Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
FORMA
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 220º E 334º C. CIV.; AL. M) DO Nº 2 DO ARTº 80º DO CÓDIGO DO NOTARIADO – NA REDACÇÃO DO DEC. LEI Nº 40/96, DE 7/05.
Sumário: I – O contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial esteve sujeito a escritura pública, nos termos da al. m) do nº 2 do artº 80º do Código do Notariado – na redacção do Dec. Lei nº 40/96, de 7/05 -, até 1/05/2000, data da entrada em vigor do Dec. Lei nº 64-A/2000, de 22/04, que reduziu a exigência da forma desse tipo de contratos a documento escrito.

II – Tal forma constitui um requisito ad substanciam, cuja preterição gera a nulidade do contrato – artº 220º do C. Civ..

III – O abuso de direito – artº 334º do C. Civ. – ocorre quando no exercício de um direito, o respectivo titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

IV – Na vertente de “venire contra factum proprium”, traduz-se na conduta contraditória do respectivo titular, ou seja, naquela que criou e objectivamente era susceptível de criar na outra parte a convicção de que o direito em causa não seria por ele exercido e, com base nisso, esta última parte delineou a sua actividade.

V – O princípio da confiança, cuja violação é susceptível de enquadrar a figura da conduta contraditória do “venire contra factum proprium”, não pode assentar em expresso acordo das partes em não observarem formalidade legal que, em função do interesse público, a lei imperativamente exige.

VI –Sendo nulo o contrato, não é exigível qualquer indemnização que se funde no seu não cumprimento, assim como não é possível a redução do negócio, nem releva o que, para efeitos de arrendamento urbano, exigia o artº 9º do RAU.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1 - A... e mulher B... , intentaram, em 30/10/2002, no Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, acção declarativa com processo comum, sob a forma ordinária, contra C... e mulher, D... , pedindo a condenação destes[1]:

a) A reconhecerem que foi celebrado com os autores um contrato definitivo de cessão da exploração comercial;

b) A reconhecerem que esse contrato, não tendo sido celebrado por escritura pública, enferma de nulidade;

c) A restituírem aos autores, por força da nulidade, toda a exploração do estabelecimento, fazendo entrega de todas as partes do imóvel urbano onde o mesmo se encontra instalado e de todos os equipamentos, móveis e utensílios que o integram;

d) A entregarem aos autores a quantia de 1.312.500$00 (6.546,72 €), equivalente à exploração que fizeram do estabelecimento e que não podem restituir em espécie e ainda o valor das prestações vincendas até efectiva restituição do prédio, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal contados desde a citação (ou desde o vencimento de cada uma das prestações vincendas) até integral pagamento;

ou, subsidiariamente, caso se venha a interpretar o contrato como contrato-promessa de cessão de exploração de estabelecimento comercial;

e) A reconhecerem que entraram em incumprimento definitivo e que os autores podem resolver o contrato;

f) A verem resolvido o contrato, resolução que deve ser decretada, impondo-se, em consequência, proceder à restituição do estabelecimento e ao pagamento das quantias, conforme acima pedido; ou, subsidiariamente, ainda, caso se considere que o contrato é definitivo e é válido;

h) A pagarem todas as contraprestações contratuais já vencidas que foram convencionadas no contrato e os respectivos juros de mora, no valor de 6.655,83 €, bem como as vincendas, acrescidas dos juros de mora contados desde a data do vencimento de cada uma e até integral pagamento;

i) Na restituição aos AA. de toda a exploração do seu estabelecimento comercial e de todas as partes do imóvel urbano onde o mesmo está instalado e de todos os equipamentos móveis e utensílios que o integram e que sejam pertença dos AA., com reconhecimento da denúncia exercitada por estes e com efeitos extintivos a partir de 1/3/2005, com consequente reconhecimento de que eles, RR., deixaram de ter título válido que lhes permita continuar a deter a exploração daquele estabelecimento.

Alegaram para o efeito, em síntese, que;

- Embora o documento escrito em que ficou plasmado tal acordo se refira a uma promessa de cessão, na realidade, cederam aos RR, para que estes o explorassem, o estabelecimento comercial composto por restaurante, snack-bar e cozinha, instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito no lugar de ..., freguesia de ..., bem assim como o primeiro andar e as águas furtadas desse prédio, destinado ao uso do Réu (concessionário), para sua habitação, dos seus familiares e ainda ao alojamento de terceiros;

- O prazo da cessão seria de cinco anos, contados a partir de 1 de Março de 2000, automaticamente renovável, por sucessivos períodos de um ano, ou por prazo superior, caso nisso acordassem, sendo a renda mensal no valor de 250.000S00, com IVA incluído;

- Ambos os RR entraram na posse e fruição das partes do referido imóvel e foram eles que passaram a explorar o estabelecimento comercial;

- A Direcção de Serviços de Fiscalização e Controlo de Qualidade Alimentar da Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral, em 11 de Outubro de 2001, inspeccionou o estabelecimento comercial e decidiu suspender a laboração deste, ordenando a realização de obras e melhoramentos ao nível da cozinha, da dispensa, dos sanitários, balcão, bar e sala de refeições;

- Os AA iniciaram de imediato as obras de higienização que foram exigidas, tendo nelas gasto em materiais e mão-de-obra, quantia que ultrapassou os 7500 contos - 37.409,84 euros;

- De 11/10/2001 a 24/06/2002, período em que decorreram as aludidas obras, os RR mantiveram aberta ao público a parte de café, comercializando cafés, vinhos, sandes e as mais diversas bebidas e de todas as vendas recolheram os correspondentes proventos, tendo, contudo, durante este período, deixado de pagar aos AA os valores das prestações mensais;

- Em 24/06/2002 os RR retomaram, em plenitude, a exploração do estabelecimento comercial, mas não retomaram o pagamento das prestações mensais acordadas;

- Em virtude de o contrato ser nulo, por não ter sido reduzido a escritura pública, os RR, não obstante já não poderem restituir aos AA a exploração pretérita do estabelecimento comercial, estão obrigados a restituírem o seu correspondente valor pecuniário, que se traduz, afinal, nas contraprestações mensais pecuniárias;

2 - Citados os RR, apenas o R.C... contestou, fazendo-o por excepção e impugnação, para além de ter deduzido pedido reconvencional, articulado esse que terminou do seguinte modo[2]:

«… condenados os Autores como litigantes de má fé, em multa e indemnização condigna, esta a favor do Réu, e de montante não inferior a 1000 euros, deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada, tanto no que respeita a pedidos principais, quer subsidiários, até pelo manifesto abuso de direito com que litigam, devendo, por fim, ser o pedido reconvencional julgado procedente por provado, como é de Justiça, devendo os Autores, Reconvindos, ser condenados a reconhecerem que:

a) - O contrato celebrado entre Autores e Réu é perfeitamente válido e eficaz;

b) - Que a escritura pública só não foi feita aquando desta contratação, nem posteriormente, apenas pela circunstância de não se encontrar o imóvel na situação prescrita no artigo 9º do RAU, ou seja por eles, Autores, não possuírem, nem sequer terem ao tempo, ainda requerido, a vistoria à Câmara Municipal de ..., para os efeitos visados naquele preceito;

c) - Que, essa falta de licença de utilização, resultante de uma vistoria efectuada há menos de 8 anos é um imperativo legal, superável mediante a obrigação dos Autores a obterem, nos termos legais, falta que só a eles, como donos do imóvel, é imputável, não podendo invocar em seu proveito tal insuficiência, já que o Réu pretende a manutenção do contratado;

não tendo os Autores o direito de invocarem a arguida nulidade, antes têm a obrigação de suprir tal insuficiência;

d) - Caso o não conseguissem, comprovadamente e por motivo julgado justificado deveria/poderia ser reduzido o contrato ao legalmente possível, de acordo com o Alvará a emitir pela Câmara Municipal de ..., o que o Réu também aceita;

e) - Que ao reconhecerem a obrigação de jamais invocarem tal vício, fazendo-o agora, precisamente quando o problema, que foi previsto aquando da contratação, se verifica, a terem tal direito, exorbitam de forma clamorosa e intolerável desse direito, incorrendo em abuso de direito, situação equivalente à ausência de direito, isto se o tivessem;

f) - Ao agirem, como agem, estão constituídos na obrigação de proceder à efectiva legalização do objecto do contrato na Câmara Municipal de ...; e ainda:

g) - A pagarem ao Réu, Reconvinte, a título de indemnização pelos danos patrimoniais já causados, até à presente data, a quantia certa de 22 500 euros (vinte e dois mil e quinhentos euros) pelos danos emergentes e lucros cessantes já verificados ou outra quantia estabelecida com base na equidade e ainda aquela que se vier a liquidar em ulterior execução de sentença quanto aos danos futuros, até efectivo e integral cumprimento do acordado; e ainda no pagamento de 7 500 euros, a título de ressarcimento dos danos morais sofridos, quantias estas, todas elas, sempre acrescidas dos juros legais, agora de 4% ao ano, até efectivo embolso e contados desde a notificação do presente pedido, com todas as legais consequências.

h) - Condenação dos AA no reconhecimento do direito de retenção que assiste aos RR sobre o imóvel objecto do presente contrato até que se mostre paga pelos AA reconvindos a quantia em que vierem a ser condenados.».

3 - Os AA ofereceram réplica, defendendo a improcedência das excepções invocadas e do pedido reconvencional, com a sua absolvição deste último, mais pedindo a condenação do R. em multa e indemnização, como litigante de má fé.

4 - Treplicou o R., alegando que o alvará de licença de utilização emitido apenas abrange a habitação e comércio, deixando de fora parte do objecto do contrato de cessão de exploração - o fornecimento de dormidas a terceiros. Impugnou os factos alegados pelos AA. para fundar o pedido de condenação como litigante de má-fé e pediu a sua absolvição do mesmo.

5 - No despacho saneador relegou-se para final o conhecimento das excepções.

Por remissão, ainda que parcial, para os articulados, procedeu-se à selecção da matéria de facto que se considerava assente e organizou-se a base instrutória, tendo esta última, na sequência de posterior reclamação, sido alterada no que concerne ao quesito 27º, que foi eliminado

6 - Os AA. vieram deduzir articulado superveniente, alegando ter denunciado o contrato por notificação judicial avulsa requerida contra os RR..

Respondeu o R., defendendo a inadmissibilidade do articulado superveniente e pedindo a ampliação do pedido reconvencional, requerendo o reconhecimento do seu direito de retenção sobre o imóvel até que os AA. pagassem a quantia em que viessem a ser condenados na acção.

7 - AA. deduziram novo articulado superveniente, alegando terem constatado, no mês de Janeiro de 2006, que o R. já não estava a explorar o estabelecimento, que apresentava sinais de abandono e degradação.

Após este articulado superveniente, apresentaram os AA. um outro, alegando que, na sequência do abandono relatado no articulado anterior, decidiram recorrer à acção directa no dia 20/1/2006, tendo tomado posse do estabelecimento, mudando as respectivas fechaduras e ocupando-o.

8 - Por despacho proferido a fls. 411 e ss foram os articulados supervenientes admitidos, deferidas as ampliações dos pedidos dos AA. e do R. e, consequentemente, aditados os factos pertinentes à matéria assente e à base instrutória.

B) - Realizada que foi, com gravação dos depoimentos prestados, a audiência de discussão e julgamento, a acção veio a proceder parcialmente, tendo improcedido a reconvenção, tudo conforme o julgado na sentença proferida em 02/06/2009 (fls. 638 a 673), cuja parte dispositiva ora se transcreve:

«(…) Julgo parcialmente procedente a presente acção, pelo que, no mais os absolvendo, condeno os RR. C... e D... a reconhecerem que foi celebrado com os AA. A... e esposa B... um contrato definitivo de cessão de exploração comercial nulo por não ter sido celebrado por escritura pública, e a entregarem aos AA.:

- a quantia de 42.397,66 euros (quarenta e dois mil, trezentos e noventa e sete euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, calculados sobre 11.222,91 euros desde 11/3/2003, e calculados sobre 1246,99 euros desde 10/4/2003, 10/5/2003, 10/6/2003, 10/7/2003, 10/8/2003, 10/9/2003, 10/10/2003, 10/11/2003, 10/12/2003, 10/1/2004, 10/2/2004, 10/3/2004, 10/4/2004, 10/5/2004, 10/6/2004, 10/7/2004, 10/8/2004, 10/9/2004, 10/10/2004, 10/11/2004, 10/12/2004, 10/1/2005, 10/2/2005, 10/3/2005 e 10/4/2005;

e condeno o R. C... a pagar aos AA.:

- a quantia de 11.222,91 euros (onze mil, duzentos e vinte e dois euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, calculados sobre 1246,99 euros desde 10/5/2005, 10/6/2005, 10/7/2005, 10/8/2005, 10/9/2005, 10/10/2005, 10/11/2005, 10/12/2005 e 10/1/2006 - descontando-se o que eventualmente já tenha pago na sequência da transacção lavrada no apenso A (procedimento cautelar);

tudo até integral pagamento .

Custas, nesta parte, por ambos os RR. (cfr. a parte final do nº 3 do artigo 446º do C.P.C.).

Julgo totalmente improcedente a reconvenção, pelo que absolvo os AA. A... e esposa B... dos pedidos contra eles deduzidos pelo R. C... .

Custas, nesta parte, pelo R..

Condeno o R. C... como litigante de má-fé no pagamento de uma multa de montante equivalente a 8 (oito) unidades de conta e de uma indemnização correspondente ao valor das despesas a que tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários do seu ilustre mandatário, a fixar por despacho posterior, nos termos do disposto no artigo 457º, nº 2 do C.P.C..(…)».

II - Desta sentença apelou o Réu, que, a finalizar a sua douta alegação de recurso, apresentou as conclusões que se seguem:

«1º - Os A.A. outorgaram com o Réu marido um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, cujas cláusulas são as que se contêm nas alíneas A) a J) de Factos Assentes;

- Este contrato, celebrado em 14/02/2000 é nulo por falta de forma, dado que em vez de escritura pública foi feito por escrito particular;

3º - Quando os A.A. firmaram com o Réu este contrato este entendeu que o mesmo incluía a utilização do prédio para serviço de pensão;

- O que era conhecido dos A.A., sendo a actividade de pensão que os próprios, cedentes da exploração do estabelecimento, ali já exerciam;

5º - Sabiam os A.A. que a fruição da totalidade do imóvel era essencial para a sua normal exploração, assim o escrevendo no contrato, desde logo na cláusula 2ª e 13ª e também do inventário anexo - a declaração negocial deve ser interpretada de acordo com o disposto no artigo 9º e 239º do Código Civil;

6º - Lê-se na Al. N) de Factos Assentes que no primeiro andar e desde o início do acordo firmado entre A.A. e Réus, estes forneciam dormidas nos quartos ali existentes, num total de 10 quartos, actividade que já ali era exercida anteriormente pelos A.A.;

7º - A nulidade do contrato tem os efeitos previstos no artigo 289º do Código Civil; Todavia,

8º - Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 227º deste citado Código: “ Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”;

- Os A. A. comprometeram-se a não invocar a nulidade derivada da falta de observância da forma e fizeram-no nesta acção; Sendo que,

10º - O estabelecimento não fora encerrado pela Direcção de Serviços de Fiscalização e Controlo Alimentar da Direcção Regional da Agricultura da Beira Litoral por falta de escritura pública, mas, por falta de trabalhos/manutenção de higienização do espaço (fáceis de cumprir) e sobretudo por falta de Alvará de Utilização para aquele ramo de negócio, conforme se contem no Auto de fls.; Com efeito,

11º - No dia 11/10/2001 este organismo inspeccionou o estabelecimento comercial e ordenou a realização de obras e melhoramentos ao nível da cozinha, da dispensa, dos sanitários, balcão e bar e sala de refeições (Al.L) de Factos Assentes);

12º - Os A.A. disso bem cientes, pretendendo e sentindo a obrigação de fazerem o necessário para manterem a plena vigência do contratado, e também porque para disso ficarem cientes foram judicialmente notificados pelo Réu - Doc. nº 1 junto com a Contestação - notificação requerida seis dias após o encerramento - imediatamente iniciaram as obras no imóvel;

13º - Para o visado efeito - como se constata pelos documentos juntos aos autos - a fls. 599 e segs.; e vem assim referido na fundamentação das respostas à matéria de factos de fls. 634 a 636 - os A.A. deram entrada na Câmara Municipal de ..., inicialmente a um Projecto de Licenciamento de Obras destinado à legalização do “estabelecimento hoteleiro”, mencionando nas Plantas juntas para o primeiro e segundo andares (fls. 603 e 604) o termo “dormidas”. Mas,

14º - Após a notificação que lhes fora feita pela Câmara Municipal que para o efeito lhe exigiria o preenchimento de mais condições, designadamente o parecer de outras entidades que superintendem no ramo, optaram os A.A. por limitar o comércio apenas ao rés-do-chão do imóvel, ficando os outros pisos para mera habitação, restringindo a tal o seu pedido na Câmara;

15º - Por iniciativa dos A.A. ficou o objecto do contrato limitado a exploração comercial apenas do rés-do-chão;

16º - Em consequência, o Alvará emitido, a exibir às autoridades competentes, Alvará nº 468/2002, titulava autorização do edifício apenas para comércio (r/c) e habitação nos demais pisos;

17º - Ficou, por factos imputáveis aos A.A., assim, limitada a fruição da exploração do estabelecimento, que explorado como um todo comercial, se passou a confinar ao r/c para comércio - os outros pisos apenas para habitação dos próprios R.R. e empregados;

18º - No período compreendido entre Março/2000 e 11/10/2001 os R.R. utilizaram o estabelecimento tal como lhes fora cedido, em pleno, como pensão, cumprindo escrupulosamente as suas obrigações de cessionário com os A.A.;

19º - Os R.R. mantiveram a parte do Café em regime de normal exploração desde 11/10/2001 até 24/06/2002 (resposta ao quesito 7º);

20º - No período compreendido entre 11/10/2001 e 23/06/2002, o Réu não utilizou nem explorou o restaurante (resposta ao quesito13º) e deixou de pagar as prestações mensais;

21º - Desde o dia 11/10/2001 os R.R. deixaram de poder fornecer alojamento a terceiros (resposta ao quesito 12º);

22º - A partir da ocorrência de 11/10/2001, em que lhes fora encerrado o estabelecimento, suspensa a actividade pelas autoridades, por factos imputáveis aos A.A., os R. R. deixaram de pagar aos A.A. as prestações mensais; Todavia,

23º - Avisaram os A.A. desta sua atitude e seus motivos pela notificação judicial avulsa supra referida, a que dera entrada no Tribunal seis dias após aquele encerramento do estabelecimento - o Doc. que se juntou sob o nº 1 com a Contestação;

24º - Contudo, por transacção de 08/10/2003 lavrada nos autos de Providência Cautelar de Arbitramento para Reparação Provisória, o Réu passou a pagar aos A.A., mensalmente a quantia de €1.000,00, que cumpriu escrupulosamente. Sendo,

25º - Os ora A.A., porque procederam à denúncia do contrato, entenderam … e mal, dizemos nós, já que a prestação estava a ser paga no âmbito desta Acção Ordinária e não como prestações a título de renda - deixaram de apresentar a pagamento seis cheques, os de Abril de 2005 a Setembro de 2005 que fizeram juntar àqueles apensos no dia 04/10/2005 por requerimento de fls. 39;

26º - Isto para concluir que não será acertado também condenar os R.R. a pagarem aos A.A. juros por quantias que os A.A. deliberadamente não quiseram receber, o que se alega para o caso de os R.R. virem a ser condenados também nesta instância;

27º - Desde que negociou com os A.A. e até ao dia 11/10/2001, o Réu alugou quartos a quantos o solicitaram sem quaisquer restrições (resposta ao 29º);

28º- Os A.A. estavam bem cientes dos deveres que sobre eles impendia - artigo 9º do RAU; Por isso que,

29º - Os A.A. iniciaram as obras de construção civil necessárias mesmo antes de obtido o licenciamento e quando este processo administrativo já ia avançado, perante as exigências das entidades que superintendem na matéria, desistiram da legalização do imóvel de acordo com o objecto do contratado e optaram por aligeirar o mesmo convertendo os dois pisos superiores em habitação, ficando destinado apenas o r/c a comércio;

30º - Esta Licença de Utilização não permitiu ao Réu continuar a sua actividade - veja-se o que consta do Auto referido - a Licença de Utilização teria de abranger toda a actividade que o Réu ali vinha desenvolvendo;

31º - O rés-do-chão ficou fisicamente separado do 1º andar e águas furtadas, ficando apenas destinado a comércio o rés-do-chão, tendo sido fechado o acesso da sala de refeições que ali existia do rés-do-chão para o 1º andar, onde foi feita uma parede em tijolo e cimento com reboco afagado e pintura - vide al. K) (art. 9º da Réplica - é o que consta do nº 39 - K da sentença);

32º - As obras que ficaram prontas em meados de Março de 2002 - respostas aos quesitos 3º, 4º e 5º - foram aquelas que permitiram aos R.R. continuar com a exploração comercial apenas do rés-do-chão (o 1º piso, isolado do rés-do-chão por parede nova que também lhes vedou o acesso pelo interior do imóvel, fora contemplado no Alvará apenas com autorização para ser utilizado para habitação);

33º - Os factos dados como provados nos quesitos 16º e 17º da Base Instrutória, aliados à comprovada suspensão da actividade de restaurante e à cessão da actividade de dormidas faz presumir que os R.R. sofreram prejuízos patrimoniais de monta;

34º - Os R.R. sofreram prejuízos morais que merecem a tutela do Direito - os que alegam como causa de pedir do seu pedido reconvencional.

35º - Encontra-se provado que o Réu tinha gosto na sua actividade e desde que soube que o imóvel não estava legalizado para alojamento de terceiros e, por isso, o negócio estava em risco, ficou abatido e desanimado;

36º - O Réu não entregou o imóvel aos A.A. porque havia recorrido ao instituto do direito de retenção para garantir o pagamento por parte dos A.A. do que sentia lhe ser devido pelo censurável, injustificado e prejudicial comportamento que com ele tiveram - a fls. 583 foi aditado ao pedido reconvencional o pedido dos R.R. de serem os A.A. condenados no reconhecimento do direito de retenção que aos R.R. assiste sobre o imóvel objecto do presente contrato até que se mostre paga pelos A.A. reconvindos a quantia em que vierem a ser condenados;

37º - O caso estava pendente no Tribunal, os A.A. provaram que em vários dias seguidos foram visitar o imóvel que permanecia encerrado, não nos parecendo justificação para o exercício da acção directa, uma vez que ambas as partes estavam devidamente patrocinadas também pelos mesmos Advogados. Desde o início, situação que se mantem;

38º - Os A.A. entraram com a acção, invocando a nulidade do contrato, o que se tinham comprometido a não fazer - venire contra factum proprium, o que configura má fé e abuso de direito, o que inutiliza os eventuais direitos dos A.A. - vide artigo 334º e também 239º, ambos do Código Civil;

39º - Como constitui abuso de direito terem desistido do Projecto de Licenciamento com vista à obtenção de um Alvará de Utilização que contemplasse a totalidade do imóvel para comércio, optando por transformar o mesmo em comércio no r/c e o resto apenas para habitação, assim arruinando a vida profissional ao Réu;

40º -- Os prejuízos causados são ressarcíveis, desde logo ao abrigo do citado artigo 227º do C.Civil;

41º - Há erro na interpretação dos factos provados, o que acarreta erro no enquadramento jurídico dos mesmos - desde logo e ao contrário do que nela se lê, os R.R. desde 24/06/2002 inclusive não fruíram plenamente o estabelecimento comercial cuja exploração lhes fora cedida pelos A.A.;

42º - O abuso de direito é, a nosso ver, um estimável instituto jurídico, um instrumento de realização da verdadeira justiça concreta - ao desistir do Projecto tão bem e atempadamente iniciado (o Réu estava disposto a aguardar) dele desistiu, transformando o contrato numa inutilidade para os R.R.;

43º - Se bem que sejam os A.A. a incorrer na inobservância flagrante das leis da República; ubi commoda ibi incommoda - pois se queriam receber tão elevada renda, deveriam legalizar o imóvel tal como a sua exploração fora cedida - se não fora para pensão, jamais o preço teria sido tão elevado - optaram por, de ânimo leva, inviabilizarem todo um projecto de vida de uma família;

44º - Os A.A., dada a nulidade do contrato, teriam os direitos contemplados no artigo 286º do C. Civil, mas apenas na medida em que algo tivessem proporcionado aos Réus no âmbito do mesmo e nessa estrita medida;

45º - Reconhecer-lhes o direito a tudo receberem depois deste seu comportamento: contratarem um estabelecimento, o modo de vida de toda uma família e empregados sem cumprirem o artigo 9º do RAU, e, perante a possibilidade de obterem Alvará de Utilização cujas diligências correctas iniciaram e delas desistiram por não se disporem a diligenciar o que lhes era exigido, é atitude que, a nosso ver, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”;

46º - Acresce que não há qualquer má fé do Réu, o qual prestou um depoimento de parte perante o Mº Juiz que muito ajudou à descoberta da verdade, o qual disse, como consta da assentada de fls., confessado pelo próprio Réu, no seu depoimento de parte de fls. 585 e 586 dos presentes autos:” 5º - Os réus retomaram a exploração do estabelecimento a meio de Junho de 2002- não sabendo precisar o dia, mas por volta do dia 20 - esclarecendo o depoente que nessa data retomaram a exploração em pleno do café e restaurante, mas continuaram a não utilizar e explorar os quartos que anteriormente arrendavam; 6º - Durante todo o período em que decorreram as obras, os réus mantiveram aberto ao público a parte de café, comercialização apenas cafés, vinhos e bebidas, recolhendo o preço dessas vendas; 10º - o réu ao celebrar o contrato, agiu tendo em vista angariar proventos e rendimentos para o bem estar do agregado familiar que formava com a ré e desde que iniciou a exploração recolheu-os e utilizou-os para a satisfação das necessidades de alimentação, vestuário, calçado, saúde e outras do seu agregado familiar; 20º - Os autores é que fizeram as obras no prédio, confirmando o depoente as obras descritas no artigo 9º da réplica ; mais afirmou o réu - a solicitação do ilustre Advogado dos AA - que apesar de não ter retomado a exploração dos quartos, ocupou dois deles, um para sua habitação própria e outro para habitação de uma empregada do estabelecimento”.

47º - Cremos que deste depoimento se deve ajuizar da sua boa fé, que é total - o Réu fez obras de higienização que não logrou provar; as obras feitas pelos A.A. - as descritas supra, que incluem inclusive erigir de paredes - jamais integram o conceito de higienização - há manifesta confusão destes conceitos na sentença; o Réu nunca quis dizer que foi ele que fez as obras de construção elencadas supra, mas sim as de higienização que afinal não logrou provar; há um manifesto lapso dos A.A. ao denominarem as obras que fizeram de higienização, já que em qualquer dicionário este conceito significa apenas limpar, assear e nunca construir, edificar obras que careçam de Projecto Camarário, como foi o caso - há incorrecta interpretação dos factos a respeito alegados;

48º - É o R. que deve ser ressarcido dos prejuízos sofridos, conforme seu pedido reconvencional, sendo que quanto aos danos patrimoniais terão decerto de vir a ser liquidados em ulterior execução de sentença;

49º - Os A.A./Reconvindos são responsáveis pelos prejuízos que lhe causaram por terem deixado de cumprir as obrigações que sobre si impendiam - legalizar o imóvel, que deram à exploração sem observância das exigências do disposto no artigo 9º do RAU e perante a possibilidade e a obrigação de ainda o fazerem - atento o disposto nos artigos 227º e 239º do Código Civil - preceitos aplicáveis, que assim devem ser interpretados, encetaram diligências, mas desistiram delas por comodismo, apesar de alertado desde logo pela notificação judicial avulsa junta sob o nº 1 com a Contestação de fls., desviando-se da finalidade contratada, obtendo uma legalização incompleta - transformando o que era também para comércio em mera habitação e fizeram-no deliberadamente; frustraram expectativas legítimas, juridicamente atendíveis, no nosso ponto de vista;

50º - Sem justificação plausível tomaram posse por acção directa do imóvel - sabendo que o Réu havia pedido ao Tribunal que lhe reconhecesse o direito de retenção sobre o mesmo, até lhe pagarem todos os prejuízos comprovadamente sofridos;

51º - Sobre os A.A. impendem responsabilidades obrigacionais e não o contrário; foram eles que agiram ou mesmo com dolo, ou mera culpa, ou pelo menos negligência;

52º - Os meios probatórios existentes nos presentes autos impõem decisão diametralmente oposta;

53 - Assim, os artigos 227º, 239º, 289º e 334º, todos do C.Civil devem ser interpretados no sentido apontado;

54º - Por violação do disposto, entre outros, para cuja aplicação se invoca o douto suprimento, nos artigos: 9º do RAU (aprovado pelo D.L. nº 321-B/90, de 15/10), 6º, 9º, 227º, 236º, 334º, 289º, 341º, 342º e 762º e segs., todos estes do Código Civil e 266º - A, 456º e segs., estes do Código de Processo Civil; e outros para cuja aplicação se invoca o douto suprimento, deve o presente recurso obter provimento e, em consequência disso, ser a sentença, aliás, douta, revogada nos legais termos e efeitos.».

A findar tal alegação de recurso o Apelante rematou deste modo: «…deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a sentença revogada e substituída por outra que condene os A.A. a pagarem aos R.R. as quantias indemnizatórias pedidas por este ou a que se vier a liquidar em ulterior execução de sentença, acrescidas dos juros, ilibando-o da condenação como litigante de má fé, absolvendo-se os R.R. dos pedidos deduzidos pelos A.A., com as legais consequências…».

Nas contra-alegações que apresentaram, os Apelados pugnaram pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.

Corridos os “vistos” e nada a isso obstando, cumprirá decidir.

III - Em face do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 4, 690, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[3], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [4]).

Diz-se no Acórdão do STJ de 08/03/2001 (Agravo n.º 00A3277): “A palavra conclusões é expressiva. No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta. É claro que para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação" (Alberto dos Reis, “CPC Anotado", vol. V, 1952, p. 359; cfr., também, Rodrigues Bastos, “Notas ao CPC", vol. III, p. 299, e Armindo Ribeiro Mendes, “Os Recursos no CPC revisto", Lisboa, 1998, p. 68).”.

Nesta conformidade, salientou o STJ, no Acórdão de 11/11/2003 (Revista n.º 03A3021): “As conclusões são um resumo, uma síntese do que se expôs nas alegações.».

“Preposições sintéticas”, “um resumo”, “uma síntese do que se expôs nas alegações” eis algo que no caso “sub judice”, salvo o devido respeito, não podem consubstanciar as cerca de meia centena de conclusões do Apelante, facto este que, tendo sido referido nas contra-alegações, se deixa assinalado.

Importa no presente caso saber se, em face da factualidade provada, se mostra correcta a decisão de julgar a acção parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente, importando, ainda, averiguar se foi acertada a condenação do Apelante como litigante de má fé.

IV - Na sentença da 1.ª Instância foi considerada como factualidade provada, a seguinte matéria:

«1. Em 14 de Fevereiro de 2000, os AA. celebraram com o R. um contrato que apelidaram de contrato promessa de cessão de exploração de estabelecimento comercial.

2. Os AA. e os RR. reduziram a escrito o contrato celebrado - cfr. documento de fls. 16 a 22, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido.

3. O contrato escrito vem subscrito e assinado pelo A., por si e na qualidade de representante da A. sua mulher e pelo R. marido.

4. Os AA. e o R. declararam que o contrato de cessão tinha também por objecto o primeiro andar e águas-furtadas do prédio urbano sito no lugar de ..., freguesia da ..., o qual confronta a Norte com caminho, Sul com ...., Nascente com estrada nacional e Poente com ...., inscrito na matriz sob o art.º .... da freguesia de ..., e destinado ao uso do R. (concessionário) para a sua habitação, dos seus familiares e ainda ao alojamento de terceiros.

5. Os AA. e o R. declararam que o contrato de cessão tinha ainda por objecto todos os equipamentos, móveis e demais utensílios que integram o estabelecimento comercial constantes de inventário que ficou a fazer parte do contrato escrito, bem como móveis e utensílios situados no 1.º andar e nas águas-furtadas e que ficaram igualmente assinalados no mesmo inventário apenso.

6. Os AA. e o R. declararam que o prazo da cessão seria de cinco anos contados a partir de 1/3/2000, automaticamente renovável por sucessivos períodos de um ano ou por prazo superior caso nisso acordassem.

7. O R. obrigou-se a pagar a renda mensal no valor de 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos), com IVA incluído, e pagável até ao dia 10 de cada mês a que dissesse respeito.

8. O R. obrigou-se a pagar anualmente um acréscimo de renda no valor de 5% e a partir do mês de Março de cada sucessivo ano.

9. O R. na altura da celebração e outorga do contrato pagou a renda referente ao mês de Março do ano de 2000 e pagou em simultâneo um valor de caução correspondente a um mês de renda.

10. Os AA. e o R. declararam terem pleno conhecimento da exigência formal de escritura pública na celebração do contrato e declararam renunciar à invocação no futuro do vício a que tal falta viesse a dar lugar.

11. Na sequência do contrato celebrado pelo R. marido, ambos os RR. entraram na posse e fruição das partes do imóvel referido e foram eles que passaram a explorar o referido estabelecimento comercial.

12. No primeiro andar do prédio acima referido, e desde o início do acordo firmado entre AA. e RR., estes forneciam dormidas nos quartos ali existentes, num total de 10 quartos, actividade que já ali era exercida anteriormente pelos AA..

13. Em 11/10/2001, a Direcção de Serviços de Fiscalização e Controlo da Qualidade Alimentar da Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral inspeccionou o estabelecimento comercial e decidiu suspender a laboração do estabelecimento e ordenou a realização de obras e melhoramentos ao nível da cozinha, da dispensa, dos sanitários, balcão e bar e sala de refeições.

14. No dia 11/10/2001 foi elaborado o auto de suspensão de actividade e apreensão de equipamento constante de fls. 23 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

15. Os AA. iniciaram de imediato as obras de higienização que foram exigidas.

16. As obras que fizeram, em materiais e mão-de-obra, atingiram a quantia de 35.710,00€ (trinta e cinco mil, setecentos e dez euros), acrescida de IVA à taxa de 17%.

17. Os AA. fizeram as obras de modo seguido e sem interrupções e no final as obras foram vistoriadas pela Câmara Municipal de ..., pelo Serviço de Fiscalização e Controlo da Qualidade Alimentar da Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral e pelos Bombeiros

18. As obras ficaram prontas em meados de Março de 2002.

19. As obras e melhoramentos ao nível das cozinhas, dispensa, sanitários, balcão, bar e sala de refeições ficaram prontas em meados de Março de 2002 e aos 19/6/2002 foram vistoriadas pela Direcção-Geral de Saúde da Região de Saúde de Coimbra.

20. Após meados de Março de 2002, os AA. ficaram a aguardar vistoria e aprovação final por parte da Câmara Municipal de ....

21. A Câmara Municipal de ... emitiu o Alvará de Autorização de Utilização n.º 486/2002 em nome do A., titulando a autorização do prédio para as finalidades de habitação e comércio.

22. No período compreendido entre 11/10/2001 e 24/6/2002, os RR. não pagaram aos AA. as prestações mensais acordadas pela utilização do espaço acima referido, situação que se manteve após 24/6/2002

23. Durante todo o período em que decorreram as obras, os RR. mantiveram aberta ao público a parte de café comercializando cafés, vinhos, sandes e as mais diversas bebidas e de todas as vendas recolheram os correspondentes proventos.

24. Assim, os RR. mantiveram esta parte de café em regime de normal exploração desde 11 de Outubro de 2001 até 24 de Junho de 2002.

25. Desde o dia 11 de Outubro de 2001, os RR. deixaram de poder fornecer alojamento a terceiros.

26. No período compreendido entre 11 de Outubro de 2001 e 23 de Junho de 2002, o R. também não utilizou nem explorou o restaurante.

27. Os RR. enquanto perduraram as obras mantiveram a parte do sector de bebidas (café) aberta, em inteiro funcionamento e em regime de normal exploração, o que ocorreu desde 11 de Outubro de 2001 até 24 de Junho de 2002.

28. Pelo menos a partir de 24/6/2002, o R. voltou a utilizar e explorar o restaurante.

29. Os RR. em 24 de Junho de 2002 retomaram a exploração da parte de café e restaurante do estabelecimento comercial.

30. Os RR. mantêm-se na fruição plena do restaurante e café desde 24 de Junho de 2002.

31. O R. nunca deixou de habitar o primeiro andar e águas-furtadas, tendo ali habitado uma empregada.

32. Desde o início do contrato que o R. residiu no prédio e ali pernoitaram familiares e a mulher, bem como empregados seus.

33. Desde que negociou com os autores e até ao dia 11/10/2001, o R. alugou quartos a quantos o solicitaram, sem quaisquer restrições.

34. O R., ao celebrar o contrato, agiu tendo em vista angariar proventos e rendimentos para o bem estar do agregado familiar que formava com a R. e desde que iniciou a exploração recolheu-os e conduziu-os para a satisfação das necessidades alimentares, vestuário, calçado, saúde e outras do seu agregado.

35. Quando firmou com os AA. o acordo acima referido, entendeu o R. que o mesmo incluía a utilização do prédio para serviços de pensão.

36. No dia 9/1/2004, foram os RR. notificados da notificação judicial avulsa requerida pelos AA., cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, nomeadamente de que “(…) Para a hipótese do Tribunal vir a qualificar o contrato de cessão de exploração e formalmente válido, nesse caso e por cautela os requerentes desejam desde já prevenir os requeridos de que é sua vontade denunciá-lo para o termo do prazo e de que não querem a sua renovação, manutenção e ou prorrogação e estão contratualmente em tempo para levarem ao conhecimento destes últimos esta sua vontade que desde já e por esta via manifestam.(…)”.

37. O R.:

a) no período de 1/4/2001 a 30/6/2001 declarou como base tributável para efeitos de IVA a quantia de 11.451,58€;

b) no período de 1/7/2001 a 30/9/2001 declarou como base tributável para efeitos de IVA a quantia de 19.710,81€;

c) no período de 1/10/2001 a 31/12/2001 declarou como base tributável para efeitos de IVA a quantia de 2.992,79€;

d) no período de 1/1/2002 a 31/3/2002 declarou como base tributável para efeitos de IVA a quantia de 3.035,72€;

e) no período de 1/4/2002 a 30/6/2002 declarou como base tributável para efeitos de IVA a quantia de 8.750,00€.

38. O R. tinha gosto na sua actividade e desde que soube que o imóvel não estava legalizado para alojamento de terceiros e, por isso, o negócio estava em risco, ficou abatido e desanimado.

39. Os AA. fizeram as obras necessárias, a saber:

a. Construção de raiz no topo Sul do edifício de uma casa de banho, um duche, lavatório, armário duplo, tudo para uso de empregados, com levantamento de paredes exteriores e interiores, placa em cimento, telhado, revestimentos interiores com reboco revestido, depois com azulejos nas paredes e mosaicos nos pavimentos, pinturas exteriores e interiores em tectos e paredes e portas e janelas em alumínio, rede mosqueiro contra insectos nas janelas, condutas eléctricas e lâmpadas e canalizações;

b. A seguir (sentido Sul/Norte) foi edificada de raiz uma despensa para arrumos com levantamento de paredes exteriores e interiores, placa em cimento, telhado, rebocos exteriores e interiores, pavimentos a mosaico, afagamento e pintura dos rebocos interiores e exteriores, pinturas exteriores e interiores em tectos e paredes e aplicação de portas e janelas em alumínio, rede mosqueiro contra insectos nas janelas e condutas eléctricas e lâmpadas;

c. A seguir, no mesmo sentido, foi edificado de raiz um corredor com levantamento de paredes exteriores e interiores, placa em cimento, telhado, rebocos exteriores e interiores, pavimentos a mosaico, afagamento e pintura dos rebocos interiores e exteriores, pinturas exteriores e interiores em tectos e paredes e aplicação de porta em alumínio e com mola de retorno e toda a condutação eléctrica e lâmpadas;

d. A seguir, no mesmo sentido, de acordo com o princípio de “copa suja” e “copa limpa”, foi edificada de raiz uma segunda cozinha com levantamento de paredes exteriores e interiores, placa em cimento, telhado, revestimentos interiores com reboco revestido, depois com azulejos nas paredes e mosaicos nos pavimentos, pinturas exteriores e interiores em tectos e paredes, portas e janelas em alumínio, rede mosqueiro contra insectos nas janelas, condutas eléctricas e lâmpadas e canalizações com aplicação de bancadas, lava-louças em triplicado e lava-mãos com pedal, tudo em material “inox”;

e. A seguir, no mesmo sentido, e de acordo com o mesmo princípio, foi renovada a cozinha pré-existente com pavimento novo revestido a mosaico, aplicação de rebocos novos nas paredes existentes, aplicação de azulejos novos nas paredes, repintura de tectos, uma janela em alumínio com rede mosqueira e com aplicação de bancadas, lava-louças em duplicado e lava mãos sem pedal, tudo em material “inox” e ainda a construção de uma conduta nova de exaustão com “hott” de fumos e com a criação de novo de uma cabine para alojamento de gás feita em tijolo e cimento, rebocada e telhada e vedada com uma porta em alumínio;

f. A seguir, entre a cozinha e a sala de refeições, foi criada de novo uma abertura em redondo para passagem de louças sujas, com criação do respectivo vão, aplicação de rebocos no vão, revestimento com azulejos e pedra mármore e aplicação de uma vedação em alumínio;

g. A seguir, a porta de entrada principal do café, que era em alumínio, foi substituída por outra porta também em alumínio, mas com abertura para o exterior e não para o interior, como antes ocorria;

h. A seguir, no alçado Poente do edifício, foram restauradas as casas de banho públicas, com pavimento novo revestido a mosaico, aplicação de rebocos novos nas paredes existentes, aplicação de azulejos novos nas paredes, repintura de tectos, abertura de novas janelas de raiz, dotadas de estruturas de vedação em alumínio, todas com rede mosqueira e com aplicação de louçarias e torneiras novas;

i. A seguir, no limite Norte do imóvel, foi restaurada a zona de arrumos de vasilhame e por isso foi feito um pavimento novo que ficou em cimento afagado, rebocos exteriores novos;

j. Na sala e na cozinha foram aplicados extintores para combate a incêndio;

k. Na extremidade Norte da sala de refeições foi fechado um acesso que ali existia do rés-do-chão para o 1.º andar do imóvel e foi feita uma parede em tijolo e cimento com reboco afagado e pintura;

l. No 1.º andar os AA. foram obrigados a transformar um dos quartos existentes em cozinha e para tanto tiveram que refazer o chão com pavimentação em mosaico, paredes em azulejo e equipamento, nomeadamente bancada, fogão e exaustor com chaminé.

40. Após a realização da última vistoria realizada, os RR. retiraram todos os cortinados que haviam colocado nas portas e janelas do imóvel e reaplicaram os que pertenciam aos AA..

41. Durante o mês de Janeiro de 2006, os AA. foram em diversos dias ao recinto do estabelecimento e este encontrava-se sempre encerrado, tendo deparado com a porta da sacada da varanda do 1.º andar aberta.

42. Numa das ocasiões em que se deslocaram ao recinto do estabelecimento, os AA. notaram que o vidro da porta da fachada estava partido junto ao manípulo da fechadura.

43. Até ao dia 20/1/2006, o estabelecimento esteve encerrado e abandonado.

44. Até ao dia 20/1/2006, a porta da sacada do 1.º andar manteve-se aberta.

45. Tornava-se fácil a qualquer pessoa escalar o anexo no ângulo nordeste do edifício, que tem 2,20m de altura, e pela dita porta aceder ao interior do estabelecimento.

46. No dia 20/1/2006, pelas 15 horas, os AA. mudaram as fechaduras existentes nas quatro portas exteriores.

47. Fecharam a porta da sacada do primeiro andar, trancando-a por dentro e correndo o estore.

48. Os AA. casaram um com o outro em 31/5/1969, segundo o regime da separação de bens - documento de fls. 29.

49. Os RR. casaram um com o outro no dia 8/8/1992, sem celebração de convenção antenupcial, tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença de 11/2/2005, transitada em julgado em 4/4/2005 - documento de fls. 596.».

V - A) -Tendo-se procedido, no presente caso, ao registo da prova por gravação dos depoimentos prestados em audiência, o Apelante, embora não haja peticionado, designadamente, nas conclusões da sua alegação de recurso, qualquer alteração na factualidade que se teve como provada na sentença recorrida, aponta como violada, entre outras, a norma do art.º 342º do CC, referindo, ainda, que “os meios probatórios existentes nos presentes autos impõem decisão diametralmente oposta”.

Ora, conforme resulta do despacho em que se respondeu à base instrutória, as respostas dadas a esta fundaram-se nos documentos juntos, no resultado da prova pericial, no depoimento de parte do réu, nos depoimentos das testemunhas (v.g., das testemunhas E..., F..., G..., H..., I..., J..., L..., M...).

Não se encontra, contudo, qualquer alegação do Apelante no sentido de, com base em concreta crítica à valoração pelo Tribunal “a quo” de qualquer um dos apontados elementos probatórios, pedir, mediante a respectiva reapreciação, a alteração de alguma das respostas dadas aos pontos da BI.

Não existindo, assim, por parte do recorrente, eficaz impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, designadamente, nos termos do disposto no Art.º 690-A, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPC, não se encontra fundamento que nos leve a concluir estar-se perante qualquer uma das restantes situações previstas no n.º 1 do art.º 712 do CPC, que habilitam o Tribunal da Relação a proceder à alteração da matéria de facto fixada na 1.ª Instância.

Assim, a matéria de facto que se tem por assente é aquela que na 1.ª instância foi dada como provada e que ora está elencada em IV - “supra”.

B) - Atenta a factualidade assente, dúvidas não restam, sendo, aliás, expressamente aceite pelo Apelante na sua alegação de recurso (conclusões 1ª e 2ª), que, entre ele e os AA. foi celebrado um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, sem observância da forma legal prescrita (escritura pública - al. m) do nº 2 do artigo 80º do C. do Notariado - aditada pelo DL. 40/96 de 07/05) - forma essa que constitui um requisito “ad substanciam”, cuja preterição gera a nulidade “ex vi” do art.º 220º do CC[5].

Contudo, o Apelante discorda que o Tribunal tenha entendido ser admissível aos AA invocar essa nulidade, dado entenderem que tal invocação consubstancia abuso do direito, pois no escrito particular onde ficaram plasmados os termos do contrato, ambas as partes declararam ter conhecimento da exigência formal de escritura pública na celebração deste e renunciaram à invocação do vício respectivo.

O abuso do direito (art.º 334º do CC) ocorre quando no exercício de um direito, o respectivo titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Na vertente do “venire contra factum proprium”, traduz-se na conduta contraditória do respectivo titular, ou seja, naquela que criou e objectivamente era susceptível de criar na outra parte a convicção de que o direito em causa não seria por ele exercido e, com base nisso, esta última parte delineou a sua actividade.

Vejamos. Não pode associar-se a falta de licença de utilização à não outorga de escritura pública, já que, para além desse nexo ter sido expressamente dado como não provado (resposta ao artº 11 da BI)[6], são as próprias partes que, desde logo, quando contrataram, prescindiram dessa formalidade.

Essa conduta, em nosso entender, não pode colher o nosso beneplácito, sob pena de - abrindo-se, assim, campo a práticas idênticas -, ter como legítimas as condutas levadas a cabo por quem, com pensada intenção de defraudar a disposição legal que impõe a apontada formalização, impede o Tribunal de apreciar nulidade que, sendo de conhecimento oficioso, sempre lhe cumpriria declarar (note-se que foi sobre um contrato de cessão de exploração comercial, não reduzido a escritura pública, que versou o acórdão fundamento analisado no Assento do STJ nº 4/95, de 28 de Março, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17/05/95).

Efectivamente, para quê os gastos de tempo e de dinheiro na outorga de escritura pública, quando basta, para evitar a declaração da nulidade do contrato, que ambas as partes renunciem à invocação desta?

Assim, o princípio da confiança, cuja violação é susceptível de enquadrar a figura da conduta contraditória do “venire contra factum proprium”, não pode assentar em expresso acordo das partes em não observarem formalidade que, em função do interesse público, a lei imperativamente exige.

Não negamos que poderão existir casos em que o abuso do direito de quem a invoca possa obstar que a nulidade respeitante à inobservância da forma legal seja declarada pelo Tribunal, mas esses serão casos excepcionais, em que, não havendo acordo de contornar a lei, se demonstre que quem vem arguir a nulidade preparou-a propositadamente, ou, actuou por forma censurável e intolerável, excedendo, manifestamente, dessa forma, os limites impostos pela boa fé[7].

Ora, a factualidade assente no caso “sub judice” não revela uma tal situação excepcional, não se podendo olvidar, ainda, que, face ao mais peticionado pelos AA., a declaração de nulidade é, digamos, instrumental do seu desiderato principal que é o de receber, embora por via da restituição prevista no art.º 289º, nº 1, do CC, o montante das prestações que, em contrapartida da cessão de exploração, os RR deixaram de pagar. A invocação da nulidade encontra, assim, na conduta dos RR lesiva do património dos AA, o seu fundamento mediato.

Não se deixará de assinalar que, embora o R. não haja utilizado ou explorado o Restaurante, de 11 de Outubro de 2001 a 23 de Junho de 2002, os RR, enquanto perduraram as obras mantiveram a parte do sector de bebidas (café) aberta, em inteiro funcionamento e em regime de normal exploração e em 24 de Junho de 2002 retomaram a exploração da parte de café e restaurante do estabelecimento comercial, tendo-se mantido, a partir dessa ocasião, na fruição plena desse restaurante e café (pontos nºs 26, 27, 29 e 30), sendo com esta amplitude que se deve interpretar a sentença recorrida quando nela se escreve - à semelhança daquilo que foi dito pelo Réu em audiência e foi exarado na respectiva acta[8] - “os RR. desde 24/6/2002, inclusive, fruíram plenamente o estabelecimento comercial cuja exploração foi cedida pelos AA.”.

E de notar também é, que, não obstante a ausência da dita licença, “desde que negociou com os autores e até ao dia 11/10/2001, o R. alugou quartos a quantos o solicitaram, sem quaisquer restrições” (ponto n.º 33), sendo que, “no período compreendido entre 11/10/2001 e 24/6/2002, os RR. não pagaram aos AA. as prestações mensais acordadas pela utilização do espaço acima referido, situação que se manteve após 24/6/2002” (nº 22 da matéria de facto acima elencada).

Por último, afigura-se correcta, face aos termos do contrato, a conclusão do Mmo. Juiz do Tribunal “a quo” ao afirmar que “…o objecto principal do contrato celebrado é o estabelecimento comercial de restaurante, snack-bar e cozinha instalado no rés-do-chão.”.

E que os RR deixaram de pagar as prestações aos AA é algo de inequívoco, que, temperado com o que é tomado em conta na decisão recorrida, ou seja, com o que o apelante já tinha pago “…na sequência da transacção lavrada no apenso A (procedimento cautelar)”, configura a situação que se surpreende nos presentes autos, sendo despiciendo apelar à consideração de outros cenários que a matéria de facto provada não suporta.

Assim, sendo a factualidade provada aquela que acima se discriminou, salienta-se que nela não se revê, nem se pode confortar, o seguinte que o Apelante refere no corpo da sua alegação de recurso ou nas respectivas conclusões[9]:

- que os A.A. sabiam “que a fruição da totalidade do imóvel era essencial para a sua normal exploração” (conclusão 5ª);

- que tenha sido por factos imputáveis aos A.A., que ficou “o objecto do contrato limitado a exploração comercial apenas do rés-do-chão” (conclusões 15ª e 17ª);

 - que haja sido devido factos imputáveis aos AA que os R. R. deixaram de lhes pagar as prestações mensais (conclusão 22ª);

 - que “…a prestação estava a ser paga no âmbito desta Acção Ordinária e não como prestações a título de renda…”; (conclusão 25ª);

- Que “foram os A.A. que se negaram a receber as ditas prestações” (art.º 39º, ponto 6, do corpo da Alegação de recurso);

33º - que os R.R. “sofreram prejuízos patrimoniais de monta” (conclusão 33ª);

43º - que “se não fora para pensão, jamais o preço teria sido tão elevado” (conclusão 43ª).

Sem prejuízo daquilo que já se deixou dito quanto ao invocado abuso do direito, dir-se-á que, “mutatis mutandis”, a situação que se nos depara apresenta semelhanças com àquela de que tratou o Acórdão do STJ 22-09-2005 (Revista n.º 1797/05), assim sumariado: “Não existe abuso de direito quando, num contrato de arrendamento nulo por falta de forma, o proprietário venha invocar essa nulidade, depois de ter feito crer ao arrendatário que iria proceder à realização das diligências necessárias à obtenção da licença de utilização, necessária à realização da escritura, mas desistindo de o fazer depois de começarem a não ser pagas as rendas previstas.”.

Assim, não ocorrendo a situação de abuso do direito prevista no art.º 334º, do CC, mostra-se correcta a declaração de nulidade do contrato, bem como, de acordo com o disposto nos art.ºs 220º 220º, 289º, nº 1 e 3, 1269º, n.º1, 1270º, nº 1, todos do mesmo Código, acertada é a condenação dos RR na restituição do montante de 250.000$00 por mês, equivalente ao valor locatício mensal do estabelecimento,[10] desde Julho de 2002 e até à ocasião em que os AA tomaram posse deste, em 20/1/2006.

Está também correcta a condenação dos RR no pagamento de juros de mora deste a citação, como se decidiu e bem se explicitou na sentença recorrida, reiterando-se que não colhe apoio factual a tese do Réu quanto à mora dos AA.

Efectivamente, uma vez que “a partir da citação cessa a boa fé dos RR., atento o disposto no artigo 1271º do C.C., têm os AA. direito aos juros das quantias correspondentes ao valor do gozo do estabelecimento a partir da data em que cada uma delas seria devida.”.

Quanto ao que peticionado foi pelo Réu em via reconvencional, afastados que foram os pedidos formulados sob as alíneas a), b) e c), e que a exposição precedente confirma, referiu-se na sentença recorrida: «(…) O R. formula um pedido de indemnização contra os AA., invocando ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais . Aqueles, que liquida desde já em 22.500 euros, sem prejuízo do que se vier a liquidar posteriormente, são relativos à privação de uso do objecto do contrato, ou seja, a não exploração do restaurante entre 11/10/2001 e 2376/2002 e a não exploração da actividade de fornecimento de dormidas desde 11/10/2001; estes, prendem-se com a circunstância de viver amargurado, dormir mal e ter tido necessidade de intervenções médicas .

O R. funda este seu pedido na falta de licença de utilização, a emitir pela Câmara Municipal de ..., mas a obter pelos AA..

Em primeiro lugar, dir-se-á que, sendo nulo o contrato celebrado, não pode o R. ser indemnizado pelos danos emergentes do incumprimento do contrato, pois tal pressuporia a sua validade .

O que poderia ocorrer era o direito a ser indemnizado por responsabilidade civil pré-contratual, em função do interesse contratual negativo ou dano da confiança, ou seja, do prejuízo que não teria se não tivesse celebrado o contrato .

(…)

…o R. optou, na sua contestação, pela manutenção do contrato e não peticionou a indemnização com base no referido interesse contratual negativo :

É que, ainda que o R. lograsse provar que a não exploração integral do estabelecimento se ficara a dever à conduta culposa dos AA., o que não fez em face da resposta dada ao ponto 18º da base instrutória e do teor do ponto 21 dos factos provados, o que é certo é que os danos que resultaram provados não constituem dano da confiança, mas antes do interesse contratual positivo .

Deste modo, dúvidas não restam de que está votado ao insucesso o pedido indemnizatório em questão .

Por último, tendo em atenção a improcedência do pedido de indemnização formulado pelo R. e a circunstância de este já não ter na sua posse o imóvel objecto do contrato celebrado - cfr. os pontos 46 e 47 dos factos provados - manifesto se torna a improcedência do pedido de condenação dos AA. no reconhecimento de qualquer direito de retenção ao R..»[11].

Ora, concordando-se com este entendimento do Tribunal “a quo” haverá que realçar que, de facto, a indemnização peticionada pelo Réu não a alicerçou este na responsabilidade pré-contratual dos AA, que agora tanto salienta, antes fundando aquela no incumprimento do contrato e, consequentemente, na validade deste.

E que isto assim é, evidencia-o logo o primeiro dos pedidos formulados em reconvenção, que consistiu, precisamente, na condenação dos AA a reconhecerem que “o contrato celebrado entre Autores e Réu é perfeitamente válido e eficaz”.

Significa isto que a questão não se reconduz à falta de verbalização, nos articulados do ora Apelante, da expressão “culpa in contrahendo”, antes representando a não utilização efectiva de causa de pedir fundada na responsabilidade extra-contratual dos AA.

Ora, sendo nulo o contrato, não é exigível qualquer indemnização que se funde no seu não cumprimento - assim como, de modo patente, não é possível a redução do negócio, nem releva o que, para efeitos de arrendamento urbano, exigia o art.º 9º do RAU -, restando afirmar ser vedado ao Reconvinte, em sede de recurso, fazer assentar o peticionado em causa de pedir diversa daquela que invocou nos seus articulados (art.º 273º, n.º 1, do CPC).

Diga-se, no entanto, que sempre estaria ausente, pois da factualidade apurada ela não se extraí, a culpa dos autores na produção dos danos invocados pelo Réu, sendo certo que esta consubstancia pressuposto e fundamento da responsabilidade pré-contratual, que exige a imputação de um juízo de censura à conduta do responsável fundado no reconhecimento, à luz do disposto no art.º 487º, nº 2, do CC, de que este podia e devia ter agido doutro modo[12].

Não se entende, face à matéria de facto apurada (Pontos nºs 42 a 45), que outra posição fosse de tomar nos autos quanto à referida acção directa levada a cabo pelos AA, senão a de levar em consideração - como se fez na sentença recorrida, ao apreciarem-se os pedidos formulados por estes sob as alíneas c) e d), relativos à restituição do estabelecimento e do equivalente às prestações mensais não pagas pelos RR -, a circunstância de os AA., por força do estado de abandono do estabelecimento comercial, terem tomado posse do mesmo em 20/1/2006, deixando, assim, nessa data, de facultar o respectivo gozo aos RR.

Assim, deixando os RR de estar na posse do imóvel, não se vislumbra que alcance pudesse ter o reconhecimento do direito de retenção peticionado pelo ora Apelante, salientando-se que, não sendo reconhecido a este qualquer crédito sobre os AA, queda-se destituída de razão a invocada retenção, que funcionaria, precisamente, como garantia desse crédito.

Está correcto, pois, o julgamento do Tribunal “a quo” quanto à total improcedência da reconvenção.

Insurge-se o Apelante contra à sua condenação como litigante de má fé. Sem razão, contudo.

No que a esta matéria respeita, referiu-se na sentença recorrida:

«… decorre da matéria que resultou provada (cfr. o ponto 39 dos factos provados) não apenas que os AA. lograram provar a sua versão no que toca à autoria das obras, mas também, necessariamente, que o R. efectivamente sabia que o que afirmara em contrário não tinha qualquer fundamento e que distorcia a realidade :

É clara não só a falta de fundamento da oposição (falta de fundamento essa que o R. não podia de modo algum ignorar), como também a intenção do R. de alterar a verdade dos factos, pois sabia perfeitamente que não tinha sido ele a efectuar as obras no imóvel, mas não se coibiu de vir a este processo afirmá-lo .».

Diz o Apelante que houve errónea interpretação daquilo que por ele foi alegado quanto às obras e que a atestar a sua boa fé está a confissão que fez em audiência.

Não entendemos que seja relevante, para o que está em causa, a referida confissão, já que esta ocorre em momento em que já vários elementos de prova (v.g. relatório pericial e documentos juntos), atestariam a verdade dos factos alegados pelos AA quanto às obras e que o Réu, não obstante conhecer essa realidade, negou na contestação.

E essa negação não tem nada de equívoco.

Exemplifiquemos: Os AA, tendo alegado no art.º 15º da sua petição que a Direcção de Serviços de Fiscalização e Controlo de Qualidade Alimentar da Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral decidiu suspender a laboração do estabelecimento e ordenou a realização de obras e melhoramentos ao nível da cozinha, da dispensa, dos sanitários, balcão e bar, e sala de refeições, alegaram nos art.º 16º 17º e 18º desse articulado:

16° - Os AA iniciaram de imediato as obras de higienização que foram exigidas.

17º - Nas obras que fizeram, em materiais e mão de obra gastaram quantia que ultrapassou os 7500 contos - 37.409,84 euros.

Ora, quanto a isto, alegou o Réu na contestação:

7º - O Réu impugna especificadamente os factos alegados pelos Autores no seu artigo 16°. Já que,

8º - Foi o Réu que iniciou de imediato e rapidamente concluiu todas as obras de higienização que lhe foram exigidas, aquando da inspecção e notificação do respectivo auto que foi lavrado dia 11/10/2001.

Ora, sem que o alegado pelo Réu tenha ficado assente, a confirmação do articulado pelos AA. está plasmada nos factos provados acima elencados (v.g. pontos nºs 15 a 19 e 39).

Entende-se, pois, ser correcta a seguinte afirmação que se faz na sentença impugnada: «É clara não só a falta de fundamento da oposição (falta de fundamento essa que o R. não podia de modo algum ignorar), como também a intenção do R. de alterar a verdade dos factos, pois sabia perfeitamente que não tinha sido ele a efectuar as obras no imóvel, mas não se coibiu de vir a este processo afirmá-lo.

Não se trata de uma simples questão de não prova dos factos por si alegados, mas da efectiva prova dos factos contrários. Assim, a sua conduta foi processualmente reprovável, devendo ser penalizada em conformidade com o disposto no artigo 456º do C.P.C..».

Litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A condenação por litigância de má fé tem de se ancorar em factos, comprovadamente praticados no processo ou neste apurados e com relevância para a sorte da lide.

E esses factos têm de enquadrar a conduta do litigante, que se exige praticada com dolo ou negligência grave, em algum dos comportamentos tipificados nas várias alíneas do n.º 2, do art.º 456.º, do CPC.

Ora, salvo o devido respeito, dúvidas não restam que o Réu, na sua contestação, quanto a matéria relevante para a sorte da lide, alegou factos contrários à verdade por ele conhecida, fundamento este mais do que suficiente para justificar a sua condenação como litigante de má fé, à luz do disposto na al. b) do n.º 2, do art.º 456.º do CPC.

Observa o Apelante que no caso presente “o Mº Juiz que presidiu à audiência de julgamento - gravada - e que deu as respostas aos quesitos, à matéria de facto da base Instrutória - não foi o mesmo que elaborou a douta sentença”.

Não se vê que o apontado circunstancialismo integre qualquer irregularidade.

A observância do princípio da plenitude da assistência dos juízes (654º do CPC) cinge-se aos actos que decorrem na audiência de julgamento, nomeadamente aos atinentes ao julgamento da matéria de facto, não abarcando, assim, a sentença, que não tem, necessariamente, que ser proferida por magistrado que haja tido intervenção naquela audiência.

Neste sentido, versando hipótese em que, como no presente caso, não houve alegações orais sobre o aspecto jurídico da causa, veja-se o Acórdão do STJ de 10/11/1992, no BMJ nº 421, págs. 343 e ss..

Em conclusão: A sentença recorrida fez correcta interpretação das disposições legais pertinentes ao julgar, nos termos aí decididos, parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção, não tendo infringido as normas que o Apelante diz violadas, designadamente, a do art.º 9º do RAU (aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15/10), as dos artºs. 6º, 9º, 227º, 236º, 334º, 289º, 341º, 342º e 762º e segs., todos do Código Civil e as dos art.ºs 266º-A, 456º e segs., do Código de Processo Civil.

Improcedem, pois, as conclusões da douta alegação de recurso do Apelante.

VI - Em face de tudo o exposto, Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação e manter a sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.


[1] Já de acordo com o aditamento e a rectificação que vieram a ser ordenados, respectivamente, a fls. 418 e 583.
[2] Considerando já o aditamento - alínea h) - ordenado pelo despacho de fls. 418.
[3] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção precedente à introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[4] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como os restantes Acórdãos que vierem a ser citados sem referência de publicação, sendo que os sumários dos Acórdãos do STJ que não tiverem outra indicação, poderão ser acedidos na página da “Internet” do STJ, através do endereço “http://www.stj.pt/?idm=46”.
[5] Conforme salienta o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, o nº 3º do art. 111º do RAU, que reduziu a exigência de forma do contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a documento escrito, apenas foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22/04, inaplicável “in casu”, já que entrou em vigor em 01/05/2000 (cfr. art.º 3º), sendo o contrato em causa de 14/02/2000.
[6] 11º: “O acordo acima referido só não foi celebrado por escritura pública pelo facto de os autores não terem licença de utilização passada pela autoridade municipal?”.
[7] “III - Deve ter-se em conta que nos casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, porquanto as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral.
IV - Nestes casos específicos de pedido de declaração de nulidade de um negócio jurídico só excepcionalmente é que se pode admitir a invocação do abuso de direito, desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.” (Excerto do sumário do Acórdão do STJ de 30-10-2003, Revista n.º 3125/03 - 7.ª Secção)”.
[8] “…nessa data retomaram a exploração em pleno do café e restaurante…”.
[9] O sublinhado é nosso.
[10] Cfr. Acórdão do STJ de 29-04-2008 (Revista n.º 979/08 - 6.ª Secção), assim sumariado: «A impossibilidade natural de o locatário devolver directamente, em consequência da nulidade, o gozo do objecto locado efectivamente desfrutado até ao momento da devolução à locadora, obrigará o locatário a pagar o seu valor equivalente, que, no caso, constitui as rendas devidas até ao momento da devolução.».
[11] O sublinhado, para salientar a utilização do condicional, é nosso.
[12] Cfr. Acórdão do STJ de 21-04-2005, Revista n.º 490/05.