Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/09.1TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO CONFINANTE
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
PRÉDIO URBANO
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1380.º, N.º 2; 1381.º DO CÓDIGO CIVIL. ARTIGO 460.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. O direito de preferência na venda de prédio rústico confinante não é afastado pela existência de servidão de aqueduto a onerar o prédio a preferir, em benefício de prédio do comprador, pelo que deve ser reconhecido o direito de preferência, verificados que estejam os seus requisitos.

2. Para obstar à preferência não basta a intenção do comprador o destinar a construção, competindo-lhe ainda provar que é possível construir.

3. Para efeitos de obstar ao direito de preferência com base na confinância de prédios, a al. a) do artigo 1381.º do Código Civil, quando se refere aos terrenos que constituem parte componente de um prédio urbano, tem subjacente a ideia de que se trata de terrenos que sejam contíguos fisicamente aos edifícios incorporados no solo. Não se atende a um “critério funcional” de “parte componente”, mas sim a um critério “material ou físico”, no sentido de que a parte componente implica contiguidade física e idêntica natureza.

4. A circunstância de o terreno e o prédio urbano comprados estarem separados por uma estrada afasta aquela excepção de preferência, não obstante se localizarem próximo um do outro e o terreno ter servido, e ter sido fruído, na e como dependência da casa, sendo até que a água nesta utilizada tem sido proveniente de um poço existente nesse terreno.

5. Ou seja, embora se verifique uma complementaridade no uso do terreno objecto do direito de preferência relativamente à casa de habitação dos réus, o certo é que não se pode considerar que este constitui o logradouro da casa de habitação, dada a sua descontinuidade e diferente natureza, nos moldes atrás expostos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            Nos presentes autos de acção declarativa de condenação na forma de processo comum sumário a autora A...., viúva, residente na Rua ... Mosteiro de Fráguas, veio pedir que os réus:

1º - B…. ,viúva, residente na Avenida ... Tondela;

2º - C…. e mulher D...., casados sob o regime da comunhão de adquiridos, residentes na Avenida ... Tondela:

3º - E....e mulher F...., casados sob o regime da comunhão de adquiridos, residentes na Rua ... , Tondela;

Sejam condenados no seguinte:

- ser a Autora reconhecida como legítima proprietária do artigo rústico x... º da freguesia de Mosteiro de Fráguas;

- ser reconhecido à Autora o direito de haver para si o prédio rústico vendido, inscrito na matriz sob o artigo z... º, da freguesia de Mosteiro de Fráguas;

- ser reconhecido o direito à Autora de substituir os terceiros Réus adquirentes, na citada escritura de 14 de Fevereiro de 2006, na titularidade e posse do aludido prédio rústico z... º, posição que esta ocupará, mediante o pagamento do preço e despesas da escritura, IMT e registo, pagamento já efectuado por Depósito Autónomo;

Para tanto alega que é proprietária de um prédio confinante com o que foi vendido pelos 1.os e 2ºs Réus aos terceiros réus sem que lhe tenham sido comunicados os elementos essenciais do negócio e dada a oportunidade de preferir na aquisição do mesmo, uma vez que ambos os prédios são rústicos tendo ambos área inferior à unidade de cultura.

Regularmente citados os réus E… e mulher F...., apresentaram contestação na qual pugnam pela improcedência da acção alegando que o prédio em causa apesar de formalmente adquirido aos 1.o e 2.os réus foi, de facto, adquirido a uma outra pessoa, e que tal negócio foi efectuado conjuntamente com a venda da casa de habitação de que o prédio rústico está afecto como quintal e fonte de água para a habitação, uma vez que no prédio em causa foi, há mais do que 40 anos instalado um motor e tubagem para extracção e condução de água para a habitação para uso doméstico, bem como o prédio foi usado como quintal, atendendo á proximidade do mesmo, da casa de habitação despejando nele lenhas, estrumes e demais utilidades para a habitação, pretendendo, ainda, nele construir anexos com vista ao apoio a sua casa.

Mais alegam que a autora sabe da transmissão do imóvel, com todos os elementos essenciais, há mais do que dois anos sobre a entrada da acção.

            Para a hipótese de procedência da acção, formulam os réus contestantes, pedido reconvencional, no sentido de a autora ser condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a água do poço existente no prédio objecto da presente acção e bem assim condenada a reconhecer que por sobre o mesmo prédio e no modo e forma alegados nos artigos 46.º e 47.º da contestação, se encontra constituída uma servidão de aqueduto com vista à derivação de tal água para a sua casa.

            Respondendo, a autora, alega que a compra e venda dos prédios referidos pelos réus na sua contestação, foram efectuadas em momentos diferentes e que o rústico é separado da casa de habitação aí referida, onde não existe nem está licenciada qualquer construção.

            Mais impugna os factos em que os réus assentam a reconvenção que deduziram e mais refere, que, ainda, que esta proceda, em nada contende com a preferência a que se arroga, podendo, quanto muito, manter-se tal servidão.

Com dispensa de audiência preliminar, foi, de seguida, proferido despacho saneador, no qual se admitiu a reconvenção deduzida e foram fixados os factos assentes e a base instrutória.

 Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova testemunhal nela produzida, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação, tal como consta de fl.s 178 a 181, sem que lhe tenha sido formulada qualquer reclamação.

            No seguimento do que foi proferida a sentença de fl.s 183 a 190, na qual se decidiu o seguinte:

“Por tudo o exposto o tribunal julga improcedente a presente acção e consequentemente declara:

I. Não ser reconhecido à Autora o direito de haver para si o prédio rústico vendido, inscrito na matriz sob o artigo z... º, da freguesia de Mosteiro de Fráguas;

II. Não ser reconhecido o direito à Autora de substituir os terceiros Réus adquirentes, na citada escritura de 14 de Fevereiro de 2006, na titularidade e posse do aludido prédio rústico z... º, posição que esta ocupará, mediante o pagamento do preço e despesas da escritura, IMT e registo, pagamento já efectuado por Depósito Autónomo.

III. Absolve os réus do pedido.

IV. Condena a autora nas custas do processo.”.

            Inconformada com a mesma, interpôs recurso a autora A…, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 235), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1. Quando se impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, são elementos fundamentais os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento.

2. No caso sub judice, as testemunhas indicadas pelos 3ºs Réus, ora Recorridos, não contrariaram a tese desenvolvida pela Autora, na sua Petição Inicial.

3. Não havendo qualquer outra prova em sentido contrário.

4. Assim sendo, a factualidade provada e articulada não permite que esta Acção seja julgada improcedente.

5.Os factos articulados pelos 3ºs Réus (quesitos 5º a 13º da Base Instrutória) que constituem a causa de pedir, foram indevidamente dados como provados, uma vez que o depoimento das Testemunhas destes, não poderia levar a esse entendimento.

6. Ficou assente que os Recorridos não cumpriram o dever de comunicação a que alude o art. 416º, nº. 1, do Código Civil, e foi julgada improcedente a excepção peremptória de caducidade invocada por estes.

7. A Recorrente depositou o preço nos termos exigidos legalmente.

8.Assim, verificam-se nos Autos os pressupostos do exercício do direito de preferência e as condições para a sua procedência.

9. Resultou provado nos autos que o prédio dos 3ºs Réus, aqui em causa, não foi adquirido com vista à sua afectação a fim que não fosse a cultura.

10.Não estando o direito de preferência afastado pela verificação de qualquer uma das circunstâncias descritas no art. 1381.º do Código Civil, deveria o direito da Recorrente ter sido considerado procedente.

11.O Tribunal a quo não se pronunciou sobre o pedido reconvencional formulado pelos 3ºs Réus, ora recorridos.

12. Mesmo que se considere o facto complementar (a utilização para uso doméstico da água do poço) vertido na Contestação, os 3ºs Réus, ora recorridos, não manifestaram interesse directo em deles se aproveitar, apenas o fizeram no pedido reconvencional, pedido sobre o qual o Tribunal a quo nem sequer se pronunciou na douta Sentença.

13. Pelo que a douta Sentença recorrida violou as normas dos artigos 664º e 264º do C.P.C., ao basear a decisão em factos não articulados pelos Réus.

14. A existência de uma hipotética servidão de águas, para abastecimento de uma habitação, não é por si só suficiente para afastar o direito de preferência., até porque hoje em dia perante a Lei, só pode ser captada água de poços para uso doméstico, se estiverem licenciados para o efeito e não houver água da rede pública que possa abastecer a casa de habitação. O que não é o caso dos Autos, já que se encontra junta aos Autos, uma certidão emitida pela Câmara Municipal de Tondela, que comprova que os 3ºs Réus têm água da rede pública no seu domicílio.

15. Ao afirmar-se na douta Sentença do Tribunal a quo que, a existência de uma servidão predial faz cessar o direito de preferência da Autora, praticou-se um erro na determinação das normas aplicáveis.

16.Tal como já supra se referiu a douta Sentença recorrida não se pronuncia quanto ao pedido reconvencional dos 3ºs Réus.

17. Formulado e admitido pedido reconvencional, terá o juiz que sobre ele também se pronunciar, o que não foi feito nos Autos, apesar da sua causa de pedir ter servido de base á decisão.

18.No entanto utiliza a causa de pedir deste pedido reconvencional para fundamentar a decisão de direito.

19. Assim, a fonte do direito de preferência invocado pela autora, isto é, a confinância e a necessidade de aproximação da sua parcela á área mínima de cultura, não pode cessar pelo facto de haver uma hipotética servidão predial a favor de um prédio urbano do adquirente.

20.Nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questão que devesse apreciar” (1ª parte) “ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (2ª parte).

21.O art. 1380º, nº1, do Código Civil confere um direito de preferência com eficácia “erga omnes”, aos donos de prédios rústicos confinantes, desde que um deles tenha área inferior à unidade de cultura – art. 18º do DL. 348/88, de 25.10.

22.Trata-se de um direito legal de aquisição que depende da verificação dos requisitos enunciados no citado artigo, cujo ónus da prova incumbe aos que se arrogam titulares do direito de preferência, por se tratar de factos constitutivos desse direito – art. 342º, nº1, do Código Civil.

23."Quem pretenda ver judicialmente reconhecido um direito real de preferência, na qualidade de proprietário confinante, deverá (terá) alegar e provar, de acordo com a repartição do ónus da prova, os factos constitutivos do seu direito e que são os indicados no artigo 1380" do Código Civil, o que a ora Apelante conseguiu nos Autos.

24.Por seu turno, quem possa defender-se terá de provar algumas das excepções indicadas no artigo 1381°do mesmo Código", onde não está incluída a servidão de aqueduto.

25.Os Apelados, nos seus articulados não alegaram qualquer das excepções enunciadas no art. 1381° Cod. Civil.

26. Assim, a douta sentença sob recurso não terá feito a melhor aplicação das normas constantes dos arts. 1380°, 1381° do Cod. Civil.

27.Atentas as conclusões acima apresentadas, a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada.

Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V.Exªs deve ser concedido total provimento ao presente recurso e em consequência, revogar-se a Sentença proferida no Tribunal a quo e dando-se o direito de preferência á Autora nos termos peticionados, assim se fazendo a costumada Justiça.

Contra-alegando, os réus contestantes, defendem que o recurso, no tocante á matéria de facto, deve ser rejeitado por a recorrente não ter especificado quais os concretos pontos da matéria de facto incorrectamente julgados e quais os meios probatórios que impunham diversa decisão.

E a assim não ser, então, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, apoiando-se nos fundamentos nesta expendidos, designadamente que demonstraram que o prédio objecto da preferência constitui parte componente de um prédio urbano e foi adquirido com vista a nele edificarem arrumos, bem como daí usufruírem da água que nele é explorada.

            Como ora acima se referiu, os réus contestantes, defendem que o recurso da autora, quanto à matéria de facto, deve ser rejeitado por esta não ter indicado as concretas passagens da gravação em que o funda, bem como, igualmente, não indicou, justificadamente, ponto por ponto, os quesitos que considera incorrectamente julgados e como deveriam ser julgados.

Ora, como resulta da acta de audiência e julgamento, procedeu-se à gravação dos depoimentos prestados, no sistema de gravação digital em aplicação informática, em uso no Tribunal recorrido.

            Assim, nos termos do disposto no artigo 685.º-B, n.os 1.al.s a) e b) e 2, do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo DL 303/2007, de 24/8, o recorrente, em caso de recurso sobre a matéria de facto, para além da indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, tem de indicar, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, as passagens da gravação em que se funda o mesmo.

            É certo que a recorrente poderia ter primado por maior clareza e exactidão ao expor a sua pretensão recursiva, no que à reapreciação da matéria de facto diz respeito.

            No entanto, ainda assim, é possível concluir (como, de resto, o entenderam os recorridos) que as respostas que a recorrente pretende colocar em causa, são as relativas aos quesitos 5.º a 13.º da base instrutória, as quais, no seu entender, devem passar a ser consideradas como não provadas.

            E fundamenta tal pretensão nos depoimentos que indica, aduzindo as razões, relativamente a cada um deles, ainda que de forma sucinta, porque assim considera dever ser.

            Consequentemente, parece-nos que o recurso, relativamente à matéria de facto, não dever ser rejeitado e tem como abrangência as respostas que foram dadas aos quesitos 5.º, 6.º e 10.º a 13.º, uma vez que aos quesitos 7.º a 9.º, já se respondeu negativamente, o que a recorrente pretende ver alargado aos demais ora referidos.

           

            Colhidos os vistos legais, há que decidir.        

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

            A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos quesitos 5.º, 6.º e 10.º a 13.º da base instrutória;

            B. Se a sentença recorrida é nula, por violação do disposto no artigo 668.º, n.º1, al. d), do CPC;

            C. Se se verificam os requisitos legalmente exigidos para que se reconheça à autora o direito de preferência que esta invocou, com a consequente procedência da acção e;

            D. E, em tal caso, se deve proceder o pedido reconvencional deduzido pelos réus contestantes.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. A autora é dona do prédio rústico composto de terreno de semeadura com fruteiras, sito no ... , com área de 1240 m2, a confrontar do nascente com E… e mulher, do poente com …. e outro, do norte com a estrada e do sul com o caminho, inscrito na matriz sob o art.º x... º da freguesia de Mosteiro de Fráguas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob o n.º 00 y... .

2. A autora adquiriu 1/3 do prédio referido em A) por herança de seus pais e 2/3 por compra que fez aos seus irmãos …. e …..

3. Por si e antepossuidores a autora, há mais de 30 anos, que lavra e freza o terreno referido em A), convicta que é coisa exclusivamente sua, ignorando lesar direitos de outrem, à vista de toda a gente, sem violência e interrupção.

4. A 1ª ré B…. e 2ºs réus C…. e mulher D…., foram donos, até 14/2/2006, do prédio rústico composto de terreno de semeadura com oliveiras, com área de 720 m2, sito no ... , freguesia de Mosteiro de Fráguas, concelho de Tondela, a confrontar do norte com a estrada, a nascente com o prédio referido em A), do sul com o caminho e do poente com a autora, inscrito na matriz sob o art.º z... º e descrito na Conservatória do Registo predial de Tondela sob o n.º w... .

5. Os 3ºs réus E…. e F… não são donos de nenhum prédio que confine com o prédio aludido em 4.

6. Em 14/2/2006, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Tondela, a 1ª e 2ºs réus venderam ao 3º réu o prédio referido em D), pelo preço de €1000,00, tendo estes aceitado a mesma, e procedido ao respectivo registo em seu nome.

7. A autora, por intermédio da sua advogada, escreveu aos 3ºs réus em 26/11/2008 para tentar solucionar a questão da demarcação mas em vão.

8. No local em questão os prédios confinantes a nascente com o prédio descrito em 4 são urbanos, com um pequeno quintal confinante, tendo este quintal uma área muito inferior à área do prédio referido em 1.

9. A autora depositou a quantia de € 1.339,57 para garantir o preço da venda e despesas, sendo estas tributárias no valor de € 50,00, notarias no valor de € 229,20 e registais no valor de € 60,37.

10. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Tondela, em 8/2/2006, …. declarou vender a E....  e  F...., pelo preço de € 35.000,00, o prédio urbano, sito em Fráguas, freguesia de Mosteiro de Fráguas, concelho de Tondela, inscrito na matriz sob o art.º 312, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob o n.º 760, tendo estes aceitado a mesma.

11. A 1ª e 2ºs réus não deram conhecimento à autora da intenção de procederem à venda do prédio descrito em 4.

12. A autora, em Novembro de 2008, quando visitou o prédio referido em 1, deparou-se com o facto de ter sido arrancado o marco divisório em granito, e que demarcava o seu prédio a nascente, fazendo parte integrante de um muro que existiu no local, e que hoje está em ruína, demarcando o terreno da autora a sul com o caminho, bem como o mesmo havia sido invadido, sem a sua autorização, por uns tubos de saneamento básico, aí colocados pela Câmara Municipal de Tondela.

13. A autora tomou conhecimento em 21/11/2008 de que o prédio referido em 4 havia sido vendido, apenas tomando conhecimento do teor da escritura em Janeiro de 2009 quando se deslocou ao Cartório Notarial de Tondela.

14. O prédio referido em 4 sempre foi considerado pela ante possuidora como releixo ou dependência da casa de habitação do prédio referido em 9, pese embora a sua separação física, tendo os 3ºs réus adquirido aquele para construção de arrumos e apoio à sua casa e para usufruírem da água que aí era explorada de um poço e derivada por meio de aqueduto para aquela.

15. Após a data referida em 10 os 3ºs réus iniciaram obras de remodelação e conservação da casa, e que ainda se encontram em curso, sendo sua intenção, no prédio referido em 4, edificar os necessários anexos, bem como proceder a obras de reexploração das águas com vista a um melhor aproveitamento das mesmas, pelo que não adquiriram este com vista a o explorarem agricolamente.

16. Os 3ºs réus há pelo menos 30 anos que, por si e antepossuidores, têm tirado todas as vantagens de que ele é susceptível, habitando, fazendo obras de conservação e beneficiação, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, como se de coisa própria se tratasse e na convicção de que não ofendiam direitos de terceiro.

17. No prédio referido em 4, em 1966, foi construído pelo seu dono um poço, cuja água foi derivada através de aqueduto para a casa do prédio aludido em 10, desenvolvendo-se desde o referido poço até à rua norte, atravessando esta no sentido sul/norte até atingir a casa que se desenvolve junto à respectiva rua a norte.

18. Há pelo menos 40 anos que, por si e antepossuidores, os 3ºs réus, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, como se de coisa própria se tratasse, e na convicção de que não ofendiam ninguém, têm vindo a captar, derivar e utilizar na referida casa toda a água que nasce no referido poço, cuja captação se faz através de uma bomba submersível existente no mesmo e cuja derivação é feita através de tubos visíveis e permanentes que se desenvolvem ao longo de todo o aqueduto.

19. Desde 1988 que, pela água aludida em 11º, passou a ser paga a respectiva taxa à Junta de Freguesia de Mosteiro de Fráguas.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos pontos 5.º, 6.º e 10.º a 13.º, da base instrutória.

Alega a recorrente que face aos depoimentos prestados pelos réus e pelas testemunhas (….), (…..), (…..), (….), (….), (….), (….) e (….), toda esta matéria deveria ter sido dada como não provada, o que requer ora seja assim considerado.

            Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s.).

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 712, n.º 1, al. a), do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

Vejamos, então, as respostas postas em causa pela ora recorrente, nas respectivas alegações de recurso.

Alteração das respostas dadas aos quesitos 5.º, 6.º e 10.º a 13.º, da base instrutória.

            Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tais quesitos:

“5º

O prédio referido em D) sempre foi considerado pela ante possuidora como releixo ou dependência da casa de habitação do prédio referido em J), pese embora a sua separação física, tendo os 3ºs réus adquirido aquele para construção de arrumos e apoio à sua casa e para usufruírem da água que aí era explorada de um poço e derivada por meio de aqueduto para aquela?

Após a data referida em J) os 3ºs réus iniciaram obras de remodelação e conservação da casa, e que ainda se encontram em curso, sendo sua intenção, no prédio referido em D), edificar os necessários anexos, bem como proceder a obras de reexploração das águas com vista a um melhor aproveitamento das mesmas, pelo que não adquiriram este com vista a o explorarem agricolamente?

10º

Os 3ºs réus há pelo menos 30 anos que, por si e antepossuidores, têm tirado todas as vantagens de que o prédio identificado na alínea J é susceptível, habitando-o, nele fazendo obras de conservação e beneficiação, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, como se de coisa própria se tratasse e na convicção de que não ofendiam direitos de terceiro?

11º

No prédio referido em D), em 1966, foi construído pelo seu dono um poço, cuja água foi derivada através de aqueduto para a casa do prédio aludido em J), desenvolvendo-se desde o referido poço até à rua norte, atravessando esta no sentido sul/norte até atingir a casa que se desenvolve junto à respectiva rua a norte?

12º

Há pelo menos 40 anos que, por si e antepossuidores, os 3ºs réus, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, como se de coisa própria se tratasse, e na convicção de que não ofendiam ninguém, têm vindo a captar, derivar e utilizar na referida casa toda a água que nasce no referido poço, cuja captação se faz através de uma bomba submersível existente no mesmo e cuja derivação é feita através de tubos visíveis e permanentes que se desenvolvem ao longo de todo o aqueduto?

13º

Desde 1988 que, pela água aludida em 11º, passou a ser paga a respectiva taxa àJunta de Freguesia de Mosteiro de Fráguas?”.

Como consta de fl.s 178 e 179, o M.m Juiz deu-lhes as seguintes respostas:

Quesitos 5, 6 e 10 a 13: “Provado”.

Motivou tais respostas da seguinte forma (cf. fl.s 179 a 181):

“Para julgar como provados os factos que antecedem o tribunal teve em conta o conjunto das provas produzidas em julgamento conjugadas com as regras da experiência comum e distribuição do ónus de prova, a saber:

No depoimento da testemunha (…), filho da antepossuidora do imóvel – (….) – que descreveu a forma como a sua mãe e avó foram usando o prédio descrito em D) tendo a sua mãe, a certa altura, adquirido o mesmo por pagamento do preço, sem que tenha sida feita a escritura pública do imóvel, relatando como foi aproveitada a água para a casa de habitação da mãe bem como o destino dado à terra, era para a horta da casa, que não possuía qualquer releixo e onde eram colocadas as lenhas que depois eram arrumadas para o aquecimento no Inverno.

Esta versão foi confirmada pelos réus B...C....D....E... e F..., as quais referiam por um lado a transmissão da propriedade descrita em D) à mãe da testemunha AD..., a existência de um motor para levar a água para a casa de habitação desta, a afectação sempre efectuada à casa, também para depósito de lenhas e serventia da casa.

Mais esclareceram que intervieram na escritura porque o terreno do ponto de vista matricial encontrava-se inscrito a favor do falecido marido e pai das dos dois primeiros réus, e que para evitar despesas extra com justificações notariais e registos acederam em celebrar directamente a escritura, sem que tenham recebido, no momento da escritura o preço, por o mesmo ter sido pago há muito pela antepossuidora do prédio – (….).

Tais depoimentos foram espontâneos e credíveis, consentâneos com os factos que foram passíveis de observar no local na inspecção realizada e consentâneos com as práticas e costumes locais das hortas junto às habitações, onde são cultivados os mimos para o uso diário da casa.

Quanto ao depoimento da testemunha (…) do mesmo resultou que o mesmo identificava o terreno como sendo da “Pardala” alcunha pela qual era conhecida (....) da AF..., sendo que só teve conhecimento em Novembro de 2008, e que a autora, à data residia no Porto desconhecendo as transmissões havidas, sem que tenha sido informada por quem quer que seja.

Todas as testemunhas foram unânimes em afirmar que, há mais do que 40 ou 60 anos, (…) e sua mãe, que era rendeira do terreno descrito em D), davam ao mesmo, sempre em produção agrícola de hortícolas, também denominados de renovos, depósitos de lenhas, água e local onde colocava os estrumes dos animais, que tinha nas lojas por baixo da casa.

Quanto ao depoimento da testemunha (…) o mesmo é apenas indirecto de ouvir dizer que à autora não foi comunicada a intenção de venda, e que só soube da venda com a questão do saneamento.

Quanto ao depoimento de (…), apenas pode atestar que em Novembro de 2008 teve a autora conhecimento da venda, mas apenas por ouvir a autora dizer e nada mais.

Quanto ao depoimento da testemunha (….), o mesmo limitou-se a dizer que a autora tinha intenção de comprar, mas desconhece se o havia manifestado aos possuidores do mesmo, mas sempre foi dizendo que o terreno descrito em D) sempre foi a o quintal da casa da (…).

Quanto ao depoimento de (…), a mesma sempre foi dizendo que pensava que o terreno era da D. (….), pessoa que via sempre por lá, confirmando as declarações da testemunha (…) e dos réus.

O mesmo foi confirmado pela testemunha (…), (…), (…),

Quanto ao momento do conhecimento da transmissão, relativamente aos pontos 9 e 10 da BI, apesar das testemunhas referiam que as questões surgirem que em momento anterior a autora teve conhecimento, certo é que não concretizaram o momento e que o momento possível de apurar foi o do dissídio por causa do tubos do saneamento.

Acresce que tal prova, da caducidade do direito de acção, cabe aos réus, que não lograram fazê-la de forma segura e na dúvida ter-se-á que declarar o facto em desfavor de quem tinha o ónus de prova – artigo 343, nº 2 do Código Civil.

Quanto ao ponto 3º, sabendo que os tubos de saneamento são propriedade das autarquias locais, não poderia ser decidido de outra forma.”.

Vejamos, então, se dos depoimentos testemunhais invocados pelos recorrentes (sendo que os demais produzidos não respeitam à matéria de facto aqui em causa) e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que as supra mencionadas respostas sejam modificadas ou alteradas.

Desde já adiantando a solução, somos de opinião que a prova foi bem apreciada pelo M.mo Juiz a quo nos moldes em que acima se transcreveram.

Efectivamente, as testemunhas disseram o que, em síntese, é referido Pelo M.mo Juiz a quo, aquando da fundamentação da decisão da matéria de facto.

A testemunha AD..., filho e neto das antepossuidoras do prédio rústico sobre o qual a autora pretende exercer o direito de preferência, descreveu o uso que lhe era dado, como tratando-se do “quintal da casa”, onde eram cultivados os “mimos” e de onde, a partir de certa altura, foi conduzida a água para habitação, através de um tubo que atravessa a estrada e que era tirada do poço por um motor eléctrico que a mãe ali colocou, construindo, para o efeito, uma “casota”.

Factualidade que foi confirmada pelos réus, ouvidos em depoimento de parte.

Também a testemunha N..., referiu a existência de um poço em tal terreno e respectiva finalidade, bem como que a (…) o usava como “o quintal da casa”, ali procedendo ao cultivo de produtos agrícolas.

Igualmente, a testemunha (....), se expressou no sentido de que o referido terreno “era a independência da (....), era ali que tinha tudo”.

O mesmo referiu (....), afirmando que a (....) ali arrumava lenhas para o Inverno e servia de apoio para a casa e para o cultivo dos mimos, bem como, também, confirmou o uso e aproveitamento das águas do poço existente em tal terreno.

Também a testemunha (....)alinha pelo mesmo diapasão, referindo que “a casa não é nada sem a terra e a terra não é nada sem a casa”, uma vez que a casa não tinha espaços envolventes (o que todas as demais testemunhas também referiram) e era ali que a (....) tinha os mimos e aproveitava as águas do poço.

Idêntico depoimento prestou a testemunha (....), acrescentando que a (....), também lá armazenava o estrume.

            Por (....)foi, também, referido que o terreno em causa era o “quintal da casa” e que a (....) arranjou o poço para o aproveitamento das águas que canalizou até casa, tudo há mais de 30 anos.

            Idêntico depoimento prestou a testemunha (....).

            Em face destes depoimentos e sem esquecer a realidade da vida no mundo rural, designadamente da região onde se localiza o terreno em causa, é natural que não tendo a casa de habitação espaço envolvente e situando-se o terreno em causa, praticamente, em frente da dita casa, apenas existindo a estrada entre a casa e o terreno, este fosse utilizado nos moldes que se deixam expostos.

            Efectivamente, por regra, nas aldeias, todas as pessoas têm um terreno, localizado perto da casa de habitação, onde gostam de ter os produtos mais utilizados, os designados “mimos” e aos quais podem aceder rapidamente, bem como guardam algumas lenhas e armazenam o estrume.

            Assim, é verosímil considerar que o terreno em causa fosse considerado como o quintal da casa de habitação, igualmente, transaccionada, o que mais se acentua se atentarmos no facto de a referida casa não ter logradouro e no mencionado terreno se encontrar um poço, do qual foi canalizada a água para a habitação, através de tubos que se encontram no solo, desde o poço e até à dita casa, sendo a água extraída de tal poço por um motor eléctrico, que se encontra “abrigado” dentro de uma pequena construção, vulgo “casota”.

Por tudo isto, cremos que as respostas de “provado” aos quesitos em causa, são as que melhor traduzem a realidade demonstrada, no que concerne à utilização que vem sendo dada ao terreno em causa, no período ora relevante, pelo que são de manter.

Assim, em nossa opinião, é acertada a apreciação que o M.mo Juiz a quo fez da matéria em referência, sem que se vislumbrem razões (bem pelo contrário) para que as respostas em causa sejam alteradas, designadamente no sentido propugnado pela recorrente, o que acarreta a improcedência do presente recurso, quanto a esta questão, em função do que se mantém a factualidade que foi dada como provada em 1.ª instância.

            B. Se a sentença recorrida é nula, por violação do disposto no artigo 668.º, n.º 1, al. d), do CPC.

            Alega a recorrente que assim é porque a sentença recorrida não se pronunciou quanto ao pedido reconvencional formulado pelos 3.os réus e ainda porque lhe denegou o direito de preferência a que se arroga, com o fundamento na existência de uma servidão de que beneficiam sobre a água do poço, o que estes réus não pediram lhes fosse reconhecido, nem tal servidão, mesmo a existir, afasta o reconhecimento do direito de preferência que pretende lhe seja reconhecido.

De acordo com o disposto no artigo 668, n.º 1, al. d), do CPC, é nula a sentença, quando:

o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

A nulidade em causa radica na omissão de pronúncia (não aprecia questões de que devia conhecer – 1.ª parte) ou no seu inverso, isto é, do conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, por não terem sido postas em causa (2.ª parte).

            Ora, no que concerne à não apreciação do pedido reconvencional deduzido pelos terceiros réus, nenhuma nulidade se cometeu, uma vez que, como consta de fl.s 65, o mesmo foi formulado a título subsidiário, ou seja, apenas para a hipótese de a acção vir a ser julgada procedente.

            Uma vez que esta improcedeu, ficou prejudicado o conhecimento e decisão de tal pedido reconvencional.

            Já no que respeita à questão de se ter decidido que o direito de preferência da autora cessa porque existe uma servidão real de aqueduto, para condução das águas provenientes do poço existente no prédio objecto da alegada preferência até à casa de habitação dos réus contestantes, se extravasou o petitório, uma vez que os réus não formulam tal pedido.

            Ao invés, como acima já se referiu, apenas e para a hipótese de procedência da acção, formularam os réus contestantes o pedido de lhes ser reconhecido o direito de propriedade sobre a água do poço e a reconhecer que sobre o aludido prédio se encontra constituída uma servidão de aqueduto.

            Para além da questão substantiva (só obsta à preferência, in casu, o preenchimento de qualquer das condições descritas no artigo 1381.º, CC e havendo pluralidade de preferentes ter-se-ia de lançar mão do disposto no artigo 1460.º, do CPC, se fosse esse o caso, em conjugação com o que se dispõe no artigo 1380.º, n.º 2, do CC), nesta parte, a sentença recorrida, apreciou questão de que não podia tomar conhecimento, em violação do disposto nos artigos 668.º, n.º 1, al. d) e 661.º, n.º 1, ambos do CPC, o que, nesta parte, acarreta a sua parcial nulidade e que, porém, não obsta a que, neste Tribunal, se conheça do direito de preferência que está na génese dos presentes autos, o que faremos de seguida.

            Consequentemente, quanto a esta questão, procede, parcialmente, o presente recurso.

           

C. Se se verificam os requisitos legalmente exigidos para que se reconheça à autora o direito de preferência que esta invocou, com a consequente procedência da acção.

            No que a esta questão respeita, alega a ora recorrente que tendo alegado e provado todos os requisitos para que lhe seja reconhecido o direito de preferência a que se arroga e não estando o mesmo afastado pela verificação de qualquer das circunstâncias descritas no artigo 1381.º do CC, deveria a presente acção ser julgada procedente, a tal não obstando o facto de sobre o prédio objecto da preferência incidir a alegada servidão de aqueduto, a qual, na sua óptica, apenas constituiria um ónus ou encargo sobre o referido prédio, mas sem que afaste a preferência.

Como já aflorámos, na sentença recorrida, considerou-se estarem verificados os requisitos constantes do artigo 1380.º CC, para que à autora fosse reconhecido o invocado direito de preferência, o qual, a final, não se lhe veio a conceder, porque estando constituída uma servidão de águas sobre o prédio objecto da preferência, esta é fonte de preferência na aquisição dos prédios e, por isso, foi a acção julgada improcedente.

Tal como acima já referido, os réus contestantes não formularam qualquer pedido no sentido de lhes ser reconhecido o direito de preferência com base na existência da aludida servidão, mas apenas e tão só, para o caso de a acção vir a proceder, em reconvenção, pediram que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a água do poço e que se encontra constituída uma servidão de aqueduto com vista à derivação de tal água para a sua casa.

Assim, não cumpre aferir da atribuição do direito de preferência, com base em tal fundamento e, como, igualmente acima já dito, a verificar-se uma pluralidade de beneficiários da preferência, então, nos termos aí relatados, seria necessária a convocação de todos eles a fim de decidir a qual deles seria de atribuir tal direito.

Pelo que, não se sufraga a fundamentação seguida na sentença recorrida, havendo que “ler” o direito, em consonância com os factos alegados pelas partes e na medida que vieram a provar-se, respeitando a causa de pedir e pedidos formulados, tal como resulta do artigo 664.º CPC.

Ora, como resulta da leitura da contestação (e subsequente base instrutória, redigida no seguimento daquela), os réus contestantes, visam afastar o direito de preferência a que se arroga a autora, com base em dois argumentos, assentando o primeiro na circunstância de o prédio objecto da invocada preferência sempre ter sido considerado como “releixo” ou dependência da casa, isto é, sua parte componente e o segundo, porque o adquiriram não para o destinarem à exploração agrícola mas sim para nele construírem anexos para arrumos e apoios à sua casa.

Efectivamente, conforme disposto no artigo 1381.º, al. a), do Código Civil, o direito de preferência concedido aos proprietários de prédios confinantes, nos termos e condições fixadas no artigo 1380.º do mesmo Código, cessa no caso de algum dos terrenos constituir parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura.

A concessão do direito de preferência nos termos previstos neste preceito, tem como finalidade obter o emparcelamento de pequenas parcelas rústicas, com as vantagens que daí se crer advirem, desiderato que cessa no caso de o terreno a emparcelar (através da preferência) não se destinar à cultura ou exploração agrícola, razão pela qual, em tais casos, não se justifica a manutenção do ónus da sujeição ao direito de preferência, em caso de alienação do prédio a ele sujeito.

Pelo que, então, importa, averiguar, em face dos factos provados, se se verificam ou não as razões invocadas pelos réus contestantes para que, nos termos do artigo 1381.º, al. a), do CC, não seja de conceder à autora o direito de preferência a que esta se arroga.

Um de tais argumentos, como vimos, é o de que destinam o prédio em causa à construção de anexos para arrumos e apoio à sua casa de habitação.

O certo é que em face da resposta de “não provado” que mereceu o quesito 7.º da base instrutória (em que se perguntava se o prédio referido em D) é edificável), não se demonstrou ser ali possível proceder qualquer construção ou edificação, não bastando a intenção de o destinar a tal fim, sendo, ainda, necessário, provar que é possível construir, o que os réus contestantes não lograram demonstrar, sendo a eles que o incumbia fazer, por se tratar de facto impeditivo do direito invocado pelos autores, cf. artigo 342.º, n.º 2 do CC.

            Em face dos factos dados por provados, não existem dúvidas de que a autora goza do direito de preferência, por força da confinância dos prédios em causa (o que os recorrentes também não colocam em crise, apenas tentando paralisá-lo, com a alegação de circunstâncias que o façam cessar – intenção de nele construir e que faz parte componente da sua casa de habitação).

            Mas será que basta esta intenção (de nele construir) para afastar a preferência invocada pela autora?

Conforme disposto no artigo 1381.º, alínea a) do CC:

“Não gozam do direito de preferência os proprietários dos terrenos confinantes:

a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura”.

Um dos casos em que o prédio se destina a um fim diverso da cultura é, manifestamente, o de o mesmo se destinar à construção urbana.

Está provado que esse era um dos fins queridos pelos ora recorrentes para o prédio que compraram – cf. itens 14 e 15 dos factos provados.

No entanto, como se refere no Acórdão da Relação do Porto, de 23/10/2006, Processo 0655486, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp “... esta intenção (de construir) não pode ser meramente platónica, devendo existir uma possibilidade real desse destino diferente da cultura do prédio verificar-se” e no qual se citam, no mesmo sentido, inúmeros Arestos e Doutrina.

Também o STJ, cf. Acórdãos de 20/04/2004, Processo 04A844 e de 04/10/2007, Processo 07B2739, ambos disponíveis no respectivo site da dgsi, defendem tal tese, declarando-se no primeiro que “O que interessa estar apurado é que os fins da aquisição sejam viável e lícito … Os Réus teriam que ter provado que a sua intenção era legalmente admissível e não é.”. 

            E no segundo destes Arestos que: “o adquirente tem ainda de provar, …, que nada se opõe a que se concretize a sua intenção de dar ao prédio uma outra afectação ou um outro destino, e que, portanto, essa projectada mudança de destino é legalmente possível, é permitida por lei.”.

            Sem pretender ser exaustivo (até face à numerosa jurisprudência que existe sobre esta matéria), indica-se, ainda, em abono desta tese, o Acórdão desta Relação, de 4/11/2088, in CJ, Ano XXXII, tomo 5, pág.s 5 a 9.

            Ora, conforme resposta negativa ao quesito 7.º, os réus, ora recorrentes, não demonstraram, como lhes competia, que o prédio é edificável, que o mesmo é susceptível de ser destinado a edificação.

            Ora, não estando demonstrado que o prédio em questão pode ser destinado a construção, não lograram os réus, ora recorrentes, demonstrar a existência desta excepção ao direito de preferência baseado na confinância de prédios, prevista no artigo 1381,º, al. a) do CC, factualidade esta que, por constituir matéria de excepção, a estes incumbia demonstrar – cf. artigo 342.º, n.º 2 do CC.

            Resta, assim, averiguar da segunda excepção alegada por estes réus, ou seja a de que o prédio em causa constitui parte componente da sua casa de habitação.

            No que a tal releva, demonstrou-se, cf. itens 14 e 15 e 17 e 18, dos factos provados, que o referido prédio sempre foi considerado pela antepossuidora como releixo ou dependência da casa de habitação e dele derivam as águas provenientes de um poço nele existente para uso na dita habitação.

            De acordo com o disposto no artigo 204.º, n.º 2 do CC:

“Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.”.       

            Como ensinam P. de Lima e A. Varela, in Código Civil, Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág. 196: “Em conformidade com o critério legal (…) não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos, como os jardins, pátios ou quintais. Ao logradouro deve ser atribuída a mesma natureza do edifício a que está ligado, designadamente para efeito de determinação do seu valor, em caso de expropriação de utilidade pública, e para efeito de averiguar se, em caso de alienação, se verificam os pressupostos do exercício de algum dos direitos de preferência previstos na lei” (sublinhado nosso).

            Daqui decorre, pois, que o referido artigo 204.º não conhece o conceito de prédio misto, apenas definindo o que se deve entender por prédio rústico ou urbano, a qual “assenta, assim, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica”, como se refere no Acórdão do STJ, de 03/11/2011, Processo n.º 7712/05.0TBBRG.G2.S1, disponível no respectivo sitio da dgsi.

            E no qual, se acrescenta, tendo por base tal asserção que “um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício, com o qual constitui uma unidade predial.”.

            Também no Parecer do Conselho Técnico dos Registos e Notariado, in Boletim dos Registos e Notariado, n.º 9/2002, de Outubro de 2002, a pág.s 13 e 14 se expressa a ideia de que o logradouro deve ser entendido, no sentido comum, como “Terreno contíguo a uma habitação para serventia” ou “eido anexo a uma casa”, “espaço contíguo ou anexo a uma casa que serve para diversos fins.” e onde se cita, em abono de tal definição, alguma jurisprudência.

            E no mesmo se conclui que o logradouro será “um terreno contíguo ao prédio – enquanto “casa” ou edifício construído – e que lhe é complementar, servindo-lhe de jardim, quintal, pátio, zona de lazer e similares, e que, formando com ele uma unidade, tem a mesma natureza urbana do prédio edificado”.

            Também José Alberto Vieira, in Direitos Reais, Coimbra Editora, a pág. 163, considera que o logradouro é a parte adjacente ao edifício que serve de apoio a este para pátio, jardim, parque de estacionamento ou outro fim.

            Ou seja, resulta que a al. a) do artigo 1381.º do CC, para efeitos de obstar ao direito de preferência com base na confinância de prédios, quando se refere aos terrenos que constituem parte componente de um prédio urbano, tem subjacente a ideia de que se trata de terrenos que sejam contíguos fisicamente aos edifícios incorporados no solo.

Não se atende a um “critério funcional” de “parte componente”, mas sim a um critério “material ou físico”, no sentido de que a parte componente implica contiguidade física e idêntica natrureza.

            No prédio objecto da preferência inexistem quaisquer construções (pelo que não se coloca a questão de determinar a sua natureza), mas o facto é que sempre foi usado e considerado como “releixo” ou dependência da casa de habitação ora pertencente aos recorrentes, pese embora a sua separação física e de onde foram derivadas as águas de um poço para utilização na referida casa de habitação.

            Em face de tal factualidade e atenta, ainda, a sua área, estamos em crer que o terreno referido em D), só à luz de um critério exclusivamente funcional, poderia ser considerado como constituindo um verdadeiro logradouro da casa de habitação a que, nas últimas décadas, tem estado ligado, mais não se podendo considerar como que um espaço complementar e serventuário de tal casa de habitação.

            No entanto, como vimos, não é este o critério a que a lei manda atender em tais casos, mas sim um critério material ou físico – contiguidade física entre a “parte componente” e o prédio urbano a que se encontra ligado, o que pressupõe, igualmente, que tenham idêntica natureza.

            Como se refere no Acórdão do STJ, de 06/07/1993, in BMJ 429 – w... “… o logradouro sendo basicamente, terreno, não é edifício; juridicamente, faz parte da unidade predial mas, fisicamente, tem diferença e autonomia; serve o edifício, ou seja, é complementar e serventuário do edifício.”.

            Logradouro que, por via de regra, abrange ou pode abranger o terreno adjacente à casa, com carácter de quintal, pátio ou jardim, na dependência da moradia e que serve de aproveitamento ou suporte às necessidades ocasionais ou permanentes dos donos da casa (ou de quem, com autorização destes, a utiliza).

            Ora, no caso em apreço, o terreno e a casa encontram-se divididos pela estrada e se é certo é que se localizam próximo um do outro e o terreno tem servido, tem sido fruído, na e como dependência da casa, o que mais se acentua devido ao facto de a água nesta utilizada ser proveniente de um poço existente no terreno, nas condições e circunstâncias melhor descritas nos itens 17 e 18, dos factos provados, menos certo não é que não se verifica a aludida contiguidade física nem têm idêntica natureza, já que o terreno constitui um prédio rústico ao passo que a habitação tem natureza urbana.

            Ou seja, embora se verifique uma complementaridade no uso do terreno objecto do direito de preferência relativamente à casa de habitação dos réus, o certo é que não se pode considerar que este constitui o logradouro da casa de habitação, dada a sua descontinuidade e diferente natureza, nos moldes atrás expostos.

            Assim, não se pode considerar como verificada a excepção tipificada na 1.ª parte da alínea a) do artigo 1381.º do CC e, consequentemente, nada obsta a que seja concedido à autora o direito de preferência a que esta se arroga, o que acarreta a procedência da acção, por via da procedência do presente recurso.

Pelo que, quanto a esta questão, procede o recurso.

D. Se deve proceder o pedido reconvencional deduzido pelos réus contestantes.

Como acima já referido, para a hipótese de procedência da acção, a título de reconvenção, pretendem tais réus que a autora seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a água do poço existente no prédio objecto da presente acção e bem assim condenada a reconhecer que sobre o mesmo prédio e no modo e forma alegados nos artigos 46.º e 47.º da contestação, se encontra constituída uma servidão de aqueduto com vista à derivação de tal água para a sua casa.

           

            No que a esta questão respeita, poderíamos ser levados a pensar que tendo o recurso sido apenas interposto pela autora, sem que os réus tenham requerido a ampliação do recurso, nos termos previstos no artigo 684.º-A, do CPC, não se poderia conhecer de tal questão.

            No entanto, assim não é, dado que esta questão não foi apreciada na sentença recorrida por prejudicada pela declaração de improcedência da acção, não se podendo falar em decaimento, sendo de aplicar o disposto no artigo 715.º, n.º 2, CPC, segundo o qual deve a Relação apreciar os pedidos que, por tal motivo, não foram apreciados em 1.ª instância – neste sentido se pronunciam Abrantes Geraldes, in Recursos Em Processo Civil Novo Regime, Reimpressão, Almedina, 2008, a pág. 99 e Lebre de Freitas e A. Ribeiro Mendes, in CPC, Anotado, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, a pág. 36.

            Assim, passamos a apreciar o pedido reconvencional formulado.

            Conforme consta dos itens 17 e 18 dos factos provados, em 1966, foi construído um poço no prédio objecto da preferência, cuja água foi derivada através de aqueduto para a casa ora dos réus contestantes, como melhor ali descrito, sendo que há, pelo menos, 40 anos, que por si e antepossuidores, os 3.os réus, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, como se de coisa própria se tratasse, e na convicção de que não ofendiam ninguém, têm vindo a captar, derivar e utilizar na referida casa toda a água que nasce no referido poço, cuja captação se faz através de uma bomba submersível existente no mesmo e cuja derivação é feita através de tubos visíveis e permanentes que se desenvolvem ao longo de todo o aqueduto.

            A usucapião mais não é do que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, desde que se revista de determinadas características e durante certo período temporal – cf. artigo 1287.º CC.

            Por seu turno, a posse, nos termos do artigo 1251.º do mesmo Código é o poder que se manifesta (exercício de poderes de facto) sobre uma coisa, em termos equivalentes ao direito de propriedade ou de outro direito real, traduzindo-se no corpus: elemento material, que mais não é do que a assunção de poderes de facto sobre a coisa e no animus: o exercício de tais poderes de facto como titular do respectivo direito de propriedade ou a outro direito real.

            Como é sabido, o nosso Código Civil, consagrou uma concepção subjectiva da posse, no sentido de que não basta o exercício de poderes de facto, de dominialidade sobre a coisa, exige-se, também, a intenção de os exercer pela forma correspondente à do direito real invocado.

            A usucapião traduz-se numa forma originária de aquisição do direito, ou seja, em que o titular recebe o seu direito independentemente do direito do anterior titular, pelo que para a mesma poder ser eficaz necessário se torna avaliar se existem actos de posse e se os mesmos foram exercidos em moldes conducentes à aquisição do direito, isto é com a intenção de corresponder ao direito real invocado, in casu, o direito de propriedade sobre as águas que nascem no poço e servidão de aqueduto para aproveitamento das ditas águas na casa de habitação, durante um certo lapso de tempo e com determinadas características.

            No que às características da posse tange, de acordo com o disposto nos artigos 1258.º a 1262.º, pode a mesma ser titulada/não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, o que tem relevância para a quantificação do prazo reputado de suficiente para que se verifique a usucapião – cf. artigos 1294.º a 1296.º, CC, sendo que o prazo para que a usucapião se possa iniciar não se conta enquanto permanecer uma situação de posse violenta ou tomada ocultamente – cf. artigo 1297.º CC.

            Traçado este quadro teórico, vejamos, então, se em face dos factos alegados e demonstrados se pode concluir que os réus reconvintes adquiriram o invocado direito de propriedade sobre as águas que nascem no referido poço e se se constituiu a alegada servidão de aqueduto, conforme por eles alegado, através da usucapião.

            Ora, compulsados estes, é manifesto que assim sucede.

            Efectivamente, provou-se que estes réus, por si e antepossuidores, conforme factos descritos nos itens 17 e 18, usaram e fruíram de tal água, nos moldes ali melhor descritos, fazendo-a derivar para a dita casa, através de tubagem, praticando os descritos actos de posse ali melhor referidos, à vista de toda a gente, incluindo a autora, na convicção de não lesarem direitos de outrem, ininterruptamente e sem oposição de ninguém e de exercerem o direito a tal correspondente.

            De tais factos resultam os poderes de facto referentes ao invocado direito de propriedade sobre as águas e exercício de tal servidão, ou seja, posse: exercício de tais poderes de facto, de forma continuada e reiterada e o animus: fizeram-no, com a intenção de que não lesavam direitos de outrem, ao invés, na convicção de exercerem um direito próprio, o de propriedade sobre as referidas águas e respectivo uso/derivação para a casa onde residem.

Também o decurso do tempo legalmente exigido, se encontra verificado, uma vez que tais factos e com a intenção do exercício do direito de propriedade e servidão, se vêm processando há mais de 20 anos (pelo menos, 40 anos), pelo que independentemente das características da posse invocada, sempre o direito de constituição do invocado direito de propriedade e servidão já se acham verificados – cf. artigos 1294.º a 1296.º do Código Civil.

            Sendo de acrescentar que, relativamente às águas, se prevê, expressamente, como justo título da sua aquisição a usucapião – cf. artigos 1395.º, n.º 1, 1390.º, n.º 1 e 1316.º, todos do CC.

No que concerne à questão da constituição da invocada servidão, há que ter, ainda, em linha de conta que, conforme artigos 1293.º, al. a) e 1548.º, ambos do Código Civil, não podem ser constituídas por usucapião as servidões não aparentes, considerando-se como tais as que não se revelam por sinais visíveis e permanentes.

Como referem P. de Lima e A. Varela, Código Civil, Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista E Actualizada (Reimpressão), a pág. 630, exige-se que a constituição da servidão se revele por sinais visíveis e permanentes, no sentido de que não se trata de qualquer acto clandestino (no sentido de não conhecido) e que se trata de um encargo estável e duradouro e não de qualquer acto praticado a título precário.

No mesmo sentido, Mário Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, Vol. II, Coimbra Editora, 1990, a pág. 165, que ali refere que a aparência das servidões reside na existência de sinais visíveis e permanentes, devendo entender-se por sinal tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente os indícios que revelam a existência de obras destinadas a facilitar ou tornar possível a servidão, devendo ter a natureza de visíveis e permanentes e que sejam inequívocos para revelarem a existência do ónus, apresentando como um de tais sinais a existência de bocas de entrada ou saída de água.

Por outro lado, referem ambos estes autores (pág.s 630 e 631 e 166, respectivamente) que não é necessário que toda a obra ou todos os sinais estejam à vista, bastando que esteja visível uma parte apenas da obra ou do sinal, desde que suficiente para revelar aos olhos do observador o exercício da servidão, para revelar, de forma inequívoca, a existência do ónus.

Por último, de referir o disposto no artigo 1390, n.º 2, do CC, de acordo com o qual, só é de atender a usucapião quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio, no caso de aquisição da água das fontes e nascentes.

Ora, conforme a factualidade dada por provada e descrita nos itens 17 e 18 dos factos provados, a condução das águas é feita desde o poço situado no prédio objecto da preferência, através de tubos visíveis e permanentes que se desenvolvem ao longo de todo o aqueduto e é colhida no poço através de uma bomba submersível para tal ali colocada.

Assim sendo, é óbvio que se trata de servidão aparente, já que se revela por sinais visíveis e permanentes e, como tal, passível de constituição através da usucapião, uma vez que os ora aludidos sinais, fora de toda a dúvida razoável, revelam a existência da alegada servidão de águas.

Por outro lado, a alegada desnecessidade dos réus contestantes relativamente a tais águas por disporem de rede pública de águas, também só relevaria para a constituição de uma servidão, o que não é o caso, pois que o que se trata é

 da sua declaração de constituição com base na usucapião, o que pressupõe a prática reiterada dos actos a tal conducentes.

Concluindo, estão demonstrados todos os factos e requisitos para que seja declarado procedente o pedido reconvencional em apreço.

Consequentemente, tem de proceder esta questão do recurso.

            Nestes termos se decide:       

Julgar procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, a qual se substitui por outra que:

- reconhece a autora como legítima proprietária do artigo rústico x... .º da freguesia de Mosteiro de Fráguas;

- se reconhece à autora o direito de haver para si o prédio rústico vendido, inscrito na matriz sob o artigo z... .º, da freguesia de Mosteiro de Fráguas e;

- se reconhece o direito à autora de substituir os 3.os réus adquirentes, na citada escritura de 14 de Fevereiro de 2006, na titularidade e posse do aludido prédio rústico z... .º, posição que esta ocupará, mediante o pagamento do preço e despesas da escritura, IMT e registo.

Igualmente se julga procedente por provado o pedido reconvencional deduzido pelos réus contestantes e, consequentemente, condena-se a autora, ora reconvinda, a reconhecer o direito de propriedade dos réus contestantes sobre a água do poço existente no prédio objecto da presente acção e bem assim a reconhecer que sobre o mesmo prédio e no modo e forma alegados nos artigos 46.º e 47.º da contestação, se encontra constituída uma servidão de aqueduto com vista à derivação de tal água para casa de tais réus.

Custas da acção, a suportar pelos réus, em partes iguais e as da reconvenção pela autora, em ambas as instâncias.

           

Arlindo Oliveira (Relator)

Emídio Francisco Santos

Catarina Gonçalves