Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/08.5IDVIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
MULTA
COIMA
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8º Nº 7 DO RGIT E 29º, N.º 5, DA C.R.P.
Sumário: É inconstitucional, por dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da mesma infração.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

      Relatório

Por despacho de 17 de Janeiro de 2013, proferido de folhas 1095 a 1100, a Ex.ma Juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Nelas, na sequência de promoção do Ministério Público, decidiu declarar o condenado A... solidariamente responsável pelo pagamento da pena de 290 dias de multa à taxa diária de 5 €, aplicada nestes autos à sociedade “B..., Lda.” e ordenar a emissão de novas guias para pagamento da pena de multa aplicada à sociedade condenada, desta feita em nome do condenado A..., notificando-se o mesmo para proceder ao respectivo pagamento.

          Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. Por sentença proferida nestes autos em 18.01.2012, já transitada em julgado, A...e “ B..., Lda.”, foram condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o primeira na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 6 €, e a segunda na pena de 290 dias de multa à taxa diária de 5 €.

2. Em virtude de a sociedade condenada não ter procedido ao pagamento da pena que lhe foi imposta, veio o Ministério Público promover que, em face do disposto no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, e considerando a responsabilidade solidária que daí decorre também para o condenado A..., se considere esta solidariamente responsável pelo pagamento da multa aplicada àquela.

3. Entendeu, a final, o Tribunal “a quo”: “Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, e indo ao encontro da douta promoção de fls, decide-se: declarar o condenado A...solidariamente responsável pelo pagamento da pena de 290 (duzentos e noventa) dias de multa à taxa diária de 5 € (cinco euros), aplicada nestes autos à sociedade “ B..., Lda.”. É desta decisão que ora se recorre.

4. O objecto deste recurso resume-se à transmissão de uma responsabilidade penal que era, originariamente, imputável à sociedade ou pessoa colectiva, e a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo.

5. A verdade é que a decisão recorrida viola os princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência do arguido, consagrados no n.º 3 e do artigo 30.º e no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República.

6. A decisão recorrida é, ainda, inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

7. O fundamento onde basicamente se alicerça este juízo de inconstitucionalidade é violação da regra da intransmissibilidade da responsabilidade penal, consagrada no artigo 30., n.º 3, da CRP.

8. O recorrente, gerente, só pode ser responsabilizado por facto próprio (como pode deixar de ser, tratando-se de uma responsabilidade subjectiva), coincidente com o facto gerador da sanção pecuniária.

9. Estamos em face de duas relações, de fonte e natureza distintas.

10. A dualidade de sujeitos corresponde uma dualidade de relações obrigacionais, sendo que uma se constitui como eventual sucedâneo da outra, pois o se nascimento está condicionado à verificação, em processo executivo, da impossibilidade, imputável a uma conduta faltosa do administrador, de realização coerciva do débito que recai sobre a pessoa colectiva multada.

l1. Nesta visão dual, de diferenciação dos factos constitutivos e de títulos de chamamento à responsabilidade dos dois sujeitos sucessivamente obrigados, não há lugar para a aceitação da ocorrência de um fenómeno de transmissão, já que este pressupõe, no rigor dos termos,  uma modificação subjectiva, uma sucessão na titularidade de um direito ou de uma obrigação, no âmbito de uma relação que não perde, por isso, a sua identidade.

12. A qualificação da responsabilidade dos administradores como civil permite, pois resolver facilmente, em sentido negativo, a questão da ocorrência de um fenómeno de transmissão, na medida em que acentua e estabelece com nitidez máxima a diferenciação das situações debitórias da pessoa colectiva que cometeu a infracção e a dos administradores que podem ser chamados a responder: enquanto que, a responsabilidade da pessoa colectiva, é de cariz sancionatório, a dos administradores configura-se como puramente civilística, com função e natureza ressarcitórias.

13. Acresce que, a admitir-se que a mudança dos sujeitos responsáveis vem acompanhada por uma mudança da natureza da responsabilidade, então também é forçoso admitir que não são atingidos os fins que justificam a imposição da multa.

14. De facto, e ainda que similares quanto à estrutura e objecto, os dois vínculos divergem, nesta óptica, quanto à função, não podendo, por falta de homologia funcional, a responsabilidade dos administradores substituir-se à da pessoa colectiva, “fazer as vezes” desta, como um mecanismo subrogatório da que se traduz, a título sancionatório, no pagamento da multa.

15. Responsabilidade penal e responsabilidade civil não são sobreponíveis, preenchem distintos espaços de imputação de condutas lesivas de valores juridicamente tutelados, resultam de ilícitos de natureza distinta, pelo que a responsabilidade civil não pode ser actuada subsidiariamente, em consequência da frustração da responsabilidade penal, para satisfazer, por via indirecta, os fins próprios desta.

16. E, sempre na responsabilidade penal, a vinculação ao pagamento de uma importância monetária, a título de multa, tem carácter instrumental da realização de fins de outra natureza, de reafirmação da ordem de condutas desrespeitada, de sanção ao agente por se ter desviado dos deveres decorrentes do exercício de determinada actividade social e de dissuasão de práticas futuras criminais.

17. A sua função é puramente sancionatória e preventiva.

18. Já a responsabilidade civil visa a reposição de um equilíbrio patrimonial afectado por um facto danoso.

19. Dados os distintos fundamentos e fins dos dois sistemas de responsabilidade, é problemático ver no não pagamento da multa um prejuízo patrimonial configurável como um dano de natureza civil, indemnizável ao abrigo da correspondente responsabilidade.

20. Se o fim da multa não era a obtenção de uma receita (mas a imposição de um sacrifício económico, com fins repressivos e preventivos), dificilmente se pode considerar que o não pagamento (ainda que associado a outros factores) gera um dano enquadrável, como um dos seus pressupostos, na responsabilidade civil.

21. Não há, assim, a automática transposição, sem mais, para a esfera de um sujeito, da responsabilidade inicialmente gerada na esfera de um outro, por força de factores exclusivamente atinentes à esfera jurídica deste último.

22. O chamamento do gerente ou administrador à responsabilidade não se dá por força dos mesmos factores de imputação que conduziram à responsabilidade da pessoa colectiva, meramente redireccionados, por um mecanismo de transmissão, para a esfera debitória daquele sujeito.

23. Dá-se porque esse sujeito “incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o pagamento da multa em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva” (Acórdão n.º 150/2009).

24. Daí que esteja assegurada a conexão da sanção com a prática de actos ou omissões por aqueles que a sofrem, mesmo que se admita, na esteira do que acima defendemos, uma comunhão de natureza das duas responsabilidades, o que implica atribuir natureza sancionatória também à que recai sobre os administradores.

25. As consequências sancionatórias a que os administradores ficam sujeitos poderiam ter sido por eles evitadas, mediante práticas de gestão não culposas.

26. Ora, quando carregado com o sentido valorativo adveniente do princípio da pessoalidade das penas que o informa, o conceito de transmissão não abrange situações deste tipo.

27. Em face do exposto, a questão de constitucionalidade que nos ocupa pode ser formulada, em último termo, como sendo a de decidir da admissibilidade constitucional de um regime sancionatório em que a medida da multa não depende da avaliação, em concreto, do grau de culpa do responsável e das circunstâncias específicas que rodearam a sua actuação.

28. Há que ponderar, antes de mais, que, neste caso, a total insensibilidade a factores pessoais, na determinação da medida da sanção, não resulta apenas da irrelevância de elementos de responsabilização reportados à culpa, em concreto, do responsável.

29. Na verdade, pessoas colectivas e pessoas físicas são entes morfologicamente bem distintos, com estrutura e grandeza de património tipicamente diferenciáveis.

30. Em resultado, a incidência patrimonial subjectiva, o "grau de sacrifício" que uma mesma multa comporta, não são idênticos, quando aplicadas a uma pessoa colectiva ou a um sujeito individual.

31. Aliás, o que o legislador, de forma praticamente constante e por um imperativo de justa medida, leva em conta, fixando valores mais elevados para os limites mínimo e máximo das sanções a aplicar a entes colectivos.

32. Tal como vem fixada no artigo 8.º do RGIT, a responsabilidade subsidiária subverte esse critério diferenciador, ao pôr a cargo do administrador o pagamento de uma multa ou multa fixadas dentro de uma moldura estabelecida por reporte a uma categoria de sujeitos de natureza distinta - a pessoa colectiva responsável pela infracção tributária que deu motivo à sanção.

33. Aliás, no caso concreto, a pena de multa aplicada ao recorrente, ab inicio, foi, por tudo isto, substancialmente diferente.

34. O recorrente foi condenado a pagar uma multa de 1.080,00 €. Ao invés,

35. A sociedade foi condenada a pagar uma multa de 1.450,00 €.

36. Quer isto dizer que, inexplicavelmente, a diferenciação havida, aquando da condenação, agora, por motivo nenhum, é desconsiderada.

37. Porque determinadas dentro de uma moldura ajustada à natureza própria da personalidade colectiva do devedor primário, a multa, quando passam a incidir, em igual medida, sobre a pessoa individual chamada, a título subsidiário, à responsabilidade, revelam-se, à partida, desproporcionadamente agravadas,

38. E, ao parificar, quanto ao objecto, situações de responsabilidade que, pelo menos do ponto de vista da natureza do sujeito responsável, são estruturalmente desiguais, a solução gera desconformidades com o que o princípio da igualdade exigiria.

39. Para além desta inadequação que contamina, in radice, todo o processo sancionatório da conduta culposa dos administradores, não pode ignorar-se que esta, pela heterogeneidade de comportamentos potencialmente englobados, não é susceptível de recondução a um tipo de ilícito e a um grau de culpa tendencialmente uniformes.

40. O não atendimento mínimo de limites sancionatórios decorrentes do princípio da culpa abre a porta a que os princípios da igualdade e da proporcionalidade resultem também insatisfeitos, e de forma agravada, dado o desajustamento da própria moldura aplicável, prevista para infracções cometidas por pessoas colectivas.

41. Em si mesma, mas, sobretudo, pela sua potencial projecção na ofensa a valores constitucionais de vigência incontroversamente geral, como os da igualdade e da proporcionalidade, uma tal denegação de qualquer eficácia delimitativa à culpa do agente do facto responsabilizador apresenta-se como constitucionalmente desconforme a norma aplicada pelo Tribunal “a quo”.

42. Conclui-se, pois, pela inconstitucionalidade do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

43. Termos em que se requer a revogação da decisão impugnada, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, com a aplicação da norma do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

O Ministério Público na Comarca de Nelas respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção integral da decisão  recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P..

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            O despacho recorrido tem o seguinte teor:

« Fls. 1090/1091:

                I.

      Por sentença proferida nestes autos em 18.01.2012, já transitada em julgado, A...e  “ B...,  Lda.” foram condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o primeira na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 6 €, e a segunda na pena de 290 dias de multa à taxa diária de 5 € – fls. 972 e ss. e 1050 e ss..

     Em virtude de a sociedade condenada não ter procedido ao pagamento da pena que lhe foi imposta, veio o Ministério Público promover que, em face do disposto no artigo 8º, n.º 7, do  RGIT,  e  considerando  a  responsabilidade  solidária  que  daí  decorre  também  para  o condenado  A...,  se  considere  este  solidariamente  responsável  pelo pagamento da multa aplicada àquela.

     Notificado o condenado A... para exercer o contraditório, este nada veio expor ou alegar.

    Cumpre decidir.

               II.

    Nos termos do disposto no artigo, 8º, n.º 1, do RGIT, «Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e  outras  entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis: a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva  se  tornou  insuficiente  para  o  seu pagamento; b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do  seu  cargo  e  lhes  seja imputável  a  falta  de pagamento».

O nº 7 do mesmo artigo, por sua vez, dispõe que: «Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for caso disso».

    O artigo em análise consagra várias situações de responsabilidade civil de determinadas pessoas pelo pagamento de coimas e  multas  penais  aplicadas  a  pessoas colectivas.

    O que está em causa no normativo em análise não é, assim, uma qualquer transmissão de responsabilidade contra-ordenacional ou penal – proibida pela Constituição da República Portuguesa -               mas sim uma mera responsabilidade civil pelo não pagamento das quantias correspondentes às coimas ou multas aplicadas a pessoas colectivas, que assenta num acto próprio e culposo do administrador ou gerente da mesma. [1]

    Por outro lado, impõe-se esclarecer que em cada um dos números de tal artigo está contemplada uma situação distinta, sendo  que  a  forma  de  accionar  a  correspondente responsabilidade civil é também diversa.

    Assim, se a responsabilidade civil das pessoas referidas nos números 1 a 3 de tal artigo é meramente subsidiária com a do autor da  infracção tributária,  já  a que se encontra contemplada nos números 4, 5 e 7 é solidária.

    Efectivamente, como nos dá conta Marques da Silva, o artigo 8º, n.º 1, do RGIT, tem como pressuposto a culpa do administrador da pessoa colectiva pelo não pagamento da multa ou da coima, por lhe ser imputável a insuficiência do património daquela para o efeito, ou então a omissão de tal pagamento.[2]

      Já o n.º 7 do mesmo artigo contempla as situações em que o administrador é também responsável pelo crime pelo qual a  sociedade  foi  condenada,  sendo,  por  isso,  a  sua responsabilidade pelo pagamento da pena de multa aplicada àquela sempre solidária.

    Trata-se, como é evidente, de um tipo de responsabilidade muito mais gravoso, que tem por fundamento a colaboração dolosa do administrador na prática do crime tributário, e que justifica que este responda solidariamente pelas consequências jurídicas do mesmo.

    Assim, enquanto no n.º 1 do artigo em apreciação o legislador seguiu o disposto na Lei Geral Tributária, no n.º 7 afastou-se claramente desse regime, consagrando expressamente a solidariedade do administrador que colaborou dolosamente na prática da infracção tributária pelo pagamento da respectiva coima ou multa.

     No mesmo sentido, entendem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, que no n.º 7 do artigo 8º não se está, à semelhança do que sucede com o seu n.º 1, perante uma responsabilidade subsidiária relativamente  aos agentes da infracção, mas sim perante uma solidariedade em primeiro plano.

    Desta forma, o pagamento da coima ou multa pode ser originariamente exigido, desde logo, aos responsáveis civis solidários, independentemente da existência de bens do autor da infracção.[3]

    Ao cabo e ao resto, esta diferença de tratamento legal assenta na circunstância de o comportamento ilícito do administrador ser causa directa da pena de multa que veio a ser aplicada à sociedade por si administrada.

    Refira-se, ainda, que sobre a responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes prevista no n.º1, do citado  artigo 8º, se pronunciou muito recentemente o Plenário do Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 437/2011[4], de 3 Outubro, tendo concluído que o mesmo não é inconstitucional, pois o que está  em  causa não  é  a  mera  transmissão  de  uma responsabilidade  contra-ordenacional  que  era  originariamente  imputável  à  sociedade  ou pessoa colectiva, mas sim «a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.».

    Por maioria de razão e identidade de pressupostos, este entendimento deve ser transposto para a responsabilidade solidária prevista no n.º 7 do mesmo normativo legal, que tem por fundamento a circunstância de ter sido o próprio gerente a praticar o facto doloso que veio a determinar a aplicação de uma pena de multa à sociedade por si gerida.


*

    Com  relevo  para  a  questão  que  ora  cumpre  decidir,  deram-se  como  provados  na sentença condenatória os seguintes factos:

«1) A arguida “ B..., Lda.” é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica à exploração ocasional de transportes de mercadorias, construção civil e obras públicas, comercialização de materiais de construção, prestação de serviços nas áreas de electricidade, serralharia civil e mecânica.

2) Nos anos de 2004 e 2005 o arguido A... era gerente de direito e de facto da sociedade arguida, sendo ele quem dirigia e administrava, mormente tomando as decisões atinentes à sua vida comercial e gerindo os pagamentos a credores, entre os quais os devidos ao estado a título de IVA;

3) Nesse período a arguida estava colectada no serviço de finanças de Nelas e encontrava-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral.

4) Nos meses de Julho de 2004 a Março de 2005 a arguida desenvolveu normalmente a sua actividade.

5) Assim procedeu à transmissão de bens e à prestação de serviços aos seus clientes e emitiu as correspondentes facturas e recebeu os valores facturados, designadamente, e para além  do valor do preço cobrado, o IVA respectivo, com excepção das   facturas   cujo   preço   cobrado   e   IVA   respectivo,   foi arrestado/penhorado, em sede de execução fiscal.

6)  Na  qualidade  de  gerente  da  arguida,  o  arguido  A...  não  entregou  as  declarações periódicas relativas ao IVA dos: 3º trimestre de 2004, do 4º trimestre de 2004 e do 1º trimestre de 2004, onde se apuraram os seguintes valores  de  Imposto  a  entregar ao Estado,  nos montantes  de 3º  trimestre  de  2004  € 23.638,52, € 26.153,82 e € 8.509,00

8) A sociedade arguida e o arguido A... não procederam ao pagamento do imposto devido, nem nos 90 dias posteriores.

9)  A  sociedade  arguida  e  o  arguido  A...  dispuseram  das  quantias  devidas  a  título  de imposto  a  entregar  ao  estado  em  proveito  próprio  e  da  sociedade  arguida,  nomeadamente  para  proceder  a outros pagamentos, como sejam as remunerações dos trabalhadores.

10) A sociedade arguida e o arguido A... foram notificados para, em 30 dias, procederem ao pagamento voluntário das quantias em dívida por conta do IVA referente aos períodos acima mencionados, sendo que, nesse prazo, não procederam ao respectivo pagamento.

11) O arguido A..., por si e em representação da sociedade arguida, agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de, nos meses indicados, receber dos clientes da sociedade arguida a título de IVA as quantias acima mencionadas e de não as entregar ao estado no prazo legal previsto para o efeito, bem sabendo que a isso estava obrigada a sociedade arguida, bem como ele próprio, na qualidade de gerente da sociedade arguida.

12) Agiu ainda no seu próprio interesse e nome da arguida, de modo a obter para si e para esta um beneficio, equivalente àqueles montantes, a que sabia não ter direito, bem sabendo que, dessa forma causava ao estado um prejuízo em montante equivalente.

13) Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

    Deste acervo factual decorre que foi o condenado A...quem decidiu não entregar ao Estado os montantes de IVA que lhe eram devidos, nos períodos de tempo aí descritos.

   Por outro lado, verifica-se que o condenado actuou com dolo directo.

   Assim sendo, mostra-se evidente que o condenado A...colaborou dolosamente na prática do crime tributário cometido pela sociedade condenada, motivo pelo qual também acabou por ser criminalmente condenado nestes autos.

   Verifica-se, assim, uma relação directa entre o comportamento ilícito do condenado e a pena de multa aplicada à sociedade por si gerida, pelo que se encontram verificados os pressupostos de aplicação do artigo 8º, n.º 7, do RGIT, como sustenta o Ministério Público, impondo-se decidir em conformidade.

     O pagamento de tal pena poderá, assim, ser exigido a ambos os condenados, pelo que se ordenará a emissão de novas guias relativas à pena de multa aplicada à sociedade, desta feita em nome do condenado A..., bem como a notificação deste para proceder ao respectivo pagamento.

              III   

    Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 8º, n.º 7, do RGIT, e indo ao encontro da douta promoção de fls. 795 e 796, decide-se:

    A. declarar  o  condenado  A...  solidariamente responsável pelo pagamento da pena de 290 (duzentos e noventa) dias de multa à taxa diária de 5 € (cinco euros), aplicada nestes autos à sociedade “ B..., Lda.”;

    B. ordenar  a  emissão  de  novas  guias  para  pagamento  da  pena  de  multa aplicada à sociedade condenada, identificada em A., desta feita em nome do condenado  A...,  notificando-se  o  mesmo  para proceder ao respectivo pagamento.

    Notifique.».

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [5] e de 24-3-1999 [6] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [7], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do arguido A..., a questão a decidir é a seguinte:

- se o n.º 7 do art.8.º do RGIT, é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da intransmissibilidade das penas, da presunção de inocência do arguido, a que aludem o n.º 3 do art.30.º e o n.º 2 do art.32.º, da C.R.P. e, ainda, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.


-
Passemos ao conhecimento da questão.

Sob a epígrafe «Responsabilidade civil pelas multas e coimas», dispõe o art.8.º do RGIT, na parte que aqui interessa:

«1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
     
a) Pelas multas ou coimas aplicadas às infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
     
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.

2- A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.

(….)

7- Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.

8- Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade».

O art.8.º do RGIT prevê duas situações diferentes relativamente à responsabilidade civil dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, e outras entidades fiscalmente equiparadas, quanto ao pagamento das multas e coimas: uma no n.º1, para aquelas pessoas que não colaboraram dolosamente na prática da infracção fiscal e, outra, no seu n.º 7, para o caso de ter ocorrido aquela colaboração.

O n.º 1 do art.8.º do RGIT prevê a responsabilidade subsidiária, dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, e outras entidades fiscalmente equiparadas, pelas multas e coimas a estas aplicadas: por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento ( alínea a) e, ainda por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento ( alínea b).

No caso dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, e outras entidades fiscalmente equiparadas, terem colaborado na prática de infracção tributária, os mesmos são solidariamente responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso ( n.º 7 do art.8.º do RGIT).

Esta responsabilidade solidária, tanto face ao agente principal da infracção como entre colaboradores, compreende-se, no dizer do Prof. José Casalta Nabais, “ uma vez que mais não é do que uma emanação do princípio constante do art.497 do Código Civil relativo à responsabilidade pelo dano em caso de pluralidade de responsáveis.”  [8]

Pronunciando-se sobre situações de responsabilidade solidária, observam os Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, na obra Regime Geral das Infracções Tributarias Anotado, que entre estas situações está “ - a daqueles que colaborarem dolosamente na prática das infracções tributárias.

Nestas situações, não se está, como no n.º 2, perante responsabilidades subsidiárias, relativamente aos agentes das infracções, mas sim em solidariedade em primeiro plano, podendo as dívidas ser originariamente exigidas, desde logo, aos responsáveis solidários, independentemente da existência de bens do autor da infracção. (…)

 No n.º6 [ actualmente n.º 7] deste artigo, prevê-se uma responsabilidade solidária, de natureza civil, de quem colaborar com a prática de infracções tributárias, independente da responsabilidade própria, criminal ou contra-ordenacional, que for imputada àquele que presta colaboração. Incorrerão nesta responsabilidade civil os co-autores e cúmplices de infracções tributárias, relativamente às sanções que vierem a ser aplicadas aos seus co-arguidos, cumulativamente com a própria responsabilidade.”. [9]

Ainda na doutrina , o Prof. Germano Marques da Silva, autor do anteprojecto e presidente da Comissão que elaborou o projecto do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), escreve a respeito do art.8.º do RGIT, que “a responsabilidade civil pelo pagamento da multa penal nada tem a ver com os fins das penas criminais, porque a sua causa não é a prática do crime, mas a colocação culposa da sociedade numa situação de impossibilidade de cumprimento de uma obrigação tributária. É evidente que para a responsabilização do administrador é necessário que a sentença dê por verificados os pressupostos da responsabilidade e a respectiva condenação”.

De acordo com este autor, “trata-se de um caso de responsabilidade civil por facto próprio, facto culposo causador do não pagamento pelo ente colectivo da dívida que onerava o seu património, quer porque por culpa sua o património da pessoa colectiva se tornou insuficiente para o pagamento, quer porque também por culpa sua o pagamento não foi efectuado quando devia, tornando-se depois impossível.”.

“ … se o administrador for também responsável penal pelo crime por que tiver sido condenado o ente colectivo, a regra é a do n.º 6 [actualmente n.º 7], ou seja, é sempre solidariamente responsável pelo pagamento da multa aplicada à pessoa colectiva, sendo que a regra do n.º 1 tem como pressuposto não a responsabilidade criminal do administrador, mas a sua culpa pelo não pagamento, quando tiver sido por culpa sua que o património do ente colectivo se tornou insuficiente para o seu pagamento ou por culpa sua não tiver sido efectuado.(…)

No n.º 6 deste artigo (…) o fundamento da responsabilidade solidária é a colaboração na prática do crime tributário e por isso que respondem solidariamente pelas consequências jurídicas do crime os seus agentes, ou seja, os agentes do crime, e se esses agentes forem administradores ou representantes do ente colectivo não respondem nos termos do n.º 1, mas do n.º 6.” Assim, “ Enquanto que o n.º 1 segue o disposto no art. 24.º da LGT, já o n.º 6 se afasta desse regime, embora se trate ainda de responsabilidade também por dívida de outrem, mas agora a responsabilidade é solidária porque o administrador colaborou dolosamente na prática da infracção e, por isso, vai responder solidariamente com os co-responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua própria responsabilidade, porque foi o seu comportamento ilícito causa directa da multa, foi o seu comportamento a causa da multa aplicada à pessoa colectiva pela prática do facto ilícito penal. Tenha-se, porém, presente, que a responsabilidade de que trata o n.º 6 do art. 8.º do RGIT se refere exclusivamente às consequências decorrentes da prática do crime enquanto que o art. 24.º se reporta às consequências decorrentes do não pagamento do imposto devido.[10]

No caso em apreciação, resulta do despacho recorrido, designadamente, que o ora recorrente A...e a sociedade “ B...,  Lda.” foram condenados, por sentença proferida nestes autos, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.105º, n.ºs 1 e 4, do RGIT, o primeira na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 6 €, e a segunda na pena de 290 dias de multa à taxa diária de 5 €.

Tal condenação resulta, no essencial, do facto do arguido A..., sendo gerente da sociedade arguida, não haver entregado as declarações periódicas relativas ao IVA dos 3º trimestre de 2004, do 4º trimestre de 2004 e do 1º trimestre de 2004, nem procedido ao pagamento do imposto devido nos 90 dias posteriores. 

A sociedade arguida  e  o  arguido  A...  dispuseram  das  quantias  devidas  a  título  de imposto  a  entregar  ao  Estado  em  proveito  próprio  e  da  sociedade  arguida,  nomeadamente  para  proceder  a outros pagamentos, como sejam as remunerações dos trabalhadores.

Notificados para, em 30 dias, procederem ao pagamento voluntário das quantias em dívida por conta do IVA referente aos períodos acima mencionados, não procederam ao respectivo pagamento.

O arguido A..., por si e em representação da sociedade arguida, agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de, nos meses indicados, receber dos clientes da sociedade arguida a título de IVA as quantias acima mencionadas e de não as entregar ao estado no prazo legal previsto para o efeito, bem sabendo que a isso estava obrigada a sociedade arguida, bem como ele próprio, na qualidade de gerente da sociedade arguida. Agiu ainda no seu próprio interesse e nome da arguida, de modo a obter para si e para esta um beneficio, equivalente àqueles montantes, a que sabia não ter direito, bem sabendo que, dessa forma causava ao estado um prejuízo em montante equivalente. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mostrando-se evidente, desta factualidade, que o arguido A...colaborou dolosamente na prática do crime tributário cometido pela sociedade condenada, motivo pelo qual também acabou por ser criminalmente condenado nestes autos, concluímos, como na decisão recorrida, que se verifica uma relação directa entre o comportamento ilícito do condenado e a pena de multa aplicada à sociedade por si gerida, pelo que se encontram verificados os pressupostos de aplicação do artigo 8º, n.º 7, do RGIT.

Importa agora decidir se este normativo pode aplicar-se ou deve recusar-se a sua aplicação com o fundamento em inconstitucionalidade.

Até ao início do corrente ano, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, por diversas vezes, sobre a conformidade das alíneas a) e b), n.º1, do art.8.º do RGIT com a Constituição da República Portuguesa, designadamente, com o princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30.º, n.º 3, da C,R.P o princípio da presunção de inocência do arguido, que decorre do artigo 32.º, n.º 2, da mesma Lei e os princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

Para pôr fim a divergências jurisprudenciais das secções, sobre a questão de saber se é inconstitucional a norma que estabelece a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 561/2011, tirado em Plenário, decidiu não julgar inconstitucional o art.7-A do RJIFNA e o correspondente art.8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal.

Adoptou para o efeito o entendimento enunciado pelo mesmo Tribunal nos acórdãos n.ºs 129/2009, 150/2009 e 234/2009, de que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infracção contra-ordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal. É esse facto, de carácter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Daí concluir que a atribuição de responsabilidade subsidiária a administradores, gerentes e outras pessoas com funções de administração em sociedades, por dívida resultante de não pagamento de coima fiscal em que a pessoa colectiva tenha sido condenada, com a consequente reversão da respectiva execução fiscal, em consequência do que dispõe, nessa matéria o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, não é susceptível de violar o princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30.º,n.º 3, da Constituição da República, e, bem assim, o princípio da presunção de inocência do arguido, que decorre do artigo 32.º, n.º 2, princípios que, nesses termos, entende serem aplicáveis mesmo no domínio do ilícito contraordenacional.

O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 249/2012, estendeu esta jurisprudência às penas de multa, julgando não inconstitucional a norma da alínea a) do n.º1 do art.8.º do RGIT, na parte em que estatui que os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis pelas multas aplicadas a infracções por facto praticados no período de exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento.[11]

Relativamente à inconstitucionalidade do n.º7 do art.8.º do RGIT, o Tribunal da Relação de Coimbra, constituído pelo presente relator e Ex.ma Adjunta Dr. Alice Santos, decidiu já, por acórdão de 17 de Outubro de 2012, que o “ art.8.º, n.ºs 1 e 7 do RGIT não viola o princípio da intransmissibilidade das penas enunciado no art.30.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.”.[12]

Entretanto, foi proferido o acórdão n.º 1/2013, do Tribunal Constitucional, que decidiu «julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 8º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias quando aplicável a gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária».

Neste arresto, a inconstitucionalidade da norma resulta, não da violação do princípio da intransmissibilidade das penas enunciado no art.30.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, mas sim da violação do princípio ne bis in idem previsto no artigo 29º, n.º 5, da Lei Fundamental.

Para o efeito consigna-se, designadamente, o seguinte: « … a situação sub juditio não é de nenhum modo equivalente àquelas outras sobre as quais o Tribunal Constitucional já se pronunciou em ocasiões anteriores. A responsabilidade subsidiária do gerente a que se referem as normas do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT e do artigo 7º-A do RJIFNA é tida como uma responsabilidade por facto próprio e autónomo que tem relevância no plano da responsabilidade civil extracontratual e que se não confunde com a conduta material que originou a condenação da pessoa coletiva em processo penal. Ao contrário, na hipótese prevista no artigo 8º, n.º 7, do RGIT, o gerente está sujeito a uma responsabilidade solidária pela multa aplicada à pessoa coletiva, responsabilidade que deriva da atuação ilícita que determinou a sua própria condenação a título pessoal, e em coautoria material com a pessoa coletiva, por infração tributária (quanto a esta distinção, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 328).
Poderá dizer-se que a razão de ser do regime legal decorre da necessidade de acautelar o pagamento das multas aplicáveis às pessoas coletivas, prevenindo a possibilidade de estas virem a ser colocadas numa situação de insuficiência patrimonial que inviabilize por motu proprio a satisfação do crédito fiscal.
Ainda que essa medida seja compreensível no plano de política legislativa, e numa perspetiva utilitarista de eficácia da prevenção criminal, ela não pode justificar, por si, por via de um princípio civilístico de solidariedade passiva, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva para o seu administrador ou gerente.
Não é curial, contrariamente ao que se afirma, por vezes, na jurisprudência cível, reconduzir o regime constante do n.º 7 do artigo 8º, a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio. O pressuposto da obrigação solidária é a colaboração dolosa na prática do crime tributário, e é essa conduta que torna o gerente responsável solidariamente pelas consequências jurídicas da condenação penal em que tenha incorrido a pessoa coletiva. Não estão aqui em causa quaisquer factos, anteriores ou posteriores à aplicação da multa penal, que tenham colocado a pessoa coletiva na impossibilidade de pagamento. Nem é invocável um qualquer argumento de identidade ou de maioria de razão para tornar equiparável a disciplina desse preceito à responsabilidade subsidiária a que se refere o n.º 1 do artigo 8º (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de março de 2012, Processo n.º 1407/09, e do Tribunal da Relação do Porto de 2 de maio de 2012, Processo n.º 1113/06, e de 6 de junho de 202, Processo n.º 11/06).
Ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil, com subordinação aos princípios gerais da solidariedade passiva, ela não deixa de representar, na prática, uma consequência jurídica do mesmo ilícito penal pelo qual o gerente foi já punido, a título individual, através da aplicação direta de pena de multa. Isso porque a responsabilidade solidária assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infração, que é imputado ao agente a título de culpa, e que arrasta não só a sua condenação individual como a condenação da pessoa coletiva no interesse de quem agiu.
A norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoacoletiva.
Faz aqui sentido chamar à colação o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º, n.º 5, da Constituição e que na sua dimensão de direito subjetivo fundamental proíbe que as normas penais possam sancionar substancialmente, de modo duplo, a mesma infração (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 244/99, 303/05, 356/06 e 319/12).
Certo é que, como se ponderou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 212/95, o princípio ne bis in idem não obsta a que pelo mesmo facto objetivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas jurídicas diferentes que poderão ser também passíveis de sanções distintas, pelo que a consagração legal da responsabilidade individual ao lado da responsabilidade do ente coletivo não envolve em si uma qualquer violação do artigo 29º, n.º 5, da Constituição, visto que não implica um duplo julgamento da mesma pessoa pelo mesmo facto. Ou seja, sendo diversos os responsáveis nada impede que pelo mesmo facto respondam duas ou mais pessoas, tanto que as condições de imputação são diversas, mormente no tocante à culpa, e os efeitos da condenação são também diversos. É esse princípio que se encontra, aliás, expresso, no que se refere à responsabilidade penal cumulativa das pessoas coletivas e dos respetivos agentes, no artigo 11º, n.º 7, do Código Penal e é reproduzido no artigo 7º, n.º 3, do RGIT (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, ob. cit., págs. 301-302).
Essa não é, no entanto, a situação versada no artigo 8º, n.º 7, do RGIT, em que, por força da comparticipação na prática da infração tributária, se faz atuar em relação à pessoa singular, que age como representante da pessoa coletiva, a cumulação da responsabilidade penal própria com a responsabilidade solidária pelo cumprimento da sanção penal pecuniária imposta à pessoa coletiva.
O que traduz objetivamente uma dupla valoração jurídico-criminal de um mesmo facto, com uma consequência negativa para o agente, que é assim tido como um condevedor da prestação, independentemente de a Administração Fiscal optar por exigir ou não o pagamento e de o agente poder vir a exercer ulteriormente o direito de regresso contra o coobrigado.
5. Neste contexto, e face aos termos em que a questão de constitucionalidade vem colocada no caso concreto, não tem cabimento invocar o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal a que alude o artigo 30º, n.º 3, da Constituição.
A colaboração dolosa na prática da infração pode resultar da intervenção de um titular de órgão ou representante da pessoa coletiva e também de um trabalhador da empresa ou de um prestador de serviços externo. E não está excluído que em relação algum ou alguns dos agentes físicos possam verificar-se causas pessoais de exclusão da responsabilidade penal, sem prejuízo da manutenção do pressuposto que determina a obrigação solidária.
A questão da transmissão da responsabilidade penal poderia colocar-se neste circunstancialismo, isto é, no caso em que o representante da pessoa coletiva, ainda que tenha colaborado na prática da infração por esta cometida, e possa considerar-se incurso na responsabilidade solidária a que se refere o n.º 7 do artigo 8º, não tenha praticado, apesar disso, qualquer conduta punível do ponto de vista criminal, e não tenha por isso incorrido em infração tributária que lhe seja individualmente imputável.
Essa é, aliás - como se deixou esclarecido -, uma possibilidade expressamente salvaguardada no segmento final desse n.º 7, quando se prevê, em relação àqueles que colaboram dolosamente na prática da infração, a responsabilidade solidária por multas aplicadas à pessoa coletiva, independentemente de poderem ser também responsabilizados a título pessoal.
A imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de multas aplicadas à pessoa coletiva, quando ele não possa ser corresponsabilizado como coautor ou cúmplice na prática da infração – tal como admite o n.º 7 do artigo 8º - configura uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que é o obrigado solidário que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a uma outra pessoa jurídica.
Desde que, porém - como é o caso dos autos -, a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infração, o que aí está em causa é, não já transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem. Dito de outro modo, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infração, corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito, e é esta caracterização jurídica que adquire autonomia e prevalência sobre a possível violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição.
Por identidade de razão, não tem relevo entrar na análise da violação do princípio da culpa, da igualdade e da proporcionalidade como parâmetros de constitucionalidade da norma em causa. Essa aferição justificar-se-ia se houvesse que apurar se os limites e o tipo de sanção imposta por via da regra do artigo 8º, n.º 7, do RGIT se mostram conformes com os princípios constitucionais da necessidade, da proporcionalidade e da adequação.
Se se conclui, no entanto, que a responsabilidade sancionatória decorrente dessa disposição está interdita por implicar uma dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais, fica naturalmente prejudicada a questão de saber se esta segunda sanção respeita o princípio da culpa ou se se adequa à natureza e gravidade da infração quando praticada pelo agente a título individual.».
Reforçando esta posição jurisprudencial, mais dois Ex.mos Juízes do Tribunal Constitucional (Cura Mariano e Pedro Machete), declararam no acórdão n.º 207/2013, que no seu entender era aí possível conhecer do mérito do recurso e, consequentemente, teriam julgado inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, o n.º7 do art.8.º do RGIT, tal como já o fez o Acórdão n.º 1/2013 deste Tribunal.
Retornando ao caso concreto e à questão agora em apreciação, que aqui cumpre decidir, anotamos que a mesma é em tudo similar a uma outra questão também colocada pelo arguido A..., mas no proc. nº 54/08.1IDVIS-B.C1, na sequência de um despacho do Tribunal Judicial da Comarca de Nelas que, nos termos do disposto no art.8.º, n.º 7 do RGIT, considerou aquele arguido solidariamente responsável pelo pagamento da pena de multa em que foi condenada a sociedade “ A..., Serralharia Mecânica, Lda.”.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 24 de Abril de 2013, relatado pela Ex.ma Desembargadora Dr. Alice Santos (Adjunta nos presentes autos), seguindo a orientação sobre a constitucionalidade tida em consideração no citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1/2013 de 22 de Fevereiro e no acórdão da Relação do Porto de 13/02/2013 ( proc. n.º 103/06.8TAMDL-A.P1)[13], decidiu julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do RGIT quando aplicável ao gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária e, consequentemente, revogar a decisão proferida, determinando que fosse substituída por outra que indefira a pretensão do Ministério Público.[14]

Aderindo aos argumentos ali apresentados diremos também aqui que a responsabilidade solidária do arguido A..., como gerente, acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática do crime de abuso de confiança fiscal, pelo que aqui está em causa, não já transmissão de responsabilidade penal, como sustenta o recorrente, mas a violação do princípio ne bis in idem.

A transferência da responsabilidade penal da “ B..., Lda”, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infracção, corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito, em violação do disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição.

Assente que o n.º7 do art.8.º, do RGIT, é inconstitucional por dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais, nos termos do disposto no artigo 29º, n.º 5, da C.R.P., consideramos que fica prejudicada a análise de constitucionalidade da norma mesma por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

Recusando-se a aplicação do n.º7 do art.8.º, do RGIT com fundamento na sua inconstitucionalidade, mais não resta que revogar a decisão recorrida.

   

            Decisão

        

             Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A..., embora com outro fundamento, e revogar o douto despacho recorrido, ficando sem efeito a ordem de emissão de guias de pagamento em nome do ora recorrente, para proceder ao pagamento da multa aplicada à sociedade “ B..., Lda”.

            Sem custas.


*

                                                                             

Orlando Gonçalves (Relator)

Alice Santos

[1] Neste sentido: ac. do Tribunal Constitucional de 12.03.2009, SILVA, Isabel Marques da, Regime Geral das Infracções  Tributárias,  Almedina,  3.ª  Ed.,  p.  81  e  82,  e  acórdão  da  Relação  do  Porto  de  23.06.2010,  P. 248/07.7IDPRT-A.P1, em www.dgsi.pt.

[2] “Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes”, p. 443-448, citado no ac. da Relação do Porto de 27.05.2009, P. 47/02.2IDPRT-B.P1, disponível em www.dgsi.pt.

[3] Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado”, Áreas Editora, 2001, p. 93.
[4] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt; no mesmo sentido: ac. n.º 35/2011, 129/2009 e 150/2009, todos contrariando  a  jurisprudência  constante  dos  acórdãos  n.ºs  24/2011,  26/2011  e  85/2011,  que  concluíram  no sentido da inconstitucionalidade.
[5]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[6]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[7]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[8] “ Direito Fiscal”, 4.ª edição, Almedina, pág. 284.

[9] Áreas Editora, 2003, pág.s 96 a 98.  
[10] “Responsabilidade Penal das Sociedade e dos seus Administradores e Representantes, págs. 443/448.
[11] In www.tribunalconstitucional.pt.
[12] Cfr. proc. n.º 665/07.2TAMGR.C1, in dgsi.pt. No mesmo sentido, entre outros, foram proferidos os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09-05-2012, proc. n.º 98/07.0IDACB-A.C1; de 17-10- 2012, proc. n.º 142/08.4TACNT; e do Tribunal da Relação do Porto, de 23-6-2010, proc. n.º 248/07.7IDPRT-A.P1, in www.dgsi.pt.



[13] in dgsi.pt/trp
[14] in dgsi.pt/trc