Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/16.2YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: SERVIÇO DE MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM DO CENTRO DE INFORMAÇÃO MEDIAÇÃO PROVEDORIA E ARBITRAGEM DE SEGUROS
CIMPAS
RECURSO
PRESUNÇÃO DE CULPA
COMISSÁRIO
Data do Acordão: 09/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CIMPAS - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA - SECÇÃO CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 627º E 662º DO NCPC; 503º, Nº 3 DO C. CIVIL. LEI 63/2011, DE 14 DE DEZEMBRO (LAV).
Sumário: I) As decisões proferidas pelo Serviço de Mediação e Arbitragem do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) são passíveis de recurso para o Tribunal da Relação, com aplicação do disposto nos arts. 627º e ss do NCPC, designadamente do artigo 662º/1.

II) A presunção de culpa do art. 503º/3 do CC só pode aplicar-se se os factos provados permitirem concluir pela existência de uma relação de comissão entre o dono do veículo e o seu condutor no momento do acidente, ou seja, que este actuava em relação àquele numa relação de dependência, agindo mediante ordens ou instruções daquele na realização de actos de carácter material ou jurídico integrados numa tarefa ou função confiada pelo dono ao condutor.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

O autor apresentou contra a ré, no Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), um formulário de reclamação visando a resolução por via de arbitragem de um conflito existente entre ele e a ré e emergente de um acidente de viação no qual intervieram os veículos 72 ---, pertencente ao autor, e 34 ---, segurado na ré, acidente esse que a ré se recusa a regularizar extrajudicialmente.

Peticionou o autor a condenação da ré a pagar-lhe 6.004, 02 euros.

A ré contestou a pretensão do autor, sustentando que o acidente por ele relatado pelo só ao mesmo pode imputar-se causalmente, objectiva e subjectivamente, com a consequente irresponsabilidade da ré.

Prosseguindo os autos os seus regulares trâmites, veio a ser proferida pelo Exmo. Juiz Árbitro a decisão que está documentada a fls. 95 a 98, cujo dispositivo seguidamente se transcreve:

Nesta conformidade e na parcial procedência da reclamação, condena-se a reclamada a pagar ao reclamante a quantia €2.264,51, correspondente a 50% dos danos indemnizáveis sofridos pelo reclamante, incluindo-se o valor do IVA, embora quanto a este último desde que comprovado o seu pagamento através da respectiva factura/recibo.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o autor, rematando as suas alegações com as concussões seguidamente transcritas[1]:

A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

2ª) se o acidente a que os autos se reportam deve imputar-se causalmente e de modo exclusivo à violação pelo condutor do veículo HT das regras de segurança enunciadas nos arts. 24º e 38º/1 do Código da Estrada;

3ª) se o acidente a que os autos se reportam deve imputar-se de modo exclusivo ao condutor do veículo HT com fundamento na presunção de culpa do art. 503º/3 do Código Civil.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

...

B) De direito

Primeira questão: se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada.

Pretende o recorrente que se dê como provado o seguinte: “Ao iniciar-se a ultrapassagem do veículo HT ao veículo MB, o condutor do HT embateu com a frente direita, com mais incidência da roda da frente direita do HT, na traseira do lado esquerdo do MB, com mais incidência sobre a roda traseira do lado esquerdo. ” – conclusão G).

Nos termos das disposições conjugadas do art. 39º/4 da Lei 63/2011, de 14 de Dezembro (LAV), e 20º/2 do Regulamento da Arbitragem e das Custas do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS)[2], aplicável por força das adesões ao Serviço de Mediação e Arbitragem do referido CIMPAS que estão documentadas a fls. 10 e 17, a decisão arbitral que está documentada a fls. 95 a 98 é passível de recurso para o Tribunal da Relação, com aplicação do disposto nos arts. 627º e ss do NCPC.

De entre as normas do NCPC aplicáveis conta-se o artigo 662º/1, nos termos do qual “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.

O recorrente pretende a alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida, por aditamento, com base na “…prova produzida em sede audiência…”, nas fotografias de fls. 54, 55, 79 a 82, tudo em confronto com a demais matéria dada como provada – p. 2 das alegações (fls. 105) e conclusões E) a G) (fls. 112).

Sucede que de entre a prova produzida na audiência de julgamento conta-se prova testemunhal que não foi objecto de gravação (fls. 52 e 95), prova testemunhal essa que foi objecto de explícita invocação na fundamentação da decisão recorrida relativa à matéria de facto, onde se escreveu, designadamente, que “Tendo em conta a posição expressa pelas partes e a prova produzida, nomeadamente a participação policial do sinistro, a declaração amigável de acidente de demais documentação constante dos autos, bem como o depoimento das testemunhas …” (sublinhado nosso).

Essa prova testemunhal é insusceptível de reapreciação por parte deste Tribunal da Relação, uma vez que não foi objecto de gravação, por consequência do que está este Tribunal impedido de reapreciar todos os elementos de prova que foram produzidos perante o tribunal recorrido e que este invocou na fundamentação da correspondente decisão relativa à matéria de facto.

Ora, não ausência de meios de prova produzidos no âmbito destes autos com força probatória vinculada e na ausência de prova documental superveniente que impusesse a conclusão fáctica pela qual pugna o recorrente, a reapreciação de todos aqueles meios de prova, incluindo a testemunhal produzida perante o tribunal recorrido em particulares condições de imediação que exclusivamente lhe assistiram, era pressuposto necessário para que este Tribunal da Relação pudesse sustentar fundadamente uma alteração da decisão sobre a matéria de facto do tipo daquela pela qual pugna o recorrente.

Por outro lado, a prova documental que dos autos consta, em especial as fotografias invocadas pelo recorrente, não está dotada de qualquer força probatória especial, consistindo em documentos meramente particulares que, por isso, estão sujeitos à livre apreciação por parte do julgador (art. 607º/5 do NCPC).

Além disso, desacompanhados da prova testemunhal produzida na audiência e insusceptível de reapreciação por este tribunal, tais documentos são manifestamente insuficientes, por si ou conjugados com a demais provada documental constante dos autos e/ou com os demais factos dados como provados, para se poder concluir no sentido de que no início de uma manobra de ultrapassagem iniciada pelo veículo HT foi este que foi embater com a sua frente direita na traseira esquerda do MB.

Finalmente, não foi junto aos autos qualquer documento superveniente que imponha a conclusão fáctica sustentada pelo recorrente.

De tudo resulta, assim, não existir fundamento bastante para deferir o aditamento factual pelo qual o recorrente pugna.

Segunda questão: se o acidente a que os autos se reportam deve imputar-se causalmente e de modo exclusivo à violação pelo condutor do veículo HT das regras de segurança enunciadas nos arts. 24º e 38º/1 do Código da Estrada.

Como claramente fui das alegações e das correspondentes conclusões (C a M, maxime a H), a resposta afirmativa à presente questão que o recorrente entende dever ser-lhe conferida tinha, mesmo na economia das alegações do apelante, por pressuposto prévio o de que procedesse a sua pretensão fáctica recursiva, tanto mais que o recorrente nem sequer sustentou, ainda que de modo meramente subsidiário, que tal resposta afirmativa deveria ter lugar ainda que permanecesse inalterada a decisão sobre a matéria de facto.

Por isso, tendo improcedido aquela pretensão fáctica do apelante, ficou consequentemente prejudicada qualquer possibilidade de ser sustentada uma resposta afirmativa à questão em apreço.

Improcede, pois e sem necessidade de outras considerações, a pretensão do recorrente que ora está em apreço.

Terceira questão: se o acidente a que os autos se reportam deve imputar-se de modo exclusivo ao condutor do veículo HT com fundamento na presunção de culpa do art. 503º/3 do Código Civil.

Estabelece o artigo 503º/3/1ª parte do Código Civil que “Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; …”.

A presunção de culpa que a norma acabada de enunciar consagra tem como substrato fáctico de aplicação o de que esteja demonstrada a existência de uma relação de comissão entre o proprietário do veículo e o condutor do mesmo.

Ora, o condutor de um veículo só deve ser considerado comissário quando tenha sido encarregado de uma comissão, traduzindo-se esta na realização de actos de carácter material ou jurídico integrados numa tarefa ou função confiada a uma pessoa diversa do interessado.

Por outro lado, uma comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, agindo este mediante ordens ou instruções daquele.

Além disso, para se concluir existência de uma situação de comissão é mister que se alegue e prove a correspondente factualidade caracterizadora, pois não é possível sustentar-se que o terceiro que conduz um veículo automóvel o faz, necessariamente, como comissário do seu dono.

Não se alegando ou não se provando que o condutor do veículo agia por conta do proprietário e mediante ordens ou instruções deste não se pode concluir que o condutor era comissário e, assim, a presunção de culpa em apreço não pode ser aplicada.

Acresce dizer que cabe ao lesado a demonstração da factualidade integradora da mencionada relação de comissão (art. 342º/1 do CC).

Por fim, na aplicação da presunção em questão este tribunal apenas pode socorrer-se da factualidade dada como provada.

Ora, no caso em apreço, nem sequer resulta dos factos provados a titularidade do direito de propriedade incidindo sobre o veículo HT.

A titularidade desse direito de propriedade também não vem alegada no formulário de reclamação documentado a fls. 2 e 3 dos autos e que no âmbito do presente processo desempenha funções equivalentes às da petição inicial.

Além disso, da participação de acidente de viação que está documentada a fls. 5 a 7 consta que tal titularidade assistia ao Município de Santarém e não, como sustenta o recorrente na sua conclusão N), aos Bombeiros Municipais de Santarém.

Por outro lado, dos factos dados como provados pelo tribunal recorrido não emerge a profissão do condutor desse veículo no momento do acidente, e muito menos a relação que intercedia entre ele e o proprietário do mesmo no momento do acidente, designadamente que a condução do veículo HT fosse exercida em execução de uma tarefa de que o condutor do veículo tivesse sido encarregado pelo seu proprietário, encontrando-se aquele em relação a este numa relação de dependência entre ambos, agindo o condutor mediante ordens ou instruções do proprietário.

A relação de propriedade, a profissão e o exercício da condução no âmbito de funções laborais alegadas pelo recorrente e sintetizadas na conclusão N) não têm o mínimo de respaldo na factualidade dada como provada pelo tribunal recorrido e contra a qual, nesses específicos aspectos, o recorrente não se rebelou, razão pela qual este Tribunal da Relação não pode ater-se a esses factos alegados pelo recorrente mas que não têm o mínimo suporte na decisão fática recorrida.

Aliás, a profissão do condutor do veículo HT, a relação intercedente entre esse condutor e o proprietário de tal veículo, e as concretas funções que eram desempenhadas pelo condutor no dia, local e hora em que ocorreu o acidente a que os autos se reportam nem sequer foram objecto de alegação factual no formulário de reclamação documentado a fls. 2 e 3 dos autos e que no âmbito do presente processo desempenha funções equivalentes às da petição inicial.

Por isso mesmo, a articulação nas alegações de recurso dos factos integradores desses três pressupostos legais de aplicação da presunção consagrada no referido art. 503º/3 do CC representa uma alteração da causa de pedir a que a recorrida não deu o seu acordo e que não resultou de confissão feita pela recorrida, com a consequente inadmissibilidade daquela alteração – arts. 264º e 265º/1 do NCPC,  a contrario, ex-vi do art. 23º/2 do Regulamento da Arbitragem e das Custas do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros supra referido.

Como assim, sem necessidade de outras considerações, é forçoso concluir-se no sentido de que os factos provados e de que este tribunal pode exclusivamente socorrer-se não suportam a afirmação de uma relação de comissão sem a qual não pode sustentar-se a aplicação da presunção de culpa pela qual pugna o recorrente.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão apelada.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 27/9/2016.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


[1] Consigna-se que nos próprios termos das conclusões do apelante, à primeira conclusão foi atribuída a alínea C), o que se manteve na transcrição das mesmas.
[2] Disponível em https://www.cimpas.pt/files/files/RegulamentodaArbitragemedasCustas.pdf.