Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
289/21.1T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: DESCRITORES:
MAIORES ACOMPANHADOS
LEGITIMIDADE
SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 141.º , N.ºS 1 E 2 , DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A legitimidade ativa para requerer o acompanhamento, radica no próprio beneficiário e no Ministério Público, sem qualquer restrição; a legitimidade ad causam do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível necessita de ser integrada por um ato autorizativo do beneficiário.

II - Obtida essa autorização por qualquer destes últimos, dá-se um fenómeno, não de representação, mas de substituição processual voluntária.

III - O tribunal deve recusar o suprimento se, em face das provas produzidas, se dever concluir, sem hesitação, que o beneficiário dispõe da capacidade para conceder a autorização ao requerente e que não existe motivo ponderoso para aquele suprimento.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


1. Relatório.

AA propôs, no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ..., Juiz ..., contra BB, acção de acompanhamento de maiores, com processo especial, pedindo:

a) O suprimento da autorização judicial da requerida para requerer o acompanhamento;

b) O acompanhamento urgente da requerida;

c) A sua designação como acompanhante da requerida, ou quando assim se não entenda, de um dos dois outros filhos da requerida, CC ou DD;

d) Que seja conferido ao acompanhante da maior, poderes de representação desta, inclusive quanto aos atos da vida corrente, salvo no que respeita aos negócios mais elementares que não impliquem a constituição de obrigações duradouras (de execução continuada ou periódicas), nem o pagamento de quantias monetárias superiores a € 50.00;

e) Se determine que a acompanhante se encontra impossibilitada de exercer, por si, direitos pessoais, entre os quais o de se deslocar no país ou para o estrangeiro, de fixar domicílio e residência e de testar, podendo, contudo, estabelecer relações pessoais com quem entender, no limite as capacidades que possui e da sua vontade livre e esclarecida;

f) O registo e o averbamento no assento de nascimento da requerida da decisão que venha a ser proferida.

Fundamentou estas pretensões, na parte útil, no facto da requerida, sua mãe, nascida no ... .../.../1932, ter limitações profundas de mobilidade, necessitando de bengala ou da ajuda de terceiros para se deslocar e para tratar da higiene pessoal, adquirir medicamentos, marcar e desmarcar consultas médicas, ser incapaz de confecionar as refeições ou adquirir alimentos e tratar da roupa, não tendo noção exacta do valor do dinheiro e dos bens que carece para as suas necessidades básicas, sendo facilmente influenciável e manipulável, por força da degeneração cognitiva que a afecta.

A requerida, na resposta, defendeu-se por impugnação, negando a veracidade dos factos alegados pelo requerente.

Por despacho de 25 de Março de 2021, indeferiu-se o requerido quanto à aplicação de medida urgente à beneficiária.

A requerida foi submetida a avaliação neuropsicológica e psicologia forense no C..., EPE, tendo a neuropsicóloga concluído no relatório, datado de 27 de Julho de 2021, que os resultados dos testes são compatíveis com défice cognitivo ligeiro associado à idade e reduzida reserva cognitiva. Nos testes de memória, a curva de evocação verbal surge deficitária, mantendo, contudo, capacidade de aprendizagem. A memória remota apresenta-se funcional com capacidade de relatar eventos autobiográficos corretamente, sendo a memória em contexto e a memória imediata penalizada pelo reduzido leque atencional. Os aspectos visuo-construtivos apresentam maior declínio, o que parece estar associado à reduzida escolaridade. Apresenta dificuldade em desenhar figuras geométricas simples, contudo consegue escrever o seu nome de forma legível. As funções executivas denotam maior dificuldade em funções com flexibilidade mental, auto-monitorização, planeamento e pensamento abstracto surgem muito deficitários. Este perfil é compatível com défice cognitivo ligeiro, de cariz predominantemente cortical, associado à idade e reserva cognitiva. A paciente apresenta-se ainda coerente e capaz de tomar decisões simples relativas ao seu quotidiano, contudo parece necessitar de apoio para as tarefas mais complexas e não mecanizadas, podendo sugerir algumas dificuldades para o seu funcionamento diário independente.

A perita única do Gabinete Médico-Legal Forense da ... – Extensão da ..., concluiu, no relatório de perícia médico-legal, de 26 de Dezembro de 2021, que a requerida apresenta o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Minor, de acordo com a classificação da DSM-S, que corresponde a um défice cognitivo ligeiro que é compatível com a manutenção da realização das suas tarefas de vida diária. Aparenta ser de predomínio cortical, associado à idade e reserva cognitiva limitada. A examinanda apresenta-se ainda com discurso coerente e capaz de tomar decisões simples relativas ao seu quotidiano, apesar de parecer necessitar de apoio em tarefas mais complexas e não mecanizadas, podendo sugerir algumas dificuldades para um funcionamento diário independente no que concerne a negócios de vida mais complexos. A data do seu início deve ser fixada na data da realização da avaliação neuropsicológica, pois é o primeiro registo de que temos conhecimento do seu diagnóstico, a 22 de julho de 2021. A examinanda está capaz de governar a sua pessoa e bens. Necessitará de apoio de terceiros apenas em tarefas mais complexas no que concerne a negócios de vida mais complexos. Nas restantes áreas encontra-se capaz de exercer plena, pessoal e conscientemente todos os seus direitos e de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres. A examinanda mostra-se capaz de livre e conscientemente conceder autorização ao seu filho para a instauração da presente ação de acompanhamento de maior.

A requerida ouvida pessoalmente pela Sra. Juíza de Direito, respondeu a perguntas desta pelo modo seguinte: perguntada pelo nome, respondeu BB. Perguntada pela data de nascimento, respondeu .../.../1932. Perguntada pela idade, respondeu 90 anos. Perguntada, sobre a sua profissão antes de estar reformada, respondeu que viveu em ... durante muitos anos, onde teve uma confeção com a irmã, na qual fabricavam anoraques. Quando regressou a Portugal, continuou no exercício da mesma profissão. Perguntada sobre onde reside, respondeu que no .... Perguntada sobre com quem reside, respondeu que com a filha EE e os dois netos, filhos daquela. Mais tarde referiu que apenas o neto mais novo reside no ..., o qual estuda enfermagem, sendo que o neto mais velho neto reside no .... Perguntada sobre como passa o seu dia, respondeu que se levanta, toma o pequeno almoço e entretém-se a ver televisão e a fazer mantas em croché, para tapar as pernas. Perguntada sobre se durante o dia fica sozinha em casa, respondeu que a filha tem um comércio, pelo que apenas fica sozinha em casa nos momentos em que a filha vai para o comércio, caso contrário, a filha está com ela em casa. - Perguntada, respondeu que as refeições são confecionadas pela filha. Perguntada, respondeu que necessita da ajuda da filha para tomar banho e vestir-se. Perguntada, respondeu que consegue deambular com auxílio de uma bengala. Perguntada, respondeu tomar medicação habitual, sendo a filha que gere a toma da mesma. Perguntada sobre se sabe onde se encontra, respondeu que no Tribunal. Perguntada sobre a razão por que veio a Tribunal, respondeu que “porque os filhos mais velhos querem que eu vá viver com eles, mas eu não quero”. Perguntada, respondeu que tem 2 filhos e uma filha, não se recordando dos nomes dos filhos. Perguntada se se chamam CC e AA, respondeu afirmativamente. Mais tarde referiu ter um outro filho de nome DD. Perguntada sobre a razão de não querer ir viver para casa dos filhos, respondeu que aqueles lhe roubaram umas casinhas e o dinheiro. Mais acrescentou que foi o filho DD “que arranjou esta guerra toda”, não estando de boas relações com aqueles, com os quais não quer falar. Perguntada, respondeu que os filhos não a visitam e não lhe telefonam, nem mesmo por alturas do seu aniversário e época natalícia. Perguntada, respondeu que quer continuar a viver com a filha, a qual cuida dela e a trata bem. Perguntada, respondeu que veio para o tribunal com a filha e com o genro. Perguntada sobre em que dia da semana estamos, respondeu Sábado. Perguntada sobre o mês em que nos encontramos, respondeu Abril. Perguntada sobre se sabe ler e escrever, respondeu que aprendeu a ler e a escrever um pouco. Tem a terceira classe. Perguntada sobre se sabe fazer contas, respondeu que mais ou menos. Perguntada, respondeu que não vai às compras sozinha, porque a filha traz as coisas do comércio.

A requerida respondeu às perguntas formuladas, no mesmo ato, pelo Sr. Advogado do Apelante pelo modo seguinte: perguntada sobre qual o montante que aufere de reforma, respondeu não saber. Perguntada sobre se aufere uma ou duas reformas, respondeu que aufere uma reforma. Perguntada sobre se, após a morte do marido passou a auferir duas reformas, respondeu negativamente. Perguntada sobre se é a depoente que recebe a sua reforma, respondeu que a sua reforma é depositada no banco, acrescentando que foi o genro que “arranjou para ficar assim”. Perguntada sobre se recebe a sua reforma mensalmente, respondeu afirmativamente. Perguntada, respondeu que a sua reforma, cujo valor desconhece, vai para o banco, e que depois o genro levanta o dinheiro e entrega-o à depoente. Perguntada sobre quantas notas existem, respondeu haver notas de 20€, 50€ e 100€. Perguntada, respondeu que o genro levanta e dá, mensalmente, à depoente uma nota de 20€. Perguntada, respondeu que o remanescente da sua reforma fica para a filha EE, por ser esta que cuida dela e para os dois filhos daquela, netos da depoente. Perguntada sobre se sabe o que é um testamento, respondeu afirmativamente. Perguntada sobre se já fez algum testamento, respondeu afirmativamente

Por sentença de 31 de Março de 2022 - precedida de audição das partes – depois de se observar que a beneficiária se encontra no normal uso das suas capacidades,  não sofrendo de qualquer défice cognitivo, doença psiquiátrica ou anomalia permanente da  personalidade que a impossibilitem de dar o seu consentimento para a propositura de uma ação com  vista ao seu acompanhamento, caso assim o entendesse e que não se afigura existir qualquer interesse atendível para suprir o consentimento da beneficiária, que esta não concedeu ao requerente, seu filho, pelo que não dispondo o requerente de autorização da beneficiária, sua mãe, para a  propositura da presente ação, nem tendo tal autorização sido suprida pelo Tribunal, urge concluir pela  ilegitimidade do requerente para a propositura dos presentes autos de acompanhamento de maior., julgou-se o requerente parte ilegítima e absolveu-se a beneficiária da instância.

É esta sentença que o requerente impugna no recurso, tenho extraído da sua alegação, para demonstrar a falta de bondade dela, estas conclusões:

1ª – Da prova produzida nos autos (relatório pericial e audição da beneficiária),  resulta, nomeadamente, que a Requerida tem um elevado grau de incapacidade física,  que a impede de realizar, sem o auxílio de terceiros, as suas atividades de vida diária;  que tem défice cognitivo, que a impede de gerir os seus bens e rendimentos, ao ponto  de desconhecer o valor do dinheiro e dos bens, nomeadamente da sua pensão ou  pensões de reforma; que não sabe fazer contas simples; não foi capaz de escrever  uma frase, nem de decorar três palavras; que necessita de apoio de terceiros em  tarefas mais complexas e não mecanizadas e para a realização de negócios de vida  mais complexos.

2ª - Da audição resultou ainda, de forma cristalina, que a beneficiária está totalmente dependente da filha e do genro, que decidem tudo o que a àquela diz respeito, a seu bel-prazer, determinando e influenciando todos os seus atos de vida e negócios e administrando livremente os seus bens e rendimentos.

3ª - Do quadro factual resultante do relatório pericial e da audição da beneficiária, é manifesto que esta não tem capacidade para, de forma livre e consciente, dar autorização ao Requerente para intentar a presente ação de acompanhamento.

4ª - O facto da beneficiária ter dito no decurso da sua audição que não quer ir viver  para casa dos filhos porque estes “roubaram umas casinhas e o dinheiro”, conjugado  com o essencial das declarações que lhe foram tomadas, é elucidativo da  instrumentalização de que está a ser vítima, perpetrada pela filha EE, que,  conjuntamente com o marido, gerem tudo o que àquela diz respeito, fazendo-o no  entanto, no sue próprio interesse e não no interesse exclusivo da Requerida, como se  impõe.

5ª – Justifica-se o suprimento do consentimento para a proposição da ação de acompanhamento de maior quando o requerido/beneficiário não consegue, sozinho, acautelar os seus direitos, necessitando de ajuda de terceiros para tal desiderato – Ac.  do TRC de 7/9/2021, proferido no processo nº 1067/20.0T8LRA.C1 (disponível em www.dgsi.pt).

6ª - As declarações prestadas pela Requerida em sede de audição, conjugadas com o relatório pericial, impõem que o tribunal supra o seu consentimento, em defesa dos seus legítimos direitos.

7ª - Tendo a Requerida quatro filhos e não dispondo de capacidade para gerir a sua vida, nem autonomia para fazer face as suas atividades de vida diária, o interesse desta impõe que seja acompanhada nessa gestão por todos os filhos e não apenas pela filha EE, de quem permanece refém, que, conjuntamente com o marido, gerem, a seu bel-prazer, tudo o que àquela diz respeito, em seu benefício, sem acautelarem o seu futuro.

8ª – A decisão recorrida viola, designadamente, o disposto nos artigos 140º e 141º, nº 2, ambos do Código Civil, pelo que deve ser revogada, proferindo-se acórdão que decrete o suprimento da autorização judicial da Requerida para o aqui recorrente, seu filho, requerer o acompanhamento objeto dos presentes autos.

Na resposta, o Ministério Público e a beneficiária, pronunciaram-se, una voce, pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso julgou provados, a partir do relatório pericial, do relatório de avaliação neuropsicológica e psicologia forense da pessoa da beneficiária e do auto de audição desta, os factos seguintes:

- Apresenta défice cognitivo ligeiro associado à idade e reserva cognitiva limitada (Perturbação Neurocognitiva Minor); 

- A memória remota apresenta-se funcional, com capacidade de relatar eventos autobiográficos corretamente; 

- A memória em contexto e memória imediata é penalizada pelo reduzido leque atencional;

- Os aspetos visuo-construtivos apresentam maior declínio, associado à reduzida escolaridade (3º ano de escolaridade); 

- Consegue escrever o seu nome de forma legível; 

- Mantém capacidade de aprendizagem;

- As funções executivas denotam maior dificuldade e funções com flexibilidade mental, auto monitorização, planeamento e pensamento abstrato surgem muito deficitárias; 

- Permanece autónoma nas atividades da vida diária, com auxilio e supervisão de terceira pessoa, necessitando de apoio para tarefas mais complexas e não mecanizadas; 

- Aparenta suporte emocional funcional; 

- Mantém um discurso coerente, fluente e organizado, com compreensão e raciocínio social compatíveis com a sua faixa sociocultural; 

- Apresentou-se parcialmente orientada no tempo, no espaço e quanto à sua pessoa; 

- Não apresenta dificuldades de motricidade, observando-se, contudo, marcha atáxica por fraqueza dos membros inferiores; 

- Não reconheceu o dinheiro nem o seu valor, situação que pode ter sido comprometida pelos elevados níveis de ansiedade que a beneficiária apresentou; 

- Apresenta-se capaz de tomar decisões simples relativas ao seu quotidiano; 

- Está capaz de governar a sua pessoa e bens, sendo capaz de exercer plena, pessoal e conscientemente, todos os seus direitos e de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, necessitando, apenas, de apoio de terceiros em tarefas mais complexas no que concerne a negócios de vida mais complexos; 

- Mostra-se capaz de livre e conscientemente conceder autorização para a instauração do presente acção de acompanhamento de maior.

3. Fundamentos.

3. 1. Delimitação do âmbito objetivo do recurso.

Considerando os parâmetros da competência decisória desta Relação, tal como são recortados pelo objeto da ação e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pelas conclusões da alegação deste, é só uma a questão que importa resolver (artº 635.º, nºs 1 a 5, do CPC) : a de saber se deve suprir-se a autorização da requerida para o acompanhamento e, consequentemente, se deve reconhecer-se ao apelante legitimidade para o requerer.

A resolução deste problema vincula à exposição, leve, mas minimamente estruturada, dos fundamentos finais do acompanhamento de maiores, dos pressupostos de suprimento da autorização do beneficiário e da força probatória da perícia médico-legal.

3.2. Fundamentos finais do acompanhamento de maiores e pressupostos do suprimento da autorização do beneficiário.

Até à superveniência da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado e, do mesmo passo, eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, os meios duradouros de proteção da pessoa vulnerável eram dados por estes dois últimos institutos. A interdição tinha como fundamento a anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira que incapacitasse a pessoa para governar a sua pessoa e o seu património e como consequência jurídica uma incapacidade geral de exercício Por sua vez, a inabilitação assentava em qualquer anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira que não fosse de tal modo grave que justificasse a interdição, na prodigalidade, alcoolemia ou adição ao consumo de estupefacientes que incapacitasse a pessoa para a regência conveniente do seu património e tinha por consequência jurídica uma limitação da incapacidade de exercício a determinados atos ou categorias de atos (art.ºs 138.º, nºs. 1 e 2, e 152.º do Código Civil, na redação anterior à que lhes foi impressa pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto).

Em traços gerais, as características do modelo de protecção da pessoa vulnerável assente nos institutos da interdição e da inabilitação eram, nos respectivos momentos substantivos e procedimentais, as seguintes:

- Dupla via: interdição/inabilitação: no tocante aos fundamentos comuns a aplicação de um ou outro instituto variava em função da gravidade da causa, assente em conceções psiquiátricas superadas; relativamente aos fundamentos específicos da inabilitação, esta assumia uma certa feição punitiva ou de reforço negativo;

- Desproporcionalidade: a interdição removia por inteiro a capacidade jurídica da pessoa a ela sujeita, impossibilitando a maximização dos espaços de autodeterminação de que ainda fosse portadora, sujeitando-a a uma espécie de quase morte civil;

- Substituição: o interdito era substituído na tomada de decisões, passando a mero objeto ou destinatário das decisões de outrem – o representante (tutor); a tomada de decisões pelo representante (substituto) assentava na perceção do que este considera ser do interesse do substituído, abstraindo da vontade, expressa ou presumida, do incapaz e mesmo contra a vontade conhecida (art.º 139.º do Código Civil, na redação anterior à que lhe foi impressa pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto).

- Invariabilidade: a interdição e a inabilitação não disponibilizam um apoio variável, na forma ou na intensidade, de modo a responder às necessidades concretas da pessoa apoiada: o apoio era dispensado ne varietur, com indiferença pela situação concreta do incapaz, da sua autonomia e capacidade de autodeterminação;

- Desfocagem: a interdição e a inabilitação não tomavam como centralidade a promoção do bem-estar da pessoa incapaz e a sua recuperação, mas a tutela do seu património, com a finalidade de assegurar integridade e ulterior reversão para terceiros;

- Discriminação: os mecanismos de apoio disponibilizados pela interdição e pela inabilitação, assentavam num indicador discriminatório: a avaliação da capacidade mental;

- Descapacitação: a interdição e a inabilitação eram assumidas, não como instrumentos de capacitação, mas de proteção, perpetuando a ideologia da menoridade do maior incapaz (art.ºs 139.º 153.º e 154.º do Código Civil, na redação anterior à que lhes foi impressa pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto.

- Sujeição: a interdição e a inabilitação eram concebidas como situações de sujeição, excluindo-se a iniciativa procedimental da pessoa incapaz: a interdição e a inabilitação apenas podiam ser decretadas a pedido de terceiros (art.ºs 141.º e  156.º do Código Civil, na redação anterior à que lhes foi impressa pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto);

- Perpetuidade e imodificabilidade tendenciais: a interdição e a inabilitação não disponibilizavam mecanismos de reaferição periódica injuntiva das necessidades da intervenção e da sua consequente modificação ou cessação (art.ºs 141.º e 156.º do Código Civil, na redação anterior à que lhes foi impressa pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto);

- Disfuncionalidade dos órgãos de supervisão: o órgão de controlo do representante (tutor) – conselho de família - não disponibiliza uma supervisão eficaz da atividade daquele, sendo, aliás, de constituição difícil;            

- Adversialidade: o decretamento da interdição e da inabilitação decorria no contexto de um procedimento de natureza adversarial, em que a pessoa incapaz surgia sempre como interveniente passivo: uma e outra eram decretadas contra a pessoa incapaz, limitando-se a sentença a verificar a incapacidade (art.º 891.º, n.º 1, do CPC, na redação anterior à que lhes foi impressa pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto).

De um modelo de proteção da pessoa maior vulnerável com estas coordenadas resultava esta consequência perversa: a maioria das situações de vulnerabilidade ficavam à margem das medidas de proteção jurídica, o que era particularmente patente no tocante à pessoa incapaz destituída de património relevante: o estímulo da intervenção era, nas mais das vezes, a relevância do património do incapaz e a necessidade de assegurar a sua integridade com a finalidade última de garantir a sua transmissão.

O regime era notoriamente desconforme com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do direito fundamental à capacidade civil, quer com textos internacionais vinculantes para o Estado Português: a Convenção de Nova Iorque de 2007 (Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência) e o respetivo Protocolo Adicional[1],e a Recomendação  do Conselho da Europa n.º R (99), 4, do Conselho da Europa, adoptada pelo Comité de Ministros de 23 de Fevereiro de 1999, abertamente orientados pelo signo da doutrina da alternativa menos restritiva[2], de harmonia com a qual a tutela da pessoa com capacidade diminuída deve efetuar-se com a menor restrição possível dos direitos fundamentais e de personalidade que titula, através de instrumentos de protecção que lhe assegurem o máximo controlo sobre a sua vida.

Além de argumentos jurídicas, razões sociológicas depunham decisivamente no sentido da inadequação do modelo de proteção construído pelos institutos da interdição e da inabilitação: o aumento da esperança de vida e consequente aumento da exposição a enfermidades incapacitantes; modificação das estruturas familiares - desaparecimento da família alargada e redução desta à conjugal ou nuclear e presença de ambos os cônjuges no mercado de trabalho, com a consequente impossibilidade de disponibilização de cuidadores informais no contexto familiar; concentração demográfica de pessoas em idade avançada, decorrente da assimetria dos nascimentos relativamente aos óbitos.

Com o instituto do maior acompanhado, criado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto[3], é patente uma radical mudança de paradigma[4] do modelo de protecção da pessoa maior vulnerável, que se orienta, em síntese apertada, pelos princípios estruturantes, substantivos e processuais, seguintes:

- Unidade: a tutela da pessoa incapaz é instrumentalizada através de um único instituto jurídico: o maior acompanhado, recusando-se, na definição dos seus pressupostos ou da consequência que se deve associar à incapacidade, qualquer efeito estigmatizante (art.º 138.º do Código Civil);

- Proporcionalidade: a intervenção é limitada ao mínimo essencial, preservando em toda a extensão possível a capacidade de autodeterminação que a pessoa ainda titula, apenas se admitindo a representação – substituição - nos casos em que a pessoa incapaz não disponha da competência para formar a sua vontade ou para a exteriorizar. A pessoa é apoiada, de modo a que possa manifestar a sua vontade com a ajuda de outrem, orientado, objetiva e subjetivamente, pela defesa da autonomia e dos interesses do acompanhado. A intervenção orienta-se pelo princípio da capacidade e não pelo princípio contrário - o da incapacidade (art.ºs 145.º, n.º 1, e 147.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

- Subsidiariedade: o acompanhamento é a ultima ratio da intervenção, sendo admitido apenas nos casos em que os seus objetivos não possam ser adequadamente prosseguidos pela simples atuação de deveres de assistência e cooperação decorrentes de outras situações jurídicas, como, v.g., do casamento - deveres conjugais - ou da relação de parentalidade - deveres parentais ou filiais (art.º 140.º, n.º 2 do Código Civil);

- Necessidade: o conteúdo do acompanhamento é determinado pelo concreto grau de incapacidade de que o acompanhado é portador, devendo a sentença que o decreta, definir com precisão o âmbito do acompanhamento, sem vinculação ao que tiver sido pedido. O apoio na tomada de decisões é variável, na forma e na intensidade, de modo a corresponder às concretas necessidades da pessoa que dele necessita (artº 145.º, nº 2 do Código Civil).

- Revisibilidade: por aplicação de um princípio de contingência, o acompanhamento é submetido a um princípio injuntivo de revisibilidade, visando adequá-lo, em cada momento, à situação da pessoa incapaz, aumentando ou diminuindo a intensidade da intervenção, ou no limite, fazendo-a cessar (art.º s 149.º, nº 1, e 155.º do Código Civil).

-  Centralidade pessoal: o acompanhamento toma como centro de gravidade a pessoa e a vontade do acompanhado, a promoção do bem-estar e a recuperação da pessoa incapaz, sendo ordenado pelo fundamento final da sua capacitação (art.º 140.º, nº 1, do Código Civil).

- Controlabilidade: a atuação do acompanhante é submetida a um controlo jurisdicional – do juiz e do Ministério Público - mais intenso, exigindo-se a intervenção do tribunal sempre que esteja em causa atos de particular importância ou os interesses do acompanhante e do acompanhado se mostrem conflituantes (art.º 150º, nº 3, do Código Civil).

- Autonomia: o acompanhamento é construído como um benefício e não como uma sujeição, apenas sendo admitido a pedido ou com autorização da pessoa limitada na sua capacidade, que também é admitida a pedir a sua cessação; sendo o acompanhamento pedido por terceiros, exige-se o prévio suprimento do consentimento da pessoa requerida, só se admitindo a continuação do procedimento caso se conclua pelo carácter injustificado da recusa, por aquela, do consentimento (art.º 141.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).

-  Integração: o instituto do acompanhamento é conjugado com o mandato com vista ao acompanhamento – instituto cuja admissibilidade deixa de ser controversa – assegurando-se a sua livre revogabilidade e, no caso de ser decretado o acompanhamento, a verificação de que não foi sugerido ou extorquido à pessoa incapaz, tomando-o em consideração na definição do conteúdo do acompanhamento e na designação da pessoa do acompanhante (art.º 156.º, n.ºs 1 a 4, do Código Civil).

- Flexibilidade procedimental: o decretamento do acompanhamento ocorre no contexto de um processo que, em termos substanciais, é de jurisdição voluntária, com a consequente atribuição ao tribunal de largos poderes inquisitórios e instrutórios e da possibilidade de adotar a providência que melhor se adeque à situação jurídica da pessoa incapaz (artºs 891, nº 1 e 897, nº 1, do CPC e 145.º, n.º 1, proémio, do Código Civil).

O regime do maior acompanhado é, assim, a realização infraconstitucional das liberdades e direitos da pessoa maior vulnerável - justamente designada como beneficiário – e, enquanto tal deve ser visto e atuado como um sistema garantístico daquela posição jurídica. O sistema assenta, nitidamente, nos princípios da não discriminação, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da autodeterminação, que impõem uma intervenção que tutele o beneficiário dos riscos da heterodeterminação de interesses, relações de subordinação e conflitos de interesses e o defenda face a intervenções abusivas e arbitrárias[5].

O sistema é, pois, construído a partir da plena capacidade e da garantia dos interesses do beneficiário, que impede que se recupere um estatuto objetivo restritivo da capacidade jurídica, que constituía, comprovadamente, o paradigma dos institutos da interdição e da inabilitação.

Todas as contas feitas é, portanto, um só o fundamento final que deve ser assinalado ao acompanhamento de maior: assegurar o bem-estar e a recuperação beneficiário e o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres[6].

Como expressão da sua irrecusável autonomia, não se reconhece ao beneficiário um simples direito de participação – mas um inalienável direito de decisão que está presente em todos as vicissitudes da relação jurídica de acompanhamento – desde logo no momento capital da sua constituição. O direito de autodeterminação do beneficiário pressupõe que a constituição do acompanhamento seja consentida pelo beneficiário ou mediante o seu suprimento.

O acompanhamento deve ser requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público; o tribunal no qual seja requerido o acompanhamento, pode, todavia, suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa dar, livre e conscientemente, ou quando se considere existir um fundamento atendível (art.º 141.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).

A legitimidade ativa – por que é, comprovadamente, de legitimidade que se trata, como logo decorre da epígrafe do artigo 141.º do Código Civil –  para requerer o acompanhamento, radica no próprio beneficiário e no Ministério Público, sem qualquer restrição; a legitimidade ad causam do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível necessita de ser integrada por um ato autorizativo do beneficiário[7]. Obtida essa autorização por qualquer destes últimos, dá-se um fenómeno, não de representação – mas de substituição processual voluntária[8].

Como se notou já, autorização do beneficiário relativamente ao cônjuge, ao unido de facto e do parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao qual é requerido o pedido de acompanhamento (art.ºs 141, n.º 2, do Código Civil, e 892.º, nº 2 do CPC). O suprimento da autorização deve ser concedido – mas só deve ser concedido - quando o beneficiário não o possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe fundamento atendível para o conceder (art.º 141.º, n.º 2, do Código Civil).

Ao tribunal cabe, pois, controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. O suprimento da autorização do eventual beneficiário deve, evidentemente, ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização[9]. O tribunal deve recusar o suprimento se, em face das provas produzidas, se dever concluir, sem hesitação, que o beneficiário dispõe da capacidade para conceder a autorização ao requerente e que não existe motivo ponderoso para aquele suprimento

O suprimento da falta de autorização do beneficiário assegura a legitimidade do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível para estar em juízo e requerer a medida de acompanhamento; se o suprimento não for concedido, esse cônjuge, unido de facto ou parente sucessível é parte ilegítima. Esta ilegitimidade ad causam resolve-se na excepção dilatória nominada correspondente, determinante da absolvição do requerido da instância (art.º 278.º. nº 1, d), do CPC).

3.3. Valor probatório da perícia médico-legal.

A prova pericial destina-se, como qualquer outra prova, a demonstrar a realidade dos enunciados de facto produzidos pelas partes (art.º 341.º do Código Civil). Aquilo que a singulariza é o seu peculiar objecto: a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art.º 388.º do Código Civil).

No tocante ao valor da perícia, quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (art.º 389.º do Código Civil)[10].

Deste princípio decorre, naturalmente, a impossibilidade de considerar os pareceres dos peritos como contendo verdadeiras decisões, às quais o juiz não possa, irremediavelmente, subtrair-se. Uma tal conclusão só se explicaria por um deslumbramento face à prova científica de todo inaceitável e incompatível com os dados, que relativamente à pericial, a lei coloca à disposição do intérprete e do aplicador.

Agora, convém não esquecer o particular objecto da prova pericial: a percepção ou averiguação de factos que necessitam de competências científicas ou técnicas especiais, relativamente aos quais se pressupõe a insuficiência dos conhecimentos do juiz (art.º 388.º do Código Civil).

Neste domínio importa, contudo, ter presente o distinguo entre a perícia científica e a perícia de opinião ou opinativa.

O espectro das ciências que podem disponibilizar provas periciais é cada vez mais alargado. De um aspecto, as denominadas ciências duras são cada vez mais complexificadas e especializadas; de outro, as chamadas ciências moles ou sociais como a psicologia, a psiquiatria, a sociologia, a economia, etc., são consideradas frequentemente como fontes da prova em processo civil. O alargamento do espectro das provas periciais torna particularmente complexo o problema do controlo da fiabilidade desta espécie de prova, a que, evidentemente, a ciência do jurídica não ficou indiferente. É neste contexto que se situa o distinguo apontado.

A perícia científica produz certeza, no sentido de que perante o estado atual do saber científico, o seu resultado pode ser idêntico para todas as pessoas, i.e., só é possível um resultado: se houver resultados divergentes é porque um deles está, necessariamente, errado. Está nestas condições, por exemplo, a determinação da área de uma superfície ou a composição química de uma matéria. A perícia de opinião, essa diversamente, produz convicção: não se trata já de verificar a exactidão de um determinado enunciado de facto – mas de valorar um facto ou alguma circunstância desse mesmo facto, valoração que envolve, necessariamente, a emissão de um juízo de valor. Neste caso, podem existir laudos divergentes e mesmo contraditórios. Serve de exemplo a determinação do valor de uma coisa. Esta distinção traz, evidentemente, implicada uma constelação de consequências. Perante uma perícia científica, não é admissível que o juiz se afaste, arbitrariamente, do seu resultado, com o argumento de que esse resultado não o convence ou de que tem opinião contrária. Não é concebível, por exemplo, que o juiz discorde da conclusão pericial de que a água é composta por uma molécula de oxigénio e duas de hidrogénio. Diversamente, na perícia de opinião, o juiz deve ser particularmente prudente na adesão ao parecer dos peritos, sendo-lhe exigível um juízo de valor sobre o seu conteúdo, a idoneidade do perito e o resultado que disponibiliza em função do seu objecto[11].

À prova pericial científica deve, pois, reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Maneira que, se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível, embora não necessariamente[12], de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva[13] (art.º 607.º, n.º 2, do CPC). Dever que deve ser cumprido com particular escrúpulo no tocante a juízos científicos dotados de especial densidade técnica – como são, reconhecidamente, por exemplo, os que relevam da ciência médica - ou obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica seja universalmente reconhecida[14].

Portanto, em boa verdade, não se deve confiar, de forma ilimitada ou irrestrita, no efeito prático do ditame de que o juiz é o perito dos peritos. Dado que a prova pericial supõe a insuficiência de conhecimentos do magistrado, é difícil que este se substitua inteiramente ao perito para refazer, por si, o trabalho analítico e objectivo para o qual não dispõe de meios subjectivos. Isto significa que, a não ser que sobrevenham novos e seguros elementos de prova, maxime, uma nova perícia, a liberdade do juiz não o autoriza a estabelecer, sem o concurso dos peritos, as razões da sua convicção.

Por mais que se afirme a máxima de que o magistrado é o perito dos peritos, a hegemonia da função jurisdicional em confronto com a função técnica e se queira defender o princípio da livre apreciação, não é raro que o laudo pericial desempenhe papel absorvente na decisão da causa.

Este viaticum habilita, com suficiência, a resolver a questão concreta controversa, objeto do recurso.

3.4. Concretização.

Na espécie do recurso a Sra. Juíza de Direito com fundamento em que a requerida estava e está em condições de dar livre e conscientemente a autorização ao requerente, recusou, a este, o suprimento dessa mesma autorização e, em estrita coerência, concluiu pela sua ilegitimidade. O apelante discorda, mas – decididamente – a razão está do lado da decisão impugnada.

As provas produzidas – as declarações da beneficiária, a perícia médico-legal e a avaliação neuropsicológica e de psicologia forense – convergem todos para a mesma conclusão: a requerida dispõe de competências psíquicas para, de modo autodeterminado e consciente, conceder a autorização exigível para a assegurar a legitimidade do apelante.

Como é da experiência comum, o processo ou conjunto de processos, de envelhecimento culminam num ponto comum: a diminuição das capacidades e competências da pessoa. O processo de envelhecimento, na dimensão da componente biológica, traz irrecusavelmente implicado alterações fisiológicas que constituem a etiologia de uma gradual e irreversível deterioração física e mental. A requerida – recorde-se – tem 90 anos de idade e, portanto, o seu processo de envelhecimento encontra-se num estado adiantado, sendo natural que seja afectada por uma deterioração progressiva, estrutural e funcional de todos os tecidos e órgãos, causadores de vulnerabilidades orgânicas e de alterações psicológicas que se manifestam nas funções cognitivas que incluem, v.g., a atenção, memória, percepção e funções executivas, resolução de problemas e raciocínio lógico.  Como linearmente decorre da perícia médico-legal e a da avaliação neuropsicológica, a requerida experimenta um inevitável declínio fisiológico, associado ao normal processo de envelhecimento. Simplesmente, esse declínio, designadamente cognitivo, não a priva da capacidade para, de modo autodeterminado, decidir sobre a concessão ou não da autorização que deve pedir-se ao apelante.

Realmente, a perícia é peremptória e terminante nesta conclusão: a requerida mostra-se capaz de livre e conscientemente conceder autorização ao seu filho para a instauração da presente ação de acompanhamento de maior.

               E não há mínima razão para exercer sobre este parecer da perícia qualquer censura – ainda que a perícia se deva ter por meramente opinativa, no sentido de que o perito único se limitou a dar a sua opinião a partir dos factos representados pelas patologias de que a requerida é portadora.

De um aspecto, porque não há motivo, por mais infundamentado que seja, para controverter a competência técnica do perito, e o respetivo relatório se apresenta isento dos vícios da deficiência, obscuridade ou contradição: o relatório é completo, claro e intrinsecamente harmónico; de outro – e abstraindo mesmo da sua clara dimensão técnica  -  porque o parecer do perito se encontra bem fundamentado e não pode invocar-se contra ele quaisquer outros elementos seguros de prova que deponham, decisivamente, em sentido contrário, sendo, portanto, inteiramente adequado, numa avaliação prudencial, para estabelecer a veracidade do facto correspondente. Se o juízo pericial se apresenta correctamente motivado e não se lhe pode opor quaisquer provas e revestindo-se a questão de facto correspondente de feição essencialmente técnica, é perfeitamente compreensível que se lhe reconheça, no caso, uma especial força persuasiva e, portanto, que a prova correspondente exerça uma influência dominante na decisão do ponto de facto controverso.

               E sendo isto assim – i.e., dispondo a requerida de inteira competência para conceder a autorização referida e não estando demonstrado um qualquer motivo que, devidamente apreciado, fundamente o suprimento da concessão da autorização ordenada para garantir ao apelante a legitimidade para requerer o acompanhamento, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que não é dotado daquela legitimidade. E como essa falta se resolve na exceção dilatória correspondente, é meramente consequencial a absolvição da requerida da instância.

               O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento. Cumpre recusar-lhe provimento.

               Os argumentos de que se extrai a improcedência do recurso podem, em síntese apertada, condensar-se nestas conclusões:

a) O acompanhamento de maiores tem por único fundamento final garantir o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício da capacidade de agir do beneficiário e a plena actuação de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres;

b) A legitimidade do cônjuge, do unido de facto ou de qualquer parente sucessível do beneficiário do acompanhamento necessita de ser integrada por um ato autorizativo do último, podendo, todavia, a autorização ser suprida pelo tribunal, se o beneficiário, a não puder dar, de modo livre e consciente, ou se considerar existir um motivo atendível;

c) A falta da autorização do beneficiário, que não seja judicialmente suprida, determina a ilegitimidade do requerente do acompanhamento, com a consequente absolvição do primeiro da instância;

d) O juízo pericial encerrado na perícia médico-legal a que não deva opor-se qualquer crítica da mesma índole ou quaisquer outros elementos seguros de prova é dotado de força probatória suficiente para, numa livre, mas prudencial avaliação, demonstrar a competência ou a capacidade do beneficiário para conceder ao parente sucessível a autorização para requerer o seu acompanhamento.

O processo especial de acompanhamento de maiores está objetivamente isento de custas (art.º 4.º, n.º 2, h), do RC Processuais, na redacção que lhe foi impressa pelo art.º 424.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Não são devidas custas.

                                                                                                                      2022.06.14




[1] Adoptada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007, aprovada pela Resolução da AR n.º 71/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de Julho. O Protocolo Adicional foi adoptado pelas Nações Unidas na mesma data, e aprovado pela Resolução da AR n.º 57/2009, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de Julho.
[2] Jorge Duarte Pinheiro, As Pessoas com Deficiência como Sujeitos de Direitos e Deveres, Incapacidades e Suprimento – Visão do Jurista, www.icjp.pt., pág. 13.
[3] A Lei foi precedida de um Estudo de Politica Legislativa “Da situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades de maiores”, disponível, on line, no sitio www.smmp.pt., que sintetiza as principais alterações operadas no sistema protecção do adulto incapaz.
[4] Mafalda Miranda Barbosa, Dificuldades Resultantes da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, RJLB, Ano, 5 (2019), pág. 10.
[5] Geraldo Rocha Ribeiro, O instituto do maior acompanhado à luz da Convenção de Nova Iorque e dos direitos fundamentais, Julgar on line, Maio de 2020, pág. 4.

[6] Ac. do STJ, de 11.02.2021, Processo n.º 76/15.6T8ALJ.G1.S1); Carlos Ferreira de Almeida, Capacidade e incapacidades contratuais dos maiores acompanhados”, Revista de direito comercial. Edição especial — Liber amicorum Professor Doutor Pedro Pais de Vasconcelos, 2020, pp. 1051 e s. (pp. 1065-1066); António Pinto Monteiro, Das incapacidades ao maior acompanhado – Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, in: AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Centro de Estudos Judiciários – Coleção Formação Contínua, 2019: 35; Pedro Callapez ´Acompanhamento de maiores, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coord.), Processos Especiais, Vol. I, AAFDL, Lisboa, 2020: 99.
[7] A autorização é, realmente, o acto jurídico especificamente destinado a provocar, directa ou indirectamente, a obtenção de legitimidade pelo autorizado. No caso de a autorização ser relevante para a legitimidade do autorizado para agir sobre a esfera do autorizante, a autorização é constitutiva; cfr. Pedro Leitão de Vasconcelos, A Autorização, Coimbra Editora, 2012, págs. 152 e ss.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, O regime de acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais», AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Centro de Estudos Judiciários – Coleção Formação Contínua, 2019, pág. 47.
[9] Miguel Teixeira de Sousa, O regime de acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais», AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, cit., pág. 48.
[10] Acs. da RP de 29.03.93 e da RE de 11.11.94, BMJ nºs 425, pág. 627 e 441, pág. 421. Cfr., contudo, em sentido aparentemente contrário, o Ac. da RP de 29.4.98, BMJ nº 476, pág. 489.
[11] Acs. RC de 09.09.2014, www.colectaneadejurisprudencia.com, e da RL de 21.01.2022 (20975/18.2T8SNT-A-7).
[12] Ac. STJ de 06.07.2011, (3612/07.6TBLRA.C2.S1), e João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2002, pág. 554.
[13] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 263 e 264.
[14] Carlos Lopes do Rego, O Ónus da Prova nas Acções de Investigação da Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo da Filiação, in, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, págs. 789 e 780. Se o juiz, em face da perícia, tiver dúvidas, o que está indicado é que ordene segunda perícia (art.º 487.º, n.º 2 do CPC).