Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
40/12.7TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INVENTÁRIO
BENS NO ESTRANGEIRO
LEI APLICÁVEL
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 25 E 62 DO C. CIVIL
Sumário: 1. No inventário instaurado para partilha da herança aberta por morte de um cidadão com nacionalidade portuguesa podem e devem ser objecto de relacionação e partilha os bens por ele deixados no estrangeiro, sejam eles móveis ou imóveis, atento o princípio da unidade e universalidade da herança.
2. Uma vez que por força do disposto nos art.ºs 25 e 62 do C. Civil tal partilha é regulada pela lei pessoal do “de cujus”, nada obsta a que nesse inventário se adjudiquem aos herdeiros os quinhões que incluam aqueles bens, ainda no Estado em que os mesmos se situem a respectiva decisão não possa ser aí reconhecida e executada.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de inventário para partilha da herança de A..., a correr termos pelo J1, Secção Cível, Instância Local de Cantanhede, Comarca de Coimbra, tomadas declarações à cabeça de casal C..., veio esta apresentar a relação dos bens do inventariado constante de fls. 32-33, de harmonia com o disposto no art.º 1345 do CPC, na versão então aplicável.

Notificado, deduziu o interessado – e filho do inventariado – B... reclamação contra a mesma, nos termos do art.º 1348 do CPC, na qual, além do mais, arguiu a falta de relacionação das “contas bancárias de que o inventariado era titular, sediadas no país do Canadá, cuja quantia se desconhece com rigor, mas que no mínimo ascenderá ao montante de 111.151,81 dólares”.

Respondendo – após a junção pelo reclamante de documento devidamente traduzido proveniente do D... Bank of Canada alusivo à existência de uma conta de depósito pessoal com o saldo de $ 111.151,81 dólares canadianos à data de 12/12/2011 (data da morte do inventariado) – viria a cabeça de casal a confessar a existência dessa conta e saldo, rejeitando, porém, o dever de relacionar tal bem; para tanto invocando, por um lado, a competência da lei do Estado da situação dos bens para decidir do seu destino (Província do Ontário – Canadá) e, por outro, a lei sucessória desse Estado, que lhe atribuiria o direito de propriedade do saldo em questão, sem sujeição a inventariação e partilha.

Por decisão de fls. 77, após se ter considerado que ao caso era aplicável a lei sucessória portuguesa, por ser a correspondente à lei pessoal do inventariado, e que esta impunha a partilha de todos os bens da herança respectiva, como sucederia com o saldo em questão, determinou-se – no deferimento desse ponto da reclamação – a inclusão da pertinente quantia na relação de bens.

Logo interposto recurso deste despacho, não foi, no entanto, o mesmo admitido com base no disposto no art.º 1396, nº 2, e 691, nº 2, do anterior CPC, por força do disposto no art.º 7º do DL 23/2013 de 05/03.

O processo seguiu a tramitação legalmente prevista, com o aditamento à relação de bens do aludido saldo.

Tendo tido lugar a conferência de interessados (cfr. fls. 112), e sido elaborado o atinente mapa da partilha (cfr. fls. 187-188), veio oportunamente a ser proferida sentença homologatória da partilha, com adjudicação dos bens relacionados aos respectivos interessados (cfr. fls. 192).

Interpôs então a cabeça de casal recursoabrangendo tanto a decisão que ordenou o aditamento à relação de bens do saldo da conta do inventariado acima referido (verba nº 6) como ainda a sentença de partilha recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Os pressupostos de facto a ter em consideração são os que defluem do relatório e ainda os seguintes:


1. O inventariado nasceu na freguesia e concelho de Mira.
2. Faleceu no lugar de (...) , Mira, onde residia, no estado de casado no regime de comunhão de adquiridos com a cabeça de casal.  

*

A apelação no que toca ao despacho que ordenou a inclusão na relação de bens do saldo bancário do inventariado no D... Bank of Canada (fls. 77-78).

Nas conclusões com as quais encerra a respectiva alegação a recorrente e cabeça de casal suscita as seguintes questões:

A de saber se o saldo do depósito em nome do inventariado no D... Bank of Canada não deve ser relacionado nem partilhado no presente inventário, atenta a sua condição de bem situado no estrangeiro e a circunstância de os tribunais canadianos se considerarem competentes para a partilha.

Ou se, pelo menos – subsidiariamente, para hipótese de a primeira questão improceder – deve prevalecer o negócio jurídico materializado no “acordo de conta” subscrito pelo inventariado, pela cabeça de casal e pelo D... Bank of Canada no sentido de atribuir a esta todos os activos da conta à morte do inventariado.

Sobre o problema da ordem jurídica aplicável ao tratamento do depósito do inventariado no Canadá.

Envolvendo a partilha da herança do inventariado bens situados no estrangeiro – neste caso o saldo de $ 111.151,81 dólares canadianos do depósito em nome do inventariado no D... Bank of Canada – pode afirmar-se ter sido criada uma relação jurídica com elementos que pertencem uma ordem jurídica diversa da portuguesa, pelo que, ao dar lugar a um conflito de leis internacionais, essa circunstância coloca um problema a solucionar pelas regras de conflito do direito internacional privado.

Importa, por isso, determinar o elemento de conexão relevante para a aplicação de alguma norma ou de algumas das normas de conflitos que se acham plasmadas nos art.ºs 25 e seguintes do C. Civil.

Dispõe-se no art.º 25 deste diploma que “O estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões por morte são reguladas pela lei pessoal dos respectivos sujeitos, salvas as restrições estabelecidas na presente secção”.

Concomitantemente se estatuindo no art.º 62 que “A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste (…)”.

Não há dúvida de que o destino dos bens situados no estrangeiro que integram o acervo patrimonial do de cujus, quaisquer que eles sejam, convoca a aplicação de uma solução no quadro de uma lei de natureza sucessória.

De sorte que, sendo certo que aquele, à data do óbito, tinha, pelo menos, nacionalidade portuguesa, é exclusivamente a esta lei que, como lei pessoal do sujeito, haverá que atender.

Sem embargo de poderem existir normas de direito canadiano a regular especificamente a situação, prevendo a atribuição por morte dos saldos ou valores provenientes de depósitos em instituições bancárias desse Estado – direito que tendo sido oportunamente invocado pelo apelante não foi contudo por ela demonstrado[1] – não aderimos à tese de que, a existência de lei estrangeira exclusiva da aplicabilidade da lei pessoal/nacional do inventariado, e, ao mesmo tempo, a constatação da impossibilidade do reconhecimento naquele Estado estrangeiro da decisão a proferir em Portugal ao abrigo desta lei, são factores que obstam à partilha daqueles bens no presente inventário.

Aderimos aqui ao mesmo ponto de vista que Lopes Cardoso expressou nas suas Partilhas Judiciais, 3ª Ed., Vol. I, p. 444 e seguintes, a respeito da relacionação de bens situados no estrangeiro por sucessões abertas na vigência do actual Código Civil:

“Esta doutrina, inequívoca na aceitação dos proclamados princípios – unidade e universalidade da herança – veio a estabelecê-la o Código Civil vigente que seguindo na esteira do assim proposto, dispôs no art.º 62 que “a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento dele …” e no seu art.º 25 acrescentou que “…as sucessões por morte são reguladas pela lei pessoal dos respectivos sujeitos…”, ou seja pela sua nacionalidade (idem art.º 31,1).

Mais adiante, concordando em que, com esta solução, subsistiria sempre a dificuldade ligada à eficácia da aplicação da lei pessoal no Estado da situação dos aludidos bens, lembrou o mesmo autor a forma como o Prof. Ferrer Correia pretendeu ultrapassá-la no art.º 5º do seu “projecto do Direito dos Estrangeiros” e como essa doutrina não veio a ser acolhida no direito positivado: “Se uma decisão a proferir por um tribunal português, em matéria sujeita a um dos artigos referidos no número anterior, só pode produzir qualquer efeito útil através do seu reconhecimento no Estado da situação de um imóvel, o tribunal observará os princípios de direito internacional privado vigentes nesse Estado, se tanto for necessário e suficiente para assegurar aquele reconhecimento”. Este princípio – o da maior proximidade – não passou, porém, para o Código civil vigente, notando-se contudo ligeira afloração dele no art.º 47.

O que tudo vale dizer que intencionalmente o não afirmou no caso considerado, dessa atitude se depreendendo que a cedência da lei pessoal perante a lex rei sitae” não se justifica nem mesmo no caso de ineficácia daquela lei, à sucessão de bens móveis[2] localizados em países que se atribuam competência para a respectiva partilha”.[3]

E, na verdade, também não vemos razão para não partilhar em Portugal os bens situados no estrangeiro – móveis ou imóveis – de um inventariado de nacionalidade portuguesa.

É que, não obstante a eventualidade do cabeça de casal não conseguir que tais lhes sejam entregues pelo seu detentor, ainda assim não deixam de ser perfeitamente viáveis os actos de relacionar e partir esses bens, que, por essa via, deverão ser adjudicados ao herdeiro ou herdeiros que neles tenham licitado, ou, na ausência de licitação – como sucedeu nos presentes autos e normalmente sucederá – a todos eles em comum e na proporção dos respectivos quinhões.

O que então verdadeiramente pode surgir é apenas uma impossibilidade prática da adjudicação dos bens integrantes dos quinhões que resultam da sentença de partilha. Isto porque através dos tribunais do Estado da situação dos bens não poderá ser efectivamente imposta a respectiva entrega material e em espécie ao herdeiro ou herdeiros a quem porventura hajam sido adjudicados os quinhões por eles compostos.

Todavia, não estão postas de parte duas outras possibilidades: a de aquele a quem for atribuído o direito aos bens pelo Estado da situação querer aceitar e cumprir a decisão do tribunal português; ou, assim não acontecendo, a de o herdeiro ou herdeiros a quem os bens tenham sido adjudicados vir (virem) a responsabilizar (pelo valor desse bens) quem persista em prevalecer-se do direito que a lei estrangeira lhe confira.

Donde que não nos mereça qualquer crítica a decisão de incluir na relação de bens do inventariado o depósito bancário em apreço por apelo ao critério da lei sucessória pessoal.

Sobre o “acordo de conta” que teria sido subscrito pelo inventariado.

Aduz ainda a apelante que a exclusão do saldo bancário em litígio da partilha seria também consequência de um “acordo de conta” expresso nos documentos que juntou a fls. 206-210, acordo que teria sido celebrado entre o inventariado, a apelante e o Banco Canadiano.

Contrato que seria vinculativo para os herdeiros, na medida em que consubstanciaria um negócio jurídico ainda outorgado pelo de cujus e como tal reconhecido em Portugal por força do art.º 31, nº 2, do C. Civil.

Sem fundamento, porém.

Trata-se, desde logo, de uma questão nova, nunca submetida à apreciação e decisão do tribunal recorrido, que não é do conhecimento oficioso, e que, como tal, não pode nem deve agora ser tomada em conta e dirimida no contexto do vertente recurso.

Mas não só.

O aludido “acordo”, na medida em que claramente contem uma disposição que só produziria efeitos depois da morte do inventariado, representa um acto que se repercutiria no âmbito de uma relação sucessória, âmbito que não se localiza no espectro do aludido art.º 31, nº 2, do C. Civil[4]. Dir-se-á que o dito “acordo” se materializou num negócio jurídico em tudo semelhante a um testamento do inventariado, a que acresceu a aceitação do beneficiário e do banco a que respeitavam os valores dispostos.

Daí que seja sempre a lei pessoal do inventariado a regular tal relação.

Também quanto a esta questão improcede, por conseguinte, o recurso.

A apelação relativamente à sentença homologatória da partilha.

O recurso desta sentença é mera decorrência da necessidade de ser interposto pela exigência legal dos já citados art.ºs 1396, nº 2, e 691, nº 2, do anterior CPC, preceitos que só consentiam a impugnação autónoma de decisões interlocutórias prolatadas em processo de inventário – ou seja, à margem do recurso da sentença homologatória da partilha – em hipóteses que aqui se não verificam.

No acervo hereditário que é objecto da sentença homologatória da partilha está naturalmente incluído o saldo bancário que a apelante pretendeu excluir da relação de bens do inventariado.

Uma vez que as questões suscitadas sobre a sentença de partilha são as mesmas que são levantadas a propósito da decisão que incidiu sobre a reclamação da relação de bens, questões que acima já se deixaram resolvidas, esta apelação está igualmente votada à improcedência.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão de fls. 77-78 e, bem assim, a sentença homologatória da partilha.

Custas pela apelante.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins

 


[1] Art.º 348, nº 1, do CC.
[2] Admitimos aqui que se esteja diante de uma gralha, ou que, por mero lapsus calami, o autor tenha querido dizer bens imóveis, já que também o art.º 5º do projecto do Prof. Ferrer Correia que acabara de citar só excepcionava esse tipo de bens da aplicação da lei pessoal.
[3] Em sentido diverso, parece posicionar-se Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Parte Especial, Almedina, 1999, citado pela recorrente, embora se nos afigure que o autor se limitará a dar conta de uma certa tendência jurisprudencial para excluir da partilha os bens sitos no estrangeiro quando a lei do Estado respectivo seja impeditiva do reconhecimento da respectiva partilha em Portugal.
[4] Em rigor, esta norma respeita a negócios jurídicos que devam ser reconhecidos com as respectivas partes ainda vivas.