Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2572/10.2TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DOLO
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 01/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DE COMPETÊNCIA ESPECIALIZADA CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 13º CP E 358º Nº 1 CP
Sumário: 1.- Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência;

2.- A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta;

3.- A afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto;

4.- A circunstância de a consciência da ilicitude não constar do despacho de pronúncia não constitui impedimento ao seu conhecimento pelo tribunal a quo, bastando para tanto que, oportunamente, se efetue a respetiva comunicação, nos termos do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


 

I. RELATÓRIO

No 1º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Leiria, mediante despacho de pronúncia, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, os arguidos A... e B..., ambos com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do C. Penal.

O assistente C... deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos e contra a sociedade H..., Lda., com vista à sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 15.500 por danos sofridos, acrescida de juros legais desde a data da notificação até integral pagamento, acrescida de 5% desde o trânsito em julgado da sentença.

Por sentença de 21 de Maio de 2013 foi cada um dos arguidos condenado, pela prática do imputado crime, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 6, e ainda, juntamente com a sociedade demandada, condenados a pagar ao assistente a quantia de € 7.500 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% desde 22 de Dezembro de 2012 sobre a quantia de € 3.500 até integral pagamento, e sobre a quantia de € 4.000, à mesma taxa, a partir de 22 de Maio de 2013 até integral pagamento.


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            Inconformados com a decisão, recorreram os arguidos, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            “ (…).

            1) O tribunal errou em matéria de facto, ao ter dado como provados os seguintes pontos da matéria de facto provada:

A) "de modo não apurado (…) os arguidos alteraram o contador de quilómetros que o veiculo ostentava, de pelo menos 304.216 km, e fizeram dele constar cerca de 176.000 km" – ponto 4 da matéria de facto provada;

B) "… através da viciação do valor da quilometragem do veiculo...IS" – parte final da matéria constante do ponto 10 da matéria provada.

2) E errou, nessa parte, porque se trata apenas de uma conclusão que o tribunal retirou, sem se apoiar em qualquer declaração testemunhal ou em vestígio que fosse encontrado, de manipulação desse equipamento;

3) Ignorando, por outro lado, a explicação apresentada pelos arguidos atinente à substituição do quadrante, essa sim, lógica e coerente, pelo menos, com as declarações das testemunha F..., no sentido de que o veiculo avariava frequentemente e D..., que informou que o irmão andava à procura de um painel para um Audi;

Consequentemente,

4) O tribunal errou em matéria de facto ao não considerar como provado que os arguidos tenham substituído o quadrante do Audi;

5) Conclusão esta que se impõe pelas mesmas razões que impõem a falta de prova da matéria atrás referida nas conclusões;

6) Ou seja, deve dar-se como provado que o quadrante, contendo o conta-quilómetros, foi substituído, como efectivamente foi, e não que tenha sido manipulado;

Por outro lado,

7) O tribunal errou em matéria de facto ao dar como provado que "os arguidos agiram (…) com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, como lograram obter …" – ponto 10 da matéria provada;

8) Isto porque o quadrante original do veículo, que inclui o contador de quilómetros, estava avariado, e foi essa razão que motivou a intervenção dos arguidos.

9) Ou seja, os arguidos efectuaram a sua intervenção relativa a esse equipamento no âmbito de uma reparação geral ao veículo, visando colocá-lo em boas condições de funcionamento, portanto, com essa intenção, e não para enganar um eventual comprador do veículo;

                Ainda,

10) O tribunal errou em matéria de facto ao considerar provado que "O queixoso foi convencido pelos arguidos, no decurso da negociação da venda, que o indicado veículo ostentava a quilometragem de 176. 000 km verdadeira …" – ponto 5 da matéria provada.

11) Isto porque a testemunha D... – cuja credibilidade não foi questionada pelo tribunal – informou que o queixoso chegou a conduzir o veículo, no período em que foi seu funcionário, e numa altura em que este ainda tinha o conta-quilómetros anterior;

12) Ora, tal significa que o queixoso conhecia perfeitamente o veículo, que já havia conduzido, não sendo crível que não soubesse, nomeadamente, os quilómetros que tinha;

13) Aliás, a prova desse convencimento, que o tribunal dá como assente, não se estriba em qualquer elemento documental, nem em qualquer declaração de testemunhas, antes sendo uma conclusão do tribunal, a nosso ver, infundamentada;

Finalmente,

14) O tribunal errou em matéria de facto, ao considerar provada a matéria constante do ponto 9 da matéria provada;

15) Pois que se encontra demonstrado nos autos – com base em declarações do próprio queixoso – que este recusou a proposta dos arguidos de "desfazerem" o negócio, com a devolução recíproca de tudo o que fora prestado;

16) Recusa esta que retira credibilidade à tese do arguido de que só comprou o veículo por pensar que tinha 176.000 km, pois que, mesmo ao "conhecer" a realidade (na sua tese), manteve todo o interesse em continuar a ficar com o veículo;

17) Pelo exposto, devem os arguidos serem absolvidos da prática do crime pelo qual foram condenados;

Caso assim não se entenda, o tribunal errou em matéria de direito, porque,

18) O processo não contém elementos que permitam determinar o valor concreto do dano sofrido pelo ofendido, porque não foi apurado o valor do veículo com a quilometragem "real";

19) Sendo que o tribunal extravasou as suas competências ao determinar esse valor com recurso a publicações da especialidade;

20) E extravasou duplamente porque é à parte que compete carrear tais elementos para os autos, e alcançar a respectiva prova; e porque as tabelas constantes das publicações são meramente indicativas, dependendo o valor concreto de cada viatura de toda uma multiplicidade de condicionamentos acerca dos quais nada ficou demonstrado nos autos;

21) Assim, o tribunal fez errada aplicação dos artigos 264.º 1 e 2 e 514.º do C PCivil.

22) Voltando a errar ao não aplicar o disposto no artigo 661.º nº 2, do mesmo código;

Ainda, e no respeitante aos danos não patrimoniais,

23) O tribunal fez errada aplicação do disposto no artigo 496.º 4, do C. Civil, porque o valor atribuído a título de danos não patrimoniais se mostra claramente excessivo face ao incómodo porque passou o ofendido, que o tribunal não deu como provado que fosse acentuado;

24) devendo a quantia a condenar a esse titulo não ser superior a € 500,00;

Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo, em consequência,

- Serem os arguidos absolvidos do crime de que vêm condenados;

Ou, caso assim não se entenda,

- Serem os arguidos condenados a título de danos patrimoniais em quantia que se liquidar em execução de sentença;

                - Devendo ser condenados, a título de danos não patrimoniais, em quantia não superior a € 500,00;

                Desta forma fazendo V. Exas Justiça!

            (…)”


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando que, nos termos da motivação da decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido fundou a sua convicção, quanto aos pontos de facto sindicados pelos arguidos, nas declarações do assistente conjugadas com a documentação junta aos autos, analisados à luz das regras da experiência e tudo ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, pelo que, sendo a versão dada como provada uma das possíveis, em termos de razoabilidade, não deve a mesma ser alterada pelo tribunal de recurso, e concluiu pela improcedência do recurso.


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            Respondeu também ao recurso o assistente, alegando, que o recurso da matéria de facto deve ser rejeitado por não terem os recorrentes dado cumprimento ao disposto no nº 4, do art. 412 do C. Processo Penal nem explicitado por que razão a prova indicada impunha decisão diversa, que os recorrentes impugnam a valoração crítica da prova feita pelo tribunal esquecendo aquela é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, que a sentença se mostra devidamente fundamentada, que um veículo com treze anos e mais de 330.000 km não tem o valor comercial de € 7.500 que foi o preço pago, que o tribunal não se socorreu de factos novos para fixar a indemnização, e que o montante fixado para compensar os danos não patrimoniais não é arbitrária, e concluiu pela improcedência do recurso.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a posição do Ministério Público junto da 1ª instância, e concluiu pela improcedência do recurso.


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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

            Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir são:

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e consequente absolvição dos recorrentes;

- A incorrecta fixação dos montantes indemnizatórios.

Oficiosamente, haverá que conhecer da nulidade da sentença por omissão de pronúncia e do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


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            Para a resolução destas questões, importa ter presente o que, de relevante, consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

1. Os arguidos são sócios gerentes da sociedade « H..., Lda.» que tem por objecto a venda e reparação de veículos automóveis novos e usados.

2. Esta sociedade possui um estabelecimento de «Stand» afecto à sua actividade sito em (...), em Leiria.

3. Esta sociedade detinha em exposição, para venda, em 16.04.2010, o veículo automóvel de marca Audi, modelo A4, com a matrícula...IS naquele stand, que ostentava a quilometragem no respectivo contador de 176.000.

4. De modo não apurado, e previamente a 16.04.2010, os arguidos, de comum acordo e intentos, alteraram o contador de quilómetros que o veículo ostentava, de pelo menos de 304.216 quilómetros, e fizeram dele constar cerca de 176.000 quilómetros.

5. Convencido pelos arguidos no decurso da negociação de venda que o indicado veículo ostentava a quilometragem de 176.000 verdadeira, C... firmou a convicção da sua aquisição pelo preço de € 7.500,00.

6. No âmbito da actividade da sociedade referida, representada pelos dois arguidos, no interesse e em nome da mesma, no dia 16.04.2010, os arguidos declaram vender a C..., o qual, por sua vez, declarou comprar, o veículo automóvel acima indicado com a matrícula...IS, do ano de 1997, pelo preço acordado de €7.500,00.

7. C... para pagamento do preço de € 7.500,00 emitiu o cheque n.º 2802475080 sacado sobre a «CGD, SA» no montante de € 6.500,00 que obteve integral pagamento.

8. Deu em retoma o veículo automóvel da marca «Volkswagen», modelo «Golf» do ano de 1990, com a matrícula DX (...), a que foi atribuído o valor de € 1.000,00.

9. C... só abriu mão do cheque supra referido e procedeu à entrega do veículo DX (...), no valor correspondente de € 7.500,00, por ter sido convencido pelos arguidos na respectiva negociação de venda, que o veículo...IS ostentava a quilometragem de 176.000, pois se tivesse tido conhecimento dos quilómetros reais do veículo, acima indicados, nunca teria  celebrado o contrato de compra e venda do veículo ou o teria celebrado por quantia muito inferior.

10. Os arguidos agiram sempre em comunhão de esforços e de intentos, de modo livre, deliberado e consciente, com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, como lograram obter, de valor concretamente não determinado, com o correspondente prejuízo patrimonial para C..., através da viciação do valor da quilometragem do veículo...IS.

11. Os factos acima indicados causaram no assistente inquietação, angústia, humilhação, incómodo, tristeza, frustração e revolta, o que lhe provocou mal-estar pessoal.

[Apurou-se, ainda, que:]

12. O arguido A... é mecânico de automóveis e aufere o rendimento mensal de € 1.100,00; a sua mulher é doméstica; tem três filhos a seu cargo; suporta uma prestação bancária mensal no montante de € 200,00. 

13. O arguido B... é mecânico de automóveis e aufere o rendimento mensal de € 1.023,00; a sua mulher aufere o vencimento mensal de € 500,00; tem um filho a seu cargo; suporta uma prestação bancária mensal no montante de € 400,00.

14. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

(…)”.

B) E foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

- que os factos acima indicados tenham causado mal-estar social e profissional ao assistente e que este se tenha sentido envergonhado diante dos seus familiares e amigos e que os factos se tenham repercutido negativamente na sua capacidade de trabalho.

- que os arguidos tenham substituído o quadrante do Audi acima indicado; e que o assistente soubesse disso aquando da sua compra.

Não se referiram os demais factos alegados nos articulados, por se revelarem de teor conclusivo, de direito ou irrelevantes para a decisão do objecto do processo.

(…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

Os arguidos, para além de esclarecerem a sua actual situação económica e de vida com credibilidade, prestaram declarações sobre os factos imputados, negando a sua prática; de um lado, o arguido A...referiu que realmente o veículo acima indicado – um Audi de 1997 - ostentava uma quilometragem diferente da realmente percorrida (cerca de 300.000 kms), mas que, quando esse veículo foi vendido ao assistente, este sabia disso, isto é, conhecia “os kms reais do carro”; explicou que o quadrante original do veículo tinha uma avaria e criava vários problemas (acendia a luz do “airbag”, não contava os metros, etc.), razão por que, juntamente com o arguido B..., decidiram “pôr outro” quadrante, que passou a ostentar cerca de 176.000 kms; ambos fizeram o negócio de venda do veículo em causa ao assistente, “tendo dito verbalmente ao C... que o carro tinha 300 e tal mil kms”, achando que o assistente, com este processo, está de má-fé; explicou ainda que o veículo em causa foi vendido ao assistente por € 7.500,00, tendo sido imputado no preço um veículo de retoma valorizado em € 1.000,00, pelo que o assistente pagou € 6.500,00; soube depois que o assistente se insurgiu depois de ter ido à inspecção com o Audi, tendo-lhe proposto então “desfazer” o negócio, o que não foi por ele aceite; referiu não se lembrar quando adquiriu o quadrante que foi colocado no Audi no lugar do original mas que o comprou a “um sr. de Porto de Mós”, referindo que a data da factura é posterior à da venda do Audi ao assistente porque foi na data dessa factura que o novo quadrante foi pago, embora entregue antes; o arguido B... negou a prática dos factos, corroborando as declarações anteriores e sustentou que o presente processo consiste numa “vingança” do assistente que trabalhou para um familiar seu que o despediu cerca de um mês após ter adquirido o Audi; precisou que o veículo Audi foi vendido pelo preço de € 7.000,00 e foi dado um veículo de retoma pelo assistente valorizado em € 500,00, pelo que este teve de pagar € 6.500,00; mais referiu que aquando da venda do Audi, não foi entregue ao assistente o “papel” da inspecção porque não o tinha e que o novo quadrante foi adquirido na altura da venda do Audi ao assistente; no decurso das suas declarações referiu que “não se falou na disparidade dos quilómetros” e, “se calhar, não se chamou à atenção” esse aspecto, mas que “se comunicou a alteração do quadrante”.

C..., assistente nos autos, referiu ter comprado a Audi em causa nos autos aos arguidos em Abril de 2010 por € 7.500,00 (dando em retoma o veículo acima referido pelo valor de € 1.000,00) e que mais tarde, em Junho/Julho, aquando da realização da inspecção, foi informado pelo técnico que havia uma desconformidade de quilometragem, o qual o aconselhou a dirigir-se ao IMTT, o que fez e confirmou a informação (vd. fls. 19); sustentou que nenhum dos arguidos lhe referiu que o veículo tinha uma quilometragem real superior à indicada no mostrador; referiu não encontrar qualquer relação entre os presentes autos e a circunstância de ter sido despedido por um familiar do arguido B...; precisou em audiência que o Audi em causa estava exposto para venda “com um papel” mencionando 176.000 kms, fez o “test-drive”, interessou-se pelo carro e depois decidiu comprá-lo, esclarecendo que o não compraria se soubesse da sua quilometragem real, acima dos 300.000 kms, sendo certo que também nunca lhe falaram da mudança do quadrante e foi na inspecção que percebeu que foi “enganado”.

F..., anterior proprietário da Audi em causa nos presentes autos, referiu que a vendeu à oficina dos arguidos, em 2008/09, por € 500,00, porque “avariava” frequentemente, ostentando, na altura, mais de 200.000 kms.

E..., irmã do assistente, referiu que este efectivamente adquiriu aos arguidos a carrinha Audi acima indicada, e “mais tarde soube que o carro tinha mais quilómetros”, e o seu irmão sentiu-se “enganado”, porque “o carro não valia o que deu por ele”; viu o irmão “muito em baixo e de rastos” por causa desta situação, desconhecendo depois como decorreram as conversas entre o assistente e os arguidos; G..., casado com a anterior e cunhado do assistente, corroborou este depoimento, referindo que na altura da compra o assistente falou consigo sobre a hipótese de comprar a Audi dos autos que tinha cerca de 170.000 kms, soube depois que quando foi feita a inspecção, o carro tinha “mais quilómetros”, sendo certo que esteve com o assistente nesse dia e viu que ele estava “péssimo”, sentia-se “enganado e

perdido, sem saber o que fazer”, tendo tomado conhecimento pelo assistente que este contactou os vendedores “para tentar resolver a situação”, desconhecendo o que foi falado entre eles.

D..., irmão do arguido B... e anterior patrão do assistente (cujo contrato não foi renovado tendo “saído a bem”), referiu que o seu irmão lhe falou que andava à procura de um painel para uma Audi que na altura tinha cerca de 300.000 kms, veículo este que também chegou a usar numa altura em que ostentava o quadrante original; referiu que viu o assistente conduzir este veículo “mais que uma vez, quase de certeza absoluta” sendo que o carro já tinha passado os 300.000 kms; desconhece o que se passou após a venda do Audi ao assistente.

Considerou-se, ainda, conjugadamente, o teor da declaração de venda do veículo “IS” ao assistente de fls. 16; o teor da cópia do cheque para seu pagamento de fls. 17; o teor da informação certificada do IMTT de fls. 18 a 27 quanto às inspecções a que o mesmo veículo foi sujeito; o teor da factura de venda ao veículo pelo anterior proprietário à empresa dos arguidos de fls. 46; o teor dos registos de propriedade anteriores do veículo “IS” de fls. 61 a 75; o teor das fotos do veículo de fls. 109 a 112; o teor da venda a dinheiro aos arguidos de “um Konta kilómetro” de fls. 230; o teor dos CRC´s dos arguidos de fls. 382-3 quanto à ausência de antecedentes criminais; e o teor dos documentos juntos em audiência emitidos pela Audi e por anterior proprietário do veículo em causa nos autos de fls. 409 a 415; e o teor dos documentos de fls. 424-5 juntos pelos arguidos em audiência.

Da prova produzida em audiência de julgamento, convenceu-se o tribunal que os arguidos praticaram os factos imputados, tal como descritos no despacho de pronúncia; com efeito, pese embora decorra da produção de prova em audiência de julgamento duas versões da realidade distintas e antagónicas entre si – a dos arguidos e a do assistente – sustentando aqueles que o veículo foi vendido tendo sido dado conhecimento ao assistente da quilometragem real do Audi e sustentando este (de forma espontaneamente autêntica e persuasiva) que desconhecia essa quilometragem real – por disso não ter sido informado – e se a conhecesse não o teria comprado ou tê-lo-ia feito por preço inferior, o certo é que a versão dos arguidos não se mostrou isenta, consistente e credível considerada a prova produzida na sua globalidade, aferida livremente e levando em conta as regras da experiência e da normalidade das coisas (art.º 127º do CPP); os arguidos admitiram que venderam ao assistente o referido veículo com mais de 300.000 kms, quando o painel revelava menos de 180.000 kms, mas que deram conhecimento “verbal” disso ao assistente (sendo de salientar que os arguidos, profissionais no ramo, se acaso se quisessem assegurar de que haviam vendido o veículo com uma quilometragem diferente e disso dado conhecimento ao adquirente, teriam, sem esforço, feito constar essa circunstância num documento, precavendo-se de uma qualquer imputação futura de má-fé); o assistente negou peremptoriamente que lhe tenha sido dada essa informação; o tribunal formou a convicção que o assistente comprou tal veículo desconhecendo verdadeiramente a quilometragem real do veículo;

importa considerar determinadas circunstâncias objectivas que rodearam os factos e que se impõe atentar para concluir do acerto do despacho de pronúncia: o assistente só “reagiu” ou confrontou os arguidos com “a questão” dos quilómetros após ter ido à inspecção em Julho de 2010 (vd. fls. 19), sendo que adquiriu o veículo em Abril (vd. fls. 16) e, então, se “quisesse” “vingar-se” do que quer que fosse, ou estivesse a agir “de má-fé”, como sustentaram os arguidos, teria “levantado a questão” logo após a venda, o que não aconteceu, pois só aquando da inspecção confrontou os arguidos com a quilometragem, o que constitui um dado no sentido da espontaneidade do assistente e da veracidade da sua versão (sendo certo que os arguidos também referiram que o assistente colocou o veículo em reparação, a coberto da garantia, após a sua aquisição, sem que a questão da quilometragem tenha sido “falada”); depois, é estranho que aquando da venda do veículo ao assistente os arguidos não tenham entregue o “papel” da inspecção, mas apenas a vinheta respectiva, conjugado com a circunstância de terem emitido a declaração de venda e autorização de circulação (fls. 16), mencionando “tudo” no que ao veículo diz respeito, omitindo precisamente a quilometragem que o mesmo deveria ostentar; de considerar ainda que a factura de suposta aquisição pelos arguidos de um quadrante de substituição (vd. fls. 230) não indica a quilometragem desse mesmo quadrante, nem sequer permite aferir se se trata de um quadrante para um Audi A4; por outro lado, se os arguidos sustentam, sem convencer, que trocaram o quadrante original por outro sem anomalias, do que, segundo afirmaram em audiência, deram conhecimento ao assistente, não se percebe por que razão a data de aquisição (Agosto de 2010) desse quadrante é muito posterior à data da venda do veículo (Abril de 2010), sendo certo que o painel de instrumentos, como informa a Audi Portuguesa, data de Junho de 1997 (vd. fls. 410), justamente o ano de fabrico do Audi sub juditio (Julho de 1997: fls. 16), o que coloca objectivamente em crise a tese dos arguidos de que o quadrante foi substituído; por todas estas razões o tribunal julgou como provados os factos acima descritos; quanto aos factos referentes ao pedido cível, o seu julgamento como provados resultou da descrição feita pelas testemunhas ouvidas quanto a eles, em especial E... e marido, G..., os quais relataram o estado de espírito com que o assistente ficou depois de saber que o veículo tinha uma quilometragem real muito superior àquela que ostentava quando ao adquiriu; quanto aos factos julgados como não provados, tal resultou de ausência de prova segura e consistente sobre a sua ocorrência, quer porque dos autos tal não resulta, quer porque as testemunhas ouvidas os não souberam confirmar.

            (…)”.

            D) E a seguinte fundamentação de direito quanto ao pedido de indemnização civil:

            “ (…).

            O queixoso e assistente C..., na qualidade de demandante civil, deduziu contra o arguido e sociedade que representam, H..., Lda., um pedido de indemnização, reclamando o pagamento da quantia global de €15.500,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, na sequência da actuação ilícita dos mesmos, acrescida de juros de mora legais, desde a notificação até efectivo pagamento, acrescida de 5% de adicional compulsório desde o trânsito em julgado da sentença (fls. 323 a 332).

Prescreve o art.º 483º-1 do CC, norma de carácter geral em toda a matéria da responsabilidade civil, que “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Por outro lado, importa atentar no disposto no art.º 70º-1 CC, no âmbito da tutela dos direitos de personalidade, que preceitua que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.

Para que alguém se constitua na obrigação de indemnizar, mister é que se verifiquem todos os pressupostos da responsabilidade civil, a saber: o facto que viola o direito de outrem, ilícito, o nexo de imputação subjectiva ao agente a título de culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano dele decorrente.

Por outro lado, na fixação da indemnização deve atender-se quer aos danos patrimoniais, quer aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, devendo o tribunal fixar esse quantitativo, com recurso à equidade, dado que os mesmos não são susceptíveis de avaliação pecuniária (art.º 496º-1 do CC), sendo que a gravidade do dano deve, porém, ser medida com recurso a um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, como seja a especial sensibilidade do lesado (P. Lima/Varela, CC Anotado, Vol. I, p. 499).

Na fixação do quantitativo pecuniário deve atender-se, entre outros aspectos, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, bem como às flutuações da moeda, devendo o montante ser proporcionado à gravidade do dano, tomando-se em conta as regras de boa prudência e da justa medida das coisas (cf. P. Lima e A. Varela, ob. cit., p. 501).

No que respeita aos danos não patrimoniais, como não se mostra possível obedecer ao princípio da reconstituição natural ou em espécie (art.º 562º CC), há que recorrer à reparação por equivalente, é dizer, arbitrando uma quantia em dinheiro que o demandado deverá satisfazer ao demandante, por forma a compensá-lo.

Nos presentes autos apurou-se que o demandante adquiriu à sociedade demandada, através dos seus legais representantes, ora arguidos, na qualidade de demandantes solidários, a viatura acima indicada, pelo preço de € 7.500,00, no pressuposto de a mesma ter percorrido 176.000 kms quando, na realidade, como depois veio a apurar, já tinha percorrido mais de 300.000 kms, pelo que o valor comercial da mesma teria de ser necessariamente inferior, o que gerou um dano patrimonial emergente no valor correspondente à diferença entre o que pagou pelo veículo no pressuposto errado de ter determinados kms e o valor que teria de pagar se o adquirisse conhecendo a quilometragem real; ora, tendo em conta a idade do veículo (de 1997: fls. 16), o desgaste inerente a um veículo com essa idade (ou seja, com cerca de 13 anos à data da sua aquisição, 2010: fls. 16), bem como os quilómetros que já havia efectivamente percorrido (a passar os 300.000 kms), afigura-se ao tribunal, em face dos elementos gerais da experiência conhecidos neste tipo de aquisições em veículos análogos com as mesmas características (vd., entre outros, os conhecidos sites www.standvirtual.com ou www.olx.pt (aqui na secção “carros, motos e barcos”) onde se poderá consultar os preços usualmente praticados para a venda deste tipo de veículos em Portugal), que o assistente adquiriria o veículo em causa por cerca de menos € 3.500,00 por referência ao valor de € 7.500,00 por que foi avaliado e, então, vendido, mostrando-se, pois, adequado e equilibrado o valor peticionado, naquele montante, na vertente de prejuízo patrimonial (art.º 564º-1 do C. Civil).

Apurou-se ainda que os factos acima indicados – em síntese, ter o assistente comprado por determinado preço um veículo com uma quilometragem viciada – causaram-lhe inquietação, angústia, humilhação, incómodo, tristeza, frustração e revolta, acarretando-lhe mal-estar pessoal, o que, de resto, é fácil compreender e de aceitar, se colocado uma qualquer pessoa no seu concreto lugar; estes factos, juridicamente relevantes, consubstanciam, em si, um dano de natureza não patrimonial, a reclamar o arbitramento de uma indemnização, porque merecedor da tutela do direito (art.º 496º-1 do C. Civil), compensáveis mediante uma indemnização que se reputa adequada, atendendo aos factores acima elencados, à circunstância de outros danos não terem sido apurados e à situação patrimonial dos arguidos, no montante de € 4.000,00 que os arguidos, na qualidade de demandados civis, bem como a sociedade demandada, por eles representada, devem ser solidariamente responsáveis.

Atento o disposto no art.º 805º-1-3 do CC o responsável civil fica constituído em mora após a interpelação do credor para cumprir, o que, no caso dos autos, ocorreu com a notificação do pedido cível para contestar. E, no que aos danos patrimoniais concerne, tratando-se de obrigação pecuniária, a indemnização moratória corresponde aos juros legais a contar do dia da entrada em mora que é a data da notificação do pedido cível para contestar (art.ºs 806º- 1-2 C. Civil e 113º-3 do CPP).

Assim, devem os demandados civis ser condenados a pagar ao demandante a quantia de € 3.500,00, desde 22.12.2012 (fls. 350-1; vd. art.º 113º-3 do CPP), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde esta data, sobre essa quantia, até integral pagamento (vd. Portaria n.º 263/99, de 12-04). Já quanto aos danos não patrimoniais acima fixados, no montante de €4.000,00, de que os demandados civis são solidariamente responsáveis, mostrando-se já actualizados, vencerão juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a decisão actualizadora, é dizer, desde a data da presente decisão (vd. AUJ do STJ n.º 4/2002, de 09.05.2002, DR IS-A, de 27.06.2002).

Improcede o pedido de condenação dos demandados civis na sanção pecuniária compulsória de 5%, a acrescer à quantia indemnizatória fixada na sentença, e desde o seu trânsito em julgado, uma vez que os legais acréscimos devem quedar-se pelos juros de mora legais à taxa actualmente em vigor que é de 4%, considerando que a indemnização decorre de responsabilidade decorrente de factos consubstanciadores de um tipo de crime (art.º 559º do C. Civil), estando afastada a aplicação de outros juros que não os civis, mormente os comerciais ou convencionais; por outro lado, o art.º 829º-A do C. Civil prevê a possibilidade de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória para as obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, o que não é, seguramente, o caso dos autos (sobre a definição de obrigação fungível, como obrigação que pode ser cumprida tanto pelo próprio devedor como por qualquer pessoa, vd. João Melo Franco e Herlander Antunes Martins, Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos, entrada “Obrigação Fungível”, Almedina, Coimbra, 1993); como se entende em sede civilística, a peticionada sanção compulsória a que se refere o art.º 829º-A-4 do C. Civil “não pode, obviamente, ser aplicada à letra a todos os casos em que tenha sido estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente. Se a intenção da lei fosse a de abranger todas as obrigações pecuniárias, como se poderia depreender do seu texto, a implantação do preceito teria sido feita noutro lugar do sistema; nomeadamente no art.º 806º e não na área restrita da execução específica da prestação. Temos, por conseguinte, de entender que a sanção do adicional de juros de 5% se aplica apenas às cláusulas penais fixadas em dinheiro e às sanções penais decretadas pelo tribunal, nos termos prescritos no n.º 1 desta disposição” (vd. Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado, II, 4ª Ed., 1997, p. 105, autores que dão ex.ºs de obrigações de facto não fungíveis, loc. cit., pp. 102-3, como é o caso da obrigação de realização de um determinado serviço ao cliente por parte de um médico, advogado, arquitecto ou engenheiro); no caso dos autos, a obrigação é pecuniária e de entrega de quantia certa, mas não é uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, pelo que, consequentemente, é de concluir não se encontrarem reunidos os legais pressupostos para o seu decretamento.

            (…)”.


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            Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

            1. O regime específico da nulidade da sentença criminal encontra-se regulado no art. 379º do C. Processo Penal. Assim, a sentença é nula, quando não contenha as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º (art. 379º, nº 1, a)), quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se existir, fora dos casos e das condições previstos nos arts. 358º e 359º (art. 379º, nº 1, b)) e, quando deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (art. 379º, nº 1, c)).  

Na parte que releva para os autos, se a sentença ignorou um aspecto sobre o qual se deveria ter pronunciado, enferma de omissão de pronúncia. Não é uma qualquer omissão que releva para este efeito. O aspecto omitido terá sempre que ter por objecto uma concreta questão, de facto ou de direito, relevantemente relacionada com o objecto do processo que, quando não seja de conhecimento oficioso, tenha sido suscitada por qualquer interveniente processual. Mas o tribunal não tem, por outro lado, que se pronunciar sobre meros argumentos ou teorias, como também não tem que emitir pronúncia sobre todas as questões que, em abstracto, podem equacionar-se em cada caso.

O assistente estruturou o pedido de indemnização civil que deduziu contra os demandados [os arguidos e a sociedade por ambos gerida], na parte relativa aos danos patrimoniais, na diferença entre o preço que pagou pela viatura – € 7.500 – supostamente correspondente ao valor de mercado da mesma se tivesse 180.000 kms percorridos, e o valor de mercado da mesma viatura com os mais de 300.000 kms que efectivamente havia já percorrido, valor este logicamente inferior ao preço pago.

Para tanto, no pedido de indemnização, para além de ter alegado que apenas contratou com aquele preço por estar convencido que a quilometragem da viatura era de 180.000 kms, alegou ainda, além do mais, que a viatura vendida, com a quilometragem real superior a 300.000 kms, tinha um valor de mercado não superior a € 4.000, o que os arguidos e demandados sabiam.

Percorrendo os factos provados e os factos não provados da sentença recorrida, verificamos que, nem nos primeiros, nem nos segundos, consta que a viatura vendida, com quilometragem real superior a 300.000 kms, tinha um valor de mercado não superior a € 4.000 [ou outra redacção idêntica]. Significa isto que a sentença omitiu pronúncia sobre este facto [trata-se, efectivamente, de um facto e não, de uma conclusão ou de mera alegação de direito], e com indiscutível relevância para a decisão do pedido de indemnização, e não só, como adiante se verá.

            Desta forma, a sentença é nula, nos termos do art. 379º, nº 1, c) do C. Processo Penal.

            A consequência desta nulidade seria a determinação de prolação de nova sentença que, conhecendo do aspecto de facto omitido, a sanasse. Acontece, como veremos de seguida, que a sentença padece de uma outra patologia, de âmbito mais alargado, e com mais amplas consequências.


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            Do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

            2. Os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – têm, como exige a lei, que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível a sua demonstração através de elementos àquela alheios, ainda que constantes do processo.

            Existe o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por ser exígua, a decisão de direito isto é, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dizendo de outra forma, ocorre o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, pág. 69).

            Os arguidos foram pronunciados e, a final, condenados, pela prática, em co-autoria, de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do C. Penal.

            São elementos constitutivos do tipo do crime de burla, que tutela o bem jurídico, património

[Tipo objectivo]

- Que o agente determine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a terceiro, prejuízo patrimonial;

- Que esta determinação seja causada por erro ou engano sobre factos que o agente, astuciosamente, provocou;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade do agente actuar de forma fraudulenta;

- O dolo específico, a intenção de o agente obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, o animus lucri faciendi

Assim, a burla é um crime comum pois pode ter por agente qualquer pessoa e um crime de dano pois a sua consumação só se verifica com a ocorrência de um prejuízo. 

É também um crime de execução vinculada pois a lesão do bem jurídico que tutela tem que ocorrer em consequência da específica forma de actuar prevista no tipo ou seja, a utilização pelo agente de um meio enganoso, com vista è indução em erro do ofendido, erro que, por sua vez, o determina à prática do acto danoso. Assim, o preenchimento tipo objectivo depende, além do mais, da verificação de um duplo nexo de causalidade: a conduta enganatória tem que ser a causa do erro de outrem; este erro, por sua vez, tem que ser a causa da disposição patrimonial causadora do prejuízo (cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, Scientia Juridica, Ano 1970, pág. 301 e A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 293).

No que respeita ao tipo subjectivo do crime, ao dolo, temos apenas provado o que consta do ponto 10 dos factos provados cujo teor [que corresponde quase ipsis verbis, ao que consta do despacho de pronúncia] é:

- Os arguidos agiram sempre em comunhão de esforços e de intentos, de modo livre, deliberado e consciente, com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, como lograram obter, de valor concretamente não determinado, com o correspondente prejuízo patrimonial para C..., através da viciação do valor da quilometragem do veículo...IS.

Dispõe o art. 13º do C. Penal que, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.

É sabido que a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo directo – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.  

Do que antecede decorre que a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto. Ao nível do processo, esta exigência satisfaz-se com a prova e, consequentemente, com a menção no elenco dos factos provados, do conhecimento do agente da ilicitude da sua conduta, seja pela fórmula habitual, e algo conclusiva de, «bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», seja por qualquer outra forma que descreva com objectividade este facto da vida interior do agente. O que não pode acontecer é ter-se por praticado o crime sem a prova da consciência da ilicitude. 

Por outro lado, a circunstância de a consciência da ilicitude não constar do próprio despacho de pronúncia não constituía impedimento ao seu conhecimento pelo tribunal a quo e de o mesmo a ter feito constar dos factos provados, ou dos factos não provado, se fosse esse o caso, bastando para tanto que, oportunamente, tivesse efectuado a respectiva comunicação, nos termos do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, e sem que tal constituísse atropelo à Lei Fundamental [efectivamente, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 450/2007, in www.tribunalconstitucional.pt, não julgou inconstitucional o conjunto normativo integrado pela alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º e pelos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, na interpretação que qualifica como não substancial a alteração dos factos relativos aos elementos da factualidade típica e à intenção dolosa do agente]. 

Em suma, a matéria de facto provada é insuficiente para permitir a conclusão de que os arguidos praticaram um crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do C. Penal, na medida em que dela não consta como provada a consciência da ilicitude e portanto, todos os elementos do respectivo tipo subjectivo, o que determina a verificação do vício previsto na alínea a), do nº 1 do art. 410º do C. Processo Penal.

A existência deste vício não permite decidir a causa pelo que, nos termos do art. 426º, nº 1, do C. Processo Penal, se impõe determinar o reenvio do processo para novo julgamento.

A questão identificada prende-se com a imputação subjectiva dos factos aos agentes cuja prova, por regra, não pode ser feita directamente, uma vez que tem por objecto factos interiores, não directamente percepcionáveis por terceiros, sendo a sua demonstração feita através da prova de factos objectivos, v.g., os que preenchem o tipo objectivo, conjugados com presunções naturais, com as regras da experiência.

São por isso evidentes os inconvenientes na segmentação do julgamento do crime que constitui o objecto dos autos, pelo que se impõe o reenvio do processo para novo julgamento relativamente a todo o seu objecto (art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal).  

Com o reenvio do processo para novo julgamento fica justificada a afirmação atrás feita, quando foi conhecida a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nulidade que não deixará, por certo, de ser eliminada com o novo julgamento e subsequente sentença.

Relacionada com esta nulidade, deixa-se ainda uma derradeira nota, que se prende com a circunstância de, como se referiu já, os factos atinentes ao tipo subjectivo do crime de burla que constam do despacho de pronúncia, ao mencionarem a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, não quantificarem, ainda que de forma aproximada, o valor do enriquecimento e do correspondente prejuízo. Ora, se é certo que o tribunal a quo omitiu pronúncia, quanto a esse valor, relativamente ao pedido de indemnização civil, nada impede que também relativamente ao dolo ele seja concretizado, observado que seja, oportunamente, o art. 358º, nº 1, do C. Processo Penal.


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            Desta forma, fica prejudicado o conhecimento do demais suscitado no recurso.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, ainda que por razões diversas, em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam a sentença recorrida e determinam o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto.


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            Recurso sem tributação (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).


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Coimbra, 22 de Janeiro de 2014

(Heitor Vasques Osório - Relator)

 (Fernando Chaves)