, ou apenas um crime, como defende o recorrente.

De acordo com o disposto no artigo 30.º do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.  

Embora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efectivo, torna-se necessário, além de aferir da pluralidade de tipos violados ou da violação plúrima do mesmo tipo, recorrer ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas.

A multiplicidade de vezes de preenchimento do tipo objectivo do crime conduz, em regra, à multiplicidade de crimes da respectiva natureza (artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal), mas tal multiplicidade deixa de ter tal efeito, não só nos casos em que se deva configurar um crime continuado (artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal), como naqueles em que a unidade de resolução – tipo subjectivo do crime – e a inexistência de violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, aliados à continuidade temporal das condutas, fazem com que a multiplicidade formal de violações do tipo criminal deva ser tratada como correspondente à comissão de um só crime.

Se se tratar de uma decisão assumida, deliberada, pensada uma única vez, e a partir de tal decisão não haver qualquer necessidade de renovar o processo de motivação, realiza-se um único tipo legal de crime.

Estamos verdadeiramente perante aquilo que Jescheck designava por “unidade jurídica de acção”([2]).

Uma unidade jurídica de acção que pressupõe que as condutas parcelares respondam a um só desígnio criminoso (unidade subjectiva) e realizem um único tipo legal de crime (unidade objectiva)([3]).

Não se trata aqui de um crime continuado mas de um só crime de execução permanente ou continuada, ou seja, temos um único crime, a punir em conformidade([4]).

A este respeito permitimo-nos chamar à colação Eduardo Correia quando refere que – de acordo com a concepção normativista do conceito geral de crime – a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo «número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. ( ... ) Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valo­res jurídicos negados. ( ... ) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção».

Tal pressuposto seria complementado por um outro pois que, conforme referia o mesmo Mestre, «pode acontecer que o juízo con­creto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a acti­vidades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encerram a violação do mesmo bem jurídico (…): a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se toma aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes»([5]).

Sobre esta construção se pronunciou Figueiredo Dias apontando a necessidade de se prestar atenção ao facto de que «o tipo de ilícito, o verdadeiro portador da ilicitude material, é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito».

A segunda observação que formula é «a de que o tipo objectivo tem sempre como seus elementos constitutivos o autor, a con­duta e o bem jurídico, só da conjugação destes elementos – e também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito – resultando o sentido jurídico­-social da ilicitude material do facto que o tipo abrange. O que vale por dizer que todos estes elementos parece deverem ser tidos em conta e valorados – e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta – na determinação da unidade ou pluralidade de tipos violados.».

Conclui, assim, o mesmo Autor que o bem jurídico assume na questão da tipicidade um relevo primacial e insubstituível mas deve recorrer-se aos restantes elementos típicos numa perspectiva de consideração global do sentido social do com­portamento que integra o tipo. Só assim, acrescenta, se podendo ter a esperança de aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso. O que se tem de contar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global.

Nesta última perspectiva «o “crime” por cuja unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside pois nem por um lado na mera “acção”, nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: “reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico penal, reside (…) no ilícito típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes»([6]).

No crime de resistência e coacção sobre funcionário, como resulta da sua própria inserção sistemática, o bem jurídico que a lei quis especialmente proteger é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e a liberdade de actuação do seu funcionário ou membro de força armada, posta em causa pelo emprego de violência ou resistência do agente arguido, não abrangendo, por isso, a tutela da integridade dos mesmos, como bem pessoal([7]).

A protecção do funcionário que no exercício das suas funções executa as tarefas que lhe são cometidas é um meio para permitir essa actuação, tratando-se tão só de uma protecção funcional ou reflexa, pois a liberdade do funcionário importa na estrita medida em que representa a liberdade do Estado.

A violência a que se alude não tem que ser agressão física, bastando a simples hostilidade idónea a coagir ou impedir a actuação legítima do funcionário([8]).

Assim, no caso dos autos, ao opor-se, na mesma ocasião e da forma descrita, a que os dois agentes da PSP praticassem um acto relativo ao exercício das suas funções – reposição da ordem pública –, o arguido cometeu um só crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, por a tal situação corresponder, numa compreensão global da conduta do arguido, uma unidade de sentidos de ilicitude típica.

Por conseguinte, a qualificação jurídica operada na decisão recorrida deve ser alterada por estarmos perante a prática de um único crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal.

O tribunal a quo condenou o arguido pela prática de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, nas penas parcelares de 6 (seis) e 3 (três) meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de um ano sujeita a regime de prova e ao cumprimento de regras de conduta.

Tendo em conta a referida alteração da qualificação jurídica, o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, o qual é punido com pena de prisão até cinco anos.

A determinação da medida da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos artigos 71.º, n.º 1 e 40.º do Código Penal), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa humana do arguido.

Na determinação da medida da pena deve atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente as elencadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

Como se ponderou na sentença recorrida, são elevadas as exigências de prevenção geral, dada a frequência com que este tipo de ilícito é praticado, traduzindo uma certa degradação da autoridade pública que gera sentimentos de intranquilidade e de impotência que importa apaziguar.

A circunstância de estarmos perante um só crime implica um maior grau de ilicitude do facto dado que a conduta globalmente considerada é portadora de uma ilicitude maior.

A culpa com que o recorrente actuou atingiu intensidade elevada até porque, como se ponderou na sentença recorrida, agiu com dolo directo.   

No que respeita às exigências de prevenção especial, embora tenha confessado os factos, revelando algum sinal de interiorização do desvalor da conduta, o arguido possui um passado criminal marcado por quatro condenações, sendo uma delas justamente pela prática do mesmo tipo de crime, o que tudo é claramente revelador, para além de uma enorme indiferença ao efeito das penas e às sucessivas oportunidades de socialização de que foi beneficiando, de uma atitude de desresponsabilização e desajustamento do arguido com os valores comunitários, circunstâncias que reforçam as exigências de prevenção especial.

Ponderando todas estas circunstâncias, em que há uma culpa bem definida e em que são elevadas as exigências de prevenção geral e especial, consideramos adequada a pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de um ano, com sujeição a regime de prova e às regras de conduta já definidas pelo tribunal recorrido.

Procede, portanto, o interposto recurso.

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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, por via disso, revogando-se a sentença recorrida, condenar o arguido pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de um ano, com sujeição a regime de prova e ao cumprimento das regras de conduta já definidas pelo tribunal recorrido.

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Sem tributação.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

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Coimbra, 14 de Setembro de 2016

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se reportam os demais preceitos citados sem menção de origem
[2] - Tratado de Derecho Penal, Parte General, Volumen Segundo, edição Bosch, pág. 1001 (tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde).
[3] - Cfr. Santiago Mir Puig, Derecho Penal, Parte General, pág. 657.

[4]- Note-se que existe hoje jurisprudência do Supremo Tribunal, já uniforme, exactamente neste sentido (vide Acórdão do STJ de 09-05.2002, com o nº convencional SJ200205090012315, e ainda Ac. de 7.03.2002 com o nº convencional SJ200203070003565, ambos disponíveis no sítio da DGSI).
[5] - Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 200 a 201.
[6] - Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, págs.986 a 989.
[7] - Neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28/4/1999, de 25/9/2002 e de 18/2/2004, in CJ, ACSTJ, Ano VII, tomo II, pág. 193, Ano X, tomo II, pág. 202 e Ano XII, tomo I, pág. 205; No mesmo sentido, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo III, pág. 339.
[8]- Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/9/2002, ACSTJ, Ano IX, tomo III, pág. 180.