Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1870/18.1T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO
DÍVIDA PAGÁVEL EM PRESTAÇÕES
ALEGAÇÃO DA INTERPELAÇÃO
CITAÇÃO
Data do Acordão: 03/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 781º C. CIVIL.
Sumário: I - A extinção da execução, em sede de oposição, por insuficiência do título executivo, constituindo um verdadeiro indeferimento liminar, com extinção do processo, prejudica o conhecimento da questão da prescrição da dívida.

II – Se a prova, ou não prova, de um facto estiver definitivamente assente na fase do saneamento pode aqui decidir-se com base em tal realidade.

III - A suficiência do título executivo dado à execução exige que nele estejam presentes todos os requisitos do direito exequendo, de entre os quais consta, relativamente ao incumprimento de dívida pagável em prestações, a alegação e prova da interpelação para o pagamento da totalidade da dívida, pois que tal interpelação se tem por exigível no âmbito do artº 781º do CC.

IV - Porém, podendo a interpelação assumir o cariz de extrajudicial ou judicial, a citação prévia para a execução, se for admissível, deve ter-se como adequada para operar a mesma.

Decisão Texto Integral:




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

T..., LDA., A..., M..., S..., J..., C..., Executados nos autos principais, em que é exequente C..., S.A, vieram deduzir Oposição à Execução mediante Embargos de Executado.

Invocando, em síntese, como fundamentos:

1. a ineptidão do requerimento executivo;

2. a insuficiência do título;

3. a inexigibilidade da obrigação exequenda, por falta de interpelação a pagamento;

4. a prescrição do capital e dos juros.

A Embargada contestou, pugnando pela improcedência dos fundamentos invocados.

2.

Após os articulados em sede de saneamento, no pressuposto de que a questão é de direito e os autos contêm os elementos para decidir, foi proferida decisão de mérito com o seguinte teor:

«Termos em que, atentos os fundamentos acima explanados, este Tribunal decide:

4.1. Julgar procedentes os presentes embargos de executado; e consequentemente,

4.2. Declarar extinta a execução.»

3.

Inconformada recorreu a exequente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º, nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª -  Nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

2ª – Intempestividade da decisão.

3ª -  Desnecessidade de interpelação extrajudicial.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

Clama a recorrente que a sentença é nula porque nela se omitiu pronúncia quanto à questão da prescrição da dívida e dos juros.

Em termos de duma normal tramitação dos autos, ou seja, se o processo tivesse de prosseguir, tal pronúncia impunha-se.

Porém, na decisão apreciou-se sobre um motivo – (in)suficiência do título executivo – cuja apreciação se coloca a montante da apreciação da prescrição.

Na verdade, concluída por tal insuficiência, falha o requisito basilar, a causa petendi da execução, do processo executivo em si mesmo, e este, naturalmente, extingue-se.

Logo, lógica e metodologicamente, todas as questões que, a jusante, e se tal título existisse o processo houvesse de tramitar, se colocariam, ficam prejudicadas na sua dilucidação e apreciação.

Em termos práticos, e jurídicos, a decisão consubstancia um verdadeiro indeferimento liminar da execução, em função do qual, quaisquer outras questões, rectius o seu conhecimento, repete-se, quedam prejudicadas.

5.2.

Segunda questão.

Nos termos dos artºs 595º, nº 1, al. b) do CPC, o despacho saneador destina-se a:

«conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória».

O estado do processo permitirá conhecer imediatamente do mérito da causa sem necessidade de mais provas sempre que a questão seja apenas de direito, ou, sendo de direito e de facto, o processo contiver todos os elementos, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

E não apenas tendo em vista a perfilhada pelo juiz da causa – Abílio Neto, CPC, Anotado, 16ª ed. p.727.

Por outras palavras, pode conhecer-se do mérito da causa sempre que os factos necessários para a resolução do litígio estejam já provados no processo, não carecendo de ulterior instrução ou atividade probatória.

Tal verifica-se seguramente:

- quando toda a matéria de facto relevante  para a decisão segundo as várias soluções plausíveis se encontre provada;

- Quando seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos;

- Quando todos os factos controvertidos relevantes para aquele efeito apenas possam ser provados por documentos, atento o disposto no artº 646º, nº 4 do CPC (então vigente) – cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, 2º, 638 e Abrantes Geraldes, Temas,  2º, 131/32.

Havendo ainda quem aceite um julgamento de mérito antecipado mesmo no caso de alguns factos atinentes à decisão se encontrarem controvertidos, desde que o juiz, através de um juízo de prognose fundado em critérios objetivos, conclua que os já provados permitem a prolação de uma decisão final conscienciosa e segura, o que se verifica no caso de os factos controversos, mesmo a provarem-se, não permitirem a defesa de outra solução que não a adotada – A. Geraldes, ob. cit. 133/34.

In casu, entende a recorrente que foi conhecido intempestivamente quanto se deu como não provado que «a) Os executados, ora Oponentes, previamente à instauração da acção executiva,  foram interpelados pela exequente, para proceder ao pagamento da quantia em dívida.».

E devendo o processo prosseguir para produção de prova testemunhal por si apresentada.

A julgadora deu como não provado tal facto nos seguintes termos:

«Quanto ao facto não provado, o mesmo foi assim considerado atenta a posição manifestada pelo exequente em sede de articulado de contestação, sendo que, inexiste prova documental que permita fazer prova da interpelação extrajudicial do Embargante ao cumprimento.».

Vemos assim que este facto foi dado como não provado com base na posição da recorrente na sua contestação.

E, visto o teor desta, verifica-se que, efetivamente, a exequente admite/confessa, ao menos tacitamente, que não interpelou os oponentes para pagar porque, no seu entendimento, esta interpelação não é exigível.

Por outro lado, a prova testemunhal revela-se inidónea para a prova deste facto o qual, como dimana da decisão, tem de ser -  ao menos por via de regra, e sendo certo que a recorrente não aduziu argumentos para se poder concluir que o caso vertente constitui exceção – provado via documental.

Destarte,  porque a inexistência de interpelação foi aceite pela oponida e porque   o elemento probatório invocado se revelaria irrelevante/inócuo, ou, no mínimo, insuficiente, para a prova deste facto, a sua não prova nesta fase não se alcança intempestiva; antes pelo contrario, se revela pertinente, porque conforme às regras que regem em sede de direito probatório.

5.3.

Terceira, e decisiva, questão.

5.3.1.

A Srª Juíza decidiu nos seguintes termos:

«A suficiência do título traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida. O título executivo há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda.

Por isso, num contrato deste tipo – mútuo bancário em que se acorda o pagamento dos juros e a restituição do capital de forma fraccionada, em prestações mensais – quando se vem exigir a totalidade do capital em dívida e dos juros vencidos e não apenas prestações em dívida (estas sim directamente resultantes das obrigações assumidas no contrato), o título, ou causa de pedir da acção executiva, compreende não só o contrato, onde porventura se clausulou a possibilidade do mutuante exigir a totalidade do capital mutuado, como os documentos comprovativos da verificação do evento de funcionamento dessa cláusula, ou da perda do benefício do prazo, ou de se ter operado a resolução do contrato.

Ora, no caso em apreço, existe uma disposição contratual (cláusula 10ª) que permite ao mutuante considerar antecipadamente vencida a totalidade da dívida em caso de incumprimento de uma das suas obrigações.

Olhando para a mesma constatamos que não se trata de uma cláusula resolutiva, sendo certo que, ainda que o fosse, a solução seria a mesma.

Fundando-se a exigibilidade do total da dívida no disposto em tal cláusula do contrato, não teria a exequente qualquer interesse em resolver previamente o contrato, mas sim, ao abrigo dessa mesma cláusula, querendo, exigir a totalidade da dívida.

O mesmo sucede com o regime previsto no art.º 781º do CC, que, no caso de pagamento fraccionado em prestações compostas de capital e juros, permite ao credor, no caso de falta de uma delas, considerar vencidas todas as demais, sem prejuízo da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 7/2009, publicado no DR 86 SÉRIE I de 05-05-2009.

Nestes casos a exigibilidade da totalidade da dívida não decorre da destruição do contrato, mas do próprio contrato ou da lei.

Contudo, entendemos que o funcionamento da referida cláusula exige prévia comunicação dessa intenção aos mutuários, com a indicação da totalidade da dívida que assim se considera vencida, o que não foi feito.

Assim sendo, na esteira dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.03.2019, 15.12.2016, a interpelação é neste caso constitutiva do direito da exequente exigir a totalidade da dívida e não apenas as prestações em falta.

Sem tal interpelação o título executivo é insuficiente.»

5.3.2.

Dilucidemos.

Estamos perante um contrato de mútuo com pagamento em prestações que foi incumprido.

Cobra aplicação o regime do artº 781º do CC.

Dispõe  este preceito, epigrafado «dívida liquidável em prestações»:

 «Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas»

Como é consabido, e constituem doutrina e jurisprudência esmagadoramente maioritárias, este preceito não é de funcionamento automático, pelo que, em caso de incumprimento de uma prestação, o credor, para resolver o contrato e exigir a totalidade da dívida, tem de interpelar o devedor para o efeito.

As nucleares razões de tal entendimento são as seguintes:

No mútuo oneroso o prazo presume-se estabelecido em benefício não só do mutuante, mas também do mutuário  - art. 1147º/CC.

 Todavia, o devedor/mutuário pode perder o benefício do prazo e a garantia de inexigibilidade da restituição integral de que gozava até ao fim do prazo se faltar ao pagamento de uma das prestações  - arts. 780º e 781º do CC.

Sendo o prazo constituído em benefício de ambos, não se pode coartar ao credor mutuante o direito de avaliar se tem conveniência, ou não, no aproveitamento da faculdade que a lei lhe confere, não estando no espírito nem na letra da norma, e sendo violador do principio da liberdade negocial, a imposição do vencimento automático das demais prestações.

Se é certo que a falta de pagamento de uma prestação é suscetível de fazer com que o credor perca a confiança no devedor quanto ao pagamento das restantes prestações, e se compreenda que pretenda acautelar o reembolso do capital mutuado o quanto antes, também  pode acontecer não ocorrer essa perda de confiança, pretendendo o credor manter na sua esfera jurídica o direito à remuneração pelo período em falta até ao termo que fora inicialmente convencionado, pois que, sem o decurso do tempo, não nasce a obrigação de juros.

Assim, tratando-se de dívida liquidável em prestações, duas hipóteses são possíveis/ plausíveis/admissíveis, a saber:

 i) o credor optar por não interpelar o devedor no sentido de lhe exigir o pagamento imediato das restantes prestações em dívida , situação em que estas se vencerão nas datas inicialmente convencionadas e o credor terá direito aos juros remuneratórios respetivos;

ii) ou optar por reclamar o pagamento antecipado, perdendo o direito aos juros remuneratórios das restantes prestações em dívida, pois que prescindiu do prazo remanescente que os justificava.

Isto é, torna-se necessário que o credor interpele o devedor, para pagar a totalidade da dívida, para que se dê o vencimento nos termos gerais que se inferem do artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil.

Ou seja, o vencimento imediato significa apenas  possibilidade de exigibilidade imediata  do pagamento de todas as prestações  e não já o vencimento automático de todas as prestações, o qual, pelo que se disse, só ocorre  após a interpelação do devedor para o efeito.

Não obstante, tem-se também entendido que a interpelação pode não ser apenas efetivada via  extrajudicial como, outrossim, através da via judicial.

Nesta via, o ato adequado para o efeito, é a citação, se o processo a admitir.

Assim:

«Nas dívidas liquidáveis em prestações, de acordo com o regime consagrado no art. 781º do C. Civil, o não pagamento de uma delas não importa a exigibilidade imediata de todas, cabendo ao credor interpelar o devedor para proceder ao pagamento da totalidade da dívida.

Na redação do Código de Processo Civil conferida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12, o então art. 804º, nº 3 prevenia expressamente a possibilidade de que a interpelação fosse substituída pela citação, operando-se então o vencimento da obrigação com a citação no processo executivo [“quando a inexigibilidade derive apenas da falta de interpelação (…), a obrigação considera-se vencida com a citação do executado”], mas tal hipótese desapareceu na redação introduzida ao artigo pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 08.03, situação que se manteve inalterada na redação decorrente do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20.11, e assim permaneceu até ao atual Código de Processo Civil (na redacção decorrente da Lei nº 41/2013, de 26.06).

 Face ao atual Código de Processo Civil (na redacção decorrente da Lei nº 41/2013, de 26.06), com referência à execução sob a forma ordinária, na medida em que a mesma corresponde à execução com citação prévia e constitui a forma-regra, importa concluir que ao ter lugar a citação (prévia) dos Executados, teve lugar o exercício do direito potestativo de resolução do contrato, com a concomitante interpelação para o pagamento do montante total em dívida, montante este tornado exigível por via do seu operado vencimento, isto é, a resolução foi comunicada e operada com a citação dos Executados nos presentes autos.

Assim, no quadro normativo aplicável à situação, a citação (prévia) dos Executados permitiu efetivamente suprir a necessidade de manifestação e comunicação a estes da vontade de resolver os contratos por parte da Exequente, ainda que unu actu com a instauração da execução.» - Ac. RC de 12.12.2017, p. 10180/15.5T8CBR-A.C1 in dgsi.pt.

Assim é e assim o entendemos.

A instauração de uma ação/execução, nos termos da qual se pretenda cobrar a totalidade de uma dívida pagável em prestações  com o fundamento de que o devedor  incumpriu no pagamento de uma ou mais delas, inequivocamente demonstra a vontade do autor/exequente em resolver o contrato e exigir a totalidade da dívida.

Acresce que este meio se torna ainda mais inequívoco e seguro quanto à manifestação de tal vontade.

Finalmente, os direitos do devedor em nada saem afetados, antes pelo contrário, pois que, ao menos relativamente aos juros de mora das prestações futuras/vincendas, os mesmos apenas são devidos a partir da citação.

O  caso vertente  subsume-se nesta hipótese.

Estamos perante uma execução ordinária na qual a citação prévia do executado é legalmente imposta – artº 726º, nº 6 do CPC.

Os executados foram citados para a execução nos termos do requerimento executivo e do qual dimana que a exequente tem o contrato por resolvido e pretende executar toda a quantia em dívida.

A manifestação de vontade da exequente neste sentido é, pois, inequívoca.

E da pretensão executiva os executados se podem, cabal e amplamente, defender, já em sede jurisdicional, como o estão a fazer, vg. pela invocação das demais exceções como seja a questão da prescrição, a qual, na procedência do recurso e consequente  continuação do processo, tem de ser apreciada.

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º, nº 7 do CPC.

I - A extinção da execução, em sede de oposição, por insuficiência do título executivo,  constituindo um verdadeiro indeferimento liminar, com extinção do processo, prejudica o conhecimento da questão da prescrição da dívida.

II – Se a prova, ou não prova, de um facto estiver definitivamente assente na fase do saneamento, pode aqui decidir-se com base em tal realidade.

III - A suficiência do título executivo dado à execução exige que nele estejam presentes todos os requisitos do direito exequendo, de entre os quais consta, relativamente ao incumprimento de dívida pagável em prestações, a alegação e prova da interpelação para o pagamento da totalidade da dívida, pois que tal interpelação se tem por exigível no âmbito do artº 781º do CC.

IV - Porém, podendo a interpelação assumir o cariz de extrajudicial ou judicial, a citação prévia  para a execução, se for admissível, deve ter-se como adequada para operar a mesma.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a sentença, e ordenar o prosseguimento dos autos com o conhecimento das questões que se deram por prejudicadas perante a extinção da execução.

Custas pelos executados.

Coimbra, 2021.03.16.