Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
205003/10.1YIPRT.1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: EXECUÇÃO FISCAL
VENDA DE IMÓVEL HABITAÇÃO PRÓPRIA
PENHORA EM PROCESSO JUDICIAL
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 244º/2 E 3 DO CPPT; 794º NCPC.
Sumário: I- O art.º 244º/2 e 3 do CPPT (com a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 13/2016, de 23/5), estabelecendo que, no caso de penhora em execução fiscal de bem imóvel que corresponda a habitação própria e permanente do executado, não há lugar à realização da venda na execução fiscal (salvo se o seu valor patrimonial for superior a €574.000) pretende assegurar o direito fundamental à habitação do devedor e da sua família no âmbito de execução fiscal, por dívidas de natureza fiscal.

II- Uma vez que esta limitação ou proteção não existe na lei de processo executivo comum, a salvaguarda fixada pelo art. 244º, nº 2 do CPPT só é definitiva e absoluta para devedor executado quando o único credor seja o Estado.

III- Se a execução fiscal está suspensa, face ao mencionado impedimento legal, a aplicação do artº 794º do CPC só teria utilidade se o exequente/reclamante pudesse obter o pagamento do seu crédito pela via executiva o que exigiria que ambas as execuções pudessem correr os seus normais termos.

IV- Estando suspensa a execução fiscal e não podendo por isso aplicar-se o previsto no art.º 794º/1 do CPC, não pode impedir-se a venda do imóvel na execução comum onde a penhora é posterior (regime previsto no art. 822º do CCivil), porque a Autoridade Tributária pode reclamar o seu crédito nesta execução, desde que devidamente notificada ao abrigo do preceituado no art.º 786º do C. P. Civil, sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir.

V- Não podendo prosseguir com a execução fiscal sustada e provocar as diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal, o credor pode acionar a execução comum, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

Decisão Texto Integral:     










            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo de Execução de Alcobaça - Juiz 2 – e na execução em que é exequente Auto J..., S.A., e executados T... e A..., o tribunal, em 28-05-2019, proferiu despacho indeferindo a continuação da instância para realização da venda de casa de habitação da executada que havia sido requerida pela exequente.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso concluindo que:

“A) O disposto no artigo 244.º do CPPT apenas obsta à venda do imóvel afecto à habitação própria e permanente do executado e/ou do seu agregado familiar, desde que essa venda ocorra no âmbito de uma execução fiscal;

B) O disposto no n.º 1 do artigo 794.º do CPC deve ser interpretado no sentido de que se a penhora anterior houver sido realizada à ordem de execução em que o exequente se encontre impedido de promover a respectiva venda por força do disposto no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT, a execução no seio da qual se realizou a penhora em segundo lugar deverá prosseguir os seus termos normais, com a venda coerciva do bem imóvel;

C) A execução cível no seio da qual foi penhorada a habitação própria e permanente do executado pode prosseguir a sua marcha normal, sem embargo de lhe preceder penhora anterior realizada em sede de execução fiscal, porquanto o disposto no artigo 794.º do CPC não se mostra aplicável, antes se impondo a citação da Fazenda Pública para reclamar créditos, os quais se graduam no lugar que lhes competir;

D) O despacho recorrido violou, por incorrecta interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 2.º, 10.º, n.º 4 e artigo 794.º, n.º 1 do C.P.C., bem como o n.º 2 do artigo 244.º do CPPT, os artigos 18.º, 20.º e 62.º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa, o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da União Europeia, e ainda o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.”

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

Fundamentação

Os factos que servem a decisão são as constantes do relatório, nomeadamente:

- Em 12.02.2018 a recorrente requereu que “Junto remeto certidão permanente do imóvel penhorado nos presentes autos.

Contudo verifica-se que se encontram registadas penhoras anteriores das Finanças e Segurança Social, o que ao abrigo do disposto no art. 794 do CPC determina a sustação da execução quanto a esse bem.

Desconhecem-se outros bens pertença dos executados.

Acontece, porém, que o dito imóvel está afecto como habitação própria e permanente da executada T..., o que nos termos do art.º 244º, nº 2 do CPPT, na redacção conferida pela Lei nº 13/2016, de 23.5, impede a venda pela Fazenda Nacional na tramitação da execução fiscal (com penhora prioritária), de nada valendo ao exequente ir aí reclamar o seu crédito.

Face ao exposto e tendo presente a jurisprudência que vem sendo produzida pelos tribunais superiores, a título exemplificativo o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/09/2017 (Processo 1420/16.4T8VIS- B.C1) disponível em www.dgsi.pt, solito a V/Exa. que se digne ordenar o prosseguimento dos autos para a venda do imóvel respectivo nesta execução, o que a confirmar-se, proceder-se-á́ a citação da Fazenda Nacional e Segurança Social para reclamarem créditos nesta execução, distribuindo-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado em posterior sentença de graduação, nada alterando, na opinião do signatário, as garantias quer da Fazenda Nacional quer da Segurança Social.”

- Na sequência deste requerimento o tribunal recorrido proferiu o despacho:

“Decidiu-se no acórdão do tribunal da Relação de Coimbra datado de 24.10.2017 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt que “[a] Administração Fiscal não pode promover na situação de penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado, a venda desse bem, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda. Porém, o credor cuja execução foi sustada e posteriormente extinta em consequência de essa sustação ter sido integral, por existência de penhora anterior em execução fiscal, onde o bem não pode ser vendido, não pode renovar o prosseguimento da sua execução para venda do bem. Nestes termos, a execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada atenta a sua prevalência sobre os posteriores, não se permitindo que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efectuada a penhora posterior.” Idêntica posição é defendida por J H Delgado Carvalho, com a colaboração de Miguel Teixeira de Sousa, in As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária e as suas repercussões no concurso de credores publicado no Blog do IPPC em 11.7.2016.

No caso dos autos, mantém-se penhora anterior e não há conhecimento de que aquela execução fiscal se mostre extinta, pelo que somos de entendimento da aplicação da boa doutrina do aresto. E se é certo que este tribunal tem conhecimento da celeuma jurisprudencial e doutrinária em torno deste tema, mas perfilhando do entendimento que acabamos de expor, decide-se indeferir a requerida continuação da instância para realização da venda de casa de habitação da executada.”.

Além de delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso incide sobre saber se assiste à recorrente direito ao prosseguimento da presente execução comum com vista à satisfação integral do seu crédito, não obstante existir penhora com registo anterior sobre o mesmo bem a favor da Autoridade Tributária, no âmbito de processo de execução fiscal.

O Tribunal recorrido decidiu indeferir o requerimento de prosseguimento destes autos de execução comum e a recorrente insurge-se contra esta decisão, protestando que existindo um impedimento legal à venda do imóvel nas execuções fiscais, a não se admitir o prosseguimento desta execução, fica a mesma sujeita a uma intolerável compressão do exercício do seu direito à satisfação do seu crédito, além de que sempre ficaria submetida às vicissitudes próprias da suspensão da execução fiscal, determinada por aquele impedimento legal, sem que tenha a possibilidade de, por via dos competentes mecanismos legais, promover ou requerer o prosseguimento da execução fiscal.

Sabendo que a questão é controversa, existindo posições divergentes, quer na doutrina, quer na jurisprudência importa sublinhar que no quadro legal relevante para a apreciação e decisão da questão em apreço sobreleva nº 2 do art. 244º do CPPT, nos termos do qual, em sede de execução-fiscal, penhorado o imóvel que constitua a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar (verificados os restantes pressupostos fixados na disposição do art. 244º do CPPT) e decidida a reclamação de créditos – se a houver –, não pode a Administração Tributária e Aduaneira promover a venda desse bem imóvel.

O citado normativo tem a redação dada pela Lei n.º 13/2016, de 23.05, cujo art. 1º, versando sobre o “Objecto”, dispõe: “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado”. E, estatuindo sobre a concretização da venda na sequência de penhora ou execução de hipoteca, estipula o art. 4º que “ “1 - Quando haja lugar a penhora ou execução de hipoteca, o executado é constituído depositário do bem, não havendo obrigação de entrega do imóvel até que a sua venda seja concretizada nos termos em que é legalmente admissível.
2 - Enquanto não for concretizada a venda do imóvel, o executado pode proceder a pagamentos parciais do montante em dívida, sendo estes considerados para apuramento dos montantes relevantes para a concretização daquela venda
”.

É inquestionável que, não obstante a casa de morada de família do executado constitua um bem suscetível de penhora, nos processos de execução fiscal a Administração Tributária e Aduaneira encontra-se impedida de promover a venda judicial desse imóvel, reconhecendo-se que a protecção dos direitos de crédito do Estado deve harmonizar-se com a salvaguarda do direito à habitação e que tal justifica uma solução legislativa que, não impedindo a penhora, obsta à venda de imóveis afectos a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar por iniciativa do Estado. E, para garantir os direitos de crédito do Estado, estabeleceu que o prazo de prescrição suspende-se durante o período de impedimento legal à realização da venda de imóvel afecto a habitação própria e permanente (art. 49.º, n.º 4, al. d) da LGT). Trata-se de um regime em que se reconhece a protecção da casa de morada de família do executado da venda judicial para satisfação dos créditos tributários.

Porém, se assim é tão linear este entendimento, cremos que não pode sofrer dúvida que esse impedimento legal de promover a venda judicial do bem para ver os seus créditos ressarcidos apenas é aplicável às execuções instauradas por iniciativa da Autoridade Tributária e Aduaneira, deixando de fora, por exemplo, as execuções hipotecárias promovidas pelas instituições bancárias. É que, a não ser assim, com esse limitado e delimitado âmbito de aplicação, esta solução comportaria problemas quer de índole constitucional [(designadamente, por referência aos princípios constitucionais da proporcionalidade (n.º 2 do art. 18º CRP), da garantia do direito à propriedade privada (n.º 1 do art. 62º da CRP) e do próprio acesso à justiça (art. 20º da CRP], quer ao nível da própria legitimidade de o Estado dispor de direitos de que não é titular. Isto é, sendo compreensível e aceitável que a tutela da habitação do executado possa ser feita por sacrifício do Estado, já não é aceitável que o possa ser a coberto dos demais credores.

A nível jurisprudencial foi já entendido que “[a] aparente desarmonia do regime em causa criado pelo n.º 2 do art. 244º do CPPT só resulta da interpretação deste preceito, que forçosamente não pode ser literal, sendo manifesto que nada nos indica que o legislador tenha querido criar um entrave ao prosseguimento das ações executivas cíveis”, acrescentando-se que esta impossibilidade de venda do imóvel penhorado não foi “estendida aos demais credores”.

De igual, a proibição de venda do imóvel afecto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar não implica a preclusão da garantia real ou do grau de preferência pelo pagamento de que a administração fiscal possa beneficiar.

O impedimento legal de realização da venda não determina o levantamento da penhora fiscal, com a inevitável perda da prevalência (ou preferência) decorrente do registo-predial do ato (art. 6º, n.º 1 do CRPredial) porquanto o levantamento da penhora apenas pode (e deve) ser ordenado nos casos especificamente previstos nas disposições dos arts. 218º e ss. do CPPT ou em consequência da procedência de embargos de terceiro, oposição à execução ou qualquer outra causa que produza a extinção desta (cfr. art. 763º do CPC).

Aliás, tendo presente o regime prescrito no n.º 1 do art. 794º do CPC, que determina que, em caso de dupla penhora sobre os mesmos bens susta-se, quanto a estes, a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga. O pressuposto da sustação é pender “mais de uma execução sobre os mesmos bens”, sendo que essa pendência tanto pode ser de execução civil, como de execução fiscal não tendo de se considerar o estado processo, mas sim a data da penhora ou a do registo.

O regime estabelecido no citado preceito legal “não se inspira em razões de economia processual, visto que não se manda atender ao estado em que se encontram os processos; susta-se o processo em que a penhora se efectuou em segundo lugar, ainda que a execução respectiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquele em que precedeu a penhora.

O que a lei não quer é que em processos diferentes se opere a adjudicação ou venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e, em princípio, há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar”.

O “exequente irá deduzir os seus direitos no processo em que os bens tiverem sido penhorados em primeiro lugar. (…).

Tem de ir à execução que fica a correr (a execução com penhora anterior) reclamar o seu crédito para conseguir que seja aí reconhecido, graduado e pago”. “Neste caso, a reclamação não tem apenas por fim desembaraçar de encargos os bens a vender ou a adjudicar; destina-se essencialmente a evitar a pendência de duas execuções simultâneas sobre os mesmos bens” pois é óbvia a inconveniência de um regime que permita a tramitação em paralelo de mais do que uma execução sobre os mesmos bens, já que dificulta o atendimento ponderado e simultâneo dos direitos dos diversos credores.

No caso em decisão, estando assente que sobre o bem imóvel onerado com hipoteca a favor da exequente encontra-se registada uma penhora inscritas a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira, com registo anterior à efetuada nestes autos, dúvidas não subsistiriam quanto à sustação dos presentes autos – como efectivamente foi determinado –, incumbindo à exequente ir reclamar os seus créditos ao processo de execução fiscal no qual foi realizada a primeira penhora, para que, depois de verificados e graduados (art. 791º do CPC), os mesmos pudessem ser pagos pelo produto da venda daquele bem penhorado, segundo a ordem das garantias reais.

As dificuldades e divergências surgem, como se disse, a partir da desarmonia entre o regime consagrado no n.º 2 do art. 244º do CPPT e o previsto no n.º 1 do art. 794º do CPC. De um lado, existe norma que proíbe, no âmbito da execução fiscal, que a Autoridade Tributária promova a venda do imóvel penhorado, devendo sobrestar a respectiva venda executiva fiscal, dado esse bem corresponder à casa de morada de família do executado. De outro lado, temos a norma do Código de Processo Civil que manda sustar a execução quanto ao bem duplamente penhorado e onera o exequente com o encargo de ir reclamar os seus créditos àquele processo de execução fiscal, no qual a penhora foi realizada em primeiro lugar.

Esta situação produz o impasse traduzido em que, não sendo viável ao credor reclamante a promoção da execução fiscal, este ficará impedido de satisfazer os seus créditos pelo produto da venda desse bem, que muitas vezes é o único bem ou o único com valor suficiente para liquidar o crédito exequendo ou reclamado.

Uma parte da jurisprudência e da doutrina entende que, tendo a primeira penhora do imóvel sido efetuada na execução fiscal, o credor cuja penhora não goza de anterioridade deve aí reclamar o seu crédito e ser pago pelo produto da venda do bem penhorado[1] .

Segundo este entendimento, essa solução depreende-se do disposto no n.º 2 do art. 244º CPPT, que tem de ser interpretado no sentido de que “a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação - penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar -, a venda desse bem, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda dado que se encontra em situação similar à prevista no art. 850º, nº 2, do C.P.Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias. Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação daquele preceito – 244º, nº 2, do CPPT – aos casos em que a Administração Fiscal seja o único credor interveniente no processo”. A protecção conferida pelo citado normativo legal não se estende, pois, às situações em que haja concurso de credores. Nessa perspetiva, a “execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada atenta a sua prevalência sobre as posteriores – art. 822º do C. Civil e o disposto no art. 794º nº 1, do C.P.C. – que não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efetuada a penhora posterior”. Ou seja, o impedimento legal à realização da venda daquele imóvel só opera quando a garantia real (em sentido impróprio) invocada pela administração fiscal for a penhora, isto é, a prevista no art. 822.º, n.º 1, do CC. Donde concluem que a venda judicial do bem deve ser promovida na execução que procedeu à penhora do imóvel em primeiro lugar, ainda que isso signifique que seja promovida na execução fiscal.

Um outro entendimento defende que deve ser averiguado o estado da execução fiscal e caso se mantenha o impedimento deve a venda ser promovida no processo executivo comum. Para tal, deve a Fazenda Nacional ir ao processo comum reclamar créditos, de modo a que também os seus direitos sejam devidamente acautelados, distribuindo-se, posteriormente, os resultados do produto da venda em conformidade com o que for determinado na graduação de créditos[2] .

No confronto destas duas posições não sofre agravo que ambas assentem em que a posição da exequente - titulada por um crédito garantido por hipoteca sobre o imóvel em causa (e pela penhora na presente execução) e reclamado na execução fiscal, face à sustação desta execução (ao abrigo do disposto no art. 794º, n.º 1 do CPC) – dispõe de tutela jurídica e carece de efectiva tutela judiciária. Porém, no que diferem é quanto ao lugar processual em que tal tutela se deve efectivar.

Tributado o respeito por entendimento diverso, julgamos que essa tutela se deve tornar efectiva, não pela via da reclamação do crédito no processo de execução fiscal, como se decidiu no despacho recorrido, mas sim através da promoção da venda no processo executivo cível comum.

As razões que temos por decisivas reportam a que o CPTT não prevê o impulso da execução fiscal por parte dos credores reclamantes[3], a que acresce a circunstância de constituir uma ilegalidade a Autoridade Tributária proceder à venda na execução fiscal do imóvel que constitua casa de morada de família, ainda que a coberto do concurso de credores (cfr. art. 8º, n.º 2, al. e) da LGT). E a verdade é que o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal, independentemente de ser requerida por qualquer credor comum, no caso, o credor cujo crédito exequendo se mostra garantido por hipoteca sobre esse imóvel. De facto, o CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes e, ainda que o pudessem fazer, a venda do imóvel está proibida nesse processo fiscal, não só por impulso da Autoridade Tributária como por qualquer outro credor.

Por isso, mesmo que o exequente reclame o seu crédito na execução fiscal nos termos do nº1 do art.º 240.º do CPPT, a verdade é que a realização da venda, após o termo do prazo de reclamação de créditos (nº 1 do art.º 244), não pode ter lugar relativamente a imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar – nº 2 do art.º 244. Aliás, temos por interessante advertir que redundaria paradoxal, admitindo-se a venda do imóvel na execução fiscal, os credores graduados, mesmo que depois do crédito do Estado, virem a ser pagos e aquele primeiro não, tudo conjugado com o incontornável de a letra da lei se reportar a proibição de ser realizada a venda do bem imóvel na execução fiscal.

Mostrando-se, por força da imposição legal, suspensa a execução fiscal, o Estado mantém a sua garantia decorrente da penhora sem que o credor exequente (beneficiando de hipoteca) possa lançar mão de qualquer mecanismo processual para impulsionar o seu andamento, anulando, na prática, a satisfação do seu direito de crédito. Mas, estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no art.º 794.º/1 do CPC, que assenta na ausência de qualquer impedimento legal de prosseguimento normal da execução fiscal, e respetiva venda do bem penhorado, e tem como contexto a necessidade de evitar que sobre o mesmo imóvel se proceda a duas vendas, com duas liquidações. Esse preceito, o art. 794º, nº 1, o que disciplina é que, estando pendentes várias execuções sobre o mesmo bem, a venda do mesmo seja promovida apenas na execução onde ocorra a primeira penhora, evitando a pendência de execuções simultâneas sobre os mesmos bens e, no caso em decisão, tal não é possível porque na primeira execução (fiscal) a venda do imóvel não pode ocorrer por força do disposto n art. 244º, nº 2 do CPPT.

A manter-se a decisão recorrida (de não levantamento da sustação da execução comum), e uma vez que a mesma não toma – nem podia tomar – posição sobre a questão da admissibilidade da realização da venda no processo de execução fiscal mediante promoção do credor reclamante e antecipando já o juízo denegatório do pedido de marcação de venda executiva que aí viesse a ser formulado, o referido credor, a fim de ultrapassar o impasse gerado pela desarmonia entre tais decisões, ver-se-ia obrigado a recorrer aos Tribunais Administrativos Superiores e, no caso de não ter êxito, em derradeira instância, ao Tribunal Constitucional com a invocação do juízo de inconstitucionalidade sobre determinada norma jurídica a fim de lhe ser reconhecida a tutela judiciária que se impõe tendente à salvaguarda dos seus direitos.

Como argumento de favor do entendimento que se defende, recordamos que para haver lugar à intervenção na execução onde o bem primeiramente foi penhorado, é necessário que essa execução esteja numa situação dinâmica, isto é, que esteja a correr os seus termos processuais normais e a única execução que está nessa situação é a comum. Aliás, a permitir-se que a venda ficasse suspensa, ficando o credor com a penhora posterior impossibilitado de requerer o prosseguimento da execução própria, nem das que se encontram sustadas, tal, segundo cremos, significaria uma violação da garantia constitucional do art. 20º, n.º 1, da CRP, porquanto o credor que tivesse o ónus de se apresentar numa execução já de si parada, tanto veria sustada a sua ação executiva atual, como a já pendente, o que constituiria uma inconstitucional “situação de bloqueio”[4] .

Em resumo, carecendo o credor reclamante (que goza de garantia real sobre o bem penhorado) de tutela judiciária através da reclamação dos créditos no processo de execução fiscal, na medida em que se sobrepõe o impedimento da realização da venda, a única alternativa lógica e viável que se revela é o levantamento da sustação da execução comum respetiva.

Assim, afigura-se-nos que se tem por inverificado um dos principais argumentos em que se estribam os defensores do outro entendimento, qual seja, a de que essa interpretação ser a única que respeita o estatuto do exequente que se apresenta como reclamante na execução prioritária por ter sido forçado, em razão de pendência de uma execução com penhora anterior sobre o mesmo bem, a exercer os seus direitos nessa outra execução, na medida em que não temos como seguro que (esse credor reclamante) disponha dos mesmos direitos que lhe caberiam na sua própria execução, designadamente o de promover o andamento dos termos do processo, quando necessário, o de ser pago pelo seu crédito na extinção da execução por pagamento voluntário e o de prosseguir com a execução em caso de desistência do exequente, estejam ou não graduados os créditos.

Deste modo, estando a execução fiscal suspensa, face ao mencionado impedimento legal, a aplicação do art.º 794.º do CPC só tem utilidade se ambas as execuções puderem correr os seus normais termos, visto que só nesse caso o exequente/reclamante podia obter o pagamento do seu crédito pela via executiva, a ausência desse pressuposto [5], determina que de nada adiante reclamar na execução fiscal o crédito se a sua satisfação só pode ser obtida pela venda do imóvel hipotecado, venda que, aí, nunca poderá ocorrer. Assim, o regime previsto no art.º 822.º do C. Civil não pode impedir a venda do imóvel no processo onde a penhora é posterior, uma vez que a Autoridade Tributária pode reclamar o seu crédito nesta execução, desde que devidamente notificada ao abrigo do preceituado no art.º 786º do C. P. Civil, sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir.

Numa formulação final, se o legislador no CPPT determinou que a venda em execução fiscal do imóvel que corresponda a habitação própria e permanente do executado não pode realizar-se e se o credor comum que tenha proposto execução em que tal bem tenha sido penhorado não está impossibilitado de obter a satisfação do seu crédito, mesmo através do produto da venda do imóvel que seja habitação própria e permanente do executado, este impasse só poderá ser resolvido com respeito pelos imperativos garantísticos processuais de todos os intervenientes se se permitir que a venda venha a ser realizada na execução comum. E isto porque, deste modo, não se realiza na execução fiscal a venda que a lei expressamente proíbe mas, em simultâneo, permite-se ao credor tributário que possa vir a ser ressarcido do seu crédito como o seria se, em vez de haver proposto execução fiscal tivesse apenas reclamado o seu crédito na execução comum. Neste contexto, parece-nos ser mais adequado, num registo de sistema, admitir a venda na execução comum, ainda que a penhora do bem tenha sido posterior ao da realizada na execução fiscal, uma vez que esta permissão se revê na actividade da instância em que se encontra a execução comum em oposição à inactividade em que, por vontade legislativa, se encontra e permanecerá a execução fiscal, onde a venda do bem (nunca) não poderá vir a ser realizada.    

Procede, pois, a apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido, ordenando-se o levantamento da sustação da execução, com vista a ser efetuada a citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos, de modo a salvaguardar os seus direitos de crédito, com distribuição do produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de verificação e graduação de créditos.

… …

Síntese conclusiva

- O art.º 244.º/2 e 3 do CPPT (com a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23/5), estabelecendo que, no caso de penhora em execução fiscal de bem imóvel que corresponda a habitação própria e permanente do executado, não há lugar à realização da venda na execução fiscal (salvo se o seu valor patrimonial for superior a €574.000) pretende assegurar o direito fundamental à habitação do devedor e da sua família no âmbito de execução fiscal, por dívidas de natureza fiscal.

- Uma vez que esta limitação ou proteção não existe na lei de processo executivo comum, a salvaguarda fixada pelo art. 244º, nº2 do CPPT só é definitiva e absoluta para devedor executado quando o único credor seja o Estado.

- Se a execução fiscal está suspensa, face ao mencionado impedimento legal, a aplicação do art.º 794.º do CPC só teria utilidade se o exequente/reclamante pudesse obter o pagamento do seu crédito pela via executiva o que exigiria    que ambas as execuções pudessem correr os seus normais termos.

- Estando suspensa a execução fiscal e não podendo por isso aplicar-se o previsto no art.º 794.º/1 do CPC, não pode impedir-se a venda do imóvel na execução comum onde a penhora é posterior (regime previsto no art. 822º do CCivil), porque a Autoridade Tributária pode reclamar o seu crédito nesta execução, desde que devidamente notificada ao abrigo do preceituado no art.º 786º do C. P. Civil, sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir.

- Não podendo prosseguir com a execução fiscal sustada e provocar as diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal, o credor pode acionar a execução comum, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a Apelação e, revogando a decisão, determinar o prosseguimento da execução com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

Custas pela Apelada.

Tem declaração de voto de vencido por parte do Sr. Juiz Desembargador Adjunto Pires Robalo que aqui se transcreve:

“Declaração:

Tenho seguido e mantenho posição contrária, designadamente no proc.º n.º 7389/17.0T8CBR-A.C1, onde fui relator.

Onde referimos o que transcrevemos “advogamos a primeira posição, promover a venda na execução fiscal, por ser aquela, que em nossa opinião, melhor se coaduna com o espirito da lei.

E isto porque preceitua o art.º 239.º do CPPT - “Citação dos credores preferentes e do cônjuge” que:

“1 - Feita a penhora e junta a certidão de ónus, serão citados os credores com garantia real, relativamente aos bens penhorados, e o cônjuge do executado no caso previsto no artigo 220.º ou quando a penhora incida sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo, sem o que a execução não prosseguirá.

2 - Os credores desconhecidos, bem como os sucessores dos credores preferentes, são citados por éditos de 10 dias”.

Continuando o art.º 240.º do CPPT –“Convocação de credores” que:

“1 - Podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação nos termos do artigo anterior os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados.

2 - O crédito exequendo não carece de ser reclamado.

3 - O órgão da execução fiscal só procede à convocação de credores quando dos autos conste a existência de qualquer direito real de garantia.

4 - O disposto no número anterior não obsta a que o credor com garantia real reclame espontaneamente o seu crédito na execução, até à transmissão dos bens penhorados”.

No caso presente, o Banco/apelante é um credor com garantia real sobre o bem penhorado na execução fiscal, logo foi citado para os termos da mesma, nos termos dos art.ºs 239.º e 240.º do CPPT. E tendo aí, decerto reclamado o seu crédito, dúvidas não temos de que a autoridade fiscal terá de dar início ao procedimento de venda do bem penhorado, por força do n.º1 do art.º 244.º n.º1 do CPPT, embora esteja impedida de ter, com tal venda, o objectivo de pagamento coercivo dos créditos fiscais, mas não poderá ignorar o legítimo pagamento dos créditos reclamados e que venham a ser verificados, reconhecidos e graduados conforme lhes competir.

É certo que o CPPT não contém uma norma idêntica à prevista no n.º 2 do art.º 850.º do C.P.Civil, todavia trata-se de uma lacuna que terá de ser suprida por interpretação analógica, até porque segundo o disposto no art.º 246.º n.º 1 do CPPT “Na reclamação de créditos observam-se as disposições do Código de Processo Civil, excepto no que respeita à reclamação da decisão de verificação e graduação, que é efectuada exclusivamente nos termos dos artigos 276.º a 278.º deste código”.

Assim, sendo, a resposta há-de encontrar-se na interpretação que se faça do citado art.º 244º, n.º 2 que tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação, a venda da penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar,  mas, quanto a nós, não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda dado que se encontra em situação similar à prevista no art.º 850º, n.º 2, do C. P. Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias.

Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação daquele preceito – 244º, n.º 2, do CPPT – aos casos em que a Administração Fiscal seja o único credor interveniente no processo.

Esta é a interpretação que entendemos ser a adequada é a única que respeita o estatuto do exequente que se apresenta como reclamante na execução prioritária por ter sido forçado, em razão de pendência de uma execução com penhora anterior sobre o mesmo bem, a exercer os seus direitos nessa outra execução, tanto mais, que a execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada atenta a sua prevalência sobre as posteriores – art.º 822º do C. Civil e o disposto no art.º 794º n.º 1, do C. P. C. que não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efectuada a penhora posterior. ”

Coimbra, 18 de Dezembro de 2019


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[1] Cfr. Ac. do TRC, de 24/10/2017 (relatora Sílvia Pires), disponível em www.dgsi.pt., Ac. da RG de 8.03.2018 (processo n.º 6635/16.2T8GMR.G1, relatora Maria dos Anjos Nogueira), não publicado, Inês da Mota Santos, estudo citado, p. 37 e Delgado de Carvalho, J. H., estudo e local citados.

[2] Cfr., neste sentido, Ac. da RC de 26/09/2017, Ac. da RE de 12/07/2018 no proc. 893/12.9TBPTM.E1 e de 30-5-2019 no proc.  402/18.6T8MMN.E1; ac. RG de 17/01/2019, no proc. n.º 956/17.4T8GMR in www.dgsi.pt.
[3] Vid. ac. do STA de 03-02-2016, acessível em www.dgsi.pt., onde se decidiu que não tendo ocorrido a venda dos bens penhorados, o credor reclamante, não pode requerer o prosseguimento da execução ao abrigo do art. 920°, n.º 2 do Código de Processo Civil (que corresponde ao atual art. 850º, n.º 2, do CPC), por tal faculdade, no caso concreto, não ser aplicável ao processo de execução fiscal.


[4] Cfr. Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL, 2018, p. 815.
[5] O de o exequente poder reclamar o seu crédito na execução em que a penhora do bem ocorreu em primeiro lugar e que venda desse bem não esteja proibida, de modo a obter a satisfação do seu crédito pelo produto da venda.