Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/10.1IDVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
NULIDADE DE SENTENÇA
SANAÇÃO DA NULIDADE
REENVIO DO PROCESSO
Data do Acordão: 02/27/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADA NULA
Legislação Nacional: ARTIGOS 105.º, N.ºS 1, 2, 4 E 5, E 14.º, N.º 1, DO RGIT; ARTIGOS 379.º, N.º 1, ALÍNEA C) E 426.º, DO CPP
Sumário: I. Constatando-se a imposição ao arguido/recorrente de uma pena de prisão declarada suspensa na sua execução, condicionada ao pagamento, no decurso do prazo da suspensão, dos valores indicados no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, à luz da jurisprudência recentemente fixada no Ac. do STJ de 8/2002, de 12-09, a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por omissão do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica».

II. Não obstante, não será necessário sair do quadro decorrente do referido vício, recorrendo ao reenvio do processo, uma vez que a sentença não é omissa quanto às condições sócio económicas do arguido/recorrente e, de todo o modo, tratando-se de matéria recondutível à pena, com vista à sanação da nulidade, não está o tribunal inibido de produzir prova suplementar, através da reabertura da audiência (artigos 369.º e 371.º, do Código de Processo Penal).

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 68/10.1IDVIS, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, foram pronunciados, para julgamento com a intervenção do Tribunal singular, os arguidos WW... – ., S.A. e A... [melhor identificados nos autos] sendo, então, imputada ao segundo arguido a prática em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal, imputação extensiva à primeira arguida nos termos dos artigos 6.º, 7.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

2. Realizado o julgamento, no decurso do qual foi produzida e comunicada alteração, substancial e não substancial, dos factos – tudo conforme acta de fls. 511 a 516 –, por sentença de 13.07.2012 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto decido:

- Condenar a sociedade arguida, “WW... – ., S.A.”, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06 e artigos 30.º, nº 2 e 79.º, nº 1, ambos do Código Penal, na pena de 720 (setecentos e vinte) dias de multa, ao quantitativo diário de € 12,00 (doze euros), perfazendo um total de € 8.640,00 (oito mil seiscentos e quarenta euros).

- Condenar o arguido A..., pela prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confinaça fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

- Suspender na sua execução a pena de prisão supra determinada, por igual período, ficando tal suspensão condicionada ao pagamento, no decurso do prazo da suspensão, da prestação tributária e acréscimos legais e com a obrigação adicional, imposta a título de regra de conduta, de o arguido documentar a cada seis meses nos autos pagamentos parciais à Administração Fiscal, por conta do montante global a liquidar (cfr. artigos 50.º e 52.º, ambos do Código Penal e artigo 14º do RGIT).

- Condenar a sociedade arguida, “WW... – ., S.A.”, pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 114.º, n.º 3, 2.ª parte do RGIT – tendo por referência o IVA relativo ao mês de Fevereiro de 2010 – na coima de € 20.000,00 (vinte mil euros).

(…)».

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido A..., extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado, por douta sentença, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.s 1, 2, 4 e 5 do RGIT, e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do CP, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão.

2. Foi ainda decidido suspender na sua execução a pena de prisão por igual período, ficando tal suspensão condicionada ao pagamento, no decurso do prazo da suspensão, da prestação tributária e acréscimos legais e com a obrigação adicional, imposta a título de regra de conduta, de o arguido documentar a cada seis meses nos autos pagamentos parciais à Administração Fiscal, por conta do montante global a liquidar.

3. Ora, não pode o recorrente conformar-se com os termos da douta decisão proferida, porquanto face aos factos provados e ao direito aplicável, o recorrente deverá ser integralmente absolvido, extinguindo-se o procedimento criminal, incluindo as custas criminais respectivas.

4. Deste modo, deve o presente recurso proceder totalmente e, a final, absolver o arguido, ora recorrente.

5. O ora recorrente pretende no presente recurso impugnar a decisão proferida pelo Tribunal sobre a matéria de facto, mais concretamente, a dada como provada no ponto II, da fundamentação da decisão recorrida, com o número 11 dos factos dados como provados.

6. Pois, o recorrente considera incorrectamente julgado por ter havido erro na apreciação da prova, pelo Tribunal a quo, dos referidos factos.

7. Assim, o arguido, ora recorrente, considera, salvo o devido respeito por douta opinião diversa, que da audiência de julgamento resultaram provados certos factos que não constam, mas deveriam, pela sua relevância, constar da matéria dada como provada e que se passam a indicar:

- o dinheiro resultante das transferências bancárias efectuadas pela ... nunca chegou a estar na efectiva disponibilidade dos arguidos, porque a ... apenas fez tais transferências mediante o prévio compromisso dos arguidos de imediatamente após a realização de tais transferências devolverem esses montantes à ... S.A.

- As transferências efectuadas pela ... e as facturas que constam dos autos não passaram de uma operação financeira para proceder a um acerto de contas entre a ..., S.A. e a sociedade arguida.

8. Tais factos, a darem-se por provados, acarretam necessariamente decisão diversa da douta decisão proferida.

9. Assim, a prova produzida e que o tribunal não valorou impunham a absolvição do arguido do crime de que vem acusado.

10. De facto, as declarações da testemunha e do próprio arguido são precisas e claras.

11. Estamos assim perante um caso de ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÂO DA PROVA – 410º n.º 2 c) do CPP, que se extrai do próprio texto da decisão recorrida.

12. Deverá a sentença recorrida ser revogada, absolvendo-se o arguido do crime a que foi condenado, dado os fundamentos estarem em oposição com a douta decisão nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP.

13. Perante este contexto factual, deverá pelo menos resultar dúvida relativamente à prática dos factos de que o arguido vem acusado e que foi condenado.

14. E como tal, por respeito ao princípio in dubio pro reo impunha-se a absolvição do recorrente do crime previsto na acusação.

15. Realçe-se que, o arguido nunca chegou a ter disponibilidade de tal dinheiro.

16. Na medida em que, em termos reais, não há um efectivo recebimento.

17. Pelo que, não poderia constar dos factos provados no n.º 11 que “quantias que foram efectivamente recebidas com o pagamento das facturas respectivas”.

18. Pois, dos autos resulta suficientemente que não houve efectivo recebimento destas quantias.

19. O que houve foi uma operação contabilística para proceder a um acerto de contas entre a sociedade arguida e a empresa ..., enquanto empresa integrante do grupo da ..., S.A.

20. Assim, dúvidas não restam que, no caso sub judice, existe um erro notório na apreciação da prova, designadamente, ao dar-se como provado o efectivo recebimento dos valores aqui em causa.

21. Uma vez que, houve um mero recebimento contabilístico, nunca tendo havido o recebimento real, material e efectivo desses montantes.

22. Aliás, o arguido nunca pôde dispor de tais valores.

23. E tal como ficou provado, esses montantes só forma transferidos na condição da sociedade arguida os devolver imediatamente.

24. Pelo que, e salvo o devido respeito, o erro existente entre o referido ponto 11 da decisão de facto tem, inelutavelmente, de acarretar a reapreciação da matéria de facto pela Relação ou a repetição do julgamento.

25. Acresce que, a douta decisão de que se recorre apenas refere de forma exaustiva os factos provados,

26. Não fazendo uma enunciação completa dos factos não provados. Ora,

27. Face ao exposto, dúvidas não restam que a douta sentença do Tribunal a quo é nula nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.

28. A expressão utilizada na sentença “Não se provaram quaisquer factos para além dos que nessa qualidade se descreveram supra” para além de ser equívoca, constitui uma apreciação meramente subjectiva.

29. Para além disso, na douta sentença, em seguida à expressão supra referida pode ler-se “designadamente” e depois surge um facto não provado.

30. Contudo, a enumeração dos factos não provados não se basta com uma mera indicação exemplificativa.

31. De facto, só se cumpre o disposto no art. 374.º, n.º 2 do CPP com uma enumeração taxativa e exaustiva dos factos provados e não provados.

32. O que claramente não sucedeu no caso sub judice.

33. Assim, a não enunciação dos factos não provados na douta decisão implica irremediavelmente a nulidade da mesma.

34. Aquestão jurídica em causa nos autos reconduz-se a saber se a norma do artigo 14.º do RGIT permite ou não que se condicione a suspensão da pena de prisão em que foi condenado o ora recorrente ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais.

35. Ora, este normativo é inconstitucional na parte que retira aos Tribunais e ao administrador da justiça em concreto a capacidade de juízo, valoração e decisão que resulta do art. 20.º da CRP.

36. De facto, o art. 14.º, n.º 1 do RGIT, na parte em que impõe automatismo de pagamento para condicionar o dispositivo de uma decisão judicial, viola o art. 20.º da CRP e derroga materialmente os princípios a que se referem os artigos 70.º e 51.º do Código Penal.

37. E viola ainda a adequação e proporcionalidade à culpa, consagrado no art. 40.º, n.º 2 do CP, princípio este unicamente reconhecido como estruturante do Sistema Penal Português.

38. Efectivamente, o art. 14.º derroga infundadamente princípios estruturantes da Administração da Justiça.

39. Devendo assim ser declarada a inconstitucionalidade do art. 14.º, n.º 1 do RGIT por violação do art. 202.º, 203.º e 204.º da CRP e anulada a sentença na parte em que aplicou aquela norma com violação do disposto nos artigos 70º, 40 e n.º 2 do art. 51.º do CP.

40. É nos ainda lícito concluir que o arguido, ora recorrente, foi condenado sem que o Digno Magistrado do MP tenha logrado provar o “efectivo recebimento dos montantes em causa nos autos”, tampouco se provou que o “arguido algum dia tenha tido disponibilidade real sobre esses montantes”.

41. Ora, um dos princípios a que o Tribunal a quo se encontra vinculado é o princípio in dubio pro reo, um dos princípios estruturantes do processo penal, ao qual a regra da livre apreciação da prova está sujeita.

42. O art. 32.º da CRP inclui entre as garantias do processo criminal, no seu n.º 2, a de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.

43. O princípio in dubio pro reo é, pois, uma emanação do princípio da presunção de inocência.

44. A violação deste princípio pressupõe a existência de um estado de dúvida no espírito do julgador.

45. Esta dúvida resulta de forma evidente da douta decisão recorrida.

46. Na verdade, o Meritíssimo Tribunal a quo não exclui a hipótese de poder não ter havido recebimento efectivo de tais montantes.

47. Sendo certo que quem tem de provar a acusação é o Digno Magistrado do MP.

48. Estamos, assim, perante uma dúvida razoável e insanável, objectivamente perceptível no contexto da decisão proferida, ora recorrida.

49. Ora, da douta sentença não resulta de forma inequívoca, que houve recebimento real destes montantes aqui relevantes para efeitos de IVA e verdadeira disponibilidade sobre os mesmos.

50. Assim, havendo sérias e fundadas dúvidas relativamente à matéria constante da acusação, devem os arguidos ser absolvidos, sob pena de se violar o princípio in dubio pro reo constitucionalmente consagrado.

51. Acresce que o princípio in dubio pro reo resulta do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido até prova irrefutável em contrário.

52. Pelo que, ao não ter aplicado o princípio in dubio pro reo, o Tribunal a quo violou o preceituado no art. 32.º, n.º 2 da Lei Fundamental.

53. Assim sendo, o Tribunal a quo violou o artigo 127.º do C. P. Penal, e ainda o art. 32.º, n.º 2 da Lei Fundamental.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, declara-se revogada a douta decisão recorrida, absolvendo-se o arguido.

Assim se fazendo a sempre e acostumada Justiça.

4. Ao recurso respondeu a Exma. Procuradora - Adjunta [sem que tenha apresentado conclusões], refutando, em síntese, todas as questões suscitadas pelo recorrente, quer relativas à matéria de facto quer concernentes ao direito, defendendo a respectiva improcedência com a consequente manutenção da decisão recorrida.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

6. Na Relação, a Exma. Procuradora – Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 637 a 640, acompanhando a resposta à motivação de recurso apresentada em 1.ª instância.

Contudo, dada a circunstância de o recorrente colocar em causa o artigo 14º, nº 1 do RGIT, perante o teor do Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência n.º 8/2012, tendo em conta a pena aplicada, perfilha o entendimento de que enfermará a sentença da nulidade, por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, al. c, do CPP] pois que, aduz, «… não obstante se tenha efectuado um juízo de prognose favorável para a decretação da suspensão, falece o juízo de prognose de razoabilidade para, perante a sua situação económica e patrimonial, presente e futura, satisfazer a condição imposta.»

Vício que, defende, no caso em apreço redundaria na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conduzindo ao reenvio do processo [artigo 426º, nº 1 do CPP] para, com recurso a novo julgamento, ser indagada e complementada a factualidade atinente à situação patrimonial e económica do arguido [presente e futura] necessária à elaboração de nova decisão de acordo com a jurisprudência fixada, na qual seja formulado o juízo de razoabilidade sobre a capacidade do mesmo para cumprir a condição de suspensão da pena decretada nos termos do artigo 14.º, n.º 1 do RGIT.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi obtida reacção.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo, contudo, das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço, em face das conclusões, importa, em princípio, decidir se:

- Enferma a sentença de nulidade;

- Ocorre «erro de julgamento», padecendo, ainda, a sentença recorrida dos vícios das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP;

- Foi violado o princípio in dubio pro reo;

- Ocorre violação do artigo 127.º do CPP;

- Padece o artigo 14.º do RGIT de inconstitucionalidade;

- Foram violados os artigos 40.º, nº 2, 70.º e 51.º do C. Penal.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURIDICA:

A) DOS FACTOS

Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1.A arguida “WW... - ., SA“, com sede na … , é uma sociedade anónima, cujo objecto consiste no “fabrico, comercialização e distribuição de … ”,

2.O arguido, A..., foi administrador da sociedade arguida, nomeado para os anos de 2009 a 2012.

3.A administração da empresa, a gestão dos pagamentos aos credores, o pagamento de impostos ao Estado e a gestão efectiva da empresa era exercida pelo arguido A..., pessoa singular.

4.Ao longo do ano de 2010, a sociedade “WW... ., SA”, através do segundo arguido, seu administrador, desenvolveu a sua actividade, comercializando os seus produtos - fechaduras, dobradiças e outras ferragens – e serviços, emitindo as competentes facturas, nelas liquidando o IVA incidente sobre tais operações.

5.No entanto, os arguidos não procederam (a sociedade arguida através do segundo arguido pessoa singular), concretamente nos meses de Fevereiro, Maio e Junho de 2010, ao envio da respectiva declaração periódica de IVA e à entrega até à data limite para pagamento, ou seja, o dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as obrigações, nem nos noventa dias posteriores a tal prazo, das quantias de IVA liquidadas durante tal período de tempo.

6.Assim, os arguidos – a primeira através do seu administrador e legal representante, agindo em nome, por intermédio e no interesse daquela – não procederam à entrega, nos cofres do Estado, como estavam obrigados a fazer, das prestações tributárias por conta de IVA efectivamente liquidadas e relativas aos meses de:

- Fevereiro de 2010, no valor de € 13.888,64;

- Maio de 2010, no valor de € 7.565,14;

- Junho de 2010, no valor de € 63.048,11.

7.No mês de Fevereiro de 2010, a sociedade arguida emitiu facturas respeitantes à comercialização dos seus produtos, em nome da  …

8.O arguido A..., também era legal representante e sócio da sociedade  … tendo o mesmo assumido, pessoalmente, o pagamento do valor total facturado em Fevereiro de 2010, respeitante aos fornecimentos aludidos em 7).

9.Uma vez que A... era, à data, credor da sociedade arguida, em 30 de Julho de 2010, a quantia global correspondente aos fornecimentos pela “WW...” efectuados à sociedade … ”, incluindo o IVA liquidado nas facturas emitidas, foi imputada na conta de sócio do referido José Carlos, por via de tal imputação, abatendo-se ao crédito do sócio sobre a arguida “WW...” valor correspondente ao da dívida da sociedade … ” cujo pagamento foi por este assumido, nos moldes aludidos em 7).

10.Mercê do aludido em 8) resultou liquidada a responsabilidade da sociedade  …

11.Nos meses de Maio e Junho de 2010 a sociedade arguida emitiu facturas respeitantes à comercialização dos seus produtos e serviços, em nome da sociedade … , nelas liquidando o respectivo IVA, perfazendo um total de IVA a pagar, respectivamente, do mês de Maio de 2010, de € 8.252,88 e do mês de Junho de 2010, de € 63.048,11, quantias que foram efectivamente recebidas com o pagamento das facturas respectivas, ocorrido dentro do prazo limite para pagamento do imposto devido ao Estado.

12.Na sequência da instauração de processos de execução fiscal, a sociedade arguida procedeu a pagamentos parciais, encontrando-se actualmente em dívida os montantes indicados em 6).

13.Não obstante o aludido em 7) a 11) e apesar de bem saberem que estavam por lei obrigados a entregar nos cofres do Estado, a quem eram destinadas, as quantias de IVA supra identificadas, o arguido, ente indivi..., houve para a sociedade arguida, sua representada – e, pois, indirectamente para si próprio – tais quantias, utilizadas em proveito da sociedade arguida e, pois, colectivo, assim enriquecendo, desde logo, o património da sociedade, primeira arguida, em igual montante, e prejudicando correspondentemente o Estado – Fazenda Nacional, pelo menos, em valor equivalente.

14.Os arguidos foram notificados nos termos do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, no dia 19.11.2010, e designadamente de que dispunham do prazo de 30 dias para procederem ao pagamento das quantias acima referidas, acrescidas dos juros de mora, bem como do valor da coima aplicável, não tendo até ao momento procedido ao pagamento dos montantes elencados em 6).

15.Os arguidos após não terem entregue no mês de Fevereiro de 2010 o montante de IVA destinado ao Estado-Fazenda Nacional, acima discriminado, praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos meses subsequentes, designadamente de Maio e Junho de 2010, porquanto, em virtude de não terem sido sujeitos a inspecção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização tributária, se convenceram que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levaram a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido.

16.Agiu o segundo arguido em todas as descritas circunstâncias livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de tornar, desde logo, da primeira arguida e, pois, suas também, as importâncias referidas que bem sabia estar obrigado a entregar ao credor tributário, o Estado – Fazenda Nacional, e à custa deste.

17.Estava o arguido, pessoa singular, certo, ademais, de que a sua relatada conduta o fazia incorrer e à sociedade arguida em responsabilidade criminal.

18.Os arguidos actuaram da forma supra descrita num quadro de graves dificuldades económicas que a sociedade arguida atravessava, dando prioridade, quando dispunham de liquidez, ao pagamento de salários a trabalhadores e fornecedores, de forma a permitir que a empresa continuasse em laboração.

19.Em 1 de Março de 2010 a sociedade arguida celebrou o contrato de “Cessão de Exploração de Estabelecimento Industrial” com a sociedade “ … ” do qual se encontra junta aos autos cópia, a fls. 321 e ss, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

20.A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado a 29 de Novembro de 2010, proferida no âmbito do Processo n.º 649/10.3TBSCD, que corre termos no 2.º Juízo deste Tribunal.

21.No âmbito do processo de insolvência da arguida “WW...”, em sede de Assembleia de Credores de Apreciação do Relatório realizada a 5 de Janeiro de 2011, foi decidido o prosseguimento dos autos, com liquidação do activo que ainda prossegue e o encerramento da actividade da empresa.

22.No âmbito do processo de insolvência da arguida “WW...” foram apreendidos bens móveis num valor total de € 938.205,00 e bens imóveis num valor total de € 672.599,26, perfazendo um total de bens da massa insolvente de € 1.610.804,26.

23.O arguido A... é divorciado, continuando contudo a residir com a sua ex-mulher e o filho comum do ex-casal, de 7 anos de idade, em casa propriedade dos progenitores da ex-mulher do arguido. O arguido é administrador de empresas, auferindo o salário mensal de cerca de 875,00 euros.

24.A ex-mulher do arguido é antropóloga, estando actualmente a concluir o Doutoramento, e não tendo qualquer fonte de rendimentos; sendo que os seus progenitores auxiliam financeiramente o ex-casal nas suas despesas.

25.O arguido é proprietário de um imóvel (moradia), que se encontra hipotecado e têm dívidas junto de instituições bancárias que importam, mensalmente, num montante global de 800,00 a 1.000,00 euros, tendo efectuado vários acordos de pagamentos prestacionais que cumpre de acordo com as suas possibilidades.

26.O arguido é licenciado em Engenharia Electrotécnica.

27.O arguido não tem antecedentes criminais.

28.A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.

Factos Não Provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos que nessa qualidade se descreveram supra e não resultou provado que os factos tenham ocorrido noutro circunstancialismo ou com outras motivações que não os supra descritos; designadamente não se tendo provado que, através do seu administrador, segundo arguido, a sociedade arguida se tenha dedicado à fabricação de fechaduras, dobradiças e outras ferragens, durante todo o ano de 2010.

Motivação

       O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente, as declarações prestadas em sede de audiência pelo arguido e pelo Sr. Administrador de Insolvência da sociedade arguida e o depoimento da testemunha ouvida, Sr.ª Inspectora Tributária, responsável pela recolha de prova do recebimento das quantias de IVA liquidadas nas facturas respeitantes aos períodos em causa nos autos.

       A prova produzida foi apreciada à luz do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está tendo em mente a capacidade crítica, o distanciamento e ponderação que se impõem.

         Assim, a formação da convicção do Tribunal dependeu essencialmente de duas operações: de um lado a actividade cognitiva de filtragem de informações dadas e sua relevância ético-jurídica; de outro lado, elementos racionalmente não explicáveis – ou pelo menos de explicação menos linear -  como a credibilidade que se concede a um certo de meio de prova em detrimento de outro, já que não é quantidade de prova produzida que releva, mas antes a qualidade de tal prova.

          Com efeito, desde logo quando estejam em causa depoimentos ou declarações, deverá o Tribunal formular um juízo de veracidade e autenticidade do declarado, o qual depende do contacto oral e directo com os declarantes e da forma como estes transmitem a sua versão dos factos – postura e comportamento, características de personalidade reveladas, carácter e probidade.

          Sinteticamente podemos dizer que foi deste conjunto de vectores e da essência deste processo – sempre complexo – de apreciação e valoração da prova que resultou ou não comprovada a factualidade descrita em sede de decisão de pronúncia e, já que, em bom rigo, a contestação deduzida não continha factos em concreto a apurar.

          Apreciando dir-se-á, desde logo, que na sua essência, o arguido A..., confirmou a factualidade descrita em sede de decisão de pronúncia, esclarecendo quanto ao facto de actualmente já não ser administrador da sociedade arguida (o que resulta documentado nos autos, mercê do teor das certidões extraídas e juntas provenientes do processo de insolvência) e bem assim esclarecendo quanto ao circunstancialismo em que as facturas em causa nos autos foram emitidas, em tais esclarecimentos se alicerçando a tese propugnada pela defesa de que, não obstante a facturação e liquidação de IVA nela em causa, não se verificou efectivo recebimento dos valores (incluindo IVA) facturados.

           Ora, no que concerne ao vertido em 1) e 2) valoraram-se essencialmente, de forma conjugada, os documentos constantes de fls. 82 a 84 (prints extraídos da DGCI); fls.94 a 99 (prints da DGCI de liquidações de IVA); certidão permanente de fls. 103 a 109 e cópia de certidão de matrícula de fls. 110 a 113.

            Relativamente ao vertido em 3) valorou-se, de forma conjugada, o teor da certidão permanente de fls. 103 a 109, documentos constantes de fls. 82 a 84 (prints extraídos da DGCI) e declarações do arguido A..., que reconheceu tal factualidade.

             No que concerne ao vertido em 4) atentou-se, essencialmente, na conjugação das declarações prestadas pelo arguido, depoimento da testemunha  … e prova documental junta aos autos.

             Não ficou pois o Tribunal, com quaisquer dúvidas, de que os montantes facturados (e que incluem IVA, como resulta dos documentos juntos aos autos e foi confirmado pela Sr.ª Inspectora Tributária) à “...” foram por esta efectivamente pagos.

            Dizer ainda, neste particular, que pese embora tal não tenha invocado nos autos em sede de contestação, a verdade é que, no decurso da audiência, o arguido alicerçou, em parte, a sua defesa no supra aludido entendimento de que, mercê do acerto de contas que havia acordado com a “ … .”, a sociedade arguida não teria tido acesso real às quantias pela “...” transferidas, tendo o arguido procurado de tal fazer prova com a junção dos documentos apresentados na última sessão de julgamento com produção de prova.

             A verdade é que os mencionados documentos apenas permitem concluir que existiram inúmeras transferências bancárias de contas da “WW...” para a “..., S.A.”, sendo que não ressalta de tais documentos sequer que as coisas se passassem como inicialmente o arguido sustentou, a este propósito, dizendo que o dinheiro não chegava sequer a “parar” nas contas da “WW...”, já que não há correspondência entre os montantes transferidos para a “..., S.A.” e os pagamentos que a “...” foi efectuando à “WW...” e o próprio arguido, quando confrontado com tal circunstância, em bom rigor, não logrou dar ao tribunal qualquer explicação clara e cabal, limitando-se (o que aliás fez sempre que confrontado com as “operações” que foi invocando terem existido) a dizer que fez as coisas assim porque nesse sentido foi aconselhado, sem identificar concretamente por quem e/ou com que finalidade exacta; afigurando-se-nos difícil de compreender que, a serem as coisas como o arguido procurou convencer o tribunal, pertencendo a “...” e a “..., S.A.” ao mesmo grupo económico, porque não efectuou a “...” os pagamentos directamente à “...”, antes transferindo o dinheiro para contas da “WW...” ou da “...”, deixando na disponibilidade dos titulares dessas contas (em termos práticos, o arguido) o destino a dar a largos milhares de euros que dessa forma foram canalizados para as mencionadas contas bancárias.

              Acresce que, pese embora o Sr. Administrador de Insolvência tenha confirmado que, das diligências que fez, apurou que terá existido efectivamente um acerto de contas entre a “WW...” e a “...”, não é menos certo que aquilo que o Sr. Administrador neste particular transmitiu ao Tribunal cingiu-se a factos que terá ouvido relatar, de forma vaga, a terceiros e cujo apuramento apenas incidentalmente a ele, Administrador de Insolvência, interessaram, por se ter apercebido de uma elevada facturação, com a correspondente liquidação de IVA, numa altura em que a empresa já estava numa situação económica difícil.

             Assim, e pelo exposto, não ficou o Tribunal com qualquer dúvida de que as quantias aludidas em 11) foram efectivamente recebidas pela “WW...”, nos moldes supra explicados.

              No que concerne ao vertido em 12), valorou-se a prova documental junta aos autos, mormente os documentos atinentes aos processos de execução fiscal instaurados e tramitação a estes respeitante, da qual resulta não apenas a existência de requerimentos de pagamento em prestações (cfr. fls. 69 e 70), como a existência de pagamentos parciais, efectuados até 30 de Setembro de 2009 (pagamentos que terminaram com a suspensão de tais autos, na sequência da declaração de insolvência – cfr. fls. 117).

             O vertido em 13), 16) e 17) resulta da conjugação da factualidade objectiva vertida nos pontos anteriores, com as declarações do próprio arguido e regras de experiência comum. Com efeito, o arguido reconheceu o conhecimento da obrigação legal de proceder ao pagamento do IVA em causa – que aliás não só não questionou em sede de execução fiscal, como aceitou de forma clara, ao proceder a pagamentos parciais e que, dissemos já, só cessaram por causa da declaração de insolvência da arguida – e pese embora tenha procurado defender-se com a tese, construída, de que as quantias em causa não teriam sido efectivamente recebidas, a verdade é que os montantes foram liquidados nas facturas em causa e foram, os relativos ao mês de Fevereiro, contabilizados como recebimentos – já que se assim não fossem não eram considerados na operação que se deu como provada em 8 a 10 - e os relativos aos meses de Maio e Junho foram recebidos por via das transferências bancárias realizadas. Ora, assim sendo, naturalmente não podemos deixar de concluir que se trata de importâncias que foram utilizadas em proveito da sociedade e portanto indirectamente do arguido (quando ao mês de Fevereiro por via do abatimento no crédito que o sócio tinha para com a “WW...” e quanto aos meses de Maio e Junho por via da entrada nas contas bancárias da quantia correspondente ás facturas emitidas, incluindo IVA) e portanto, sendo essas quantias devidas ao Estado, claro está que este ficou prejudicado, pelo menos, em montante equivalente; sendo que o arguido sempre assumiu o seu conhecimento das obrigações legais em causa e das consequências que, do seu incumprimento, poderiam resultar – como aliás não podia deixar de conhecer, atenta a sua experiência profissional.

             Relativamente ao vertido em 14), consideraram-se ainda as notificações efectuadas nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, como consta de folhas 87 e 88 dos autos, respectivamente, ao arguido e à arguida pessoa colectiva.

              No que concerne ao vertido em 15) valoraram-se os factos objectivos dados como provados, conjugados com as regras de experiência comum.

              No que concerne ao vertido em 18) valoraram-se as declarações do arguido, conjugadas com a prova documental junta (mormente certidão extraída dos autos de insolvência, de cuja sentença resulta claro o quadro de graves dificuldades económicas que a sociedade atravessava).

              O vertido em 19) resulta provado mercê da análise do documento junto aos autos a fls. 321 e ss.

              O vertido em 21) e 22) resulta da análise do teor da prova documental junta aos autos, concretamente, certidão extraída do processo de insolvência da arguida, conjugada com as declarações do Sr. Administrador de Insolvência, que confirmou o estado actual dos autos.

              Relativamente à situação económica, familiar e profissional do arguido valoraram-se as suas declarações que, porque neste particular foram feitas de forma espontânea, coerente e séria, se nos afiguraram credíveis.

             No que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos valoraram-se os Certificados de Registo Criminal juntos aos autos.

             No que concerne aos factos não provados, cumpre desde logo referir que se não produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além daqueles que nessa qualidade se descreveram, designadamente por não ter sido produzida mais qualquer prova testemunhal ou por declarações credível e distinto resultado probatório não resultar dos documentos juntos aos autos; sendo que quanto ao facto em concreto dado como não provado o mesmo resulta da prova do vertido em 19), já que resultou apurado que pelo menos desde Março de 2010 não era efectivamente a “WW...” que explorava o estabelecimento industrial e portanto que se dedicava à fabricação e valendo aqui, mutatis mutandis, as considerações que, a propósito dos factos provados, foram já feitas quanto à ausência de credibilidade/prova, da tese propugnada pelo arguido no que concerne ao destino das quantias de IVA liquidadas nas facturas emitidas, bem como quanto aos exactos termos do encontro de contas que, sustenta, existiu entre a “WW...” e a “..., S.A.”.

3. Apreciando

a.

Nas conclusões da motivação, que delimitam o objecto do recurso, refere o recorrente enfermar a sentença recorrida da nulidade prevista na al. a) do n.º 1, do artigo 379.º do CPP, dado não conter a mesma uma enunciação completa dos factos não provados [cf. os pontos 25., 26., 27., 28., 29., 30., 31., 32. e 33].

A ordenação lógica das matérias que submete à apreciação deste tribunal leva, pela consequência que daí pode advir, a que nos detenhamos em primeiro lugar nesta questão, a qual, como vimos entendendo, configura matéria de conhecimento oficioso – [cf. vg. os acórdãos do STJ de 22.03.2001 (proc. n.º 353/01 – 5.ª), 18.11.2004 (proc. n.º 3272/04 – 5.ª), 21.12.2005 (proc. n.º 4642/03 – 3.ª), 04.01.2006 (proc. n.º 3801/05 – 3.ª), 14.03.2007 (proc. n.º 617/07 – 3.ª)].

Vejamos

Em causa está o n.º 2 do artigo 374º do CPP, enquanto, sobre os requisitos da sentença, dispõe que: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal

Contudo, perscrutado o despacho de pronúncia, a contestação – na qual o arguido, ora recorrente, se limita a oferecer o merecimento dos autos e de toda a matéria que em sua defesa resulte da audiência de julgamento – e, bem assim, a fundamentação da matéria de facto, onde se inclui a apreciação crítica da prova, não se colhe resultarem factos relevantes – nem o recorrente os indica - que merecessem ficar consignados como não provados.

Com efeito, ou constituem factos instrumentais que no quadro apurado não assumem relevância, ou se tratam de factos que representam a contra - face dos provados, não devendo, assim, à luz da boa técnica, ser consignados como não provados ou, finalmente, não vão além de factos insusceptíveis de influenciar, juridicamente, a decisão da causa e, como tal, irrelevantes.

Na verdade, o que em tese pode ser afirmado só no caso concreto é susceptível de ser perspectivado, pois que a exigência contida no comando em questão destina-se, tão só, a assegurar que as versões em confronto [da acusação/da pronúncia/ da contestação ou resultantes da discussão da causa (cf. artigo 368.º, n.º 2 do CPP)] foram consideradas e ponderadas pelo julgador, o que manifestamente resulta da fundamentação ter ocorrido.

Daí que, embora do ponto de vista formal seja de evitar a formulação genérica na consideração dos factos não provados, não se veja – nem o recorrente esclarece – qual o facto não inócuo, não instrumental [cf. acórdãos do STJ de 15.01.1997, CJ, Acs. STJ, V, 1, 181 e de 07.10.1998, in CJ, Acs. STJ, VI; 3, 183], não expressamente contraditado pelos factos provados e/ou não insusceptível de influenciar a decisão da causa, deixou de ser consignado como não provado.

Assim, não obstante o reparo que à sentença se possa fazer – o que se concede – o certo é que não decorre que tal modo menos correcto de proceder conduza, no caso, à arguida nulidade, a qual, em consequência, com esse fundamento, se tem por inverificada.

Contudo, ainda nesta sede, suscita a Exma. Procuradora – Geral Adjunta o vício da nulidade da sentença decorrente da circunstância de, embora na mesma se haja levado a efeito o juízo de prognose favorável determinante da aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da prisão, ainda, assim, não se ter ali procedido ao juízo de prognose sobre a razoabilidade do cumprimento da condição a que ficou subordinada por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.

Na verdade, constatando-se a imposição ao arguido/recorrente de uma pena de prisão [concretamente de 2 anos e 8 meses] suspensa na respectiva execução, por igual período, condicionada [à luz do artigo 14.º do RGIT] ao pagamento, no decurso do prazo de suspensão, da prestação tributária e acréscimos legais, com a obrigação adicional de o arguido documentar a cada seis meses nos autos pagamentos parciais à Administração Fiscal por conta do montante global a liquidar, à luz da jurisprudência recentemente fixada [em data anterior à prolação da decisão] no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, de 12.09 [cf. DR, 1.ª série – n.º 206 – 24.10.2012] há que reconhecer ocorrer nulidade da sentença [artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP] por omissão do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica».

Não obstante, com o devido respeito, divergimos da posição da Exma. Procuradora quando defende, com vista à sanação da nulidade, o reenvio do processo, afigurando-se-nos que no caso concreto não será necessário sair do quadro de consequência do vício da nulidade da sentença – o qual não conduz à anulação, ainda, que parcial do julgamento, nem à necessidade legal da respectiva realização por um outro juiz – já porque a sentença não é omissa quanto às condições, designadamente sócio económicas do arguido/recorrente, já porque, tratando-se de matéria recondutível à pena, com vista à sanação do vício não está o tribunal inibido de fazer produzir prova suplementar, reabrindo, naturalmente, a audiência [artigos 369.º e 371.º do CPP], apurando, assim, os elementos, eventualmente em falta, relativos à situação económica, presente e futura, do arguido que permitam proceder ao encadeado de «operações» e «juízos», que surgem como fundamento da jurisprudência fixada, tendentes à formulação do dito juízo de prognose.

Mostra-se, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar nula, por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP], nos sobreditos termos – e não já com o fundamento suscitado pelo recorrente, o qual improcede - a sentença recorrida, nulidade que deve ser sanada com a prolação de nova sentença por parte do tribunal recorrido, se necessário for com a reabertura da audiência para produção de prova suplementar nos termos dos artigos 369.º e 371.º do CPP.

Sem custas

Maria José Nogueira (Relatora)

Isabel Valongo