Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
36/13.1TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
CRÉDITO
INDISPONIBILIDADE
VIOLAÇÃO NEGLIGENCIÁVEL
Data do Acordão: 09/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 30 DA LEI GERAL TRIBUTÁRIA E ART.ºS 17-F/5, 215 E 216 DO CIRE
Sumário: 1. Face à redacção dada ao art.º 30 da Lei Geral Tributária, com o aditamento do seu actual nº 3, pelo art.º 123 da Lei nº 55-A/2010 de 31/12, os créditos fiscais e os créditos da Segurança Social devem considerar-se como indisponíveis, o que significa que, em princípio, não poderão ser objecto de alteração ou transacção nos planos de recuperação apresentados no âmbito de processos de revitalização ou insolvência.

2. Impende sempre sobre o juiz do processo, como garante último da legalidade, nos termos dos art.ºs 17-F/5, 215 e 216 do CIRE, o dever de recusar os planos de recuperação do devedor que nesses processos ofendam a natureza indisponível de tais créditos, independentemente do sentido de voto do Estado ou da Segurança Social, salvo se concluir ser negligenciável a violação dessa intangibilidade para além do condicionalismo que a própria lei tributária admita.

3. Integra o conceito de violação negligenciável, entre outras situações, aquela em que se prevê a dilação – para sessenta dias após o trânsito da decisão homologatória do plano de recuperação – da retoma de um plano de pagamento em prestações acordado com a Segurança Social antes do início do processo de revitalização e entretanto interrompido.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação Coimbra:

A… , LDA, veio requerer no Tribunal Judicial da Comarca de Nelas processo especial de revitalização (PER), ao abrigo das disposições dos art.ºs 17 a 17 I do CIRE com as modificações neste introduzidas pela Lei 16/2012 de 20/04.

Nomeado o administrador judicial provisório e cumprida a demais tramitação, foi submetido à aprovação dos credores um plano conducente à revitalização da devedora, plano esse que contou com o exercício do direito de voto por 11 dos 38 credores oportunamente relacionados; desses 11 credores houve 10 que votaram favoravelmente aquele plano, numa percentagem de 57,87% da totalidade dos créditos reconhecidos e 78,92% dos votos expressos, verificando-se o voto contra do IGFSS, representando o crédito de € 31.851,67, ou seja, 15,46% dos créditos reconhecidos e 21,08% dos votos expressos.  

Remetido ao tribunal o plano de recuperação aprovado e conclusos os autos, foi em 10/07/2013 proferida decisão de não homologação de tal plano de recuperação/revitalização, invocando-se para tanto o disposto nos art.ºs 30, nº 2, da LGT, na redacção dada pelo art.º 125 da Lei nº 55-A/2010 de 31/12, 17-F e 215 do CIRE.

Notificada desta decisão, veio a devedora A…  apresentar o que designou de “Alteração do Plano de Recuperação no tocante ao credor Segurança Social”, alegando que, após aquela, o IGFSS mudara de posição, sendo agora o seu voto no sentido da aprovação do plano de recuperação/revitalização. Juntou para esse efeito o documento de fls. 431 contendo uma sua (dela devedora) proposta de pagamento prestacional da dívida ao IGFSS, sendo tal documento subscrito pelo seu advogado e por um seu gerente. Requereu que, em função dessa nova circunstância, lhe fosse concedido prazo para juntar voto favorável deste credor ou designada Assembleia de Credores para a reapreciação do plano não homologado.

Tomando posição sobre esta pretensão, com data de 26/07/2013 proferiu o Sr. Juiz o despacho de fls. 433-434, no qual, após considerar que a decisão não homologatória configura uma sentença, com a natureza preclusiva do respectivo objecto que decorre do art.º 666, nº 1 do CPC (esgotamento do poder jurisdicional), indeferiu o requerido.

*

Inconformada, veio a devedora A... interpor recurso, visando não a revogação da decisão não homologatória e a sua substituição por outra que homologue o plano de recuperação aprovado, por não haver no caso indisponibilidade do crédito do IGFSS, como ainda do despacho que não atendeu à alteração de voto deste credor, alteração com base na qual sempre se deveria prolatar nova decisão homologatória, ou, pelo menos, designar nova Assembleia de Credores.

Em apreço estão, por conseguinte, dois recursos: o primeiro da decisão não homologatória de 10/07/2013 e o segundo do despacho de 26/07/2013.

Como é óbvio, o recurso do despacho de 26/07/2013 ficará prejudicado com a eventual procedência da apelação da decisão de 10/07/2013.

Além dos factos consignados no relato que antecede, é ainda de relevar o conteúdo do plano de recuperação proposto pelo Sr. Administrador Judicial Provisório no segmento que ora importa, ou seja, no que diz respeito ao tratamento dado ao crédito do IGFSS.

Esse segmento é o seguinte:

“Atento que não há trabalhadores reclamantes de créditos, a primeira categoria a considerar

é “Sector Público” e integra os seguintes credores: Instituto de Segurança Social, IP.

[…].

Para o sector Público a Requerente propõe o pagamento integral dos valores em dívida, em prestações mensais, de acordo com o plano oportunamente acordado com o IGFSS, que a Requerente se propõe retomar no prazo de sessenta dias após trânsito em julgado da medida de recuperação; o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social manterá a hipoteca legal sobre um imóvel da Requerente”.

[…].

A proposta contempla perdão integral de juros vencidos e vincendos para os credores que integram a categoria “fornecedores ou credores comuns”.   

                                                                             *

Apelação da decisão não homologatória (de 10/07/2013).

No ataque que desfere a este veredicto a recorrente pugna basicamente pelo entendimento segundo o qual, dentro de processos como os de insolvência e de revitalização, os créditos fiscais, e, em geral os créditos do Estado, nos quais se incluem os créditos da Segurança Social, estão inseridos numa dinâmica própria de “salvação” da garantia patrimonial de todos créditos, à qual repugnaria a regra da absoluta “indisponibilidade” daqueles específicos créditos, tal como está erigida no art.º 30, nº 2, da LGT.

Por seu turno, a decisão que recusou a homologação do plano de recuperação da devedora e ora recorrente assentou no postulado de que, face à alteração introduzida no art.º 30 da LGT pelo art.º 125 da Lei nº 55-A/2010 de 31/12 (Lei do Orçamento de 2011), a aludida característica de indisponibilidade não desapareceu, e antes foi claramente afirmada também nesses processos, não obstante a finalidade com que foram criados.

Que dizer?

Passada alguma indefinição ou hesitação da jurisprudência sobre o preciso alcance da “indisponibilidade” dos créditos tributários no âmbito do processo de insolvência, o que contendia com a interpretação do que vem proclamado nos art.ºs 30.º/2, 36.º/2 e 3 da LGT e 196.º do CPPT, isto é, com a questão de saber se os créditos do Estado por dívidas fiscais e à segurança social poderiam ser ou não objecto de transacção ou ablação pelo plano de insolvência, nomeadamente contra o voto, isto é, sem o consentimento do Estado ou da Segurança Social, veio a consolidar-se a orientação segundo a qual os fins específicos que estão na base do processo de insolvência justificam um tratamento no mesmo pé de igualdade de todos os credores, nestes estando abrangidos o Estado ou a Segurança Social. De sorte que, em linha com tal orientação, e em termos práticos, nada impediria o ente colectivo que é assembleia de credores de aprovar medidas objectivamente redutoras ou desfavoráveis ao pagamento integral dos créditos destas entidades.

É então que esta jurisprudência, que se achava já num tempo de evidente estabilização, conhece, por assim dizer, o revés do quadro normativo que veio a decorrer dos art. 123.º e 125.º da Lei do Orçamento de 2011 (Lei n.º 55-A/2010, de 31-12).

Tendo-lhe sido aditado um nº 3 pelo art.º 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, o art. 30.º da LGT passou a ter a seguinte redacção:

“Objecto da relação jurídica tributária

1 - Integram a relação jurídica tributária:

a) O crédito e a dívida tributários;

b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;

c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;

d) O direito a juros compensatórios;

e) O direito a juros indemnizatórios.

2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.

A mesma Lei que veio também a incluir no seu art.º 125 a seguinte disposição transitória:

“ O n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”.

Dúvidas não restam, assim, de que, através do diploma orçamental para 2011, o Estado (em sentido amplo) se empenhou em obstar definitivamente a que os créditos fiscais (e da Segurança Social) pudessem ser desfavoravelmente modificados por virtude dos planos de insolvência ou recuperação, ao ponto de com essa intransigência ele próprio poder provocar, objectiva e necessariamente, a frustração de todas as iniciativas conjugadas dos demais credores, obviamente movidos pelo único propósito de propiciar a viabilização económica dos devedores.

Não cabe, porém, ao aplicador do direito iludir essa opção de política económica mas tão só assegurar-se dela e, em consequência, fazê-la cumprir.  

Acentuando justamente a rigidez da posição substantiva atribuída a esses créditos, o art. 17.º-F/5 do CIRE veio, apertis verbis, dar corpo à aludida imperatividade, ao prescrever que “o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação (…), aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos art. 215.º e 216.º.”

Como deflui do art.º 215 do CIRE, a recusa oficiosa da homologação tem designadamente em vista a violação de normas que consagrem a indisponibilidade de certos créditos.

Mas se o aplicador deve respeitar o princípio da indisponibilidade, não o deve fazer cegamente. Não o deve tomar como dogma absoluto e intangível.

Tem de avaliar se porventura com um sacrifício menor, ou de proporção pouco significativa ou menos lesiva dessa intangibilidade, é possível pôr em marcha o objectivo da recuperação.

O critério da lei é o da “violação não negligenciável”. Este critério aponta iniludivelmente para um certo balanceamento do tribunal, de modo que ele seja hábil para, caso a caso, discernir a pequena ou praticamente irrelevante transgressão do valor-indisponibilidade.

Com efeito, e neste tema, art. 215.º do CIRE (para que remete o art. 17.º-F/5 do CIRE) estatui que o juiz deve recusar a homologação em caso de “violação não negligenciável (…) das normas aplicáveis ao seu conteúdo”.

Importa, pois, auscultar aquela que seria a vontade conjectural do legislador na situação concreta.

Julgamos que será negligenciável ou relativamente desprezível para o interesse público, p. ex., uma dilação ligeira nos prazos de pagamento de prestações já acordadas com o titular do crédito.

Como se nos afiguram genericamente não negligenciáveis – se não explícitamente consentidas pelo titular do crédito – quaisquer reduções em percentagem de prestações de capital.

Mas desçamos ao terreno dos factos, ou seja, da situação desenhada nos vertentes autos.

O que aqui se joga é apenas a possibilidade da aplicação de um concreto plano de pagamento previamente acordado com o IGFSS – mesmo que entretanto interrompido – sessenta dias após o trânsito da decisão homologatória.

Note-se que alterações como modificações de prazo ou reduções de juros não estão liminarmente proibidas pelas disposições dos art. 189.º e 190.º do CRCSP, dos art. 80.º e 81.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 03-01, e do próprio art. 196.º do CPPT; os quais “grosso modo” admitem, quando tal for indispensável à viabilidade do contribuinte e este se encontre em processo de insolvência ou recuperação, que seja autorizado o pagamento prestacional da dívida e a isenção ou redução dos respectivos juros vencidos e vincendos.

A indisponibilidade dos créditos fiscais não é toda e qualquer indisponibilidade: a lei admite o acordo ou negociação pela autoridade tributária ou pela entidade responsável pela gestão das verbas da segurança social ainda que com certos condicionalismos ou limites. Verdadeiramente, o que há é uma malha apertada para a disponibilidade. O respeito e o controlo dos requisitos dessa restrita disponibilidade realiza-se, por conseguinte, na observância dos limites impostos pela lei, observância que compete ao tribunal garantir e confirmar, se preciso for sobrepondo-se à vontade manifestada pelo próprio credor (Estado).

A indisponibilidade ou disponibilidade concreta do crédito é uma questão de legalidade em que o credor Estado ou IGFSS não podem ter a única ou última palavra.

O que releva no caso sub judicio é a pré-existência de um determinado acordo aceite pelo credor.

A pergunta que se deve colocar é esta: se o credor IGFSS “pôde” acordar em certos termos com a devedora, porque o negócio respeitava os aludidos parâmetros legais, tem esse mesmo credor justificação (não dizendo autoridade moral) para agora não consentir o renascimento desse mesmo acordo, ainda que com uma dilação inerente ao trânsito da decisão final, apenas porque o mesmo não foi efectivamente cumprido em momento anterior?

Pensamos que não.

Além do mais, no que concerne à homologação do acordo propriamente dito, nem se pode falar aqui de violação negligenciável das normas aplicáveis (ao conteúdo do plano de recuperação): na verdade, se violação pudesse existir, ela já teria ocorrido e seria produto da actividade anterior do próprio credor IGFSS. Como se deixou sublinhado, o acordo prestacional é, em si, legítimo ou permitido, à luz dos normativos acima aludidos. Avulta aqui um problema de boa do IGFSS que transparece no abusivo exercício (art.º 334 do CC) do respectivo direito de voto (redundando num autêntico direito de veto).

Para lá da renovação consensual em que se consubstanciaria a repristinação do anterior acordo de pagamento, está, isso sim, a dilação dos sessenta dias após o trânsito da decisão homologatória para o cumprimento das prestações convencionadas Só que aqui nada sugere que o legislador não tenha admitido um compasso de espera desta índole. Estamos aparentemente diante de uma moratória previsível, aceitável e meramente conexionada com aos efeitos da decisão do processo. Em suma, se violação pode agora haver, ela entra seguramente no conceito do negligenciável.

Não se verifica, portanto, ao menos diante dos elementos visíveis nos autos, qualquer fundamento para a recusa da homologação do plano de recuperação aprovado por força da invocada violação da regra da indisponibilidade do crédito do IGFSS.

Como o próprio nome indica, o processo especial de revitalização não foi criado para pôr os crédito do Estado ou da Segurança Social a salvo da ruína dos devedores mas para a prossecução de outros escopos, a começar pela saúde económica das empresas recuperandas, com reflexo indirecto mas não despiciendo na sobrevivência de fornecedores e de todo tecido empregador envolvido. E muito menos se compreende que estes escopos possam ser arbitrariamente comprometidos quando, tendo a Segurança Social concordado em dado momento com um contrato prevendo um pagamento prestacional, por força da avaliação do circunstancialismo concreto da actividade do devedor, dessa forma abdicando do que seria a normal satisfação do seu crédito, recuse retomar esse contrato, agora no decurso de um processo de revitalização daquele devedor, invocando apenas abstractamente a violação dos princípios da indisponibilidade e da legalidade tributária consagrados nas leis tributárias e na lei fundamental.

Em suma, a ora impugnada decisão de recusa de homologação, porque assente em oposição infundada ou não adequadamente fundada do credor IGFSS, não pode ser mantida.

Atentos os fundamentos explanados, queda prejudicado na sua utilidade o recurso atinente ao despacho de 26/07/2013 constante de fls. 433-434.

Pelo exposto, acordam em:

A – Julgar procedente a apelação interposta da decisão de recusa de homologação do plano de recuperação de 10/07/2013 (fls. 282-284), declarando que nele inexiste violação não negligenciável de regras aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do art.º 215 do CIRE, designadamente de normas imperativas que prescrevem a indisponibilidade do crédito do IGFSS, determinando que a 1ª instância profira decisão que aprecie os restantes aspectos daquele plano, eventualmente com elementos de esclarecimento complementares, concluindo como for de direito;

B – Julgar assim prejudicado o recurso interposto do despacho de 26/07/2013, de fls. 433-434, não conhecendo do respectivo objecto.

Custas a regular a final.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins