Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
71/16.8GGCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS TÍPICOS
INEXISTÊNCIA DE CRIME
CRIME (RESIDUAL) DE INJÚRIA
INADMISSIBILIDADE DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 02/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 152.º, 181.º E 188.º, N.º 1, DO CP; ART. 50.º DO CPP
Sumário: I – Um episódio, reportado na matéria de facto provada, traduzido em ofensas à integridade física (murros na cabeça da ofendida), à honra e dignidade (concretizadas nas expressões “filha da puta” e “vaca”) e à liberdade de decidir e actuar, não evidencia o estado de aviltamento, de degradação da dignidade pessoal da vítima que conduza à sua qualificação como de maus tratos (físicos ou psíquicos).

II – No que respeita aos factos constitutivos do crime de injúria, não se tendo a ofendida, pelo menos, constituído assistente e, logo, deduzido acusação ou aderido à acusação apresentada pelo Ministério Público pelo crime de violência doméstica, resulta irremediavelmente comprometida a legitimidade do MP para a prossecução da acção penal, donde decorre a impossibilidade de o Tribunal da Relação conhecer do referido ilícito penal.

Decisão Texto Integral:








Acordam os juízes em conferência na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 71/16.8GGCBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Coimbra – JL Criminal – Juiz 1, mediante acusação pública, foi o arguido A., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, em autoria material, e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.ºs 2, 4 a 6, do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual, conforme ata de fls. 264-265, foi comunicada a alteração não substancial dos factos (artigo 358.º, n.º 1, do CPP), por sentença, proferida em 18.06.2019, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

Pelo exposto:

1. Julgo a acusação pública parcialmente provada e procedente e, consequentemente decido:

a) Condeno o arguido, como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal, na pena de dois anos de prisão.

b) Ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, atenta a personalidade do arguido, às condições da sua vida e às circunstâncias anteriores e posteriores ao crime, concluo que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção, pelo que decido suspender na sua execução a pena de dois anos de prisão, ora imposta ao arguido, pelo período de dois anos.

2. Ao abrigo do disposto no art.º 82.º - A do Código de Processo Penal e 21.º, n.ºs 1 e 2 do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, condeno o arguido a pagar à vítima, (…), a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), a título de reparação pelos prejuízos pela mesma sofridos em consequência das condutas do arguido, que será tida em conta em eventual ação que venha a conhecer de pedido de indemnização civil.

(…).

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

(…).

17. Sem conceder, caso Vossas Excelências Excelentíssimos Senhores Desembargadores, assim não entendam, entende a recorrente que a factualidade provada integra, tão só, um crime de injúria nos termos do artigo 181.º n.º 1 do Código Penal.

18. O que, não sendo entendimento desse V. Tribunal e, a título meramente cautelar, recorre também o Arguido da medida concreta da pena que lhe foi aplicada de 2 anos de prisão porquanto:

19. O enquadramento na alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º e n.º 2, 4 a 6 do CP, permite a aplicação de uma pena não privativa da liberdade.

20. A aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente; e em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. artigos 40.º n.ºs 1 e 2, 70.º e 71.º do Código Penal).

21. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração atuam pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo estes que vão determinar, em última análise, a medida da pena.

22. Esta deve em toda a sua extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só por esse modo e por essa via se alcançando uma eficácia de proteção de bens jurídicos.

23. Pese embora, o Arguido já tenha antecedentes criminais (mas cometido a 06-03-2018), neste momento tem a sua vida pessoal, familiar e profissional reorganizada.

24. Entende pois, S.M.O. o Recorrente, que a aplicação de uma pena de multa acautela de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, o que se requer.

25. Face ao exposto a Douta Sentença recorrida violou os artigos 29.º n.º 1 e 32.º da Constituição da República Portuguesa, e, ainda, os artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, 70.º, 71.º, alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º e n.ºs 2, 4, a 6 do CP.

Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, ser mui doutamente deve proceder-se à absolvição do arguido pelo crime pelo qual vem acusado ou, caso assim se não entenda,

Proceder-se à descaracterização da autoria de um crime de violência doméstica nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º e n.ºs 2, 4 a 6 do CP, para o crime de injúria nos termos do artigo 181.º do CP.

Aplicando-se, consequentemente, a pena não privativa da liberdade em detrimento da pena de prisão de 2 anos a que foi condenado o Arguido ainda suspensa na sua execução, em multa aplicar.

Assim, se fazendo a acostumada Justiça!

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Em resposta ao recurso o Ministério Público defendeu a respetiva improcedência.

6. No mesmo sentido, conforme parecer de fls. 312 a 314, se pronunciou, nesta instância, o Exmo. Procurador da República.

7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais, independentemente das questões de conhecimento oficioso, se delimita e fixa o objeto do recurso, no caso em apreço importa decidir se (i) ocorre “erro de julgamento” e/ou os vícios das alíneas b) e c) do artigo 410.º do CPP e/ou violação do in dúbio pro reo; (ii) se verifica erro de direito quanto à qualificação jurídica dos factos; (iii) a pena aplicada, inclusive na sua espécie, não encontra adequação ao caso.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

 1. O arguido e (…) viveram como se marido e mulher fossem durante cerca de catorze anos, tendo tal relacionamento marital terminado em 11 de Abril de 2016, por iniciativa de (…).

2. (…), nascido no dia 27.09.2007, é filho do arguido e de (…), e reside com seu pai.

3. (…), nascido no dia 17.02.2015, é filho do arguido e de (…), e reside com sua mãe.

4. Durante o relacionamento marital em datas não concretamente apuradas, e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido dirigindo-se à sua companheira, apodou-a de "puta" e "vaca".

 5. Durante o relacionamento, o arguido e a sua companheira tiveram vários desentendimentos a propósito de gastos desta, que o arguido considerava excessivos.

6. No dia 11 de Abril de 2016, a hora não concretamente apurada, mas situada entre as 21.00 horas e as 23.00 horas, na residência do casal, sita na Rua de (…), em (…), o arguido dirigindo-se à sua companheira chamou-lhe "filha da puta" e "vaca", desferiu-lhe murros na cabeça, e disse-lhe que a ia matar.

7. Imediatamente após, o arguido arremessou vários objetos que tinham em casa para o chão, deixando-os baldeados pelo chão.

8. Em consequência do murro que o arguido lhe desferiu na cabeça, (…), teve dores.

9. Em consequência das condutas do arguido supra referidas em 6. e 7., (…), ficou em elevado estado de nervosismo e ansiedade, sentiu-se ofendida na sua honra e consideração, ficou sobressaltada, com medo que o arguido atentasse contra a sua integridade física ou própria vida.

10. Tendo por tal, logo após tal atuação do arguido, telefonado a (…), sua amiga, solicitando-lhe que telefonasse às autoridades policiais, a fim de comparecerem no local da sua residência, o que esta fez, tendo a GNR comparecido na residência do casal cerca das 23.30 horas desse dia 11 de Abril de 2016, e conduzido (…), que se encontrava em elevado estado de nervosismo e ansiedade, e os dois filhos menores do casal ao posto da GNR.

11. Perante as condutas do arguido supra referidas em 6. e 7., e consequências psicológicas para si das mesmas advenientes, referidas supra em 9., (…) decidiu pôr termo ao relacionamento marital com o arguido, não tendo pernoitado já na casa de morada do casal nesse dia 11 de Abril de 2016/madrugada do dia 12 de Abril de 2016, abandonando a mesma na companhia dos dois filhos menores.

12. Quis, o arguido, com a suas supra referidas condutas infligir sofrimento físico e psíquico à sua companheira (…), ameaçando-a, agredindo-a, ofendendo-a na sua honra e consideração, pese embora não ignorasse que devia à visada, na qualidade de sua companheira, e mãe dos seus filhos, especial respeito e consideração.

13. Agiu o arguido voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.

14. O arguido é operador de recolha de resíduos perigosos no IPO (…), auferindo o SMN.

15. O agregado familiar é constituído pelo arguido e pelo seu filho menor, (…), estudante.

16. O arguido e seu filho residem em casa arredada, pela renda mensal de € 230,00.

17. O arguido tem o 6° ano de escolaridade.

18. A entidade patronal do arguido atestou que o mesmo, no dia 12 de Abril de 2016 praticou o horário de trabalho das 11.00 às 13.00 horas, e das 14.00 às 19.00 horas, no local afeto, CRO (…).

19. O arguido é trabalhador cumpridor do seu horário de trabalho.

20. O arguido é considerado no seu local de trabalho pelos que consigo privam, e tido como bom trabalhador.

21. O arguido foi condenado nos autos de processo comum singular n° 260/18.0PCCBR, pela prática de um crime de violência doméstica, cometido em 06.03.2018, contra a sua ex companheira (…), na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, por sentença transitada em julgado em 30.11.2018.

22. Desde que sofreu tal condenação, o arguido não vem importunando por qualquer forma a sua ex companheira (…), não mantendo ambos contactos.


*

FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa, para além dos supra referidos e, nomeadamente, que:

(…).


*

MOTIVAÇÃO

(…).

3. Apreciação

§1. Da impugnação da matéria de facto

(…).

§2. Da qualificação jurídica dos factos

Insurge-se o recorrente contra a qualificação jurídica dos factos, defendendo serem os mesmos apenas subsumíveis ao crime de injúria, p. e p. no artigo 181.º, n.º 1 do C. Penal – (cf. o ponto 17 das conclusões).

No que respeita ao crime de violência doméstica a doutrina e a jurisprudência vem, maioritariamente, identificando o bem jurídico protegido, de forma genérica, como sendo a dignidade da pessoa humana individualmente considerada e, em particular, a saúde física e mental, ou seja um bem jurídico complexo «… que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que afetam a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges)» [cf. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, artigo 152.º, § 1; na mesma linha o acórdão do STJ de 02.07.2008, proc. n.º 07P3861], configurando, assim, um tipo em que condutas contra a integridade física, contra a honra e consideração, contra a liberdade e autodeterminação encontram proteção.

A questão, de saber se as condutas violadoras encontram adequação, designadamente nos tipos legais de ofensa à integridade física, injúria, ameaças exige um juízo sobre a intensidade da violação de todos ou cada um dos bens em causa, quer pela sua reiteração, quer em função da gravidade da ofensa, quer pela conjugação de ambas de modo a aferir se ocorreu uma violação especial dos direitos do parceiro a demandar resposta que já não se compadece com a aplicação das normas penais tipificadoras das condutas (per se), as quais, não fosse a natureza e carga da violação, constituiriam punição adequada.

No caso em apreço os factos provados reportam um episódio, traduzido em ofensas à integridade física (murros na cabeça), à honra e dignidade (“filha da puta”; “vaca”) e à liberdade de decidir e atuar, ocorrido, no dia 11 de abril de 2016, na residência comum., não sendo de considerar para o efeito os factos genéricos, reportados sob o item 4 (factos provados). Excluídas a reiteração e/ou regularidade das condutas ofensivas, sem pretender colocar em crise o respetivo caráter desvalioso, também a sua gravidade – tanto quanto o acervo factual permite apreender - não atinge aquele patamar, ao nível do desvalor da ação e do resultado, capaz de fazer concluir por se estar perante um caso de maus tratos físicos e/ou psíquicos reveladores de uma conduta maltratante, onde pontificam sentimentos de crueldade, desprezo, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vitima. Com efeito, a imagem (quadro) global que é possível extrair dos factos não evidencia aquele estado de aviltamento, de degradação da dignidade pessoal da vítima que conduza à qualificação da situação como de maus tratos, que por si, constitui um “risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima” – [cf. Nuno Brandão, “A Tutela penal especial reforçada da violência domésticain Julgar, 12.º, 2010, pág. 17 e ss.].

Afigura-se-nos, assim, encontrarem as condutas em causa resposta adequada nos tipos legais de menor densidade axiológica que protegem os bens jurídicos de per se considerados, concretamente nos artigos 143.º, n.º 1, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 131.º e 181.º, n.º 1, todos do Código Penal, os quais configuram crimes público [a ameaça – cf. v.g. os acórdãos do TRL de 19.05.2015 (proc. n.º 361/12.9GAMTA.L1-5; TRC de 10.07.2013 (proc. n.º 187/11.7GBLSA.C1); TRE de 07.042015 (proc. n.º 517/12.4PAOLH.E1); TRP 15.06.2016 (proc. n.º 6928/13.0TDPRT.P1); TRG de 25.05.2019 (proc. n.º 390/17.6T9PTL.G1)], semipúblico [a ofensa à integridade física] e particular [a injúria].


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Aqui chegados importa enfrentar a questão da prossecução da ação penal pelo crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do C. Penal - posto que do acervo factual apurado resultam inequivocamente reunidos os respetivos, ao nível objetivo e subjetivo, elementos típicos -, temática que não tem merecido por parte da jurisprudência resposta unânime [cf. v.g. os acórdãos TRP de 25.11.2015, do TRC de 28.01.2010, do TRP de 30.01.2013 e de 27.04.2016, do TRL de 17.06.2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt.]. A questão tem-se colocado quando os atos provados em julgamento não são passíveis – por não atingirem um potencial de agressão que ultrapasse o nível de proteção subjacente às normas que tipificam os ilícitos típicos capazes de o integrar - de se reconduzir ao crime de violência doméstica, imputado na acusação ou na pronúncia, mas, antes, aos diferentes crimes “atomísticos” que se encontram numa relação de concurso aparente (consumpção) com aquele, o qual, só por si, protege com outra (maior) intensidade a vítima; mais concretamente quando os ilícitos típicos “renascidos” revestem natureza semipúblico, sem que do processo resulte que haja sido exercido o direito de queixa, ou particular, sempre que inexista assistente constituído nos autos e logo acusação, pelo mesmo, formulada – [cf. os artigos 48.º, 49.º e 50.º do CPP].

Num caso como o dos autos e no que respeita ao crime particular “tout court” (injúria), propendemos a considerar que não se tendo a ofendida, pelo menos, constituído assistente, e logo deduzido acusação ou aderido à apresentada pelo Ministério Público pelo crime de violência doméstica, resulta comprometida a legitimidade do Ministério Público para a prossecução da ação penal. Com efeito, encaramos hoje com alguma dificuldade a posição – digamos, sem ofensa, mais radical – que em idêntica situação exige, para assegurar a dita legitimidade, que o assistente haja oportunamente deduzido, nos termos do artigo 285.º do CPP, acusação particular, quando, ao titular da ação penal, acusando pelo crime público de violência doméstica, sustentando a imputação em condutas lesivas de diferentes bens jurídicos – embora unificadas no mesmo ilícito típico -, entre os quais o da honra, se mostrava, desde logo, processualmente vedado determinar a notificação a que se reporta o artigo 285.º do CPP. Quer-nos, pois, parecer que com a constituição de assistente e a dedução, pelo mesmo, de acusação ou com a mera adesão à acusação do Ministério Público (artigo 284.º do CPP), no seio da qual se incluem as condutas lesivas da honra, se assegura a legitimidade deste último para a prossecução da ação penal. Não foi, porém, o que ocorreu no presente caso em que a vítima tão pouco se constituiu assistente.

Concluindo, revelando-se o procedimento criminal quanto aos factos que consubstanciam o crime de injúria legalmente inadmissível, estando vedado a este tribunal do mesmo conhecer, não pode o arguido, pelo mesmo, sofrer condenação.


*

O mesmo não se passa, contudo, em relação aos crimes de ofensa à integridade física e de ameaça agravada, respetivamente de natureza semipúblico e pública, não se suscitando sequer, quanto ao primeiro, qualquer questão de legitimidade do Ministério Público definitivamente resolvida pelo exercício tempestivo, por parte da ofendida, do direito de queixa – [cf. a manifestação de desejo de procedimento criminal contra o arguido a fls. 15].

Dúvidas não subsistem, à luz dos factos assentes, como provados, sob os itens 6, 8, 9, 12 e 13, quanto à perfetibilidade, pela verificação dos respetivos elementos objetivo e subjetivo, dos crimes de ofensa à integridade física e de ameaça agravada, p. e p. respetivamente nos artigos 143.º, n.º 1 e 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), este últimos com referência ao artigo 131.º, todos do C. Penal, traduzido o primeiro na agressão com muros na cabeça e o segundo no anúncio de um mal futuro – que não em execução -, qual seja o propósito de vir a matar a vítima, condutas adequadas a provocar, como veio a suceder, dor, inquietação e medo, aquele e este levado a efeito com liberdade de determinação, com conhecimento e vontade de o praticar, em qualquer dos casos com a consciência da respetiva ilicitude e condenação pela lei penal.

Incorreu, assim, o arguido, como autor material, na prática, em concurso real efetivo, dos sobreditos crimes, o que corresponde a uma alteração da qualificação jurídica relativamente ao tipo de ilícito, mais gravoso, de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do C. Penal – cuja incriminação visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos suscetíveis de o preencherem -por que vinha acusado, alteração esta que por representar um “minus” relativamente ao imputado crime (de violência doméstica) não importa o cumprimento do n.º 3 do artigo 358.º do CPP, já que não ocorre “nenhum elemento de surpresa que justifique a atribuição ao arguido de uma maior amplitude de defesa caso se provem, como foi o caso, apenas factos já constantes da acusação” subsumíveis aos crimes de ofensa à integridade física e ameaça – [cf. acórdão do TRG de 25.09.2017, proferido no proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1; no mesmo sentido, a título exemplificativo, vide os acórdãos do TRP de 28.03.2007 (proc. n.º 0710448), de 14.03.2018 (proc. n.º 563/16.9GAALB.P1) do TRC de 14.05.2014 (proc. n.º 290/12.6TAACN.C1), do TRE de 05.03.2013 (proc. n.º 43/09GBRDD.E1)].


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Como assim, vejamos a matéria relativa à determinação e medida da pena.

Ao crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do C. Penal corresponde a moldura penal abstrata de pena de prisão até três anos ou pena de multa; sendo o crime de ameaça agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 131.º, todos do mesmo compêndio normativo, punível com pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias.

Importa, assim, em execução do artigo 70.º do C. Penal indagar se, no caso, a pena não privativa da liberdade (multa), prevista em alternativa à pena de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pois, sendo essa a conclusão, tem o tribunal de dar preferência à pena não detentiva.

Estando em causa as finalidades da punição (artigo 40.º do C. Penal), são exclusivamente razões de natureza preventiva – necessidades de prevenção quer geral, quer especial – que podem ser ponderadas. No tipo de criminalidade em questão – ofensa à integridade física e ameaça - as razões de prevenção geral, de defesa da ordem jurídica, revelando-se significativas – desde logo em função da frequência com que se sucedem -, estando em causa a defesa de bens jurídicos constitucionalmente protegidos, reclamam uma resposta eficaz de reafirmação da validade das normas em questão, mas que se nos afiguram ainda compatíveis com a aplicação da pena não privativa da liberdade. Ao nível das necessidades de prevenção especial de socialização é de ponderar encontrar-se o arguido social, familiar e profissionalmente bem inserido [cf. os factos provados inscritos nos pontos 14 a 17 e 19 a 20]. E se é certo que já sofreu uma condenação (por factos ocorridos em 2018) pelo crime de violência doméstica em pena de prisão suspensa, não menos certo é que desde então “não vem importunando por qualquer forma a sua ex companheira Maria Isabel …, não mantendo ambos contactos” – [cf. ponto 22 dos factos provados], aspeto este que não deixa de esbater as exigências de prevenção especial, dado a coincidência da vítima num e noutro processo. Neste quadro, não olvidando a primariedade, à data dos factos, do arguido, afigura-se-nos, num e noutro crime, ser ainda a pena de multa capaz de responder adequada e suficientemente às finalidades da punição.


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Quanto à medida concreta das penas

Tendo presente os vetores culpa e prevenção (artigos 40.º e 71º, n.º 1 do C. Penal), bem como as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 71.º do mesmo diploma, reafirmando o que a propósito das necessidades de prevenção, quer geral, quer especial já acima se disse, ponderando o grau de ilicitude do facto e o modo de execução deste – a agressão com murros na cabeça e ameaça verbal de morte, proferida uma única vez; as consequências das ações, traduzidas em dores (na cabeça), nervosismo, ansiedade, medo – este em consequência do propósito anunciado -, sentimentos que levaram a ofendida a não pernoitar em casa; o nível de desrespeito manifestado para com a sua companheira desde há cerca de 14 anos; o dolo na sua modalidade mais intensa; pese embora a condenação sofrida em momento posterior aos factos, a primariedade à data dos mesmos; a boa inserção social, familiar e profissional, destacando-se o reconhecimento das suas qualidades de trabalho, considera-se adequada a aplicação da pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa pela prática do crime de ofensa à integridade física e de 100 (cem) dias de multa pela prática do crime de ameaça agravada, penas estas que satisfazendo as exigências de prevenção, não superam a culpa do arguido.


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Na determinação da quantia correspondente a cada dia de multa releva, tão só, a situação económica e financeira e os encargos pessoais do condenado – cf. artigo 47.º do C. Penal, pelo que, atendendo ao que provado vem sob os itens 14 a 17 da decisão de facto, tem-se por adequado fixá-la em € 6.00 (seis euros).

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Verificando-se uma situação de concurso de crimes necessário se torna encontrar a pena única, em cuja determinação importa atender, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente – cf. artigo 77.º, n.º 1 do C. Penal.

No seio de uma moldura abstrata (do concurso), com o limite mínimo e máximo, respetivamente de 140 e 240 dias de multa (artigo 77.º, n.º 2 do C. Penal), ponderando o facto de as condutas criminosas, violadoras da integridade física, por um lado, e da liberdade pessoal, por outro lado, terem ocorrido na mesma ocasião, uma a seguir à outra, num quadro de exaltação, como se nos afigura demonstrar o arremesso, quase simultâneo, por parte do arguido, de objetos para o chão; bem assim a sua personalidade patenteada nos factos, denunciadora da falta de noção do respeito devido, no decurso de uma vivência em comum, à companheira; sendo, não obstante, possível captar sinais positivos ao nível das suas práticas pelo menos desde novembro de 2018, julga-se ajustado fixar a pena única em 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa, correspondendo a cada dia a quantia de € 6,00 (seis euros).


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Do decidido supra, enquanto resultou afastado o crime de violência doméstica, imputado ao arguido, importa retirar todas as consequências, designadamente quanto ao arbitramento oficioso do montante indemnizatório – [cf. artigo 403.º, n.º 3 do CPP]. De facto, tendo sido o mesmo fixado à luz das disposições conjugadas dos artigos 82.º - A do CPP e 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09, e não revestindo a ofendida a qualidade de “vítima” para o efeito deste último diploma, de acordo com o qual semelhante “estatuto” é reservado à pessoa que suportou agressões de diferente natureza, no âmbito do crime de violência doméstica [cf. artigo 2.º, alínea a)], por um lado, sem que haja resultado apurado – sequer se mostra alegado – o circunstancialismo descrito no n.º 1, do citado artigo 82.º - A, no segmento “quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham”, por outro lado, não pode, também, nesta parte manter-se a decisão.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal, embora por fundamentos diferentes, em julgar parcialmente procedente o recurso e em consequência:

a. Absolver o arguido (…) da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, 4 a 6, do Código Penal, pelo qual se mostrava acusado;

b. Por falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal pelo crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa de (…), determinar, nesta parte, o arquivamento dos autos;

c. Condenar o arguido (…) pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros);

d. Condenar o mesmo arguido pela prática, como autor material, de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º, todos do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros);

e. Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, reportadas supra em c. e d., condenar o arguido na pena única de 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros);

f. Revogar a decisão recorrida na parte em que, ao abrigo do regime jurídico instituído na Lei n.º 112/2009, de 16.09, arbitrou indemnização, condenando o arguido no seu pagamento a (…);

g. Em tudo o mais contrariado pelo acima decidido, revogar a decisão recorrida.

Sem custas – [cf. artigo 513.º, n.º 1 do CPP].

Coimbra, 5 de Fevereiro de 2020     

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)