Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1514/12.5TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATOS BILATERAIS
SUSPENSÃO
DIREITO POTESTATIVO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO
EFEITOS
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 102º E 119º DO CIRE E 436º Nº1 DO CC
Sumário: I. Decretada a insolvência da devedora, na presença de um contrato bilateral que se encontre então em curso e que não se mostre integralmente cumprido por nenhuma das partes, ocorre supletivamente, mas de modo automático, a suspensão do mesmo, que perdurará até o administrador exercer o direito potestativo de optar pela execução ou antes recusar o seu cumprimento, consoante estabelece o art.º 102.º do CIRE, norma de natureza injuntiva (cf. art.º 119.º do mesmo diploma).

II. Pode contudo o outro contraente fixar ao administrador um prazo razoável para exercer a sua opção, decorrido o qual se considera que o cumprimento é recusado (cf. o n.º 2 do dito art.º 102.º).

III. À vista do regime legal assim imperativamente desenhado, a declaração de resolução emitida pela autora nos termos do art.º 436.º, n.º 1 do CC e dirigida à insolvente não produziu quaisquer efeitos, não estando vedado ao juiz assim decidir se aquela pretende obter a condenação dos fiadores da devedora em indemnização fixada em cláusula penal, invocando como fundamento a resolução do contrato.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No Tribunal Judicial da comarca da Figueira da Foz,

A... , SA, com sede na Rua ....Linda-a-Velha, veio instaurar contra B..., residente na Rua ...., Figueira da Foz; C..., residente na Rua ...., Figueira da Foz; e D... , residente na Rua ...., Figueira da Foz, acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a final a condenação solidária dos RR no pagamento:

“a) da quantia de € 31 642,50 a título de restituição da comparticipação publicitária realizada no âmbito do contrato que identifica;

b) da quantia de € 360,64 a título de juros moratórios vencidos, incidentes sobre a quantia referida na alínea a) supra, aplicando as taxas de juro legais fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde 27/04/2012 até 17/06/2012, sem prejuízo dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento;

c) da quantia de € 105 970,00 a título de indemnização por café não consumido, no âmbito do mesmo contrato;

d) da quantia de € 1 207,77, a título de juros moratórios vencidos, incidentes sobre a quantia referida na alínea c) supra, aplicando as taxas de juros legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde 27/04/2011 até 17/06/2012, sem prejuízo dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento;

e) da quantia de € 3 139,20, relativa ao valor não amortizado do equipamento comodatado no âmbito do contrato;

g) da quantia de € 35,78, a título de juros moratórios vencidos, incidentes sobre a quantia referida na alínea e) supra, aplicando as taxas de juros legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde 27/04/2011 até 17/06/2012, sem prejuízo dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento”.

Em fundamento alegou, em síntese útil, que no exercício da sua actividade comercial de fabrico e comercialização de produtos para a alimentação, celebrou com a sociedade E..., , Lda., contrato datado de 11/7/2008, que as partes reduziram a escrito, nos termos do qual a demandante se obrigou, nas condições ali consignadas, a fornecer café àquela sociedade, comparticipando nas despesas de publicidade e dando de comodato o equipamento identificado, obrigando-se a E..., Lda., em contrapartida, a adquirir café nas quantidades, pelo preço e durante o período ali discriminados.

O contrato celebrado foi incumprido pela segunda contraente, motivo pelo qual a autora procedeu à respectiva resolução, o que fez mediante carta enviada para a sede social da E..., Lda que, não obstante não ter sido recebida, produziu os seus efeitos, atento o disposto no n.º 2 do art.º 224.º do Código Civil, disposição legal que expressamente convoca. A resolução do contrato celebrado, por via do assinalado incumprimento, constituiu aquela sociedade na obrigação de indemnizar a autora nos termos contratualmente estipulados, tornando-se devedora das quantias aqui reclamadas.

A responsabilidade dos RR deriva do facto de terem subscrito o acordo celebrado na qualidade de fiadores da E..., Lda, assegurando, em regime de solidariedade, o cumprimento de todas as obrigações assumidas pela sua afiançada, o que justifica e fundamenta a respectiva demanda.

Alegou finalmente que a E..., , Lda, foi declarada insolvente por sentença proferida a 25/11/2011 no processo nº 1565/10.4TBFIG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, tendo diligenciado pelo reconhecimento do seu crédito no referido processo.
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Citados os RR, apenas contestou o demandado D..., nos termos da peça que consta de fls. 77 a 83, na qual alegou ter subscrito o contrato celebrado entre a autora e a sociedade E..., Lda. por ser à data gerente desta última, sendo certo que renunciou a tal cargo no dia 1 de Janeiro de 2009, não mais tendo tomado conhecimento da actividade desenvolvida pela sociedade ou se esta vinha ou não cumprindo o acordado, sendo certo que foi entretanto declarada insolvente. De todo o modo, diz, a cláusula penal estabelecida é claramente excessiva, uma vez que a E..., Lda. cumpriu parcialmente o contrato, devendo por isso ser reduzida na sua justa medida, de harmonia com o disposto no artigo 812.º do CC, disposição legal que convoca, devendo ser fixada em valor não superior a metade do peticionado. Acresce que, quer a compensação publicitária concedida àquela sociedade, quer o valor das máquinas cedidas em comodato, incluíam IVA à taxa então em vigor de 20%, imposto que a autora deduziu, devendo por isso as quantias correspondentes serem subtraídas ao pedido formulado.

Finalmente, porque, em seu entender, os fiadores não renunciaram ao benefício da excussão prévia, deverá ser previamente excutido o património da sociedade, o que a demandante não demonstra ter feito.

Replicou a autora, impugnando que a cláusula penal estabelecida padeça de qualquer excesso, havendo ainda de ser entendido, face ao teor da cláusula alusiva à responsabilidade dos fiadores, que estes renunciaram ao benefício da excussão prévia.

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Dispensada a realização da audiência preliminar, foram seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, em cujo termo foi proferida sentença, que decretou a absolvição de todos os RR dos pedidos formulados[1].
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Inconformada, apelou a autora e, tendo apresentado alegações, rematou-as com as seguintes necessárias conclusões:

“I- Salvo o devido respeito, não pode improceder o pedido da recorrente.

II- O Senhor Juiz “a quo” alicerçou a sua decisão na falta de resolução do contrato celebrado entre a recorrente e a sociedade E... , Lda, por esta, à data da carta de resolução do contrato, ter já sido declarada insolvente.

III- Segundo o princípio do dispositivo, compete às partes definir os factos em que o tribunal se pode basear para decidir, alegando o que dá consistência à pretensão formulada, competindo ao réu alegar factos para sua defesa.

IV- O art.º 5.º, n.º 1 do CPC dispõe que cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas. Podendo o juiz, para além dos factos articulados pelas partes, considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa - nº 2 al. a) do art.º 5º; Os factos que sejam complemento ou concretização do que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar – n.º 2, al. b) do art.º 5º; Os factos notórios e aqueles que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções – n.º 2 al. c) do art.º 5º.

V- Ao pronunciar-se sobre a ineficácia da resolução, o Mmº juiz “a quo” considerou um facto nunca alegado pelo recorrido, inexistindo qualquer facto instrumental de que se pudesse recorrer, pelo que estava impedido de conhecer tal excepção.

VI- Nunca a recorrente teve hipótese de se pronunciar sobre tal ineficácia.

VII- O Mmº juiz “a quo”, ao conhecer da questão da ineficácia da resolução do contrato, pronunciou-se sobre matéria da qual estava impedido de conhecer, violando a regra do art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC.

VIII- No entanto, e sem prescindir, mesmo que se entenda não ser a resolução do contrato eficaz e tal facto ser do conhecimento oficioso do Mmº juiz “a quo”, nunca a recorrente estaria impedida de ser indemnizada pelo montante correspondente aos quilogramas de café não adquiridos pela E....

XIX- Como resulta do facto provado na alínea E 3), a E... estava obrigada a indemnizar a recorrente em 10,00 € por cada quilo de café, independentemente da resolução do contrato, bastando para tal o incumprimento contratual.

X- De acordo com o número dois da cláusula quarta do contrato junto aos autos, apenas estava dependente de resolução contratual a restituição à recorrente da comparticipação publicitária prestada, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses, bem como o pagamento da indemnização pelo equipamento colocado pela recorrente no estabelecimento da E....

XI- Resolução do contrato que, de acordo com o estipulado no número três da cláusula quarta, não era necessária para que a recorrente tivesse direito a ser indemnizada pelos quilogramas de café não consumidos pela E..., sendo suficiente o incumprimento por violação do número dois da cláusula segunda, isto é, a não aquisição dos 18.000 quilogramas de café contratado.

XII- Dos factos provados na alínea S), resulta que a E... efectuou a última compra de café no mês de Dezembro de 2011, ficando encerrado o estabelecimento.

XIII- Já dos factos provados na alínea T), é claro que só consumiu 7.403 quilogramas de café.

XIV- A E..., ao deixar de consumir o café da recorrente em Dezembro de 2011 e ter apenas consumido 7.403 quilogramas de café dos 18.000 quilogramas a que estava obrigada contratualmente, incumpriu o contrato, violando o número dois da cláusula segunda do contrato.

XV- Ora, como consequência desse incumprimento, à recorrente assiste-lhe o direito a ser indemnizada no montante de 105.970,00€ (18.000kg – 7.403 kg x 10,00€), valor por ela peticionado.

XVI- Incumprimento e pedido do pagamento da quantia de 105.970,00€ de que os réus tiveram conhecimento, como resulta dos factos provados nas alíneas O) e R).

XVII- Assim, sendo a obrigação do fiador acessória da obrigação principal, sempre estaria o fiador obrigado a indemnizar a recorrente, como resulta do disposto no art.º 627º do Código Civil.

XVIII- Sobre esta matéria o Mm.º juiz “a quo” não se pronunciou, o que deveria ter feito.

XIX- A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 5.º, 615º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil e 627.º do Código Civil”.

Com os aludidos fundamentos, pretende a revogação da decisão proferida e sua substituição por outra que condene o recorrido nos exactos termos do pedido formulado; se assim não for entendido, deverá o recorrido ser condenado a pagar à recorrente a quantia de 105.970,00€, correspondente à indemnização pelos quilogramas de café não adquirido, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

Contra alegou o apelado, pugnando pela manutenção da decisão recorrida; para o caso de não prevalecer o entendimento nela perfilhado, requereu a ampliação do recurso em ordem a serem conhecidos os fundamentos deduzidos na contestação oportunamente apresentada.
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Sabido que pelas conclusões se define e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. indagar se a sentença apelada padece da nulidade do excesso de pronúncia prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC;
ii. indagar da validade e eficácia da declaração resolutiva;
iii. a confirmar-se ser a mesma ineficaz, indagar da natureza –compensatória ou moratória- da cláusula penal convencionada e, no caso de a mesma ser aplicável, decidir se o montante indemnizatório nela fixado dever ser reduzido, conforme prevêem e permitem os artigos 811.º, n.º 3 e 812.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Civil;
iv. da natureza solidária da obrigação assumida pelos fiadores.
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i. da nulidade da sentença

Assaca a apelante à sentença recorrida o vício da nulidade por excesso de pronúncia, e isto com um duplo fundamento: por se ter o Mmo juiz “a quo” servido de factos não alegados pelas partes e por se ter pronunciado sobre a ineficácia da resolução, o que constitui matéria exceptiva, sem que a mesma tenha sido invocada pelo contestante, assim dando por violadas as disposições dos art.ºs 5.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. d), ambas as disposições do CPC em vigor.

Nos termos deste último normativo (que reproduziu sem alterações o predecessor art.º 668.º), a sentença é nula “Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, ou seja, de todos os pedidos formulados, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções deduzidas (art.º 608.º, n.º 2), é nula a sentença quando deixe de se pronunciar sobre algum deles e ainda quando, não tendo sido invocados, deles conheça, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso, nisto consistindo o fundamento da nulidade aqui previsto.

Por seu turno, o art.º 5.º, n.º 1, epigrafado de “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, em termos menos exigentes do que o cessante art.º 264.º, estabelece que “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (vide n.º 1), impondo ainda ao juiz que tome em consideração, para além dos alegados pelas partes: i. os factos instrumentais que resultem da decisão da causa; ii. os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; iii. os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (cf. als. a), b) e c) do n.º 2).

Do confronto do regime agora consagrado com o anterior avulta a circunstância de ao juiz ser imposta a consideração -“são ainda considerados pelo juiz”, na fórmula utilizada pela lei- dos factos complementares ou concretizadores dos alegados que resultem da instrução da causa, desde que seja assegurado o contraditório, dispensando-se a anterior exigência da parte ter que dar a conhecer que deles pretendia prevalecer-se, numa clara atenuação do princípio do dispositivo.[2]

Harmonizando-se com a disposição vinda de transcrever, o art.º 607.º, que se ocupa da sentença, fazendo uso de idêntica formulação, impõe ao juiz que tome na devida conta os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei.

Com pertinência para a decisão desta questão importa ainda atender a quanto preceitua o art.º 413.º (sucessor do art.º 515.º), nos termos do qual o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feito por certo interessado (princípio da aquisição processual).

Finalmente, e numa formulação sem peias, o n.º 3 do art.º 5.º proclama não se encontrar o juiz sujeito às alegações das partes, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.[3]

Da articulação dos mencionados preceitos resulta a possibilidade de consideração, quer dos factos instrumentais, quer dos complementares ou concretizadores dos alegados, sem outra exigência que não a de que tenha sido dado cumprimento ao princípio do contraditório, e independentemente da parte que haja produzido a respectiva prova, concedendo a lei total liberdade ao juiz na aplicação do direito aos factos.

Face ao que ficou dito, logo se vê que os factos tidos pelo Sr. juiz em consideração foram, para além do mais, alegados pela própria autora e aqui apelante, que não deixou de invocar ter sido a sociedade E..., Lda. declarada insolvente nos termos da sentença certificada nos autos e publicitada no DR (doc. n.º 11 junto com a p.i.), tal como invocou ter instaurado acção para reconhecimento ulterior do seu crédito sobre a insolvente em acção para tanto instaurada e cuja sentença se encontra igualmente certificada nestes autos, pelo que nada obstava a que fossem tidos em conta.

Por outro lado, sendo correcto que o contestante não questionou a eficácia da resolução -pese embora tenha impugnado os factos alegados em suporte do alegado incumprimento, que disse desconhecer- a verdade é que, contrariamente àquele que é o entendimento da apelante, afigura-se que os factos em causa não assumem natureza exceptiva. Vejamos:

Em fundamento do pedido indemnizatório formulado, a autora invocou a celebração do contrato e o seu incumprimento pela contraente sociedade, fundamento da declaração resolutiva emitida, todos eles portanto factos constitutivos do direito que pretendia fazer valer -pretensão indemnizatória assente na resolução do contrato, que seria seu pressuposto- competindo-lhe ainda alegar e demonstrar que tal declaração chegou ao seu destinatário ou, não tendo chegado, foi, do mesmo modo, eficaz (cf. n.º 1 do art.º 342.º do Código Civil). Aliás, tanto a demandante assim o entendeu, que não se escusou a invocar ter enviado a carta registada para a morada da sociedade, concluindo pela irrelevância da sua não recepção. Por assim ser, estando-se ainda no domínio dos factos constitutivos do direito da demandante -e não exceptivos, conforme agora pretende, sendo certo que, na dúvida sobre a natureza do facto, sempre teria de se haver como constitutivo do direito nos termos do n.º 3 do preceito- poderia o Mm.º juiz “a quo” indagar, como indagou, da legalidade e eficácia da declaração resolutiva.

Improcede, pelo exposto, a arguida nulidade e, com ela, as conclusões I a VII.
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II Fundamentação

De facto

Não tendo sido impugnada a matéria de facto e inexistindo razões para proceder à sua alteração oficiosa, são os seguintes os factos a considerar:

A- A autora é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico e comércio de produtos para a alimentação.

B- No dia 11 de Julho de 2008, no exercício da sua actividade, a autora, na qualidade de primeira outorgante, celebrou com a sociedade “ E... – , Lda.”, na qualidade de segunda outorgante, o acordo escrito a que foi atribuído o n.º 5766, dele ficando a constar no seu considerando A) que a primeira tem o direito exclusivo de comercialização e distribuição em Portugal de produtos com a marca registada Buondi, e no considerando B) que a segunda é proprietária de um estabelecimento comercial denominado “Cafetaria E...”, sito na Rua ....Figueira da Foz (cfr. documento de fls. 11 a 18 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

C- Consta do parágrafo primeiro da cláusula segunda desse acordo, epigrafada de “Consumo mínimo e exclusividade”, que:

“Durante o período de duração do presente contrato, o Segundo Contratante obriga-se a revender e publicitar em exclusivo café da marca Buondi, lote Prestige, no seu estabelecimento referido no considerando B)”.

D- Nos termos do parágrafo segundo da referida cláusula segunda:

“O segundo contraente (sociedade “ E...) obriga-se a adquirir à autora, ou a distribuidor por esta indicado, a quantidade de 18.000 quilogramas de café, devendo tal aquisição ser efectuada através de uma compra mínima mensal de 300 quilogramas”.

E- Consta da cláusula quarta do mesmo acordo que:

“1) Como contrapartida das obrigações assumidas pelo Segundo Contratante, a A..., a título de comparticipação publicitária:

1.1) Pagou ao Segundo Contratante o montante de €108.570,00 (…), I.V.A. incluído à taxa legal em vigor.

i) Através do cheque n.º 19421349 (…).

ii) Através do cheque n.º 003049911 (…).

1.2) Obriga-se a pagar, a título de comparticipação publicitária, o montante de €18.000,00 (…), I.V.A. incluído à taxa legal em vigor. O montante será entregue ao Segundo Contratante após a assinatura do presente contrato.

2) Resolvido o presente contrato com fundamento em qualquer causa não imputável à, e sem prejuízo de quaisquer indemnizações a que haja lugar, o Segundo Contratante obriga-se a restituir à A... a comparticipação publicitária prestada, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses.

3) Sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da Cláusula Segunda, directamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obriga o Segundo Contratante a pagar à A..., a título de cláusula penal, o montante de €10,00 (dez euros) por cada quilograma de café contratado nos termos do número dois da Cláusula Segunda e não adquirido pelo Segundo Contratante”.

F- As obrigações decorrentes do parágrafo primeiro da cláusula quarta transcrita no ponto precedente foram cumpridas pela autora.

G- Consta do parágrafo primeiro da cláusula quinta do mencionado acordo que:

“Como contrapartida das obrigações assumidas pelo Segundo Contratante, a A... obriga-se a comodatar-lhe e a colocar no seu estabelecimento o seguinte equipamento:

a) Três Máquinas de Café Cimbali M22 Premium 3 grupos, no valor de €10.500,00, acrescido de I.V.A. à taxa legal em vigor;

b) Três moinhos Cimbali Special, no valor de €2.580,00, acrescido de I.V.A. à taxa legal em vigor. No valor global de €15.696,00, incluído I.V.A. à taxa legal em vigor”, obrigação que a autora igualmente cumpriu.

H- Nos termos do parágrafo sexto da cláusula quinta:

“Resolvido o presente contrato com fundamento no incumprimento pelo Segundo Contratante de qualquer das obrigações por este assumidas, este obriga-se a, sem prejuízo da ressarcibilidade integral de todos os prejuízos sofridos, indemnizar a A... no valor do equipamento à data da resolução do contrato, determinado em função do número de anos decorridos do contrato e do prazo de amortização económica do mesmo em 5 anos, ficando este a pertencer ao Segundo Contratante”.

I- Do parágrafo primeiro da cláusula sexta do acordo consta que o mesmo tem a o seu início em 11/07/2008 e a duração de 60 meses, correspondente ao período considerado adequado à aquisição das quantidades estipuladas no n.º 2 da cláusula segunda, não podendo contudo a respectiva duração exceder o prazo máximo de 5 anos.

Nos termos do parágrafo 2.º desta mesma cláusula, o contrato terminará antes do prazo referido no número anterior, caso o segundo contratante adquira em menor período de tempo a quantidade de café mencionada no n.º 2 da cláusula segunda.

Estabelece o parágrafo 3.º que “No final do prazo de duração do contrato, caso a  quantidade de café indicada no n.º 2 da cláusula 2.ª não tenha sido adquirida na totalidade, o contrato será prolongado, nos termos e por acordo entre as partes, até que a quantidade contratada remanescente seja adquirida.

J- Segundo a cláusula oitava do dito acordo:

“1) Qualquer das partes pode pôr termo ao presente contrato, com efeitos imediatos, se a outra parte estiver em incumprimento e não corrigir tal incumprimento no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis a contar da notificação por escrito feita pela parte lesada.

2) As partes expressamente convencionam que se considera incumprimento contratual e, consequentemente, fundamento de resolução do contrato, um desvio nos consumos mensais acordados nos termos do número dois da Cláusula Segunda superior a 20%, por um período de 6 meses consecutivos.

3) O presente contrato considerar-se-á resolvido na data da recepção de carta registada com aviso de recepção enviada pela parte lesada, onde constem a resolução contratual e os seus fundamentos”.

K- Consta do parágrafo primeiro da cláusula nona do mesmo acordo que B..., C... e D..., como terceiro, quarto e quinto outorgantes, declararam celebrar o contrato na qualidade de fiadores e principais pagadores solidários, garantindo a satisfação de todas as obrigações do Segundo Contratante, ficando pessoalmente obrigados perante a A....

L- Consta do mencionado acordo, na parte referente à identificação da “ E..., Lda”, que a sua sede é na Rua ....Figueira da Foz.

M- Por carta datada de 20/03/2012, registada com aviso de recepção, remetida para a Rua ....Figueira da Foz, endereçada à E..., a autora comunicou-lhe que:

 “Nos termos do disposto na Cláusula Segunda, pontos 1 e 2 do Contrato n.º 5766 celebrado entre a A... e V. Exas. em 11 de Julho de 2008, obrigaram-se V. Exas. a adquirir a quantidade de 18.000 kgs de café torrado da marca Buondi, lote Prestige, através de uma compra mínima mensal de 300 Kgs.

Constatámos, no entanto, que V. Exas. não se encontram a consumir café torrado da marca Boundi, lote Prestige, violando assim o disposto na Cláusula Segunda pontos 1 e 2 (…).

Face ao exposto, solicitamos a V. Exas. a regularização da referida situação no prazo de 10 (dez) dias úteis a contar da data da recepção da presente carta, sob pena de resolvermos o contrato com justa causa nos termos da Cláusula Oitava, ponto 1, sem prejuízo do direito que nos assiste ao pagamento das indemnizações previstas no mesmo. (…)” – cfr. documento de fls. 21 dos autos.

N- A carta referida em M) foi devolvida pelos CTT ao remetente.

O- Do teor da carta referida em M) foi dado conhecimento aos ora réus mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 20/03/2012 e por estes recebida.

P- Por carta datada de 04/04/2012, registada com aviso de recepção, remetida para a Rua ....Figueira da Foz, endereçada à E..., a autora comunicou-lhe que:

“Na sequência da nossa carta de interpelação datada de 20 de Março de 2012, verificamos que V. Exas. continuam a não consumir a quantidade de café torrado, violando o disposto na Cláusula Segunda, ponto 2, do contrato referido em epígrafe celebrado entre as Partes em 11 de Julho de 2008.

Face ao Vosso incumprimento grave e reiterado e de acordo com a Cláusula Oitava, informamos que consideramos o Contrato resolvido com justa causa, com efeitos imediatos a partir da recepção da presente carta.

Assim, e de acordo com o estipulado na Cláusula Quarta, pontos 2 e 3 e, Cláusula Quinta, ponto 6, deverão V. Exas. pagar no prazo de 10 (dez) dias úteis a contar da data de recepção da presente carta, as seguintes quantias a título de indemnização:

1. 28.126,67 Euros, acrescido de IVA à taxo legal em vigor, num total de 34.595,80 Euros (trinta e quatro mil quinhentos e noventa e cinco euros e oitenta cêntimos), referente à comparticipação publicitária, deduzido do montante proporcional ao período contratual decorrido.

2. 105.970,00 Euros (cento e cinco mil novecentos e setenta euros), referente a 10,00 Euros por cada kg de café não adquirido, até ao termo do contrato, (10.597 Kgs X 10,00 Euros).

3. 2.958,80 Euros, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, num total de 3.639,32 Euros (três mil seiscentos e trinta e nove euros e trinta e dois cêntimos), referentes a:

- Três máquinas de café Cimbali M22 Premium 3 gr

- Três moinhos de café Cimbali Special (…)” – cfr. documento de fls. 29 e 30 dos autos.

Q- A carta referida em P) foi devolvida pelos CTT ao remetente.

R- Do teor da carta referida em P) foi dado conhecimento aos ora réus, B..., C... e D..., mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 04/04/2012 e por estes recebida, respectivamente em 12/04/2012 o primeiro e 11/04/2012 os restantes.

S- [1º] A última compra de café efectuada pela E... à autora remonta ao mês de Dezembro de 2011, ficando encerrado o seu estabelecimento.

T-  [3º] Adquirindo até essa data somente 7.403 quilogramas de café.

U- [4º] Após o envio da carta mencionada em M), manteve-se inalterada a situação referida em S).

V- [5º] Em Dezembro de 2011, o preço contratual por quilograma do lote de café Prestige da marca Boundi ascendia a €28,00.

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Atento o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do NCPC, foram ainda atendidos na decisão os seguintes factos:

X- Por sentença proferida em 25 de Novembro de 2011, transitada em julgado em 4/1/2012, foi declarada a insolvência da “ E... , Lda”, tendo sido nomeado administrador F..., com domicílio profissional na Av. ... em Aveiro (certidão de fls. 162 a 180 dos autos).

Y- A prolação da sentença a que alude a al. anterior foi publicitada na 2.ª série do DR no dia 20 de Dezembro de 2011, constando do anúncio emitido a identidade do gerente e do administrador nomeado e, bem assim, as residências de cada um (cf. doc. de fls. 44).

Z- Por apenso ao identificado processo de insolvência, instaurou a ora autora acção declarativa para reconhecimento ulterior de crédito sobre a insolvente, pedindo fosse reconhecido o crédito de € 140 751,70 emergente do contrato a que se alude em A) e com fundamento na sua resolução (cf. certificado de fls. 180 a 186 dos autos).

AA- Não tendo sido deduzida qualquer oposição, quer pela massa insolvente ou seus credores, quer ainda pela insolvente, por sentença proferida em 30/7/2012, e por adesão aos fundamentos da petição inicial, foi reconhecido nos seus precisos termos o crédito reclamado pela aqui autora (idem).
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De Direito

ii. Da validade e eficácia da declaração resolutiva

Resulta dos autos, e não vem questionado, que a apelante A..., SA e a sociedade E..., Lda. celebraram contrato, que reduziram a escrito e dataram de 11/7/2008, nos termos do qual aquela se obrigou a fornecer à segunda café da marca Buondi, lote Prestige, nas condições, quantidades e pelo preço ali consignados, tendo os réus B..., C... e D..., como terceiro, quarto e quinto outorgantes, declarado celebrar tal contrato na qualidade de fiadores e principais pagadores solidários, garantindo a satisfação de todas as obrigações assumidas pela segunda contratante.

Ao abrigo desse contrato, e como contrapartida das obrigações pela E..., Lda. assumidas, a Autora entregou àquela, a título de comparticipação publicitária, o montante de €108 570,00 com IVA à taxa legal, e cedeu-lhe em comodato bens móveis para equipar o estabelecimento, no valor global de €15 696,00.

Com fundamento em incumprimento, por banda da segunda outorgante, da obrigação de aquisição de café, pretendeu a autora resolver o contrato tendo, para o efeito, enviado para a sede daquela uma primeira carta em 20/3/2012, interpelando-a para cumprir, e a segunda em 4/4/2012, contendo a declaração resolutiva, ambas devolvidas ao remetente.

Apurou-se ainda que por sentença proferida em 25 de Novembro de 2011, transitada em julgado em 4/1/2012 e publicitada no DR de 20 de Dezembro de 2011, foi declarada a insolvência da “ E... , Lda”, tendo sido nomeado administrador F..., com domicílio profissional na Av. ... em Aveiro.

Sendo este o quadro factual a atender tendemos a considerar, tal como o Mm.º juiz “a quo” que a resolução não operou. Vejamos porquê:

Dispõe o art.º 102.º do CIRE -norma injuntiva consoante estabelece o art.º 119.º- que “Sem prejuízo dos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento, nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”.

Temos assim que, na presença de um contrato bilateral -aquele de que resultam obrigações recíprocas para ambos os contraentes- que não se mostre integralmente cumprido por nenhum deles, não quadrando ao caso nenhum dos preceitos imediatos, ocorre supletivamente, mas de modo automático, o efeito suspensivo do contrato, que perdurará até o administrador exercer o direito potestativo de optar pela execução ou antes recusar o seu cumprimento.[4] No entanto, e a fim de permitir ao outro contraente evitar que a situação de suspensão se eternize, prevê a lei que este fixe ao administrador um prazo razoável para exercer a sua opção, decorrido o qual se considera que o cumprimento é recusado (cf. o n.º 2 do art.º 102.º).

À vista do regime legal assim imperativamente desenhado, encontrando-se o contrato suspenso por via da declaração de insolvência da E..., Lda., a definição do destino do mesmo só poderia ser feita nos termos prescritos pelo citado artigo 102.º. Daí que a declaração de resolução emitida pela autora e dirigida à sede da insolvente não tenha produzido quaisquer efeitos, solução não afectada pela sentença proferida na acção de reconhecimento ulterior do crédito da aqui autora, atento o disposto no art.º 635.º, n.º1 do CC.

Mantém-se assim quanto a propósito se mostra decidido na decisão apelada.
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II. da natureza da cláusula penal e da sua redução por apelo à equidade

Em via subsidiária defende a apelante que, mesmo na consideração de que a resolução não operou, nos termos contratualmente estabelecidos a simples mora desencadeava a aplicação da cláusula penal indemnizatória prevista no n.º 3 da cláusula 4.ª. Daí que pelo menos o montante indemnizatório de € 105 970,00, decorrente da aplicação de tal cláusula, seja devido.

Antes de mais, faz-se notar que a autora assentou o seu pedido na resolução do contrato, e não na simples mora, questão que só agora, e de forma inovadora suscitou, sendo certo que os recursos se destinam à reponderação das questões apreciadas pela instância recorrida, não sendo lícito ao recorrente introduzir pela via do recurso questões novas. Não obstante, sempre que se dirá que nem por esta via a pretensão mereceria um juízo de procedência, e isto porque do teor da dita cláusula não se retira a sua natureza de cláusula penal moratória, conforme procuraremos demonstrar.

Nos termos do art.º 810.º do Código Civil,[5] cláusula penal é a estipulação negocial mediante a qual as partes fixam o montante da indemnização para o caso do seu incumprimento. A cláusula penal pode convencionar-se tendo em vista a completa e definitiva inexecução do contrato, nomeadamente da obrigação principal -cláusula penal compensatória- ou apenas o atraso no cumprimento e o cumprimento defeituoso, caso em que estaremos perante uma cláusula penal moratória, sendo que em qualquer dos casos avulta a sua natureza de fixação antecipada da indemnização, dirigida portanto à reparação dos danos decorrentes do incumprimento.[6]

Relembrando o teor da cláusula em questão, ali se dispõe que “3) Sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da Cláusula Segunda, directamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obriga o Segundo Contratante a pagar à A..., a título de cláusula penal, o montante de €10,00 (dez euros) por cada quilograma de café contratado nos termos do número dois da Cláusula Segunda e não adquirido pelo Segundo Contratante”.

Face ao transcrito teor, importa antes de mais interpretar o estipulado, ou seja, fixar o sentido e o alcance com que a mencionada cláusula deve valer, o que contende com a matéria da interpretação dos negócios jurídicos, a que presidem os art.ºs 236.º a 239.º,[7] o primeiro consagrando a teoria objectivista da impressão do destinatário. A regra é assim a de que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, entendido como alguém medianamente instruído e diligente colocado na posição do real declaratário, em face do comportamento do declarante, exceptuando-se apenas os casos de a este não poder ser razoavelmente imputado aquele sentido e o de o declaratário conhecer a sua (do declarante) vontade real.[8] A solução legal visa proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face da conduta do declarante, mas a doutrina objectivista assim consagrada sofre uma “salutar restrição de inspiração subjectivista”,[9] mandando a lei tomar em consideração a posição concreta do declaratário real e os elementos que efectivamente conheceu.

As circunstâncias a ter em conta na interpretação são, deste modo, todas aquelas a que um declaratário normal atenderia, nomeadamente, os termos do negócio, as negociações prévias, os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, etc., sendo também relevante a conduta posterior das partes, havida na sua execução do contrato.

Por último, tratando‑se de negócio formal, a interpretação alcançada nos precedentes termos não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 238.º).

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que, sendo indiscutível a natureza indemnizatória da cláusula em questão, na sua literalidade o texto que se analisa não é inequívoco, abrangendo duas situações distintas, a primeira decorrente da violação directa do n.º 2 da dita cláusula segunda, a outra assentando na violação da mesma regra contratual, mas desta feita por via da resolução do contrato tendo por fundamento a violação de uma outra qualquer estipulação. Quiseram assim as partes prevenir, parece, que mesmo no caso da segundo outorgante se encontrar a cumprir a cláusula segunda, adquirindo as quantidades de café ali previstas, vindo o contrato a ser resolvido com fundamento no incumprimento de uma outra obrigação contratualmente assumida, ainda assim seria devida a indemnização fixada.

Por outro lado, no parágrafo anterior, que se ocupa da restituição da comparticipação publicitária, ficou consignado como seu inequívoco pressuposto a resolução do contrato, o que aponta no sentido de se tratar de requisito comum a todas as situações, não se afigurando de boa técnica misturar na mesma cláusula diferentes pressupostos. Mas é a articulação com o demais clausulado, em particular com as cláusulas 6.ª e 8.ª, que nos fazem concluir pela natureza compensatória da cláusula penal que se analisa, pressupondo pois o incumprimento definitivo e a consequente resolução do contrato.

Assim, se por um lado previram as partes que a violação de qualquer norma contratual, quando não eliminado o desvio no prazo de dez dias contados da interpelação feita pela parte contrária, constituía fundamento resolutivo, não deixaram de consignar, no que respeita à nuclear cláusula segunda, seu n.º 2, que constituía incumprimento contratual e, consequentemente, fundamento de resolução do contrato, um desvio nos consumos acordados superior a 20% que se registasse por 6 meses consecutivos. Daqui se extrai, pois, que não era um qualquer incumprimento desta estipulação que constituía fundamento resolutivo, tendo as partes tido o cuidado de o regular autónoma e expressamente.

Por outro lado, visto o teor da cláusula 8.ª, nos seus diversos números, dela resulta terem as partes salvaguardado a subsistência do contrato ainda quando as quantidades previstas no n.º 2 da cláusula 2.ª -18 000kg de café, à razão de 300 kg mensais durante os 60 meses previstos para a sua duração- não tivessem sido adquiridas pela contraente E..., L.da findo aquele período, tudo apontando para um interesse fundamental na subsistência e cumprimento do contrato, não compatível com a aplicação de uma pesada cláusula penal desencadeada pela simples mora. Com efeito, se as partes previram a possibilidade da segunda contratante adquirir as quantidades fixadas ao longo de um período mais alargado, como harmonizar o assim convencionado com uma cláusula penal desencadeada pelo simples atraso ou desvio entre as quantidades adquiridas e as previstas? E como se efectuaria então o cálculo? Penalizando a segunda outorgante mensalmente pela eventual diferença entre as quantidades adquiridas e os 300 Kg contratualmente fixados, anulando a possibilidade do desvio ser compensado nos meses seguintes? Não o esclarece a apelante, afigurando-se que não foi esse o sentido que as partes pretenderam atribuir à estipulação em causa. E tanto assim é que, tendo por referência o mês de Novembro de 2011, data da suspensão do contrato em virtude da declaração de insolvência da devedora, encontrando-se então em execução há 40 meses, totalizavam as quantidades adquiridas pela E..., Lda. apenas 7 403 Kg, ao invés dos 12 000Kg que era suposto ter adquirido (40 meses x 300 Kg mensais), não havendo ainda assim notícia de que pela autora lhe tivesse sido aplicada qualquer pena, elemento interpretativo que aqui cremos decisivo, em ordem a afastar o sentido preconizado pela apelante.

Em remate, sendo de atribuir à cláusula invocada a natureza de compensatória, pressupondo pois a conversão da mora em inexecução definitiva o que, como vimos, a apelante não logrou demonstrar ter feito, não há lugar à atribuição da indemnização nela fixada. Daí que improcedam as demais conclusões de recurso, resultando prejudicado o conhecimento das restantes questões enunciadas (cf. art.º 608.º, n.º 2, aplicável aos acórdãos ex vi do n.º 2 do art.º 663.º do CPC).
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III. Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes que constituem a 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante.
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Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro
Helder Almeida


[1] A improcedência da acção foi ditada pela seguinte ordem de argumentos:

“A Autora celebrou 11/7/2008 com a sociedade E..., Ld.ª, um contrato de fornecimento de café da marca Buondi, lote Prestige, tendo os réus B..., C... e D..., como terceiro, quarto e quinto outorgantes, declarado celebrar tal contrato na qualidade de fiadores e principais pagadores solidários, garantindo a satisfação de todas as obrigações do Segundo Contratante, ficando pessoalmente obrigados perante a A....

Ao abrigo desse contrato, a Autora pagou à outra sociedade contraente, a título de comparticipação publicitária, o montante de €108.570, com IVA à taxa legal e cedeu-lhe em comodato bens móveis para equipar o estabelecimento, no valor global de €15.696, incluindo IVA à taxa legal.

 Porém, a sociedade E..., Ld.ª, efectuou a última compra de café à Autora em Dezembro de 2011, o que motivou esta a interpelar aquela sociedade para regularizar a situação, por carta de 20/3/2012, mas essa carta veio devolvida pelos CTT à remetente, embora fosse conhecida dos réus, a quem fora dado conhecimento também por carta da mesma data e por estes recebida.

Como na sequência daquelas comunicações a sociedade E... nada fez para retomar o cumprimento do contrato, a Autora decidiu enviar carta de resolução do contrato à dita sociedade comercial, datada de 4/4/2012, exigindo-lhe a correspondente indemnização nos termos contratuais, do que os réus tomaram conhecimento por carta da Autora, igualmente datada de 4/4/2012. Todavia, essa carta enviada à E... também veio devolvida pelos CTT à remetente.

Nos termos do artº 436º do Código Civil a resolução pode fazer-se mediante declaração à outra parte.

Sucede que, quer a carta de interpelação admonitória, de 20/3/2012, quer a carta de declaração de resolução do contrato, de 4/4/2012, embora se mantivessem ao tempo como sócios os Réus B... e C..., foram enviadas para o estabelecimento da sociedade incumpridora E..., Ld.ª, quando já se tinha efectivado em 25/11/2011, por sentença judicial, a declaração de insolvência dessa empresa (fls. 122/123 e 178 a 180) e o respectivo estabelecimento estava encerrado.

Como as cartas enviadas à sociedade incumpridora vieram devolvidas, não se chegou a concretizar a resolução do contrato que, aliás, deveria ser efectivada na pessoa do Administrador da Insolvência e não nos sócios B... e C... e no Réu contestante, D..., sendo ineficaz quanto a estes, por não representarem legalmente a empresa insolvente para fins patrimoniais quando a Autora quis resolver o contrato.

Nos termos do artº 607º, nºs 4 e 5, do novo Cód. Proc. Civil, o Juiz deve considerar os factos provados por documento, ainda que não constem dos factos assentes nem da resposta aos quesitos da base instrutória.

A sentença que decretou a insolvência foi publicada e levada a registo (fls. 180 e 123), tendo a própria Autora, perante a publicidade da situação, alegado a insolvência da devedora (fls. 8), publicada no D.R. de 20/12/2011, de que juntou cópia (fls. 44), não podendo ignorar, nos termos do artº 6º do Código Civil, que deveria declarar a resolução a quem administrava a insolvência da devedora (artº 224º, nº 1, do mesmo Código) e não declará-la a sócios remanescentes ou antigos gerentes, pois se nem sequer quem exercesse a gerência (o que não se vislumbra no registo comercial a fls. 123) podia representar a sociedade insolvente E... para o efeito de receber a declaração de resolução, muito menos podiam representá-la os Réus para tal efeito.

A Massa Insolvente era representada pelo Administrador, em lugar da gerência da empresa E..., considerando as funções que aquele exerce, ao abrigo do artº 81º, nº 4, do C.I.R.E., mas a Autora não provou ter comunicado a resolução a esse Administrador, para estender posteriormente os efeitos da mesma aos fiadores (artº 342º, nº 1, do Código Civil). O que fez foi assegurar o seu crédito no processo de insolvência, onde foi verificado e reconhecido no valor de €140.751,70 (fls. 214).

Não se tendo efectivado a declaração de resolução do contrato na pessoa do Administrador da Massa Insolvente respeitante à empresa incumpridora, não há resolução contratual que se possa impor aos fiadores, devido à regra da acessoriedade – artº 627º, nº 2, do Código Civil (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed., p. 893 e segs.; Ac. Rel. C.ª de 19/2/2013, proc. 585/10.3TBCBR-A.C1, em www.dgsi.pt)

(…).

[2] A intenção do legislador resultava já do anúncio efectuado na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, quando erigiu em princípio informador do processo a prevalência do mérito sobre questões de forma, proclamando que toda a actividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma. 
[3] Sem a limitação que resultava da redacção do anterior art.º 664.º do CPC que, limitando o princípio da liberdade na aplicação do direito, prevenia que o juiz só podia servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art.º 264.º.
 
[4] Suspensão que se compreende, em ordem a permitir ao AI que tome a decisão mais adequada, tendo em linha de conta os interesses da massa.
[5] Diploma ao qual pertencerão as disposições doravante citadas sem indicação da sua origem.
[6] Almeida e Costa, “Direito das Obrigações”, 9.ª Ed., Reimpressão, Coimbra 2006, págs. 736-737.
[7] “A interpretação das cláusulas contratuais só envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito quando, no desconhecimento de tal vontade, se deve proceder de harmonia com o n.º 1 do art.º 236º do Código Civil” vide aresto do STJ de 4/6/2002, processo n.º 02 A 1442, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Profs. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, I, 1987, Coimbra Editora, pág. 223.
[9] idem.