Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/08.0JAAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: APLICAÇÃO NA LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO
BURLA INFORMÁTICA
REQUISIÇÃO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 221º CP ; ARTº 6º Nº 1 DA LEI Nº 109/09 DE 15/9 ; ART. 11°, Nº 1 ALS. B) E C) E 14°, NºS 1 E 4 AL B) DA LEI 109/2009 DE 15/09,,5º DO CPP.
Sumário: 1.No artigo 5º do CPP consagra-se o princípio do tempus regit actus, isto é a lei processual penal é de aplicação imediata, aplicando-se mesmo aos processos iniciados antes da sua vigência, a não ser que haja agravamento sensível e ainda evitável da posição processual do arguido ou conflito entre as normas.

2.É indubitável que a possibilidade de obtenção de prova comprometedora do agente quanto à prática dos crimes investigados, através da realização da requerida diligência a qual só agora é permitida pela Lei do Cibercrime, agrava de forma sensível a sua posição processual, pois o mesmo ficará numa posição de ter de se defender de uma prova obtida por esse meio que lhe pode ser desfavorável, e que caso o referido diploma não existisse, não se verifica

3, A referência a arguido na norma do artigo 5º do CPP terá de ser entendida de uma forma ampla e não restrita, abrangendo aqueles contra quem são dirigidas diligências de averiguação ou investigação, desencadeadas no âmbito de um processo penal.

Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

Em processo de inquérito que corre termos na Comarca do Baixo Vouga, Águeda- Juízo, estão a ser investigados factos relacionados com a prática de um crime de burla informática p. e p. pelo artº 221º CP e de um crime de acesso ilegítimo p. e p. pelo artº 6º nº 1 da Lei nº 109/09 de 15/9.
No âmbito das várias diligências efectuadas, e porque importava apurar junto da TV Cabo Portugal a identificação do cliente, mac adress e local de instalação de onde foram utilizados os elementos da conta de acesso à internet, do cliente que utilizou os IP….– 14 de Novembro de 2008 entre as 22H08.56 e as 23H17:40, requereu o Ministério Público ao Mmº JIC a obtenção de tais informações abrigo dos artºs 11º nº 1 b) e c) e 14º nº s e 4 b) da Lei 109/2009.
Por despacho datado de 09.11.13, foi tal requerimento indeferido por se entender, em síntese, que não sendo admissível a diligência à data da prática dos factos, não era de aplicar o regime previsto na Lei 109/2009, porquanto tal acarretaria uma diminuição sensível da posição processual do visado nos termos do artº 5º nº 1 a) CPP.
Inconformado, o Ministério Público recorreu, concluindo:
“- Nos presentes autos investigam-se factos susceptíveis de integrar, em abstracto, à prática de um crime de burla informática p. e p. pelo art. 221, nº 1 do Código Penal, punível com pena de prisão até 3 anos ou multa e de um crime de acesso ilegítimo p. e p pelo art. 7° da Lei 109/91 de 17/08 (actualmente p. e p. pelo art. 6°, nºs 1 e 4 al. b) da Lei nº 109/09 de 15/01).
- Os factos datam de Novembro de 2008.
- Requereu-se ao Mº JIC, nos termos do disposto no art. no art. 11°, nº 1 als. b) e c) e 14°, nºs 1 e 4 al b) da Lei 109/2009 de 15/09, que ordenasse à TV Cabo Portugal que identificasse o cliente (nome, Mac adress e local de instalação, se aplicável) e que tinha atribuído o IP …no dia 14-12-2008 entre as 22H08m56s e as 23H17m40s por considerar tal diligência imprescindível à investigação em causa.
- Na data dos factos tal diligência não era permitida face à moldura penal do crime, sendo hoje admissível atento o catálogo previsto na Lei nº 109/2009.
- Porém, o Mº JIC não aplicou o actual regime por considerar que o mesmo acarretaria uma diminuição sensível da posição processual do visado, nomeadamente quanto às suas garantias, aplicando o art. 5°,nº 2 al. a) do CPP-: (excepção ao princípio da lei processual no tempo)
- Fez assim Mº JIC uma interpretação incorrecta daquele dispositivo no caso em concreto.
- Desde logo porque não existe arguido constituído nos autos apenas um mero suspeito.
- Ademais, e consequentemente a diligência requerida e indeferida pelo Mº JIC não consubstancia qualquer prejuízo muito menos grave da sua posição processual
- No caso em concreto não há qualquer expectativa processual a salvaguardar.
- O Mº JIC violou o disposto no art. 5º 1 do CPP ao não ter aplicado imediatamente a lei nº 109/2009 em obediência àquele dispositivo (princípio geral da aplicação da lei processual no tempo).
Pelo exposto, deve o despacho ser revogado e substituído por outro que em obediência ao disposto no art. 5°, nº 1 do CPP decida pela aplicação de imediato a Lei 109/2009.”
Não foi apresentada resposta.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto é de parecer que o recurso não merece provimento.
Foi dado cumprimento ao artº 417º nº 2 CPP, tendo sido apresentada resposta por parte do ofendido que defende a posição do recorrente.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.


FUNDAMENTAÇÃO


Está em causa a investigação de factos susceptíveis de integrar a prática do crime de burla informática p. e p. pelo artº 221º CP e de um crime de acesso ilegítimo p. e p. pelo artº 7º da Lei 109/91 de 17/8 e actualmente pelo artº 6º nºs 1 e 4 b) da Lei 109/09, que teriam sido cometidos por meio de sistema informático, sendo que nenhum dos ilícitos é punido com pena superior a 3 anos de prisão.
É pois nesse âmbito que se pretendem obter as informações atrás referidas, ao abrigo dos artºs 11º nº 1 b) e c) e 14º nº s e 4 b) da Lei 109/2009 (Lei do Cibercrime).
O recorrente reconhece que à data da prática dos factos (Novembro de 2008), a diligência requerida não era admissível, mas entende que com a entrada em vigor da Lei 109/09, passou a sê-lo, defendendo assim a sua aplicação imediata.
É pois com tal enquadramento que a questão será abordada.
Estamos perante uma questão de aplicação da lei processual no tempo.
Sobre tal matéria rege o artº 5º do CPP:
“1 — A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.
2 — A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou
b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.”.
Consagra-se no referido preceito o princípio do tempus regit actus, isto é a lei processual penal é de aplicação imediata, aplicando-se mesmo aos processos iniciados antes da sua vigência, a não ser que haja agravamento sensível e ainda evitável da posição processual do arguido ou conflito entre as normas.
No caso em análise, recorde-se, foi com base na alínea a) do nº 2 de referido preceito, que o Sr. juiz indeferiu a diligência requerida, razão pela qual a nossa atenção se centrará na interpretação a dar a essa norma, tendo em conta o caso sub júdice.
É que, como resulta da redacção dada à referida alínea, a lei não define o que deve entender-se por agravamento sensível da situação processual do arguido, ficando por isso ao prudente critério do julgador a sua determinação perante cada caso em concreto.
Simas Santos e Leal Henriques dizem-nos Código de Processo Penal Anotado, I Vol., pág. 84. “que o agravamento sensível reflecte um sentido simultaneamente quantitativo e qualitativo, querendo insinuar agravamento palpável, significativo, importante, com repercussão na esfera jurídica processual do arguido”.
Ora sendo tal excepção ao princípio do tempus regit actus, de natureza subjectiva, será, naturalmente, em função dos interesses do arguido que se terá de avaliar se a diligência que se pretende levar a cabo agrava de uma forma irreversível a sua posição processual.
A este respeito Costa Pimenta Introdução ao Processo Penal, pág. 100 diz-nos que “ São susceptíveis de causar agravamento sensível da posição processual do arguido todas as normas que digam respeito a prazos processuais, a nulidades, a proibições de prova, a medidas de coação e de garantia patrimonial, as restrições ao recurso e, em geral, quaisquer institutos para os quais vigore o princípio da legalidade”.
Pois bem neste caso, cremos que é indubitável que a possibilidade de obtenção de prova comprometedora do agente quanto à prática dos crimes investigados, através da realização da requerida diligência a qual só agora é permitida pela Lei do Cibercrime, agrava de forma sensível a sua posição processual, pois o mesmo ficará numa posição de ter de se defender de uma prova obtida por esse meio que lhe pode ser desfavorável, e que caso o referido diploma não existisse, não se verificaria.
Ficaria assim irremediavelmente afectado.
Trata-se pois de matéria que contende com o seu direito de defesa, agravando de forma sensível a sua situação processual.
E não se argumente, como o faz o recorrente que, não havendo ainda arguido, não há limitação do direito de defesa.
Com efeito pensamos que o legislador ao referir-se a “ arguido”, não terá querido abranger apenas aqueles que estão constituídos como tal, pois contendo-se a norma do artº 5º nas disposições Preliminares e Gerais do Código, essa referência terá de ser entendida de uma forma ampla e não restrita, abrangendo aqueles contra quem são dirigidas diligências de averiguação ou investigação, desencadeadas no âmbito de um processo penal.
Daí que concordemos com o Exmº Procurador-Geral Adjunto quando no seu parecer chama à colação as normas do artº 187º nº 4 a) CPP e do nº 3 do artº 9º da Lei 32/08, de 17/7, que se referem igualmente ao suspeito, para defender a interpretação abrangente do termo.
Em suma concluímos que no caso vertente a realização da pretendida diligência ao abrigo da Lei 109/2009, agravaria de forma sensível, e, naturalmente, evitável a situação processual do visado.
Por essa razão o recurso não merece provimento.

DECISÃO

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes desta Relação, em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a douta decisão recorrida.
Sem tributação.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)
Tribunal da Relação de Coimbra, 24 de Fevereiro de 2010.