Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
649/15.7TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: PLANO ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO
PER
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
DESPACHO
CRÉDITOS SUBORDINADOS
PESSOAS ESPECIALMENTE RELACIONADAS COM O DEVEDOR
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – 1ª SEC. COMÉRCIO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º-F, Nº 5, E 48º, AL. A), DO CIRE.
Sumário: I – O artigo 17.º F, n.º 5, do CIRE prevê que o juiz decida se deve homologar o plano de recuperação aprovado pelos credores, devendo recusar a homologação no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.

II - No caso do juiz não detectar qualquer violação destas regras, o dever de fundamentação de uma decisão de homologação revela-se cumprido com a simples declaração da não verificação de qualquer violação que impeça a homologação do plano, pelo que, assim sendo, essa decisão não sofre do vício previsto no art.º 615.º, n.º 1, b), do C. P. Civil.

III - O art.º 48º, al. a) do CIRE considera subordinados os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial já existisse aquando da respectiva aquisição, e ainda quando detidos por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

IV - Com esta disposição inovadora o CIRE pretendeu penalizar os beneficiários de actos de constituição de créditos que à data dessa constituição eram especialmente relacionadas com o devedor, presumindo-se, de modo inilídivel, a existência de um favorecimento desses beneficiários com tais actos, em prejuízo dos demais credores.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Requerente em 24 de Fevereiro de 2015 comunicou ao Tribunal a intenção de iniciar negociações com os seus credores, conducentes à sua revitali­zação mediante aprovação de um plano de recuperação, ao abrigo do disposto no artigo 17º-C, nº 3, alínea a), do CIRE.
Foi nomeado o administrador judicial provisório, o qual, nos termos do n.º 3 do art.º 17º-D do CIRE, apresentou a lista provisória dos créditos a qual foi publicitada em 2.4.2015.
Essa lista foi objecto de impugnação por:
...
A credora C..., L.da respondeu à impugnação efectuada pelo Banco C..., S. A.
Destas impugnações e resposta forma notificados o administrador judicial e a Requerente, tendo os mesmos aceitado as impugnações efectuada por ...
Quanto à impugnação efectuada pelo Banco C..., S. A., que coloca em crise a existência do crédito da reclamante C..., L.da e, no caso do mesmo existir a sua natureza, pronunciou-se o administrador judicial, defendendo a sua improcedência, quanto à sua existência, reconhecendo do montante reclamado € 2.187.988,39 como crédito subordinado e € 1.228.673,39 como crédito comum.
Por despacho de 8.6.2015 foi prorrogado o prazo das negociações por um mês.
Com data de 28.7.2015 o administrador judicial juntou aos autos documento informativo dos resultados obtidos da votação do Plano de Recuperação, com acta da abertura dos votos da qual consta:

Iniciada a reunião, pelo Administrador Judicial Provisório foi constatado que os credores reclamantes e que aderiram às negociações, perfazem a maioria exigida ma parte inicial do n.º 1 do art.º 212º ex vi do art.º 17º-F, n.º 3, ambos do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas, concretamente, tal valor é superior a um terço do total dos créditos com direito a voto.
De seguida, pelos mesmos foram analisados os votos remetidos pelos credores reclamantes e reconhecidos, pelo que, considerando a totalidade de votos emitidos, verificou-se que os votos favoráveis perfazem a proporção de 63,67% da totalidade dos créditos (doc. 1), tendo sido elaborado os documentos em cumprimento do disposto do n.º 4, do art.º 17º-F, do C.I.R.E., que se junta em anexo sob o n.º 1.
Desta forma, considerando o disposto no art.º 212º, n.º 1, aplicável por força do n.º 3, do art.º 17º-F, ambos do C.I.R.E., a proposta de plano apresentada aos credores pela devedora nos presentes autos, pela verificação da maioria qualificada de votos emitidos pelos credores reclamantes encontra-se aprovada.
Com data de 30.7.2015 foi proferida a seguinte decisão:
Atendendo a que votaram mais de 1/3 do total dos créditos com direito de voto e que a proposta do plano de recuperação teve a aprovação de mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos correspondentes a créditos subordinados, nos termos do artigo 212º do CIRE, aplicável ex vi artigo 17º-F, nº 3 do mesmo diploma legal, considera-se o mesmo aprovado.
Nos termos do disposto no artigo 17º-F, nº 5 do CIRE homologa-se o plano de recuperação apresentado.
O Ministério Público e o Banco C..., S.A. interpuseram recurso desta decisão, tendo, previamente ao seu conhecimento, sido ordenado a remessa à 1ª instância para conhecimento das nulidades invocadas e sobre as quais não havia sido proferido despacho.
Com data de 28.1.2016 foi em obediência ao determinado proferida decisão que conhecendo das nulidades invocadas decidiu:
1º) - Julga-se parcialmente procedentes a impugnações apresentadas e em consequência determina-se que:
a) - Reconhecer o valor reclamado pela credora ..., no montante de €66,064,73.
b) – Reconhecer o crédito a favor credora ..., na quantia de €120.033,20, fazendo parte da lista de créditos reconhecida;
c) - Manter a posição assumida pelo Ilustre A.J.P. e reconhecer o crédito reclamado pela credora C..., Lda, no valor de €3.416.661,78, sendo €2.187.988,39 como crédito subordinado e o valor de €1.228.673,39 como crédito comum;
2º) - Fixar ao crédito em causa sob condição 4% dos votos com referência ao montante reconhecido sob condição - artº 50º, do CIRE, ou seja, para efeitos de contagem do quórum deliberativo previsto no art. 212º nº 1, do CIRE.
E, em consequência da decisão proferida sobre as nulidades invocadas, foi proferida decisão complementar da sentença proferida, homologando o plano de recuperação, sendo que tal plano será vinculativo em relação a todos os credores da mesma, com excepção às dívidas de natureza fiscal, sendo tal plano ineficaz em relação àquelas, a quem o mesmo não é oponível”.
Da decisão proferida interpôs recurso o Banco C..., S.A., formulando as seguintes conclusões:
...
A Requerente apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso.
O Ministério Público desistiu do recurso interposto
1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente cumpre apreciar em primeiro lugar as seguintes questões:
a) A sentença recorrida é nula  por falta de fundamentação?
b) O crédito reclamado pelo credor C... deve ser na sua totalidade reconhecido como subordinado, o que determina que o plano de recuperação não obteve o número de votos favoráveis necessários à sua aprovação?
2. Da nulidade da decisão
O Recorrente imputa à decisão proferida o vício da nulidade consistente na ausência de fundamentação da homologação do plano, pois, na sua perspectiva, não especificou os fundamentos de facto e de direito que o levaram a concluir que o plano apresentado pela devedora não era manifestamente inexequível, nos termos e para os efeitos previstos nos art.º 215º ex vi art.º 17º-F, n.º 5, ambos do CIRE, pelo que a sentença é nula por violação do n.º 1, alínea b) do art.º 615º do Código de Processo Civil.
O artigo 17.º F, n.º 5, do CIRE prevê que o juiz decida se deve homologar o plano de recuperação aprovado pelos credores, devendo recusar a homologação no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
No caso do juiz não detectar qualquer violação destas regras, o dever de fundamentação de uma decisão de homologação, revela-se cumprido com a simples declaração da não verificação de qualquer violação que impeça a homologação do plano, pelo que não se mostra que a decisão recorrida sofra do vício previsto no art.º 615.º, n.º 1, b), do C. P. Civil.
1.1.1. Os factos
Com interesse para a decisão das questões colocadas a este tribunal de recurso importa considerar os seguintes factos que se encontram provados.
I - Votaram favoravelmente o plano de recuperação da Requerente os seguintes credores:
..., que somam 14.401,63 €;
Votou desfavoravelmente o mesmo plano, o Banco C..., S.A., titular de créditos que somam 752.223,57.
II – Os sócios da sociedade credora C..., Limitada foram desde a sua constituição J... e M...
III – Os sócios da Requerente foram desde a sua constituição J... e M...
1.1.2. Do direito aplicável
O Recorrente questiona em primeiro lugar a qualificação efectuada pela decisão recorrida dos créditos de C... resultantes da prestação de serviços à Requerente.
A sentença recorrida qualificou-os como créditos comuns. A Recorrente defende que os mesmos deveriam ter sido qualificados como créditos subordinados, com fundamento em que os sócios da C... são também os sócios da Requerente.
Efectivamente está provado este facto.
O art.º 48º, a) do CIRE considera subordinados os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial já existisse aquando da respectiva aquisição, e ainda quando detidos por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Com esta disposição inovadora o CIRE pretendeu penalizar os beneficiários de actos de constituição de créditos que à data dessa constituição eram especialmente relacionadas com o devedor, presumindo-se, de modo inilídivel [1], a existência de um favorecimento desses beneficiários com tais actos, em prejuízo dos demais credores.
O art.º 49º, n.º 2, a) do mesmo diploma determina que são havidas como especialmente relacionados com o devedor pessoa colectiva as pessoas que tenham estado numa relação de domínio ou de grupo, nos termos do art.º 21.º do Código de Valores Mobiliários. E este preceito, no seu n.º 1, considera relação de domínio a relação existente entre uma pessoa singular ou colectiva e uma sociedade quando aquela possa exercer sobre esta, directa ou indirectamente, uma influência dominante.
Ora numa situação em que duas sociedades têm os mesmos sócios,
as suas relações caracterizam-se pela falta de independência entre ambas, resultante da existência de um poder de controlo único e simultâneo sobre uma e sobre a outra, fruto da participação total no capital social de ambas as sociedades pelas mesmas pessoas, pelo que existe uma influência recíproca dominante indirecta entre as duas sociedades, exercida através dos sócios comuns, o que integra esta situação na previsão do art.º 21º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários.

A sentença recorrida, tal como a Requerente nas contra-alegações apresentadas refere, defende que apenas os créditos constituídos a favor de pessoas especialmente relacionadas com o devedor nos últimos dois anos que antecederam o início do processo de insolvência devem ser qualificados como subordinados.
Não é esse, porém, o conteúdo da norma constante do art.º 48º, a), do CIRE.
Segundo o disposto neste preceito são créditos subordinados todos aqueles que são titulados por pessoas especialmente relacionados com o devedor, independentemente da data da sua constituição, desde que nessa data essa relação especial existisse, uma vez que é a existência dessa relação, independentemente da maior ou menor proximidade com o momento do início do processo de insolvência, que faz presumir o favorecimento desses credores. A exigência que o acto ocorra no referido período de dois anos que antecede o processo de insolvência é apenas dirigida aos atos de transmissão desses créditos para terceiros, uma vez que é essa proximidade temporal que faz presumir uma intenção de subtrair os créditos transmitidos ao regime menos favorável dos créditos subordinados [2].
Daí que relativamente aos créditos titulados por pessoas especialmente relacionadas com o devedor a sua qualificação como créditos subordinados apenas está dependente que a sua constituição tenha ocorrido em momento em que já se verificava uma especial relação entre credor e devedor.
E sendo a presunção estabelecida no art.º 48º, a) do CIRE inilidível, não importa apurar se a influência pressuposta pela existência dessa relação se verificou ou não, ou se o concreto credor foi ou não beneficiado na constituição do crédito,
Assim, estando demonstrado que a sociedade devedora (C..., Limitada) e a credora (C..., Limitada) tiveram, desde a sua constituição, os mesmos sócios, deve considerar-se, sem mais, que todos os créditos da segunda sobre a primeira são créditos subordinados.
Atenta esta alteração da qualificação dos créditos há que verificar se isso tem repercussão nos requisitos de aprovação da proposta de recuperação.
O n.º 3 do art.º 17º-F do CIRE diz que se considera aprovado o plano de recuperação que:
a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 17.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções;
ou: b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.
Votaram favoravelmente o plano de recuperação os seguintes credores:
...
Votou desfavoravelmente o mesmo plano o Banco C..., S.A..
Ora, tendo em atenção que os créditos de C..., Limitada são na sua totalidade créditos subordinados, é patente, atento o valor dos créditos, que não se mostra cumprida a exigência de aprovação contida na alínea a) do n.º 3 do art.º 17.º-F do CIRE, de que mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, nem a exigência de aprovação contida na alínea b) do n.º 3 do art.º 17º-F do CIRE, de que mais de metade dos votos favoráveis corresponda a créditos não subordinados.
Não se mostrando verificada nenhuma das duas possibilidades alternativas de aprovação do plano previstas no n.º 3 do art.º 17º-F do CIRE, deve ser recusada a sua homologação.
Por esta razão deve ser julgado procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, ficando prejudicada, por inutilidade, a apreciação das demais questões colocadas pelo Recorrente.
Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, recusando-se a homologação do plano de recuperação da Requerente.
Custas do recurso pela Requerente.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                 Jaime Ferreira


[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, em CIRE anotado, pág. 298, 3.ª ed., Quid iuris, e Menezes Leitão, em Direito da insolvência, pág. 104, ed. de 2009, Almedina,
[2] Alexandre de Soveral Martins em Um curso de direito da insolvência, pág. 247, ed. de 2015, Almedina.