Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/17.T9CNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
SUSPENSÃO DO PROCESSO PENAL TRIBUTÁRIO
Data do Acordão: 02/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 47.º E 107.º DO RGIT
Sumário: I – A suspensão do processo penal tributário, prevista no artigo 47.º do RGIT, fundada na pendência de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, só se justifica nos casos em que a existência de infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal.

II – Tal não acontece quando o oponente fundamenta a impugnação judicial no facto de os montantes em dívida à Segurança Social terem sido, entretanto, pagos, sem que haja indicado o momento da invocada verificação desse pagamento.

Decisão Texto Integral:









Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

A arguida C. S.G.P.S., S.A. veio interpor recurso do despacho, proferido em 24-9-2020, que indeferiu a suspensão dos presentes autos, requerida ao abrigo do disposto no artigo 47º, n.º 1, do RGIT.


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E, da motivação extraíram as seguintes conclusões:

1. Nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do Regime Geral para as Infracções Tributárias, se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o processo penal suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.

2. Assim, entende a recorrente, salvo o devido respeito por opinião contrária, que é sempre muito, que uma vez verificada a situação objectiva referida na previsão da norma, ou seja, se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário - deve ser declarada a suspensão do processo penal fiscal.

3. Donde resulta que a declaração de suspensão do processo penal, nas circunstâncias previstas no artigo 47.º, n.º 1, do referido RGIT, não é uma faculdade e não depende de critérios de oportunidade nem de análise dos pressupostos da impugnação judicial feitos pelo tribunal penal, sendo antes o reconhecimento da verificação de uma situação objectiva à qual a lei atribui efeitos no processado. É um efeito ope legis.

4. Acresce ainda que o estabelecido no RGIT, enquanto norma especial, prevalece sobre as normas do Código de Processo Penal, nomeadamente sobre o disposto no artigo 7.º n.º 2 do CPP. Assim, a suspensão do processo não está na dependência da decisão do juiz do processo penal tributário.

5. A paralisação do processo penal tributário é uma consequência da verificação da situação objectiva que fundamenta e determina a suspensão do processo.

6. Assim, estando a correr impugnação judicial, ou oposição à execução, deveria o juiz do processo determinar a suspensão do mesmo e não determinar que o processo prossiga. Pois está obrigado a suspender o processo por efeito da lei.

7. Até porque não há lugar à aplicação do disposto no artigo 7.º do CPP no processo penal tributário. Pois a norma ínsita no n.º 1 do artigo 47.º do RGIT, não sujeita a suspensão a qualquer limite, a não ser o do trânsito em julgado das sentenças a proferir na impugnação judicial, ou na execução.

8. Acresce que o não cumprimento desse preceito legal faz o Estado português incorrer em responsabilidade civil extracontratual e levará à sua condenação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sendo ainda factor de descredibilização da justiça e do Estado português.

9. Com efeito, os autos foram instaurados por haver suspeita da prática de crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada, por força dos artigos 7.º n.º 1 e 107.º n.º 1, todos do RGIT, bem como pelo art.º 11.º e 30.º n.º 2, ambos do Código Penal.

10. Porém, a sociedade arguida, ora recorrente, impugnou judicialmente os factos que constituem objecto do presente processo.

11. Ora, encontrando-se tal impugnação ainda no Tribunal Administrativo e Fiscal, o despacho proferido que determina a não suspensão do processo penal fiscal ao abrigo do estatuído no artigo 47.º, n.º 1, do RGIT, impedindo os autos de aguardar a prolação e trânsito de decisões judiciais no âmbito da referida impugnação, é manifestamente ilegal.

12. O efeito da suspensão do processo penal tributário decorre do teor do artigo 47.º, n.º 1, do RGIT, pelo que não vale aqui o princípio da suficiência da acção penal consagrado no artigo 7.º do Código de Processo Penal.

13. E decorre igualmente da citada disposição legal que a suspensão do processo penal fiscal prolonga-se até ao trânsito em julgado das decisões da impugnação judicial ou da oposição a execução.

14. Pois a paralisação do processo até o trânsito em julgado da sentença proferida no processo de impugnação judicial é uma consequência da verificação da situação objectiva que fundamenta e determina a suspensão do processo.

15. O regime especial, previsto no art.º 47.º n.º 1, concretiza, na legislação ordinária, o preceito constitucional, ínsito no art.º 212.º, n.º 3, da Constituição, que comete à jurisdição administrativa e fiscal a dirimição dos litígios incidentes sobre relações jurídicas administrativas e fiscais - incluindo os casos em que estes se configuram como "prejudiciais" relativamente à matéria sobre que versa o processo criminal, necessariamente da competência dos tribunais judiciais.

16. Determinar a continuidade do processo penal tributário, nos termos em que o tribunal a quo o fez, é violador das normas constitucionais.

17. O regime previsto no processo penal comum acerca da verificação da existência de uma questão prejudicial – e, portanto, também de uma questão prejudicial de natureza administrativa ou fiscal – não determina a suspensão obrigatória do processo, tudo como determina o n.º 2 do artigo 7.º do CPP.

18. O tribunal poderá suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente. Já a suspensão do processo penal tributário, nos casos previstos no artigo 47.º, n.º 1, do RGIT, é obrigatória.

19. Esta especial norma tributária resulta de se pretender o conhecimento dos crimes tributários (cf. artigos 35.º e seguintes do RGIT), pelo que nele importa, desde logo, esclarecer se houve infracção de certas normas de natureza tributária (cf. o artigo 1.º do RGIT), o que constitui questão fiscal.

20. E as questões prejudiciais de natureza fiscal são, por definição, questões cuja resolução se revela necessária para a definição criminal da questão principal - mas é quase inconcebível que num processo penal tributário não seja imprescindível resolver questões de natureza fiscal a ponto de a distinção entre questão principal e questão prejudicial fiscal se chegar mesmo a esbater.

21. Assim, é compreensível que, no processo penal tributário, não tenha o legislador pretendido atribuir ao juiz a faculdade de optar ou não pela suspensão do processo nos casos a que alude o artigo 47.º n.º 1 do RGIT. Porém, apenas aplicando na norma ordinária, o preceito constitucional previsto no artigo 212.º n.º 3 da Constituição.

22. E nos termos desta norma constitucional, compete aos tribunais administrativos e fiscal o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergente das relações jurídicas administrativas e fiscais.

23. Dizendo-o de outro modo, não compete ao juiz do processo penal tributário determinar quando suspende ou não o processo, usando de critérios mais ou menos seguros, nem sempre convergentes, e com cálculos de conveniência, nomeadamente a contagem de prazos de prescrição.

24. Assim justifica-se plenamente que quando surjam questões prejudiciais de natureza administrativa ou fiscal não valha o princípio da suficiência consagrado no artigo 7.º do Código de Processo Penal.

25. E não se invoque sequer que a suspensão do processo para a resolução da questão prejudicial poderá retardar o processo penal tributário.

26. Porque pela competência especial - e, por isso, preparação especial - para o julgamento de questões administrativas e fiscais, a suspensão do processo principal até ao trânsito em julgado da decisão da questão prejudicial e o cometimento da decisão desta questão ao tribunal especialmente competente pode até significar o meio mais célere de resolver a questão prejudicial e, por esta via, o meio mais célere de resolver a questão principal.

27. Não obstante o nosso entendimento de que o regime excepcional do art.º 47.º do RGIT se aplica ope legis sem necessitar de despacho judicial a validá-lo, certo é que o tribunal a quo entendeu que não se aplica tal regime ao presente processo.

28. Alegando para tanto que para que a impugnação pudesse relevar para a qualificação criminal dos factos imputados, a arguida teria que fundamentar a sua impugnação na alegação de que os pagamentos à Segurança Social teriam ocorrido dentro dos prazos legais, o que, a suceder, comprovaria que a sua conduta não integraria a prática de ilícito criminal, o que não fez.

29. Concluindo, que não se verifica a prejudicialidade das questões discutidas na impugnação judicial e, consequentemente, não é suscetível de condicionar a qualificação jurídico-criminal dos factos que se encontram no julgamento.

30. Ora, se as quantias em causa estão ou não pagas e em que data foram pagas e se foram pagas dentro dos prazos devidos é uma questão prejudicial.

31. Questão que deve ser dirimida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal.

32. Implicando a suspensão dos presentes autos.

33. A recorrente apresentou impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, nos termos em que no Desenvolvimento se apresentaram.

34. Ficando assim demonstrado que os factos discutidos na impugnação judicial são prejudiciais à decisão criminal.

35. Ao contrário do que afirmou o tribunal a quo estas são questões prejudiciais susceptíveis de condicionar a qualificação jurídico-criminal dos factos que se encontram sob julgamento.

36. Pois a questão de saber se os montantes estão pagos e se foram pagos no prazo devido é assunto jurídico cuja definição cabe ao tribunal administrativo e fiscal e com total relevância para a decisão penal.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado, sendo reconhecido que o presente processo deve ficar suspenso nos termos do art.º 47.º n.º 1 do RGIT, pois apenas desse modo se fará JUSTIÇA.


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Ao recurso da arguida respondeu a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e, confirmado o  despacho recorrido, porquanto considera “não estar em causa a qualificação criminal dos factos imputados, atendendo a que, além do mais, a arguida, em momento algum da impugnação apresentada refere que os montantes em dívida ao ISS foram liquidados nos prazos legais (o que a acontecer comprovaria que a sua conduta efectivamente não integraria a prática de ilícito)”.
Nesta instância, o Exmº Procurador da República emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida resposta.
Os autos tiveram os vistos legais.
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II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):

Nos presentes autos, os arguidos “C. SGPS, S.A.”, V. e J., encontram-se acusados da prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artºs 6º, 7º e 107º, nº 1, por referência ao artº 105º, nº 1, todos do RGIT, por factos referentes a contribuições retidas e não entregues no período compreendido entre Julho de 2012 e Julho de 2015.

Nas vésperas da data designada para realização da audiência de julgamento, veio a arguida “C. SGPS, S.A.” solicitar a suspensão do presente processo, nos termos do artº 47º, nº 1 do RGIT, porquanto deduziu impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, onde se discutem os factos que estão em causa no presente processo, pelo que deverá ficar suspenso até ao trânsito em julgado da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal. Para suportar o requerido juntou aos autos cópia do requerimento de impugnação judicial.

A Digna Magistrada do Ministério Público, pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido, porquanto na impugnação apresentada não está em causa a qualificação criminal dos factos imputados aos arguidos, pois a arguida em momento algum refere que os montantes foram liquidados dentro dos prazos legais.

Os arguidos V. e J. nada disseram.

No caso dos autos, os arguidos encontram-se acusados da prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, por factos referentes a contribuições retidas e não entregues no período compreendido entre Julho de 2012 e Julho de 2015.

Compulsado o documento junto pela arguida, verificamos que o fundamento da impugnação radica no facto de os montantes em causa estarem já liquidados, pelo que não subsiste a prática de qualquer crime, não indicando, no entanto, em que momento foram pagos tais montantes.

Consta, no entanto, dos autos que os montantes a que se reporta a acusação deduzida foram pagos, uma parte no âmbito de um plano de pagamento prestacional acordado no ano de 2017 (PP nº 733/2017), tendo o montante em dívida à data da dedução da acusação e na mesma mencionado, sido pago no dia 14/02/2020.

O artº 7º, do Cód. Processo Penal, consagra o princípio da suficiência do processo penal, segundo o qual nele devem ser resolvidas todas as questões relevantes para o conhecimento do seu objeto.

Em manifesto desvio a tal princípio, estabelece o artigo 47.º, n.º 1, do RGIT: “Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças”.

Da mera leitura do texto desta disposição resulta que tal suspensão não é automática, na medida em que não basta a pendência de impugnação judicial tributária ou oposição à execução fiscal para a determinar, sendo concomitantemente necessário que, naquelas lides, “se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados”. Aliás, este segmento do preceito, que não constava da sua redação original, foi nele introduzido pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, precisamente com intenção de o clarificar definitivamente nesse aspeto.

A suspensão do processo penal tributário só será pois obrigatória quando a questão em discussão na impugnação judicial/oposição à execução se apresente como uma verdadeira questão prejudicial no processo penal em curso, nos termos do preceituado pelo n.º 2, do artigo 7º, do Código de Processo Penal, ou seja, quando a decisão dessa questão (prejudicial) seja absolutamente indispensável para a decisão do crime fiscal ou tributário (questão prejudicada), relativamente à qual se assume como um verdadeiro “antecedente jurídico-concreto”, de caráter autónomo.

A este propósito, Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos explicam que “… neste artigo 47.º do RGIT tem-se por assente que as questões que são objecto de apreciação no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução, nos termos do CPPT, constituem questões não penais que não podem ser convenientemente resolvidas no processo penal. Naturalmente que a suspensão só se justificará nos casos em que a existência de infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal … Infere-se do regime previsto neste artigo que existe uma opção legislativa no sentido da primazia da jurisdição fiscal para apreciação de questões tributárias, o que tem plena justificação no carácter especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a uma jurisdição especializada e não à jurisdição comum, em que se inserem os tribunais criminais.” - In Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, 3.ª edição, Áreas Editora, 2008, pág. 400 e segs..

O certo é que, uma vez verificados os pressupostos do artigo 47.º, n.º 1 do RGIT, a suspensão do processo penal é decretada ope legis e até ao trânsito em julgado da decisão da questão prejudicial pela jurisdição tributária, o que consubstancia um regime especial relativamente ao que, em geral, a lei processual penal prevê para os casos de prejudicialidade de questões não penais em processo penal, em que a suspensão é sempre decretada ope judice e por um prazo, ainda que prorrogável, findo o qual a questão será decidida no processo penal.

Impondo-se assim o regime decorrente daquele artigo 47.º do RGIT como verdadeira regra especial e obrigatória, relativamente ao princípio geral da suficiência do processo penal, do artigo 7.º, do Código de Processo Penal – Cfr. Acórdão Tribunal Relação do Porto de 23/09/2015, cuja orientação transcrevemos, in www.dgsi.pt.

Conforme supra se mencionou a arguida baseia a impugnação no facto de os montantes em causa estarem já liquidados, não indicando, no entanto, em que momento foram pagos tais montantes.

Para que a impugnação pudesse relevar para a qualificação criminal dos factos imputados, a arguida teria que fundamentar a sua impugnação na alegação de que os pagamentos à Segurança Social teriam ocorrido dentro dos prazos legais, o que, a suceder, comprovaria que a sua conduta não integraria a prática de ilícito criminal, o que não fez.

Acresce que resulta dos autos que os montantes a que se reporta a acusação deduzida foram pagos, nos anos de 2017 e 2020.

Do exposto decorre que não se verifica a prejudicialidade das questões discutidas na impugnação judicial, já que a decisão que nela vier a ser proferida pela jurisdição tributária não é suscetível de condicionar a qualificação jurídico-criminal dos factos que se encontram sob julgamento, pelo que não há qualquer motivo para declarar a suspensão do processo penal tributário, nos termos do artigo 47.º do RGIT, indeferindo-se o requerimento da arguida “C. SGPS, S.A.”.

Notifique. (…).


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APRECIANDO

O âmbito dos recursos é limitado em função das conclusões extraídas da respectiva motivação, pelos recorrentes, sem prejuízo, no entanto, das questões de conhecimento oficioso, conforme o disposto nos artigos 412º, n.º 1 e 410º, n.ºs 2 e 3 do CPP.

No presente recurso, a questão colocada à apreciação deste tribunal consiste em saber se se verificam os pressupostos para a suspensão dos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 47º, n.º 1, do RGIT.


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Dispõe o n.º 1 do artigo 47º do RGIT que «Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.».

O que colocámos em itálico resulta da redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29-12.

Como referem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos ([1]), em anotação ao artigo 47º do RGIT, “Neste art. 47.º do RGIT tem-se por assente que as questões que são objecto de apreciação no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução, nos termos do CPPT constituem questões não penais que não podem ser convenientemente resolvidas no processo penal.

Naturalmente, a suspensão só se justifica nos casos em que a existência de infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal…

Reconhece-se, nestes casos de estar pendente processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, a competência exclusiva da jurisdição fiscal para decidir essa matéria, o que tem justificação no carácter altamente especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a essa jurisdição especializada (art. 212.º, n.º 3, da CRP). Por isso, nestes casos em que está já pendente um processo em que vai ser apreciada a questão prejudicial justifica-se plenamente que se aproveite essa situação, atribuindo-se aos tribunais fiscais competência exclusiva para decidir a questão.

Em face desta atribuição de competência exclusiva, nestes casos de pendência de processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, não há fixação de prazo de suspensão, no processo penal tributário, pois ela durará até que transite em julgado a sentença a proferir no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal.

Também Alfredo José de Sousa, in Infracções Fiscais, em anotação ao artigo 50º do RJIFNA, com redacção similar ao artigo 47º do RGIT, considera que “A suspensão de processo penal fiscal em virtude da pendência de processo de impugnação judicial ou oposição à execução afigura-se obrigatória e não apenas facultativa como no processo penal comum. A obrigatoriedade da suspensão do processo penal fiscal é fundamental pois que o montante do imposto discutido na impugnação judicial ou a oposição à execução fiscal é decisivo quer para a definição da existência de fraude fiscal, (alínea a) do n.º 3 do art. 23.º) quer para a determinação da multa aplicável em alternativa à prisão (n.ºs 4 e 5 do art. 23.° e n.ºs 1, 4 e 5 do art. 24.º).

A suspensão do processo penal fiscal nos termos deste normativo prolonga-se até ao trânsito em julgado das decisões da impugnação judicial ou oposição à execução.”

Sucede que, com a redacção do artigo 47º, n.º 1, do RGIT (introduzida pela Lei n.º      53-A/2006, de 29 de Dez.) a suspensão do processo penal tributário, em caso de impugnação judicial tributária ou oposição à execução, não é automática, tornando-se necessário analisar se na impugnação judicial apresentada está em causa matéria em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.

“É manifesto que o direito fiscal constitui um ramo de direito público, imbuído de princípios e normas próprios, do ponto de vista quer substantivo, quer adjectivo. Uma tal peculiaridade do direito fiscal justificou a criação de uma ordem jurisdicional própria - os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Dadas as apontadas especialidades do direito fiscal, a impugnação judicial tributária constitui objecto próprio de apreciação e decisão em sede da jurisdição administrativa-fiscal.

Mais, constitui objecto exclusivo de tal jurisdição, assim se postergando o princípio da suficiência do processo penal.

Nestes termos, se o conhecimento de matéria penal fiscal depender da prévia apreciação de impugnação judicial tributária, esta constitui uma questão incidental op legis ao conhecimento penal e, por isso, suspende o procedimento penal fiscal até que transite em julgado a decisão proferida em sede fiscal quanto à respectiva impugnação, sem necessidade, pois, de despacho judicial nesse sentido.” – Ac. STJ n.º 3/2007, proferido em 12-10-2006, e publicado no DR, I Série, 37, de 21-2-2007, pág. 1294.

Ora, no caso vertente, não se verificam os pressupostos para a suspensão do processo penal tributário previsto no n.º 1 do artigo 47º do RGIT.

A impugnação judicial tributária e a oposição à execução são dois meios judiciais de defesa dos sujeitos passivos contra a Autoridade Tributária (AT).

Os fundamentos da impugnação estão enumerados no artigo 99º e, os fundamentos da oposição à execução constam do artigo 204º, ambos do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).

Na impugnação judicial que deduziu junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (cfr. fls. 14/16v), a ora recorrente alega, em síntese, que:

“Está a ser julgada no âmbito do processo criminal n.º 123/17.7T9CNT que corre termos no Juízo Local Criminal de Cantanhede, pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social;

Quando na realidade os montantes em questão se encontram liquidados;

Estranhamente a S.S. não efectuou prova de que os montantes se encontram pagos;

Os montantes indicados como não pagos pela SS são as seguintes contribuições retidas e não entregues (montantes que discriminou, de Julho de 2012 a Julho 2015), tudo perfazendo o montante global de € 35.302,84;

Está a ora impugnante acusada de crimes fiscais quando na realidade, nesta data, não subsistem”

E, termina a impugnante, pretendendo que “seja declarado que os montantes supra indicados se encontram pagos, com as legais consequências”.

Portanto, a arguida, ora recorrente, fundamenta a impugnação no facto de os montantes em causa estarem já liquidados, sem que tenha indicado o momento em que foram pagos. Ou seja, na impugnação não se discute a situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.

Como bem refere o despacho recorrido “Para que a impugnação pudesse relevar para a qualificação criminal dos factos imputados, a arguida teria que fundamentar a sua impugnação na alegação de que os pagamentos à Segurança Social teriam ocorrido dentro dos prazos legais, o que, a suceder, comprovaria que a sua conduta não integraria a prática de ilícito criminal, o que não fez.     é nosso o sublinhado

Acresce que, resulta dos autos que os montantes a que se reporta a acusação deduzida foram pagos, nos anos de 2017 e 2020.

Deveremos, assim, concluir que a questão suscitada na impugnação judicial não é prejudicial relativamente ao objecto deste processo, no sentido de se apresentar como um antecedente lógico-jurídico, condicionante do conhecimento da questão principal.

Por conseguinte, não se verificando os pressupostos do artigo 47º, n.º 1, do RGIT, nenhum reparo merece o despacho recorrido que indeferiu a requerida suspensão do processo.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça.


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Coimbra, 17-2-2021

 Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 3ª edição, 2008, págs. 399 a 407.