Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2297/11.1TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PROCESSO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DECISÃO CONDENATÓRIA
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 58º, DO DECRETO-LEI N.º 433/82, DE 27/10 (REGIME GERAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES E COIMAS)
Sumário: Estatui o art.° 58º, n.º 1, al. c), do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, que a decisão que aplica a coima deve conter “a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão” (isto além dos outros elementos que constam das als. a) e b), do n.° 1, daquele preceito).
Ora, a lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas tem-se entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem para a sentença penal, no art.° 374º, n.º 2, do C. Proc. Penal.

O artigo 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, não exige que o processo contra-ordenacional, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal.

Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

1. No processo de recurso de contra-ordenação n.º 2297/11.1TBPBL do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, em que é recorrente a arguida “W... –, S.A.”, por sentença datada de 7 de Março de 2012, foi julgado parcialmente provido o recurso por si intentado, reduzindo-se a coima aplicada pela autoridade administrativa para o montante de 15.000,00 € (quinze mil euros).
Recorde-se que a decisão administrativa havia condenado a recorrente numa coima no valor de 25.000,00 € (vinte cinco mil euros), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos dos artigos 17° e 37°. n° 1, alínea c) do Decreto-Lei n° 69/2000, de 3 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n° 197/2005, de 8 de Novembro, relativa à execução do projecto de ampliação de uma unidade sujeita a AIA – avaliação de impacto ambiental - sem a necessária DIA (declaração de impacto ambiental).

2. Inconformado, a arguida recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. No recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida em primeira instância, a mesma invocou a nulidade da decisão administrativa, por força do disposto no art. 374.° e 379.°, n.°1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi art. 41.°do Regime Geral das Contra-Ordenações e art. 2.°, n.°1 da Lei n.°50/2006, revista e republicada pela Lei n.°89/2009, de 31 de Agosto, em virtude de a defesa apresentada pela mesma ter sido absolutamente desconsiderada pela entidade administrativa, não tendo sequer sido apreciada no texto da decisão administrativa.
2. No âmbito da defesa escrita apresentada pela Recorrente foi invocado, resumidamente, que a mesma não praticou a infracção de que vinha acusada por falta de preenchimento dos pressupostos da infracção, nos seguintes termos:
· A montagem das instalações destinadas a operações de eliminação de resíduos perigosos não está sujeita a Declaração de Impacto Ambiental, mas apenas a sua laboração;
· A Agência Portuguesa para o Ambiente defende a aplicação do regime jurídico dos CIRVER em relação a algumas unidades a licenciar pela arguida, pelo que será esse o regime aplicável e não o Decreto-Lei n.°197/2005, de 08 de Novembro, invocado pelo IGAQT, o que determina a falta de fundamento legal da presente contra-ordenação.
· Sem prescindir a arguida invocou ainda que sempre actuou com vontade de cumprir a lei e em estreita colaboração com a administração e solicitou que o IGAOT usasse da faculdade prevista no artigo 39•0 do RJCOA e suspendesse a execução da sanção mediante o cumprimento pela arguida de certas obrigações ou que se estipulasse a coima no seu mínimo legal.
· Requereu que fossem inquiridas as testemunhas B... . e ....
3. A decisão administrativa condenatória apenas alude à defesa apresentada pela Recorrente em dois momentos: num primeiro momento, refere de forma vaga e genérica que a prova dos factos teve por base a análise critica e conjugada do “auto de notícia n.°795/2009, do Relatório de Inspecção n.°1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e depoimentos das testemunhas.”; num segundo momento refere expressamente que “em sede de defesa ao ora processo contra-ordenacional, a arguida alega a nulidade do auto de notícia e, consequentemente, da acusação, invocando para o efeito nomeadamente a omissão da fundamentação de facto e de direito.”
4. A decisão administrativa remata a alusão à defesa administrativa apresentada pela Recorrente alegando que “(...) foi a arguida notificada (...) de todos os elementos relevantes para exercer a sua defesa, sendo que constavam da notificação a data e local da infracção, factos consubstanciadores da mesma, bem como o título da imputação subjectiva e ainda o sentido provável da decisão que é a condenação da arguida. A arguida veio efectivamente exercer cabalmente o seu direito de defesa, com base na notificação recebida, pelo que se entende não existir qualquer fundamento para considerar por qualquer forma limitado o direito de defesa.
5. A autoridade administrativa alude à defesa e aos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela arguida de uma forma vaga e genérica, sem explicar como e em que termos os considerou.
6. A autoridade administrativa ignora completamente o conteúdo da defesa administrativa apresentada pela Recorrente uma vez que rebate fundamentos alegadamente invocados pela mesma — como a nulidade do auto de notícia e da acusação, por falta de fundamentação de facto e de direito —, sem que, no entanto, a Recorrente alguma vez os tivesse invocado.
7. O direito de audiência e defesa do arguido no âmbito do processo de contra-ordenação constitui uma forma de o mesmo se pronunciar relativamente à infracção que lhe é imputada e à sanção em que incorre, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos.
8. No âmbito do processo de contra-ordenação, os actos praticados, embora sejam emanados de uma entidade administrativa e, logo, em princípio sujeitos às garantias e regime próprios do direito administrativo, passam a estar regulados pelo regime jurídico do ilícito de mera ordenação social e, subsidiariamente, pelo regime do processo penal.
9. No entanto, tal não significa que o direito administrativo seja completamente ignorado, pelo contrário, é necessário proceder a uma adaptação de princípios, sendo que uma afloração do mesmo é, desde logo, a previsão do direito de audição e defesa do arguido plasmado no artigo 50.°do Regime Geral das Contra-Ordenações, que tem correspondência com princípio da audiência prévia dos interessados, previsto no artigo 100º do Código de Procedimento Administrativo, segundo o qual os administrados têm o direito de se pronunciar em momento anterior à tomada de decisão da administração (ou seja, quando ainda é possível influenciar a mesma) - (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.°1/2003, publicado no Diário da República, 1 Série — A, n.°21, de 25 de Janeiro de 2003).
10. O processo de contra-ordenação constitui uma realidade sui generis que representa um meio-termo entre o tradicional processo administrativo sancionador e o tradicional processo criminal.
11. O direito de audiência e defesa do arguido, quer analisado à luz de princípios administrativos quer analisado à luz do ordenamento jurídico- só se compreende na medida em que faculta ao arguido a possibilidade de fornecer elementos novos que venham influir no itere cognoscendi da Administração, alterando ou conformando a decisão a tomar.
12. Entende a Recorrente que constitui dever da administração pronunciar-se quanto aos elementos fornecidos na defesa apresentada, fazer um juízo crítico dos mesmos e fundamentar a sua decisão final em consideração pelos elementos carreados aos autos pela mesma, sob penal de violação de direitos constitucionalmente garantidos ao arguido penal (artigo 32°, n.°10 da CRP).
13. Entendimento semelhante foi propugnado no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 14.04.2010 e no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 01.06.2005, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
14. A Recorrente invocou aspectos que colocam em causa os pressupostos da infracção imputada e requereu que a administração fizesse uso da faculdade prevista no artigo 39.°do RJCOA, no entanto, a IGAOT ignorou por completo os fundamentos invocados pela Recorrente em sede de direito de defesa.
15. In casu, impunha-se que a Autoridade Administrativa se pronunciasse quanto à bondade dos argumentos invocados e quanto à possibilidade de utilização da faculdade prevista no artigo 39º do RGCOA, mesmo que fosse para afastar esses argumentos ou para negar aplicação do requerido regime de suspensão, tudo o que não foi feito pela IGAOT.
16. O comportamento da IGAOT é ainda mais reprovador, na medida em que inclui na decisão administrativa uma alegada análise à defesa alegadamente apresentada pela Recorrente, defesa essa que NÃO assenta nos argumentos efectivamente invocados pela mesma.
17. Compulsado o teor da sentença ora recorrida, em resposta à invocada nulidade, a Recorrente constata que a Meritíssima Juiz considera que, no caso em apreço “a fundamentação da decisão é mais do que suficiente” e que a falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão de execução da coima constitui uma mera irregularidade, sanável em sede de sentença.
18. Sucede que, a decisão administrativa não se pronuncia quanto à defesa apresentada pela Recorrente, na qual foram alegados factos relevantes, susceptíveis de alterar o rumo da decisão da autoridade administrativa, e foi requerida a suspensão da execução da coima, caso esta viesse a ser aplicada, como veio a ser.
19. A decisão administrativa pronuncia-se, ao invés, relativamente a alegados fundamentos, alegadamente invocados pela Recorrente em sede de direito de defesa, MAS QUE NA REALIDADE NUNCA FORAM PELA MESMA INVOCADOS (!).
20. Dúvidas não podem subsistir de que a decisão administrativa padece de nulidade, por violação do disposto no art. 374.°e 379º, n.°1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi art. 41.°do Regime Geral das Contra-ordenações e art. 2º, n.°1 da Lei n.°50/2006, revista e republicada pela Lei n.°89/2009, de 31 de Agosto, em virtude de a entidade administrativa não ter conhecido dos fundamentos invocados pela Recorrente em sede de defesa administrativa».

3. A Exmª Magistrada do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra.
Conclui assim:
«I. A decisão da Autoridade Administrativa não desconsiderou a defesa apresentada pela Recorrente, na medida em que, e tal como se refere na sentença do Tribunal a quo: “No caso em apreço a indicação das provas é clara por parte da entidade administrativa. Tais provas consistiram, segundo a decisão administrativa, nos seguintes elementos: análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social, do auto de notícia n. 0795/2009 e relatório de inspecção n.º 01861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e do depoimento das testemunhas».
II. O artigo 58º, n.°1, alínea b), do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) apenas exige a indicação das provas e não o seu exame crítico.
III. Assim, omitindo-se a indicação das provas, poder-se-á verificar uma situação de nulidade, no caso de não se assegurar um efectivo direito de defesa ao arguido (nos termos dos artigos 374°e 379°do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do artigo 41.°do RGCO).
IV. Porém, no presente caso, esse efectivo direito de defesa foi garantido, pois, como foi referido na sentença do Tribunal a quo: “a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e a razão por que tais factos lhe foram imputados”.
V. Não estando a Autoridade Administrativa obrigada a admitir a produção de todas as provas indicadas pelo arguido (na sequência da notificação do artigo 50º do RGCO) deve entender-se que admitindo-a não tenha de se pronunciar exaustivamente sobre a mesma — na medida em que quem pode o mais (não admitir a prova) deve poder o menos (admiti-la mas não fazer uma análise crítica).
VI. O que se pretende com a exigência de indicação das provas é que a decisão administrativa se aproxime do artigo 283°, n.°3, alíneas d), e) e 1) do Código de Processo Penal (em que o legislador pretende apenas a indicação das provas e não o seu exame crítico).
VII. Não existe no RGCO um regime especial quanto à fundamentação da decisão da Autoridade Administrativa, ao contrário do que sucede noutras áreas das contra-ordenações, pelo que se o legislador tivesse querido que a Autoridade Administrativa fizesse um exame crítico da prova, tê-lo-ia dito expressamente — como fez, por exemplo, em relação à decisão administrativa do Código da Estrada (artigo 181°, n.°1, alínea b), do Decreto-Lei n.°114/94, de 03 de Maio).
VIII. Por tudo o que foi exposto não foram violados os artigos 374°e 379°do Código de Processo Penal, aplicáveis por remissão do artigo 41.°do RGCO, pois na fundamentação da decisão da Autoridade Administrativa não se exige um “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, não tendo aquela deixado de se pronunciar sobre questões que devia apreciar.
IX. Também não houve violação do artigo 32°, n.°10, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que este artigo não exige que o processo contra-ordenacional, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal (neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de Fevereiro de 2012, já referido na conclusão IV).
X. No que se refere à falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão da execução da coima (artigo 39°do Decreto-Lei n.°50/2006, de 29.08), tal como se refere na sentença do Tribunal a quo, a mesma “não constituiu qualquer nulidade porquanto não prevista no artigo 119° e 120° do C.P.P, nem nos artigos 374°e 379°do C.P.P, o que poderá constituir é uma mera irregularidade, perfeitamente sanável nesta sede aquando da determinação da medida da coima, se a mesma se impuser”.
Termos em que deve ser negado provimento ao Recurso interposto pela sociedade arguida e, em consequência, mantendo a sentença recorrida farão V.as Ex.as JUSTIÇA!».

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento, remetendo, no essencial para a resposta da Colega de 1ª instância.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, n.º 1 e 41º, n.º 1, ambos do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCO), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCO, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto).
Assim, balizados pelos termos das conclusões Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.
formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber se:
- é nula a decisão administrativa por desconsideração da defesa apresentada e por omissão de pronúncia quanto à possibilidade de utilização da faculdade prevista no artigo 39º do RGCOA?

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
«1 - No dia 25 de Setembro de 2009, pelas 09h00m, realizou-se uma acção inspectiva às instalações do estabelecimento denominado “W... –, S.A.”, sito em … Pombal, pertencente à recorrente, e de que é presidente do conselho de administração A...;
2 - A recorrente está em actividade desde 2006 no local objecto de inspecção, e encontra-se inserida num lote de terreno com uma área total de 20.000 m2, dos quais 14583,10 m2 estão impermeabilizados e com 8419,30 m2 cobertos, sendo a propriedade atravessada por um caminho público que divide o pavilhão de armazenagem dos resíduos e
unidade de tratamento de solventes das restantes.
3 - As principais actividades desenvolvidas pela recorrente consistem no armazenamento temporário de resíduos banais e perigosos com vista ao seu posterior envio
para eliminação ou valorização e tratamento de águas oleosas na sua unidade de tratamento de águas oleosas (resíduo perigoso).
4 -Aquando da acção inspectiva aludida em 1) detectou-se que a recorrente estava a
proceder a um conjunto de alterações à sua actividade que consubstanciam um aumento da
capacidade de eliminação de resíduos perigosos para valores superiores a 5 t/dia.
5 - As alterações da unidade consistem concretamente em:
a) Aumentar a capacidade de armazenamento de Resíduos Industriais Banais (RIB's) e diversificação dos códigos da Lista Europeia de Resíduos (LER), para as operações RI 3 e D15, com uma capacidade licenciada para 92920 t/ano pretendendo aumentar 127080 t/ano (capacidade total de 220000 t/ano);
b) Aumento da capacidade de armazenamento de Resíduos Industriais Perigosos (RIP's) e diversificação dos códigos LER, para as operações RI 3 e D15, com uma capacidade licenciada < 5 t/dia pretendendo aumentar para 2500 t/dia;
c) Diversificação dos códigos LER afectos à Unidade de Tratamento de Águas Oleosas e alteração da operação de gestão de resíduos (operações RI 3 e D15), com uma capacidade licenciada para 140 t/dia;
d) Instalação de novas unidades de tratamento e processamento de resíduos, nomeadamente: trituração e lavagem de embalagens (operação R3 de 20 t/dia); unidade de evaporação de solventes contaminados (operação R2 de 33 t/dia); unidade de evaporação de águas industriais (operação D9 de 35 t/dia); unidade de desmantelamento e descontaminação de VFV (operação R3/R4 de 165 t/d ia); e unidade de pirólise (operação R3 de 30 t/dia).
6 -Na data da acção de inspecção aludida em 1) verificou-se que a instalação da unidade de pirólise estava a ser implementada no interior de um pavilhão já existente, tendo
sido iniciada há cerca de um mês e estando instalados cerca de 30% dos equipamentos, designadamente o fundidor, reactor, rectificador, torres de destilação, lavador de gases, permutador, refrigerante aéreo, misturadores e condensadores, estando em falta a parte da instrumentação, linhas de ligação, unidade de ar comprimido, programação e electrificação.
7 -Na data da acção de inspecção aludida em 1) verificou-se que a unidade de evaporação de águas industriais e de evaporação de solventes contaminados estavam na sua totalidade instaladas incluindo a parte eléctrica, estando em falta apenas a ligação ao quadro geral e o sistema de refrigeração;
8 -Não obstante a recorrente ter apresentado o Estudo de Impacte Ambiental (EIA) junto da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) a 11/05/2009, iniciou a execução do projecto sem a prévia apreciação do mesmo e consequente emissão da Declaração de Impacte Ambiental.
9 – O objectivo do EIA consubstancia na integração do projecto no meio envolvente com vista a minimizar os impactes ambientais associados à sua construção, laboração e desactivação.
10 – A autoridade administrativa oficiou a Agência Portuguesa do Ambiente através do ofício n°21491/09, de 13 de Novembro, no sentido de ser avaliado o enquadramento da situação detectada.
11 -Ao solicitado em 10) foi enviada resposta através do ofício S-012949/2009 de 2009/12/04, o qual refere que:
“Na sequência do V/ ofício n° 21491/09, de 13 de Novembro, cumpre informar que:
-A instalação é detentora de um Alvará de Licença, emitido pela Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional do Centro em Outubro de 2007, para recolha, triagem e armazenagem de resíduos perigosos e não perigosos;
-Foi enviado em 12 de Junho de 2009, através da CCDR, o pedido de licenciamento ambiental e o pedido de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) O procedimento de licença ambiental não foi iniciado e o de AIA foi extinto, atendendo á necessidade de clarificar previamente qual a entidade licenciadora, bem como, quais os novas unidades de gestão de resíduos perigosos a licenciar, abrangidas pelo regime de licenciamento dos centros integrados de recuperação e valorização e eliminação de resíduos perigosos (CIRVER) - Decreto-lei n° 3/2004, de 6 de Janeiro;
-No âmbito do procedimento de AIA foi efectuada uma audiência prévia do interessado e posteriormente dadas respostas às alegações apresentadas nesta fase;
-Foi realizada, em Agosto, uma reunião entre o operador e as entidades com competências de licenciamento (APA e CCDR-Centro), tendo sido reiterada a necessidade de expurgar do projecto as unidades a licenciar, abrangidas pelo Decreto-Lei n° 3/2004, pelo que, esta Agência iria proceder à sua análise técnica mais exaustiva para o efeito.
Salienta-se que, no contexto de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) que se pretende constituir como o instrumento de carácter preventivo da política de ambiente, o início das construções apenas podem ocorrer após a conclusão de todo o procedimento e na posse de Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável ou favorável condicionada, documento imprescindível, para se apresentar junto da entidade competente, para a autorização da obra. Face ao exposto e como é certamente entendível, a APA enquanto autoridade nacional para AIA e para a gestão de resíduos rege as suas tomadas de decisão no estrito cumprimento da lei, pelo que situações de incumprimento por parte dos proponentes devem ser objecto de actuação pelas autoridades competentes."
12 - A autoridade administrativa contactou a directora da qualidade daquele estabelecimento, B... ..
13 - A arguida declarou em sede de IRC referente ao ano de 2008, um lucro tributável de € 353.893,51, e em sede de IES um resultado líquido do exercício de € 357.730,16.
14 -O objecto da recorrente é a "recolha e transporte de resíduos industriais, transformação de resíduos biodegradáveis e transporte rodoviário de mercadorias”.
15 -Ao proceder à execução do projecto de ampliação da sua unidade sem a necessária Declaração de Impacte Ambiental, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz.
16 - A recorrente apresentou processo de licenciamento ambiental em 29.08.2008 na Direcção Geral de Economia, tendo esta entidade declarado que não era competente e que o processo teria de ser apresentado na CCDR do Centro, o que foi feito a 11 de Maio de 2009.
17 - A CCDR do Centro remeteu oficiosamente o processo de licenciamento ambiental para a APA, por considerar que esta era a entidade competente para a elaboração do estudo de impacte ambiental.
18 -A APA remeteu à recorrente um fax datado de 21 de Agosto de 2009 onde consta que aquela entidade mantém o parecer de que a recorrente pretende, além do mais, instalar unidades do tipo da dos CIRVER, bem como um tratamento físico-químico a realizar na Unidade de Tratamento de Águas Oleosas, o qual está abrangido pelo Anexo I do RJAIA (Decreto-Lei n° 197/2005, de 8 de Novembro). Mais informam que face ao exposto o presente procedimento de AIA será encerrado de acordo com o artigo 112º do CPA.
19 - Em carta datada de 14.12.2009, constante de fls. 200, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, dirigida pela APA à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, consta “a necessidade expurgar o projecto as unidades a licenciar, dado que o licenciamento se encontra vedado a novas unidades ou de Centros Integradores”.
20 - A fls. 202 dos autos consta carta remetida pela APA à recorrente, datada de 20.04.2011, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
21-Do cadastro ambiental da recorrente constam averbadas condenações no pagamento de coimas, nos montantes de 2500,00 €, 4.000,00 €, 3.500,00 € pela prática de contra-ordenações, p. e p. pelos DL n.º46/94, de 22.02, DL 239/97, de 09.09, DL por factos praticados em 09.10.2006, 17.02.2005, 16.02.2004.
22 - Do cadastro ambiental da recorrente consta a menção da existência de processos pendentes de decisão de impugnação judicial».
2.2. É este o FACTO NÃO PROVADO:
«a) a arguida face à demora do processo de licenciamento viu-se impelida a iniciar a construção sob pena dos materiais de deteriorarem».

2.3. Assim se fundamentou esta convicção factual:
«Na formação da sua convicção o Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi apreciada segundo o princípio da livre convicção e as regras da experiência comum.
Para a formação da convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada contribuíram de forma decisiva as declarações de Rodrigo Filipe Dias Ferreira, inspector do DGAT, o qual, de forma isenta, descomprometida, credível declarou que elaborou o auto de notícia de fls. 6 a 8 dos autos, cujo teor confirmou na íntegra, reproduzindo o que efectivamente constatou na data da acção inspectiva quanto à instalação das unidades descritas nos factos dados como provados.
Mais esclareceu que a recorrente edificou tais instalações, quer a unidade de pirólise quer a de solventes sem ser portadora de DIA (Declaração de Impacto Ambiental), a qual se mostra legalmente necessária para ambos, devendo sempre proceder a execução do projecto que a recorrente pretendia levar a cabo nas suas instalações, o que foi confirmado até pelo teor do ofício de fls. 289 dos autos.
Mais explicou que foi a falta de expurgação por parte da recorrente de alguns elementos do projecto submetido a apreciação que conduziu à deserção do processo de avaliação de impacte ambiental o que é confirmado pelo teor de fls.240 a 245 dos autos, onde consta um fax da Agência Portuguesa do Ambiente dirigido à recorrente datado de 21 de Agosto de 2009.
As testemunhas arroladas pela recorrente, a saber, B..., engenheiro do ambiente, na recorrente desde 2009; C..., funcionário da recorrente, técnico de instalações eléctricas, D…, engenheiro químico, há 9 anos na W..., e o próprio legal representante da recorrente, E…, o qual exerce as suas funções desde 2011, anuíram todos que a recorrente tentou fazer as duas coisas ao mesmo tempo, licenciamento e estudo de impacto ambiental, porque a recorrente sempre pensou que podia começar a implantar as construções antes de obter a DIA. A maior parte destas testemunhas coloca como tónica da defesa as dificuldades na interpretação da legislação, todavia, a verdade é que da ignorância de lei não aproveita ninguém e temos de pressupor como ponto assente que o legislador se soube expressar bem. E a verdade é que a lei em apreço, conforme infra se expandirá é clara na necessidade de obtenção de DIA previamente à execução de qualquer projecto, o que bem se compreende se tivermos em conta a própria noção de impacte ambiental e os fins visados com a legislação em apreço.
No entanto, não podemos esquecer é que as próprias testemunhas referidas, designadamente a primeira, declarou de forma expressa que sabia que estavam abrangidos pelo RAIA até determinadas toneladas.
A circunstância de a terceira testemunha referida ter declarado que taxativamente as autoridades administrativas aceitaram e sabiam que as unidades estavam a ser instaladas, ninguém lhes tendo dito que tal não era possível, não desonera de modo algum a recorrente de ter tomado previamente à edificação das instalações todos os cuidados necessários para saber se o podiam ou não fazer.
E a verdade é que é convicção do Tribunal que apenas posteriormente à decisão já tomada de iniciar a execução do projecto é que a recorrente procurou indagar se tal se mostrava possível ou não, uma vez que as testemunhas declararam que começaram a instalação em 2008.
Para a convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada contribuiu ainda de forma decisiva toda a documentação junta aos autos, designadamente, auto de notícia, relatórios, fls.54 a 89, cadastro ambiental de fls.225 a 227 dos autos; 239 a 266, 289, 193 a 203 dos autos.
A factualidade não apurada resultou da ausência de prova que a permitisse sustentar porquanto nenhuma testemunha prestou depoimentos credível sobre tais factos ou nem aos mesmos se referiu».

3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).
Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, n.º 1, do CPP, ex vi do artigo 74.º, n.º 4 do mesmo RGCO, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.
De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410.º do CPP.


3.2. Vícios do artigo 410º do CPP (ex vi do artigo 74º/4 do RGCO)

3.2.1. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente a sentença recorrida, à luz dos vícios de conhecimento oficioso previstos no artigo 410º do CPP.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º n.º 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Como bem acentua o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cf. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt; Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá AINDA dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.
Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.
E, para cúmulo dos cúmulos, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

3.2.2. Repete-se: apenas se pode conhecer, nesta instância, os vícios do artigo 410º/2 do CPP se os mesmos decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Ora, acontece que, lida a sentença recorrida, não vislumbramos nela qualquer vício do artigo 410º/2 do CPP, na medida em que não existe qualquer problema na matéria dada como provada pelo tribunal recorrido – ela vale por si e nada se deixou de apurar, apenas discordando a recorrente da conclusão jurídica fáctica a que o tribunal recorrido chegou.
Se assim é, então estão assentes os factos descritos em II. 2.1.
Diga-se ainda que neste campo contra-ordenacional (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, Tomo II, págs. 134 e ss), o julgador que julga em 1.ª instância a impugnação judicial de autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.
O que releva e interessa é que em qualquer das situações o Tribunal não proceda à alteração substancial dos factos constantes da acusação, sob pena de cerceamento das garantias de defesa do arguido.
O Juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da autoridade administrativa não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.
Mesmo no recurso da decisão judicial que for lavrada, o Tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida - art.º 75.º, n.º 2, al. a).
Essa faculdade de não estarem os tribunais de 1.ª e de 2.ª instância absolutamente vinculados ao texto da acusação no processo de contra-ordenação tem justificação no facto de não se estar perante um processo criminal, mas de mera ordenação social e de a entidade que aplica a coima ser administrativa, não especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal.
Procura-se, assim, que as entidades judiciais que venham a tomar conta do caso possam mais facilmente atingir a verdade material.
Em conclusão: os factos estão assentes, inexistindo qualquer vício factual na sentença recorrida.

3.3. NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA

a)- Decidiu assim o tribunal recorrido as nulidades invocadas em sede de impugnação judicial da decisão administrativa e depois reiteradas em sede de julgamento:
«Das Nulidades:
A) Do alegado vício de que o auto de notícia e o despacho que o confirmou não contêm os elementos de facto que permitem imputar a uma determinada conduta à arguida, por falta do elemento subjectivo, assim violando o disposto no artigo 49º, n.º1 da Lei n.º50/2006, republicada pela Lei n.º89/2009, de 31 de Agosto.
Se analisarmos o auto de notícia e o despacho que o acompanhou aquando da notificação à recorrente para exercer o seu direito de defesa em sede administrativa verificamos que a alegação da recorrente soçobra, na medida em que, neste último se faz constar expressamente que a prática da contra-ordenação lhe estava imputada a título doloso – cfr.fls. 4 a 8 dos autos.
Aliás, em sede de defesa perante a autoridade administrativa a própria recorrente faz menção a tal facto (cfr. ponto 3 de fls.44), pelo que o auto de notícia e o despacho que o confirmou não padecem de qualquer nulidade.
Termos em que, sem necessidade de mais considerações, se julga improcedente a nulidade invocada.
*
B) Do alegado vício de falta de fundamentação de facto e de direito da decisão administrativa
O aparecimento do direito das contra-ordenações ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, etc., tornando necessária a concretização das injunções normativas daí decorrentes, e convertendo-as em regras efectivas de conduta, com um quadro específico de sanções.
Porém, tal não pôde fazer-se com recurso ao alargamento do direito criminal, pois acarretaria uma perda irreparável da sua força de persuasão e prevenção, derivada da impossibilidade de mobilizar preferencialmente os recursos disponíveis para as tarefas de prevenção e repressão da criminalidade mais grave, daquela que põe em causa a segurança e a integridade física dos cidadãos (cfr., neste sentido, o Preâmbulo do D.L. n.º 433/82, de 27/10).
Assim, o ilícito de mera ordenação social apresenta divergências em relação ao ilícito criminal, quer devido à natureza dos bens jurídicos protegidos quer devido à respectiva ressonância ética, sancionando condutas denominadas de “eticamente neutras”.
No entanto, o legislador consagrou, no domínio dos ilícitos de mera ordenação social, princípios comuns, relacionados com as garantias de defesa dos cidadãos constitucionalmente consagradas, conforme decorre clara e exemplificativamente, do disposto nos arts. 2º e 3º do D.L. n.º 433/82, de 27/10, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 244/95, de 14/09, e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12.
Desde logo, o legislador, ao definir contra-ordenação como o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima (art. 1º do D.L. n.º 433/82, de 27/10, com a redacção introduzida pelo D.L. n.º 244/95, de 14/09, e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12), estabeleceu como seus elementos constitutivos, a existência de um facto típico, ilícito, culposo, punido por lei com uma coima, exigindo ainda, à semelhança do que sucede no direito penal, um nexo de imputação de determinada infracção ao seu agente, corolário do princípio nulla poena sine culpa. É o que resulta, sem mais, do disposto no art. 8º, n.º 1 do diploma citado, ao prescrever que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
E ainda, no que concerne à determinação da medida da coima, refere o art. 18º, n.º 1 que a mesma far-se-á em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
Se as considerações expostas relevam ao nível substantivo, ao nível processual dispõe o art. 58º, n.º 1 do D.L. n.º 433/82, de 27/10, com a redacção introduzida pelo D.L. n.º 244/95, de 14/09, e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12, que: a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a identificação dos arguidos; a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; a coima e as sanções acessórias”.
Tais requisitos previstos para a decisão condenatória do processo contra-ordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com “um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão” (neste sentido, vide Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2.ª edição, 2002, Vislis Editores, pág. 334).
Ora, tais exigências deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício dos seus direitos de defesa.
À semelhança do que sucede também no processo penal, e decorre do princípio constitucional ínsito no art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, também as decisões proferidas no âmbito dos processos de contra-ordenação, seja a decisão da autoridade administrativa, seja a decisão judicial em caso de recurso, têm obrigatoriamente de ser fundamentadas.
E tal compreende-se, obviamente, não só pelo facto de tais decisões terem um destinatário, que tem de compreender e interiorizar o seu teor e alcance, como também para obviar à sua arbitrariedade, o que apenas será perceptível se das mesmas resultar evidente a opção da autoridade, administrativa ou judiciária, por determinada sanção.
Assim, a decisão administrativa condenatória deve, por referência ao artigo transcrito e aos artigos 374º e 379º do Código de Processo Penal (C.P.P.), conter uma descrição dos factos que permitam satisfazer o preenchimento da conduta tipificada como ilícita, querendo com isso significar que os factos relevantes devem apresentar-se de forma naturalística e não jurídica, genérica ou conclusiva.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.09.2006 disponível em www.dgsi.pt, “a indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do artigo 58º, n.º1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com um direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a esses tipos de processos essas garantias (artigo 32º, n.º10). Entre essas garantias mínimas de defesa avulta a de serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois que sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”.
No caso em apreço a indicação das provas é clara por parte da entidade administrativa.
Tais provas consistiram, segundo a decisão administrativa, nos seguintes elementos: análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social, do auto de notícia n.º795/2009 e relatório de inspecção n.º1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e do depoimento das testemunhas.
É certo que algumas das provas foram indicadas por remissão.
Todavia, o artigo 58º não exclui que a indicação das provas se possa fazer por remissão (cfr. expressamente neste sentido os Acs da Rel. do Porto de 20-10-1999, proc.º n.º 10619 in www.trp.pt, da Rel. de Lisboa de 22-5-2002, proc.º n.º 3501/02-4 citado in Simas Santos -Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006 e da Rel. de Évora de 14-1-2003, Col. de Jur., ano XXVII, tomo 1, pág. 258; sobre a admissibilidade da remissão se pronunciaram igualmente os Acs da Rel de Lisboa de 24-5-2006, proc.º n.º 3362/06-3ª, rel. Carlos Sousa, e de 13-10-2005, proc.º n.º 7612/05-9ª, rel. Carlos Benido, ambos in www. pgdlisboa. pt e o Ac. da Rel. do Porto de 20-12-2006 (remissão para o auto de notícia), este último in www.dgsi.pt).
É verdade que na decisão administrativa em causa, no que concerne à materialidade dos factos que são imputados à arguida não foi feito o exame crítico da prova a que alude o n.º2 do artigo 374º do Código de processo Penal.
No entanto, não obstante a posição supra transcrita (no sentido de que o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá consubstanciar nulidade nos termos do artigo 379º do Código de processo Penal), a verdade é que mesmo assim não vislumbramos a necessidade de tal exame.
Primeiro porque o citado artigo 58º não exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas (no sentido de que a fundamentação das decisões administrativas se basta com a indicação das provas, não sendo exigível o seu exame crítico, contrariamente ao que ocorre com as decisões judiciais, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10-7-2003, proc.º n.º 903/03, rel. Maria Augusta).
O que o artigo 58º da RGCO visa que é assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Daí que conforme sublinham os Conselheiros Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58º “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”(Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006, p. 387).
Ou seja, mesmo para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá configura uma nulidade nos termos do artigo 379º do Código de Processo Penal, temos de admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença. O que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa” (neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 4-6-2003, C.J., ano XXVIII, T.3, p.40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2003, processo n.º1223/03, in www.trc.pt) e Acórdão da Relação de Guimarães de 24.09.2007, Desembargador Cruz Bucho, processo n.º1403/07-1, disponível em www.dgsi.pt.).
Mais acresce que a fundamentação deve ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir, e, no caso dos autos, a questão reveste simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se torne clara para a arguida, como, de resto, para qualquer cidadão.
No caso concreto, a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e a razão por que tais factos lhe foram imputados.
A falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão da execução da coima (artigo 39º do Decreto-Lei n.º50/2006, de 29.08), não constituiu qualquer nulidade porquanto não prevista no artigo 119º e 120º do C.P.P, nem nos artigos 374º e 379º do C.P.P, o que poderá constituir é uma mera irregularidade, perfeitamente sanável nesta sede aquando da determinação da medida da coima, se a mesma se impuser.
Nos termos e com os fundamentos expostos entendemos que inexiste qualquer falta de fundamentação da decisão administrativa, pelo que naturalmente, improcede a nulidade invocada pela recorrente.
*
C) A contradição insanável da fundamentação da decisão recorrida
Como se referiu no Acórdão do STJ de 2000/Fev./17 [BMJ 494/227] "A contradição insanável da fundamentação verifica-se quando é dado provado e não provado o mesmo facto", acrescentando que "Não se integra na contradição insanável o não ter sido provado que um certo facto é verdadeiro ou falso, bem como a não prova da veracidade dos factos em causa não provarem a sua falsidade ou ainda a não prova da falsidade não acarretar a veracidade dos factos".
Passando para a segunda variante e como se alude no Ac. do STJ de 1998/Nov./24 [BMJ 481/350] "A contradição insanável da fundamentação é um vício ao nível das premissas, determinando a formação delituosa da conclusão; se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível".
Perscrutando as alíneas e) e m) dos factos dados como provados na decisão administrativa não verificamos a existência de qualquer contradição insanável nos moldes supra-expostos, sendo certo que o alegado pela recorrente depende da subsunção dos factos ao direito, o que infra se realizará.
Termos em que improcede igualmente a nulidade invocada.
*
Inexistem nulidades.
*
Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.
A instância mantém-se válida e regular
(…)».

b)- Como tal, a defesa deixa cair as 1ª e 3ª nulidades, reiterando em sede de recurso a 2ª nulidade já atrás invocada e decidida desta forma pelo tribunal recorrido.
Invoca a recorrente que a decisão administrativa absolutamente desconsiderou a defesa apresentada e que nem sequer opinou sobre a possibilidade do uso do mecanismo do artigo 39º da Lei n.º 50/2006, de 29/8 (suspensão da execução da coima Tal normativo prescreve que:
«1. A autoridade administrativa que procedeu à aplicação da sanção pode suspender, total ou parcialmente, a sua execução.
2. A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a saúde, segurança das pessoas e bens e ambiente.
3. O tempo de suspensão da sanção é fixado entre um e três anos, contando-se o seu início a partir da data em que se esgotar o prazo da impugnação judicial da decisão condenatória.
4. Decorrido o tempo de suspensão sem que o arguido tenha praticado qualquer contra-ordenação ambiental, e sem que tenha violado as obrigações que lhe hajam sido impostas, fica a condenação sem efeito, procedendo-se, no caso contrário, à execução da sanção aplicada».
).

c)- Uma palavra inicial sobre este ilícito de mera ordenação social.
Estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal.
Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.
Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra ordenação).
Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCOC), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.
As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.
No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCOC), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.
O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.
Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.
«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, n.ºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).
Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt).
No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.).
Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas.
O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o n.º 3 do artigo 1.º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCOC).
No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que:
«O aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.
Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.
A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».
O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.
O DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, e 17.º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19.º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21.º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27.º-A e 30.º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50.º, 53.º, 58.º, 59.º, n.º 2, 68.º e 72.º-A)».
A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7.º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.).
Assim sendo, o DL n.º 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.
Assim mesmo dispõe o artigo 32.º:
«Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal».
Note-se que o regime original do DL 433/82 veio a ser revisto pelos DL 356/89 de 17/10 e 244/95 de 14/9 (já aqui aludido) e pela Lei n.º 109/2001 de 24/9.
Não o ignoramos - as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.
Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, n.º 10, da CRP e art. 50º do RGCOC).
Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC.
Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.
Desta forma, são aplicáveis no processo contra-ordenacional as normas do artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP.
Falou-se em fase administrativa do processamento das contra-ordenações.
Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário.).
Decidiu o Acórdão do STJ n.º 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito:
«O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33.º do regime geral das contra-ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41.º, n.º 1).
Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas».

d)- O artigo 58.º do RGCOC estatui sobre os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa condenatória.
Tal decisão, que aplica a coima ou as sanções acessórias, deve conter:
· a identificação dos arguidos;
· a identificação dos factos imputados com indicação das provas obtidas;
· a indicação das normas segundo as quais se pune
· a fundamentação da decisão; a coima e as sanções acessórias;
· a informação de que a condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º e que em caso de impugnação judicial o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham mediante simples despacho;
· e, ainda, a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de dez dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão e a indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.
Como se vê, a estrutura da decisão administrativa aproxima-se, de forma muito aparentada, da estrutura da sentença penal, assente o teor do artigo 374.º do Código de Processo Penal (divisão da sentença penal em três partes: relatório, fundamentação e dispositivo).
Emergindo o dever de fundamentação directamente do artigo 205.º da CRP, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático, o direito a conhecer as razões do sancionamento é comum quer ao processo criminal quer ao processo de contra-ordenação.
Recorde-se:
Estatui o art.° 58º/1 c) do RGCO que a decisão que aplica a coima deve conter “a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão” (isto além dos outros elementos que constam das als a) e b) do n.° 1 daquele preceito).
Ora, a lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas tem-se entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem no art.° 374º/2 do CPP, pelas seguintes razões:
1º- por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito criminal Sobre esta consideração, é profusamente explícito o Acórdão da Relação do Porto de 1/10/2008 (Pº 0843223), lido em www.dgsi.pt –, onde se deixou escrito o seguinte:
«Então, o que há que apurar é se do RGCO resulta que a data da audição das testemunhas não tem que ser comunicada ao arguido durante a fase administrativa.
Tendo presente o CPP e o regime das contra-ordenações, é fácil ver que se trata de procedimentos muito diferentes, sujeitos a regras também muito diferentes.
Uma regra do procedimento contra-ordenacional claramente distinta da do processo penal consta do art. 44º e dispõe que no processo de contra-ordenação as testemunhas não são ajuramentadas. Esta é uma diferença essencial e tem que ser entendida no sentido de a lei estar a transmitir a mensagem de que os processos são muito diferentes, como diferentes são as exigências formais e substanciais a cumprir.
Ao chamarmos a atenção para as diferenças de regimes não queremos dizer, evidentemente, que no processo de contra-ordenação o arguido é desprotegido. Claro que assim não é pois que a garantia de defesa dos seus direitos tem assento constitucional. Efectivamente, conforme determina o art. 268º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, «é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas».
Entendemos que este direito está devidamente salvaguardado no diploma, através do direito de audiência e do direito de assistência por defensor, direito este que não equivale à sua presença necessária a todos os actos isto, claro está, no que respeita à fase administrativa do processo, que é aquela que aqui está em causa.
Mas, em sentido contrário, podemos esgrimir com o preceituado no art. 46º, n.º 1, defendendo que ao determinar que todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pela autoridade administrativa têm que ser comunicadas, a norma impõe, então, a notificação do despacho que designa data para a inquirição das testemunhas.
Sendo certo que é um entendimento possível, não concordamos com ele.
Repetindo, o processo penal e a fase administrativa do processo contra-ordenacional são processos muito diferentes, sujeitos a regras diferentes porque as situações tuteladas são, também, muito diferentes. Transpor as regras daquele para este, sem mais, apenas por as situações não estarem previstas leva, fatalmente, a um desvirtuamento deste processo, tudo em frontal oposição com as suas características próprias.
Isto por um lado.
Por outro lado, o que a norma do art. 46º pretende é assegurar o pleno exercício dos direitos de defesa e estes ficam devidamente salvaguardados, neste específico processo e nesta fase concreta, com o direito de audiência.
Assim, e em conclusão, diremos que não é pelo facto de determinadas situações não estarem expressamente previstas que temos que transpor para o processo contra-ordenacional todas as normas do processo penal. Isso significaria adulterar a natureza específica do processo contra-ordenacional, introduzindo-lhe regras pensadas para situações completamente diferentes, principalmente quando ainda estamos em sede de fase administrativa, engrossando o seu normativo e tornando o processo fatalmente menos ágil».
(são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa);
2º- por outro lado, porque aquela decisão administrativa, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.° 62º/1 do DL 433/82, de 27/10).
Não faz, assim, qualquer sentido que a decisão administrativa - que em caso de impugnação se converte em acusação - tenha que obedecer aos requisitos da sentença penal, como se tal acusação tivesse que obedecer a um rigor de fundamentação igual ao da sentença penal.
Por fim, seria incongruente e destituído de sentido que a fundamentação estabelecida no art.° 58 n.° 1 al. c) do DL 433/82 tivesse a amplitude prevista no art.° 374º, n.° 2 do CPP, no que à fundamentação da sentença respeita, quando naquele se estabelecem outros elementos que deve conter a decisão administrativa - essa exigência não faria sentido se ao dever de fundamentar que aí se prevê se atribuísse o alcance que resulta do art.° 374º, n.° 2 do CPP, retirando sentido à exigência contida nas als. b) e c) daquele art.° 58º.
No fundo, essa fundamentação, tal como é estabelecida no art.° 58º do RGCO, será suficiente desde que se justifique as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.
Ora, na nossa situação, constam da decisão administrativa todos os elementos exigidos pelo art.° 58º/1, sendo clara a razão pela qual veio a ser a arguida condenada com uma coima (constando também na parte decisória as normas jurídicas que pela mesma foram violadas e o montante da coima em que foi condenada, por violação das normas que ali são indicadas, e a forma como foram cometidas, ou seja, todos os elementos necessários para que a arguida pudesse exercer, como exerceu, o seu direito de defesa).
O que se pretende é que o arguido saiba as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a sua impugnação por meio de recurso e, já na fase judicial, ao tribunal de recurso conhecer o processo de formação da decisão recorrida.
No fundo, e aludindo ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 1/2003, publicado no DR-I-A, de 25-01-03, rectificado pela Declaração de Rectificação n° 70/2008, de 26/11 Nele se determinou, a certo passo, que:
“IV- Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.°, n.° 3, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 42.°, n.° 2, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 20 dias após a notificação (artigos 205.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41º, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.°, n.° 3, alínea c), e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações».
Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenaçõesJ. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada (artigos 121.°, n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações).
, não poderemos dizer que a autoridade administrativa não forneceu TODOS os elementos necessários para que a arguida ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, tendo sido, ao contrário, informada a arguida do necessário para se poder – bem – defender.
Não nos esqueçamos que foi feito um julgamento, não tendo havido uma decisão por mero despacho - na decisão por despacho, e no que concerne à matéria de facto, ter-se-á de ter por assentes os factos que na decisão administrativa são imputados ao arguido na medida em que este, renunciando à audiência de julgamento, se conformou com a matéria de facto dada como assente naquela decisão (cfr. Ac. Relação do Porto de 24 de Janeiro de 2007, proc. nº 0615898, in http://www.dgsi.pt), sendo esses os factos a atender no recurso, até porque perante o julgador que dele vai conhecer, nenhuma prova foi produzida, que pudesse levar à consideração de outros (na verdade, se o juiz entende que deve decidir através de despacho está implicitamente a admitir que a prova produzida na fase administrativa é suficiente para a decisão, sendo irrelevantes outros factos que não aqueles que ali resultaram provados - cfr. Cons. Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 171).
Ora, no nosso caso, houve julgamento, tendo-se aferido todos os factos narrados pela acusação e pela defesa.

e)- Concordamos com a tese que defende que a inobservância do disposto no artigo 58º/1 do RGCOC configura uma nulidade e não uma mera irregularidade.
Por exemplar, transcreveremos aqui parte do sentenciado pelo Acórdão do STJ de 29/1/2007, no Pº 06P3202:
«Embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contra-ordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita á enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas.
A função dos elementos da decisão no procedimento por contra-ordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso.
A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respectivos destinatários.
Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um acto que não suporta todos os elementos necessários à sua validade.
A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
Dada a natureza (sancionatória) do processo por contra-ordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contra-ordenação) aproximam-na de uma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da Administração que contenha um acto administrativo.
Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.
A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação - interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão.
Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão - são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua da aplicação das normas chamadas a intervir.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58º, nº 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efectivo com o adequado conhecimento dos factos imputadas, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não directa quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41º do RGCOC sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374º, nº 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias».
Contudo, analisado ao aresto em causa, constatamos que, no caso, nem sequer factos provados e não provados existiam na decisão administrativa, o que gera indubitavelmente tal vício supremo.
Note-se que também no Acórdão da Relação do Porto de 1/6/2005, aludido na argumentação do presente recurso, se entendeu que a «preterição do direito de defesa no processo de contra-ordenação constitui nulidade insanável» - no entanto, nesse caso foi absolutamente olvidada e desconsiderada a defesa escrita do arguido por se ter entendido ter sido ela extemporânea (como tal, compreende-se a nulidade pois ajuizou-se que se estava perante um caso de inexistência de defesa, o que não correspondia à verdade pois, sendo afinal tempestiva a defesa, existiam novos factos que urgia apurar).
No nosso caso, há fundamentação tida por suficiente, como bem aferiu a decisão recorrida, opinando nós também que não se mostra necessária, neste campo contra-ordenacional, uma análise crítica de toda a prova, bastando-se a lei com a sua enumeração (se o exigisse, o artigo 58º/1 tê-lo-ia expressamente dito, como o fez o artigo 374º/2 in fine do CPP e, no que tange à decisão administrativa do Código da Estrada, o artigo 181°, n.°1, alínea b), do Decreto-Lei n.°114/94, de 03 de Maio).
Decidiu o tribunal recorrido que a indicação das provas é clara por parte da entidade administrativa, consistindo elas nos seguintes itens:
- «análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social, do auto de notícia n.º795/2009 e relatório de inspecção n.º1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e do depoimento das testemunhas».
Quanto à questão da indicação de provas por remissão, ajuizou o tribunal recorrido que tal artigo 58º não exclui que a indicação das provas se possa fazer por remissão, invocando vários acórdãos das nossas Relações que isso mesmo decidiram.
No que diz respeito ao tal exame crítico das provas, escreveu-se:
«É verdade que na decisão administrativa em causa, no que concerne à materialidade dos factos que são imputados à arguida não foi feito o exame crítico da prova a que alude o n.º2 do artigo 374º do Código de processo Penal.
No entanto, não obstante a posição supra transcrita (no sentido de que o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá consubstanciar nulidade nos termos do artigo 379º do Código de processo Penal), a verdade é que mesmo assim não vislumbramos a necessidade de tal exame.
Primeiro porque o citado artigo 58º o não exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas (no sentido de que a fundamentação das decisões administrativas se basta com a indicação das provas, não sendo exigível o seu exame crítico, contrariamente ao que ocorre com as decisões judiciais, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10-7-2003, proc.º n.º 903/03, rel. Maria Augusta).
O que o artigo 58º da RGCO visa que é assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Daí que conforme sublinham os Conselheiros Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58º “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”(Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006, p. 387).
Ou seja, mesmo para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá configura uma nulidade nos termos do artigo 379º do Código de Processo Penal, temos de admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença. O que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa” (neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 4-6-2003, C.J., ano XXVIII, T.3, p.40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2003, processo n.º1223/03, in www.trc.pt) e Acórdão da Relação de Guimarães de 24.09.2007, Desembargador Cruz Bucho, processo n.º1403/07-1, disponível em www.dgsi.pt.).
Mais acresce que a fundamentação deve ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir, e, no caso dos autos, a questão reveste simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se torne clara para a arguida, como, de resto, para qualquer cidadão.
No caso concreto, a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e a razão por que tais factos lhe foram imputados».
E nós de acordo.
O que discute a recorrente neste seu recurso é o facto de na decisão administrativa se ter escrito algo como sendo aquilo que ela contesta, quando é certo que tal não corresponde à verdade.
Invoca que:
- no âmbito da defesa escrita apresentada pela Recorrente foi invocado, resumidamente, que a mesma não praticou a infracção de que vinha acusada por falta de preenchimento dos pressupostos da infracção, nos seguintes termos:
· A montagem das instalações destinadas a operações de eliminação de resíduos perigosos não está sujeita a Declaração de Impacto Ambiental, mas apenas a sua laboração;
· A Agência Portuguesa para o Ambiente defende a aplicação do regime jurídico dos CIRVER em relação a algumas unidades a licenciar pela arguida, pelo que será esse o regime aplicável e não o Decreto-Lei n.°197/2005, de 08 de Novembro, invocado pelo IGAQT, o que determina a falta de fundamento legal da presente contra-ordenação.
· Sem prescindir a arguida invocou ainda que sempre actuou com vontade de cumprir a lei e em estreita colaboração com a administração e solicitou que o IGAOT usasse da faculdade prevista no artigo 39•0 do RJCOA e suspendesse a execução da sanção mediante o cumprimento pela arguida de certas obrigações ou que se estipulasse a coima no seu mínimo legal.
· Requereu que fossem inquiridas as testemunhas B... . da Mota e ....
Ora, para si, a decisão administrativa condenatória apenas alude à defesa apresentada pela Recorrente em dois momentos: num primeiro momento, refere de forma vaga e genérica que a prova dos factos teve por base a análise critica e conjugada do “auto de notícia n.°795/2009, do Relatório de Inspecção n.°1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e depoimentos das testemunhas.”; num segundo momento refere expressamente que “em sede de defesa ao ora processo contra-ordenacional, a arguida alega a nulidade do auto de notícia e, consequentemente, da acusação, invocando para o efeito nomeadamente a omissão da fundamentação de facto e de direito.
Convenhamos que a decisão administrativa não prima pela correcção e pelo rigor.
Mas daí a considerar que esse «erro» de identificação das questões aduzidas pela defesa na sua «contestação» configuram nulidade da decisão administrativa é levar longe demais a dimensão garantística dos direitos de defesa de um arguido em processo contra-ordenacional.
Não poderemos dizer que a defesa se viu coarctada nos seus direitos com este lapso cometido no texto da decisão administrativa, razão pela qual não fará qualquer sentido invocar-se uma violação do artigo 32º/10 da CRP.
O que tal normativo constitucional não exige é que o processo contra-ordenacional, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal, como bem acentua o Acórdão desta Relação, datado de 29/2/2012:
«Conforme salientado já por este Tribunal, a norma do art.° 32º/10 da CRP introduzida pela revisão constitucional de 1989 quanto aos processos de contra-ordenação e alargada pela revisão de 1997 a quaisquer processos sancionatórios implica a inviabilidade constitucional da aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são fritas (direito de defesa), reagindo contra uma acusação prévia, apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cfr. Ac. n.° 659/06 e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo 1, Coimbra, 2005, p. 363).
Sem prejuízo dos demais direitos que outras normas constitucionais incluem no conjunto das garantias asseguradas aos arguidos em processos sancionatórios (cfr. art. 20º da CRP), o alcance atribuível à norma do n.° 10 do art.° 32º é, todavia, conforme igualmente acentuado na jurisprudência constitucional, apenas o que se deixou exposto, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios “, de “todas as garantias do processo criminal” (...)
Quer isto significar que a configuração constitucional do processo contra-ordenacional, se o subordina ao reconhecimento de um conjunto de garantias inerentes à respectiva natureza sancionatória, não o equipara, contudo, ao processo penal, não conduzindo, por isso, no plano da aplicação do direito ordinário, à directa transposição para o primeiro de todas e quaisquer regras expressamente previstas para o segundo, designadamente em termos de os elementos que este particularmente inclui se tornarem, só por isso, comuns àquele.
Da modelação constitucional do processo contra-ordenacional extraem-se, portanto, duas ideias de sentido aparentemente oposto mas complementar: a de que o processo contra-ordenacionais, como sancionatório que é, se encontra subordinado ao reconhecimento de um conjunto de garantias que o aproximam do processo penal, e, a de que tais garantias não são equivalentes ou equiparáveis às garantias asseguradas no âmbito do processo criminal, designadamente em termos de viabilizar a conversão daquela aproximação numa sobreposição integral de regimes».
No nosso caso, a arguida percebeu bem o que estava em causa no auto de notícia e defendeu-se.
Do conjunto da decisão administrativa resulta que tal defesa foi considerada, embora mais de forma indirecta do que explicitamente directa.
Entende a recorrente que invocou aspectos que colocam em causa os pressupostos da infracção imputada.
Na nossa opinião, a decisão administrativa acabou por arredar tais argumentos, de forma assaz indirecta – obviamente não muito correcta -, não se compreendendo ou aceitando que, nesta fase judicial do procedimento contra-ordenacional, se conheça de vícios – não essenciais - da primitiva decisão administrativa, quando é certo que já existe uma decisão judicial, após julgamento, onde se suprem tais eventuais anteriores vícios – mais de forma do que de conteúdo -, aí sim, de forma assaz directa.
Entender-se o contrário (um máximo de exigência na apreciação do texto da decisão administrativa) seria desvirtuar este processo legalmente mais célere e menos garantístico (porque não mexe com direitos, liberdades e garantias com dimensão ética penal), caminhando, a olhos vistos, para prescrições indesejáveis e para uma natural impunidade dos reais infractores às normas contra-ordenacionais.
Note-se ainda que não é razoável que se imponha à autoridade administrativa a tarefa de apreciar explicitamente cada uma das questões invocadas, reportando-se a nulidade em causa ao conhecimento de «questões», não sendo necessário apreciar todos os argumentos invocados pelas partes Leia-se, a este propósito e nesta linha, o Acórdão da Relação de Coimbra de 29/2/2012, no Pº 125/11.7TBFCR.C1..
Por tal motivo, só resta indeferir a requerida nulidade.

f)- No que concerne à alegada falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão da execução da coima (artigo 39° do Decreto-Lei n.°50/2006, de 29.08) entendemos, no seguimento do sabiamente sentenciado, que tal “não constituiu qualquer nulidade porquanto não prevista no artigo 119° e 120º do C.P.P, nem nos artigos 374º e 379° do C.P.P, o que poderá constituir é uma mera irregularidade, perfeitamente sanável nesta sede aquando da determinação da medida da coima, se a mesma se impuser”.
Foi o que foi feito pelo tribunal recorrido.
Escreveu-se a este propósito:
«Atentos os antecedentes da recorrente não se reputa como proporcional, nem adequado ao caso concreto, a suspensão da execução da coima nos termos do artigo 39º do DL 50/2006, de 29.08, mas apenas a redução da coima pela falta de benefício económico».
Afastou, deste modo, a suspensão da execução da coima e nós estamos perfeitamente de acordo com isso – não esqueçamos que estamos a falar de uma empresa que tem antecedentes contra-ordenacionais:
«21. Do cadastro ambiental da recorrente constam averbadas condenações no pagamento de coimas, nos montantes de 2500,00 €, 4.000,00 €, 3.500,00 € pela prática de contra-ordenações, p. e p. pelos DL n.º46/94, de 22.02, DL 239/97, de 09.09, DL por factos praticados em 09.10.2006, 17.02.2005, 16.02.2004.
22. Do cadastro ambiental da recorrente consta a menção da existência de processos pendentes de decisão de impugnação judicial».
Note-se ainda que a decisão administrativa, ao contrário do tribunal recorrido, acaba por concluir existir benefício económico para a arguida, o que leva a que se compreenda que nem sequer tenha cogitado a hipótese de aplicação da figura da suspensão da execução da coima Aí se escreveu: «Finalmente e no que toca ao benefício económico retirado pela arguida com a prática da contra- ordenação, o apuramento deste benefício deverá ser feito tendo em consideração a natureza da contra-ordenação cometida e o apuramento das circunstâncias que rodearam a sua prática, entendendo-se por benefício económico todo o proveito económico que não ocorreria no património do agente se este tivesse adoptado a conduta que o ordenamento lhe impunha e não tivesse contrariado a acção administrativa.
Assim sendo, no caso concreto em apreço, considera-se que terá, de facto, existido algum benefício económico, consubstanciado nos custos inerentes ao procedimento de avaliação de impacte ambiental».
.

3.4. Como tal, e perfectibilizada que foi, sob o ponto vista objectivo e subjectivo, a prática da contra-ordenação p. e p. pelo nos termos dos artigos 17° e 37°. n° 1, alínea c) do Decreto-Lei n° 69/2000, de 3 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n° 197/2005, de 8 de Novembro, relativa à execução do projecto de ampliação de uma unidade sujeita a AIA sem a necessária DIA, o recurso da arguida só pode improceder, só nos restando validar a justeza material e formal da sentença recorrida.


3.5. O ambiente somos nós que o fazemos, não nos cansamos de dizer.
Costumeiramente observamos o português atribuindo aos governos responsabilidades por diversos factos quotidianos.
Com as questões ambientais não é diferente.
Não raras vezes, vemos, ouvimos e lemos reclamações entre pessoas próximas em relação a depósitos irregulares de lixo, a materiais de construção, a poluição sonora, a poluição hídrica, a veículos em situações irregulares…
No entanto, por tantas e tantas vezes, essas reclamações restringem-se a uma rápida conversa ou mesmo a um «stress momentâneo».
Passado aquele momento de revolta, simplesmente retomamos a nossa rotina, como se nada tivesse acontecido.
Ao invés de reclamarmos ou atribuirmos a culpa das mazelas quotidianas às tutelas deveríamos, inicialmente, colher informação bastante sobre as nossas obrigações legais.
Em Portugal, os princípios legais supremos em matéria ambiental são atribuídos pela Constituição, mormente, no seu artigo 66º.
Acreditamos, ainda, que o factor mais importante a se colocar aqui é que a obrigação se apresenta muito mais ampla do que a simples preservação do ambiente. Usar racionalmente os recursos naturais, não dispor dos resíduos de maneira inadequada, respeitar as restrições ambientais, manter veículos funcionando dentro das normas ambientais de emissões de ruídos e atmosféricas, entre outros, são sim obrigações, não sendo, contudo, as únicas.
Também é nossa obrigação a defesa do ambiente.
Isso mesmo defendem Vital Moreira e Gomes Canotilho na sua CRC anotada, ao escreverem que «este dever de defesa do ambiente, previsto no artigo 66º da CRP, é caracterizado por 3 aspectos:
- a obrigação de não atentar contra o ambiente
- a existência das obrigações positivas, como, por exemplo, a obrigação de tratar de resíduos ou efluentes domésticos e industrias;
- o dever de impedir os atentados de outrem ao ambiente, incluído pelo exercício da acção popular».
Que não se chegue a esse ponto e que as decisões dos nossos tribunais sejam corajosas, proactivas, preventivas e suficientemente severas para fazer recuar o cego e surdo transgressor, o infiel «jardineiro/cidadão», a empresa mais negligente…
Deste modo, manteremos o montante da coima tal como foi gizado pelo tribunal recorrido, não nos merecendo qualquer censura a operação intelectual feita para dosear a sua medida exacta, respeitados que foram, com equidade e justo equilíbrio, os pressupostos do artigo 18º do RGCOC e do artigo 20º, n.º 1 da Lei n.º50/2006 de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º89/2009, de 31 de Agosto.


III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em negar provimento ao recurso intentado por W... –, LDA, mantendo na íntegra a sentença recorrida.

Custas pela arguida, com a taxa de justiça fixada em 3 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP, ex vi do artigo 74º/4 do RGCO, e 8º/4 e Tabela III do RCP já aplicável aos autos].

Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo revisto pelos restantes – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


_______________________________________
(Paulo Guerra)


________________________________________
(Alberto Mira)I - RELATÓRIO

  1. No processo de recurso de contra-ordenação n.º 2297/11.1TBPBL do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, em que é recorrente a arguida “W... –, S.A.”, por sentença datada de 7 de Março de 2012, foi julgado parcialmente provido o recurso por si intentado, reduzindo-se a coima aplicada pela autoridade administrativa para o montante de 15.000,00 € (quinze mil euros).

Recorde-se que a decisão administrativa havia condenado a recorrente numa coima no valor de 25.000,00 € (vinte cinco mil euros), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos dos artigos 17° e 37°. n° 1, alínea c) do Decreto-Lei n° 69/2000, de 3 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n° 197/2005, de 8 de Novembro, relativa à execução do projecto de ampliação de uma unidade sujeita a AIA – avaliação de impacto ambiental - sem a necessária DIA (declaração de impacto ambiental).  

2. Inconformado, a arguida recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. No recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida em primeira instância, a mesma invocou a nulidade da decisão administrativa, por força do disposto no art. 374.° e 379.°, n.°1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi art. 41.°do Regime Geral das Contra-Ordenações e art. 2.°, n.°1 da Lei n.°50/2006, revista e republicada pela Lei n.°89/2009, de 31 de Agosto, em virtude de a defesa apresentada pela mesma ter sido absolutamente desconsiderada pela entidade administrativa, não tendo sequer sido apreciada no texto da decisão administrativa.

2. No âmbito da defesa escrita apresentada pela Recorrente foi invocado, resumidamente, que a mesma não praticou a infracção de que vinha acusada por falta de preenchimento dos pressupostos da infracção, nos seguintes termos:

· A montagem das instalações destinadas a operações de eliminação de resíduos perigosos não está sujeita a Declaração de Impacto Ambiental, mas apenas a sua laboração;

· A Agência Portuguesa para o Ambiente defende a aplicação do regime jurídico dos CIRVER em relação a algumas unidades a licenciar pela arguida, pelo que será esse o regime aplicável e não o Decreto-Lei n.°197/2005, de 08 de Novembro, invocado pelo IGAQT, o que determina a falta de fundamento legal da presente contra-ordenação.

· Sem prescindir a arguida invocou ainda que sempre actuou com vontade de cumprir a lei e em estreita colaboração com a administração e solicitou que o IGAOT usasse da faculdade prevista no artigo 39•0 do RJCOA e suspendesse a execução da sanção mediante o cumprimento pela arguida de certas obrigações ou que se estipulasse a coima no seu mínimo legal.

· Requereu que fossem inquiridas as testemunhas B... . e ....

3. A decisão administrativa condenatória apenas alude à defesa apresentada pela Recorrente em dois momentos: num primeiro momento, refere de forma vaga e genérica que a prova dos factos teve por base a análise critica e conjugada do “auto de notícia n.°795/2009, do Relatório de Inspecção n.°1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e depoimentos das testemunhas.”; num segundo momento refere expressamente que “em sede de defesa ao ora processo contra-ordenacional, a arguida alega a nulidade do auto de notícia e, consequentemente, da acusação, invocando para o efeito nomeadamente a omissão da fundamentação de facto e de direito.”

4. A decisão administrativa remata a alusão à defesa administrativa apresentada pela Recorrente alegando que “(...) foi a arguida notificada (...) de todos os elementos relevantes para exercer a sua defesa, sendo que constavam da notificação a data e local da infracção, factos consubstanciadores da mesma, bem como o título da imputação subjectiva e ainda o sentido provável da decisão que é a condenação da arguida. A arguida veio efectivamente exercer cabalmente o seu direito de defesa, com base na notificação recebida, pelo que se entende não existir qualquer fundamento para considerar por qualquer forma limitado o direito de defesa.

5. A autoridade administrativa alude à defesa e aos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela arguida de uma forma vaga e genérica, sem explicar como e em que termos os considerou.

6. A autoridade administrativa ignora completamente o conteúdo da defesa administrativa apresentada pela Recorrente uma vez que rebate fundamentos alegadamente invocados pela mesma — como a nulidade do auto de notícia e da acusação, por falta de fundamentação de facto e de direito —, sem que, no entanto, a Recorrente alguma vez os tivesse invocado.

7. O direito de audiência e defesa do arguido no âmbito do processo de contra-ordenação constitui uma forma de o mesmo se pronunciar relativamente à infracção que lhe é imputada e à sanção em que incorre, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos.

8. No âmbito do processo de contra-ordenação, os actos praticados, embora sejam emanados de uma entidade administrativa e, logo, em princípio sujeitos às garantias e regime próprios do direito administrativo, passam a estar regulados pelo regime jurídico do ilícito de mera ordenação social e, subsidiariamente, pelo regime do processo penal.

9. No entanto, tal não significa que o direito administrativo seja completamente ignorado, pelo contrário, é necessário proceder a uma adaptação de princípios, sendo que uma afloração do mesmo é, desde logo, a previsão do direito de audição e defesa do arguido plasmado no artigo 50.°do Regime Geral das Contra-Ordenações, que tem correspondência com princípio da audiência prévia dos interessados, previsto no artigo 100º do Código de Procedimento Administrativo, segundo o qual os administrados têm o direito de se pronunciar em momento anterior à tomada de decisão da administração (ou seja, quando ainda é possível influenciar a mesma) - (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.°1/2003, publicado no Diário da República, 1 Série — A, n.°21, de 25 de Janeiro de 2003).

10. O processo de contra-ordenação constitui uma realidade sui generis que representa um meio-termo entre o tradicional processo administrativo sancionador e o tradicional processo criminal.

11. O direito de audiência e defesa do arguido, quer analisado à luz de princípios administrativos quer analisado à luz do ordenamento jurídico- só se compreende na medida em que faculta ao arguido a possibilidade de fornecer elementos novos que venham influir no itere cognoscendi da Administração, alterando ou conformando a decisão a tomar.

12. Entende a Recorrente que constitui dever da administração pronunciar-se quanto aos elementos fornecidos na defesa apresentada, fazer um juízo crítico dos mesmos e fundamentar a sua decisão final em consideração pelos elementos carreados aos autos pela mesma, sob penal de violação de direitos constitucionalmente garantidos ao arguido penal (artigo 32°, n.°10 da CRP).

13. Entendimento semelhante foi propugnado no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 14.04.2010 e no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 01.06.2005, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

14. A Recorrente invocou aspectos que colocam em causa os pressupostos da infracção imputada e requereu que a administração fizesse uso da faculdade prevista no artigo 39.°do RJCOA, no entanto, a IGAOT ignorou por completo os fundamentos invocados pela Recorrente em sede de direito de defesa.

15. In casu, impunha-se que a Autoridade Administrativa se pronunciasse quanto à bondade dos argumentos invocados e quanto à possibilidade de utilização da faculdade prevista no artigo 39º do RGCOA, mesmo que fosse para afastar esses argumentos ou para negar aplicação do requerido regime de suspensão, tudo o que não foi feito pela IGAOT.

16. O comportamento da IGAOT é ainda mais reprovador, na medida em que inclui na decisão administrativa uma alegada análise à defesa alegadamente apresentada pela Recorrente, defesa essa que NÃO assenta nos argumentos efectivamente invocados pela mesma.

17. Compulsado o teor da sentença ora recorrida, em resposta à invocada nulidade, a Recorrente constata que a Meritíssima Juiz considera que, no caso em apreço “a fundamentação da decisão é mais do que suficiente” e que a falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão de execução da coima constitui uma mera irregularidade, sanável em sede de sentença.

18. Sucede que, a decisão administrativa não se pronuncia quanto à defesa apresentada pela Recorrente, na qual foram alegados factos relevantes, susceptíveis de alterar o rumo da decisão da autoridade administrativa, e foi requerida a suspensão da execução da coima, caso esta viesse a ser aplicada, como veio a ser.

19. A decisão administrativa pronuncia-se, ao invés, relativamente a alegados fundamentos, alegadamente invocados pela Recorrente em sede de direito de defesa, MAS QUE NA REALIDADE NUNCA FORAM PELA MESMA INVOCADOS (!).

20. Dúvidas não podem subsistir de que a decisão administrativa padece de nulidade, por violação do disposto no art. 374.°e 379º, n.°1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi art. 41.°do Regime Geral das Contra-ordenações e art. 2º, n.°1 da Lei n.°50/2006, revista e republicada pela Lei n.°89/2009, de 31 de Agosto, em virtude de a entidade administrativa não ter conhecido dos fundamentos invocados pela Recorrente em sede de defesa administrativa».

            3. A Exmª Magistrada do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra.

            Conclui assim:

            «I. A decisão da Autoridade Administrativa não desconsiderou a defesa apresentada pela Recorrente, na medida em que, e tal como se refere na sentença do Tribunal a quo: “No caso em apreço a indicação das provas é clara por parte da entidade administrativa. Tais provas consistiram, segundo a decisão administrativa, nos seguintes elementos: análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social, do auto de notícia n. 0795/2009 e relatório de inspecção  n.º 01861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e do depoimento das testemunhas».

II. O artigo 58º, n.°1, alínea b), do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) apenas exige a indicação das provas e não o seu exame crítico.

III. Assim, omitindo-se a indicação das provas, poder-se-á verificar uma situação de nulidade, no caso de não se assegurar um efectivo direito de defesa ao arguido (nos termos dos artigos 374°e 379°do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do artigo 41.°do RGCO).

IV. Porém, no presente caso, esse efectivo direito de defesa foi garantido, pois, como foi referido na sentença do Tribunal a quo: “a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e a razão por que tais factos lhe foram imputados”.

V. Não estando a Autoridade Administrativa obrigada a admitir a produção de todas as provas indicadas pelo arguido (na sequência da notificação do artigo 50º do RGCO) deve entender-se que admitindo-a não tenha de se pronunciar exaustivamente sobre a mesma — na medida em que quem pode o mais (não admitir a prova) deve poder o menos (admiti-la mas não fazer uma análise crítica).

VI. O que se pretende com a exigência de indicação das provas é que a decisão administrativa se aproxime do artigo 283°, n.°3, alíneas d), e) e 1) do Código de Processo Penal (em que o legislador pretende apenas a indicação das provas e não o seu exame crítico).

VII. Não existe no RGCO um regime especial quanto à fundamentação da decisão da Autoridade Administrativa, ao contrário do que sucede noutras áreas das contra-ordenações, pelo que se o legislador tivesse querido que a Autoridade Administrativa fizesse um exame crítico da prova, tê-lo-ia dito expressamente — como fez, por exemplo, em relação à decisão administrativa do Código da Estrada (artigo 181°, n.°1, alínea b), do Decreto-Lei n.°114/94, de 03 de Maio).

VIII. Por tudo o que foi exposto não foram violados os artigos 374°e 379°do Código de Processo Penal, aplicáveis por remissão do artigo 41.°do RGCO, pois na fundamentação da decisão da Autoridade Administrativa não se exige um “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, não tendo aquela deixado de se pronunciar sobre questões que devia apreciar.

IX. Também não houve violação do artigo 32°, n.°10, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que este artigo não exige que o processo contra-ordenacional, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal (neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de Fevereiro de 2012, já referido na conclusão IV).

X. No que se refere à falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão da execução da coima (artigo 39°do Decreto-Lei n.°50/2006, de 29.08), tal como se refere na sentença do Tribunal a quo, a mesma “não constituiu qualquer nulidade porquanto não prevista no artigo 119° e 120° do C.P.P, nem nos artigos 374°e 379°do C.P.P, o que poderá constituir é uma mera irregularidade, perfeitamente sanável nesta sede aquando da determinação da medida da coima, se a mesma se impuser”.

Termos em que deve ser negado provimento ao Recurso interposto pela sociedade arguida e, em consequência, mantendo a sentença recorrida farão V.as Ex.as JUSTIÇA!».

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento, remetendo, no essencial para a resposta da Colega de 1ª instância.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, n.º 1 e 41º, n.º 1, ambos do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCO), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCO, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto).

 Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber se:

             - é nula a decisão administrativa por desconsideração da defesa apresentada e por omissão de pronúncia quanto à possibilidade de utilização da faculdade prevista no artigo 39º do RGCOA?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

            «1 - No dia 25 de Setembro de 2009, pelas 09h00m, realizou-se uma acção inspectiva às instalações do estabelecimento denominado “W... –, S.A.”, sito em  … Pombal, pertencente à recorrente, e de que é presidente do conselho de administração A...;

2 - A recorrente está em actividade desde 2006 no local objecto de inspecção, e encontra-se inserida num lote de terreno com uma área total de 20.000 m2, dos quais 14583,10 m2 estão impermeabilizados e com 8419,30 m2 cobertos, sendo a propriedade atravessada por um caminho público que divide o pavilhão de armazenagem dos resíduos e

unidade de tratamento de solventes das restantes.

3 - As principais actividades desenvolvidas pela recorrente consistem no armazenamento temporário de resíduos banais e perigosos com vista ao seu posterior envio

para eliminação ou valorização e tratamento de águas oleosas na sua unidade de tratamento de águas oleosas (resíduo perigoso).

4 -Aquando da acção inspectiva aludida em 1) detectou-se que a recorrente estava a

proceder a um conjunto de alterações à sua actividade que consubstanciam um aumento da

capacidade de eliminação de resíduos perigosos para valores superiores a 5 t/dia.

5 - As alterações da unidade consistem concretamente em:

a) Aumentar a capacidade de armazenamento de Resíduos Industriais Banais (RIB's) e diversificação dos códigos da Lista Europeia de Resíduos (LER), para as operações RI 3 e D15, com uma capacidade licenciada para 92920 t/ano pretendendo aumentar 127080 t/ano (capacidade total de 220000 t/ano);

b) Aumento da capacidade de armazenamento de Resíduos Industriais Perigosos (RIP's) e diversificação dos códigos LER, para as operações RI 3 e D15, com uma capacidade licenciada < 5 t/dia pretendendo aumentar para 2500 t/dia;

c) Diversificação dos códigos LER afectos à Unidade de Tratamento de Águas Oleosas e alteração da operação de gestão de resíduos (operações RI 3 e D15), com uma capacidade licenciada para 140 t/dia;

d) Instalação de novas unidades de tratamento e processamento de resíduos, nomeadamente: trituração e lavagem de embalagens (operação R3 de 20 t/dia); unidade de evaporação de solventes contaminados (operação R2 de 33 t/dia); unidade de evaporação de águas industriais (operação D9 de 35 t/dia); unidade de desmantelamento e descontaminação de VFV (operação R3/R4 de 165 t/d ia); e unidade de pirólise (operação R3 de 30 t/dia).

6 -Na data da acção de inspecção aludida em 1) verificou-se que a instalação da unidade de pirólise estava a ser implementada no interior de um pavilhão já existente, tendo

sido iniciada há cerca de um mês e estando instalados cerca de 30% dos equipamentos, designadamente o fundidor, reactor, rectificador, torres de destilação, lavador de gases, permutador, refrigerante aéreo, misturadores e condensadores, estando em falta a parte da instrumentação, linhas de ligação, unidade de ar comprimido, programação e electrificação.

7 -Na data da acção de inspecção aludida em 1) verificou-se que a unidade de evaporação de águas industriais e de evaporação de solventes contaminados estavam na sua totalidade instaladas incluindo a parte eléctrica, estando em falta apenas a ligação ao quadro geral e o sistema de refrigeração;

8 -Não obstante a recorrente ter apresentado o Estudo de Impacte Ambiental (EIA) junto da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) a 11/05/2009, iniciou a execução do projecto sem a prévia apreciação do mesmo e consequente emissão da Declaração de Impacte Ambiental.

9 – O objectivo do EIA consubstancia na integração do projecto no meio envolvente com vista a minimizar os impactes ambientais associados à sua construção, laboração e desactivação.

10 – A autoridade administrativa oficiou a Agência Portuguesa do Ambiente através do ofício n°21491/09, de 13 de Novembro, no sentido de ser avaliado o enquadramento da situação detectada.

11 -Ao solicitado em 10) foi enviada resposta através do ofício S-012949/2009 de 2009/12/04, o qual refere que:

“Na sequência do V/ ofício n° 21491/09, de 13 de Novembro, cumpre informar que:

-A instalação é detentora de um Alvará de Licença, emitido pela Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional do Centro em Outubro de 2007, para recolha, triagem e armazenagem de resíduos perigosos e não perigosos;

-Foi enviado em 12 de Junho de 2009, através da CCDR, o pedido de licenciamento ambiental e o pedido de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) O procedimento de licença ambiental não foi iniciado e o de AIA foi extinto, atendendo á necessidade de clarificar previamente qual a entidade licenciadora, bem como, quais os novas unidades de gestão de resíduos perigosos a licenciar, abrangidas pelo regime de licenciamento dos centros integrados de recuperação e valorização e eliminação de resíduos perigosos (CIRVER) - Decreto-lei n° 3/2004, de 6 de Janeiro;

-No âmbito do procedimento de AIA foi efectuada uma audiência prévia do interessado e posteriormente dadas respostas às alegações apresentadas nesta fase;

-Foi realizada, em Agosto, uma reunião entre o operador e as entidades com competências de licenciamento (APA e CCDR-Centro), tendo sido reiterada a necessidade de expurgar do projecto as unidades a licenciar, abrangidas pelo Decreto-Lei n° 3/2004, pelo que, esta Agência iria proceder à sua análise técnica mais exaustiva para o efeito.

Salienta-se que, no contexto de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) que se pretende constituir como o instrumento de carácter preventivo da política de ambiente, o início das construções apenas podem ocorrer após a conclusão de todo o procedimento e na posse de Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável ou favorável condicionada, documento imprescindível, para se apresentar junto da entidade competente, para a autorização da obra. Face ao exposto e como é certamente entendível, a APA enquanto autoridade nacional para AIA e para a gestão de resíduos rege as suas tomadas de decisão no estrito cumprimento da lei, pelo que situações de incumprimento por parte dos proponentes devem ser objecto de actuação pelas autoridades competentes."

12 - A autoridade administrativa contactou a directora da qualidade daquele estabelecimento, B... ..

13 - A arguida declarou em sede de IRC referente ao ano de 2008, um lucro tributável de € 353.893,51, e em sede de IES um resultado líquido do exercício de € 357.730,16.

14 -O objecto da recorrente é a "recolha e transporte de resíduos industriais, transformação de resíduos biodegradáveis e transporte rodoviário de mercadorias”.

15 -Ao proceder à execução do projecto de ampliação da sua unidade sem a necessária Declaração de Impacte Ambiental, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz.

16 - A recorrente apresentou processo de licenciamento ambiental em 29.08.2008 na Direcção Geral de Economia, tendo esta entidade declarado que não era competente e que o processo teria de ser apresentado na CCDR do Centro, o que foi feito a 11 de Maio de 2009.

         17 - A CCDR do Centro remeteu oficiosamente o processo de licenciamento ambiental para a APA, por considerar que esta era a entidade competente para a elaboração do estudo de impacte ambiental.

18 -A APA remeteu à recorrente um fax datado de 21 de Agosto de 2009 onde consta que aquela entidade mantém o parecer de que a recorrente pretende, além do mais, instalar unidades do tipo da dos CIRVER, bem como um tratamento físico-químico a realizar na Unidade de Tratamento de Águas Oleosas, o qual está abrangido pelo Anexo I do RJAIA (Decreto-Lei n° 197/2005, de 8 de Novembro). Mais informam que face ao exposto o presente procedimento de AIA será encerrado de acordo com o artigo 112º do CPA.

19 - Em carta datada de 14.12.2009, constante de fls. 200, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, dirigida pela APA à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, consta “a necessidade expurgar o projecto as unidades a licenciar, dado que o licenciamento se encontra vedado a novas unidades ou de Centros Integradores”.

20 - A fls. 202 dos autos consta carta remetida pela APA à recorrente, datada de 20.04.2011, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

21-Do cadastro ambiental da recorrente constam averbadas condenações no pagamento de coimas, nos montantes de 2500,00 €, 4.000,00 €, 3.500,00 € pela prática de contra-ordenações, p. e p. pelos DL n.º46/94, de 22.02, DL 239/97, de 09.09, DL por factos praticados em 09.10.2006, 17.02.2005, 16.02.2004.

22 - Do cadastro ambiental da recorrente consta a menção da existência de processos pendentes de decisão de impugnação judicial».

2.2. É este o FACTO NÃO PROVADO:

«a) a arguida face à demora do processo de licenciamento viu-se impelida a iniciar a construção sob pena dos materiais de deteriorarem».

2.3. Assim se fundamentou esta convicção factual:

«Na formação da sua convicção o Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi apreciada segundo o princípio da livre convicção e as regras da experiência comum.

Para a formação da convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada contribuíram de forma decisiva as declarações de Rodrigo Filipe Dias Ferreira, inspector do DGAT, o qual, de forma isenta, descomprometida, credível declarou que elaborou o auto de notícia de fls. 6 a 8 dos autos, cujo teor confirmou na íntegra, reproduzindo o que efectivamente constatou na data da acção inspectiva quanto à instalação das unidades descritas nos factos dados como provados.

Mais esclareceu que a recorrente edificou tais instalações, quer a unidade de pirólise quer a de solventes sem ser portadora de DIA (Declaração de Impacto Ambiental), a qual se mostra legalmente necessária para ambos, devendo sempre proceder a execução do projecto que a recorrente pretendia levar a cabo nas suas instalações, o que foi confirmado até pelo teor do ofício de fls. 289 dos autos.

Mais explicou que foi a falta de expurgação por parte da recorrente de alguns elementos do projecto submetido a apreciação que conduziu à deserção do processo de avaliação de impacte ambiental o que é confirmado pelo teor de fls.240 a 245 dos autos, onde consta um fax da Agência Portuguesa do Ambiente dirigido à recorrente datado de 21 de Agosto de 2009.

As testemunhas arroladas pela recorrente, a saber, B..., engenheiro do ambiente, na recorrente desde 2009; C..., funcionário da recorrente, técnico de instalações eléctricas, D…, engenheiro químico, há 9 anos na W..., e o próprio legal representante da recorrente, E…, o qual exerce as suas funções desde 2011, anuíram todos que a recorrente tentou fazer as duas coisas ao mesmo tempo, licenciamento e estudo de impacto ambiental, porque a recorrente sempre pensou que podia começar a implantar as construções antes de obter a DIA. A maior parte destas testemunhas coloca como tónica da defesa as dificuldades na interpretação da legislação, todavia, a verdade é que da ignorância de lei não aproveita ninguém e temos de pressupor como ponto assente que o legislador se soube expressar bem. E a verdade é que a lei em apreço, conforme infra se expandirá é clara na necessidade de obtenção de DIA previamente à execução de qualquer projecto, o que bem se compreende se tivermos em conta a própria noção de impacte ambiental e os fins visados com a legislação em apreço.

No entanto, não podemos esquecer é que as próprias testemunhas referidas, designadamente a primeira, declarou de forma expressa que sabia que estavam abrangidos pelo RAIA até determinadas toneladas.

A circunstância de a terceira testemunha referida ter declarado que taxativamente as autoridades administrativas aceitaram e sabiam que as unidades estavam a ser instaladas, ninguém lhes tendo dito que tal não era possível, não desonera de modo algum a recorrente de ter tomado previamente à edificação das instalações todos os cuidados necessários para saber se o podiam ou não fazer.

E a verdade é que é convicção do Tribunal que apenas posteriormente à decisão já tomada de iniciar a execução do projecto é que a recorrente procurou indagar se tal se mostrava possível ou não, uma vez que as testemunhas declararam que começaram a instalação em 2008.

Para a convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada contribuiu ainda de forma decisiva toda a documentação junta aos autos, designadamente, auto de notícia, relatórios, fls.54 a 89, cadastro ambiental de fls.225 a 227 dos autos; 239 a 266, 289, 193 a 203 dos autos.

A factualidade não apurada resultou da ausência de prova que a permitisse sustentar porquanto nenhuma testemunha prestou depoimentos credível sobre tais factos ou nem aos mesmos se referiu».

            3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

            3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).

Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, n.º 1, do CPP, ex vi do artigo 74.º, n.º 4 do mesmo RGCO, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.

De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410.º do CPP.

3.2. Vícios do artigo 410º do CPP (ex vi do artigo 74º/4 do RGCO)

3.2.1. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente a sentença recorrida, à luz dos vícios de conhecimento oficioso previstos no artigo 410º do CPP.

            Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:

a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;

b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º n.º 2 a) CPP;

c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

Como bem acentua o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cf. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt;  Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá AINDA dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.

Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.

E, para cúmulo dos cúmulos, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

3.2.2. Repete-se: apenas se pode conhecer, nesta instância, os vícios do artigo 410º/2 do CPP se os mesmos decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Ora, acontece que, lida a sentença recorrida, não vislumbramos nela qualquer vício do artigo 410º/2 do CPP, na medida em que não existe qualquer problema na matéria dada como provada pelo tribunal recorrido – ela vale por si e nada se deixou de apurar, apenas discordando a recorrente da conclusão jurídica fáctica a que o tribunal recorrido chegou.

Se assim é, então estão assentes os factos descritos em II. 2.1.

Diga-se ainda que neste campo contra-ordenacional (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, Tomo II, págs. 134 e ss), o julgador que julga em 1.ª instância a impugnação judicial de autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.

O que releva e interessa é que em qualquer das situações o Tribunal não proceda à alteração substancial dos factos constantes da acusação, sob pena de cerceamento das garantias de defesa do arguido.

O Juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da autoridade administrativa não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.

Mesmo no recurso da decisão judicial que for lavrada, o Tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida - art.º 75.º, n.º 2, al. a).

Essa faculdade de não estarem os tribunais de 1.ª e de 2.ª instância absolutamente vinculados ao texto da acusação no processo de contra-ordenação tem justificação no facto de não se estar perante um processo criminal, mas de mera ordenação social e de a entidade que aplica a coima ser administrativa, não especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal.

Procura-se, assim, que as entidades judiciais que venham a tomar conta do caso possam mais facilmente atingir a verdade material.

Em conclusão: os factos estão assentes, inexistindo qualquer vício factual na sentença recorrida.

            3.3. NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA

a)- Decidiu assim o tribunal recorrido as nulidades invocadas em sede de impugnação judicial da decisão administrativa e depois reiteradas em sede de julgamento:

«Das Nulidades:

A) Do alegado vício de que o auto de notícia e o despacho que o confirmou não contêm os elementos de facto que permitem imputar a uma determinada conduta à arguida, por falta do elemento subjectivo, assim violando o disposto no artigo 49º, n.º1 da Lei n.º50/2006, republicada pela Lei n.º89/2009, de 31 de Agosto.

Se analisarmos o auto de notícia e o despacho que o acompanhou aquando da notificação à recorrente para exercer o seu direito de defesa em sede administrativa verificamos que a alegação da recorrente soçobra, na medida em que, neste último se faz constar expressamente que a prática da contra-ordenação lhe estava imputada a título doloso – cfr.fls. 4 a 8 dos autos.

Aliás, em sede de defesa perante a autoridade administrativa a própria recorrente faz menção a tal facto (cfr. ponto 3 de fls.44), pelo que o auto de notícia e o despacho que o confirmou não padecem de qualquer nulidade.

Termos em que, sem necessidade de mais considerações, se julga improcedente a nulidade invocada.

*

B) Do alegado vício de falta de fundamentação de facto e de direito da decisão administrativa

O aparecimento do direito das contra-ordenações ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, etc., tornando necessária a concretização das injunções normativas daí decorrentes, e convertendo-as em regras efectivas de conduta, com um quadro específico de sanções.

Porém, tal não pôde fazer-se com recurso ao alargamento do direito criminal, pois acarretaria uma perda irreparável da sua força de persuasão e prevenção, derivada da impossibilidade de mobilizar preferencialmente os recursos disponíveis para as tarefas de prevenção e repressão da criminalidade mais grave, daquela que põe em causa a segurança e a integridade física dos cidadãos (cfr., neste sentido, o Preâmbulo do D.L. n.º 433/82, de 27/10).

Assim, o ilícito de mera ordenação social apresenta divergências em relação ao ilícito criminal, quer devido à natureza dos bens jurídicos protegidos quer devido à respectiva ressonância ética, sancionando condutas denominadas de “eticamente neutras”.

No entanto, o legislador consagrou, no domínio dos ilícitos de mera ordenação social, princípios comuns, relacionados com as garantias de defesa dos cidadãos constitucionalmente consagradas, conforme decorre clara e exemplificativamente, do disposto nos arts. 2º e 3º do D.L. n.º 433/82, de 27/10, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 244/95, de 14/09, e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12.

Desde logo, o legislador, ao definir contra-ordenação como o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima (art. 1º do D.L. n.º 433/82, de 27/10, com a redacção introduzida pelo D.L. n.º 244/95, de 14/09, e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12), estabeleceu como seus elementos constitutivos, a existência de um facto típico, ilícito, culposo, punido por lei com uma coima, exigindo ainda, à semelhança do que sucede no direito penal, um nexo de imputação de determinada infracção ao seu agente, corolário do princípio nulla poena sine culpa. É o que resulta, sem mais, do disposto no art. 8º, n.º 1 do diploma citado, ao prescrever que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.

E ainda, no que concerne à determinação da medida da coima, refere o art. 18º, n.º 1 que a mesma far-se-á em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.

Se as considerações expostas relevam ao nível substantivo, ao nível processual dispõe o art. 58º, n.º 1 do D.L. n.º 433/82, de 27/10, com a redacção introduzida pelo D.L. n.º 244/95, de 14/09, e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12, que: a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a identificação dos arguidos; a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; a coima e as sanções acessórias”.

Tais requisitos previstos para a decisão condenatória do processo contra-ordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com “um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão” (neste sentido, vide Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2.ª edição, 2002, Vislis Editores, pág. 334).

Ora, tais exigências deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício dos seus direitos de defesa.

À semelhança do que sucede também no processo penal, e decorre do princípio constitucional ínsito no art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, também as decisões proferidas no âmbito dos processos de contra-ordenação, seja a decisão da autoridade administrativa, seja a decisão judicial em caso de recurso, têm obrigatoriamente de ser fundamentadas.

E tal compreende-se, obviamente, não só pelo facto de tais decisões terem um destinatário, que tem de compreender e interiorizar o seu teor e alcance, como também para obviar à sua arbitrariedade, o que apenas será perceptível se das mesmas resultar evidente a opção da autoridade, administrativa ou judiciária, por determinada sanção.

Assim, a decisão administrativa condenatória deve, por referência ao artigo transcrito e aos artigos 374º e 379º do Código de Processo Penal (C.P.P.), conter uma descrição dos factos que permitam satisfazer o preenchimento da conduta tipificada como ilícita, querendo com isso significar que os factos relevantes devem apresentar-se de forma naturalística e não jurídica, genérica ou conclusiva.

Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.09.2006 disponível em www.dgsi.pt, “a indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do artigo 58º, n.º1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com um direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a esses tipos de processos essas garantias (artigo 32º, n.º10). Entre essas garantias mínimas de defesa avulta a de serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois que sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”.

No caso em apreço a indicação das provas é clara por parte da entidade administrativa.

Tais provas consistiram, segundo a decisão administrativa, nos seguintes elementos: análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social, do auto de notícia n.º795/2009 e relatório de inspecção n.º1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e do depoimento das testemunhas.

É certo que algumas das provas foram indicadas por remissão.

Todavia, o artigo 58º não exclui que a indicação das provas se possa fazer por remissão (cfr. expressamente neste sentido os Acs da Rel. do Porto de 20-10-1999, proc.º n.º 10619 in www.trp.pt, da Rel. de Lisboa de 22-5-2002, proc.º n.º 3501/02-4 citado in Simas Santos -Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006 e da Rel. de Évora de 14-1-2003, Col. de Jur., ano XXVII, tomo 1, pág. 258; sobre a admissibilidade da remissão se pronunciaram igualmente os Acs da Rel de Lisboa de 24-5-2006, proc.º n.º 3362/06-3ª, rel. Carlos Sousa, e de 13-10-2005, proc.º n.º 7612/05-9ª, rel. Carlos Benido, ambos in www. pgdlisboa. pt e o Ac. da Rel. do Porto de 20-12-2006  (remissão para o auto de notícia), este último in www.dgsi.pt).

É verdade que na decisão administrativa em causa, no que concerne à materialidade dos factos que são imputados à arguida não foi feito o exame crítico da prova a que alude o n.º2 do artigo 374º do Código de processo Penal.

No entanto, não obstante a posição supra transcrita (no sentido de que o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá consubstanciar nulidade nos termos do artigo 379º do Código de processo Penal), a verdade é que mesmo assim não vislumbramos a necessidade de tal exame.

Primeiro porque o citado artigo 58º não exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas (no sentido de que a fundamentação das decisões administrativas se basta com a indicação das provas, não sendo exigível o seu exame crítico, contrariamente ao que ocorre com as decisões judiciais, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10-7-2003, proc.º n.º 903/03, rel. Maria Augusta).

O que o artigo 58º da RGCO visa que é assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Daí que conforme sublinham os Conselheiros Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58º “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”(Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006, p. 387).

Ou seja, mesmo para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá configura uma nulidade nos termos do artigo 379º do Código de Processo Penal, temos de admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença. O que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa” (neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 4-6-2003, C.J., ano XXVIII, T.3, p.40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2003, processo n.º1223/03, in www.trc.pt) e Acórdão da Relação de Guimarães de 24.09.2007, Desembargador Cruz Bucho, processo n.º1403/07-1, disponível em www.dgsi.pt.).

Mais acresce que a fundamentação deve ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir, e, no caso dos autos, a questão reveste simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se torne clara para a arguida, como, de resto, para qualquer cidadão.

No caso concreto, a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e a razão por que tais factos lhe foram imputados.

A falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão da execução da coima (artigo 39º do Decreto-Lei n.º50/2006, de 29.08), não constituiu qualquer nulidade porquanto não prevista no artigo 119º e 120º do C.P.P, nem nos artigos 374º e 379º do C.P.P, o que poderá constituir é uma mera irregularidade, perfeitamente sanável nesta sede aquando da determinação da medida da coima, se a mesma se impuser.

Nos termos e com os fundamentos expostos entendemos que inexiste qualquer falta de fundamentação da decisão administrativa, pelo que naturalmente, improcede a nulidade invocada pela recorrente.

*

C) A contradição insanável da fundamentação da decisão recorrida

Como se referiu no Acórdão do STJ de 2000/Fev./17 [BMJ 494/227] "A contradição insanável da fundamentação verifica-se quando é dado provado e não provado o mesmo facto", acrescentando que "Não se integra na contradição insanável o não ter sido provado que um certo facto é verdadeiro ou falso, bem como a não prova da veracidade dos factos em causa não provarem a sua falsidade ou ainda a não prova da falsidade não acarretar a veracidade dos factos".

Passando para a segunda variante e como se alude no Ac. do STJ de 1998/Nov./24 [BMJ 481/350] "A contradição insanável da fundamentação é um vício ao nível das premissas, determinando a formação delituosa da conclusão; se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível".

Perscrutando as alíneas e) e m) dos factos dados como provados na decisão administrativa não verificamos a existência de qualquer contradição insanável nos moldes supra-expostos, sendo certo que o alegado pela recorrente depende da subsunção dos factos ao direito, o que infra se realizará.

Termos em que improcede igualmente a nulidade invocada.

*

Inexistem nulidades.

*

Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.

A instância mantém-se válida e regular

(…)».

b)- Como tal, a defesa deixa cair as 1ª e 3ª nulidades, reiterando em sede de recurso a 2ª nulidade já atrás invocada e decidida desta forma pelo tribunal recorrido.

Invoca a recorrente que a decisão administrativa absolutamente desconsiderou a defesa apresentada e que nem sequer opinou sobre a possibilidade do uso do mecanismo do artigo 39º da Lei n.º 50/2006, de 29/8 (suspensão da execução da coima[2]).

c)- Uma palavra inicial sobre este ilícito de mera ordenação social.

Estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal.

Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.

Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra ordenação).

Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCOC), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.

As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.

No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCOC), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.

O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.

Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.

«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, n.ºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).

Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt).

No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.).

Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas.

O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o n.º 3 do artigo 1.º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCOC).

No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que:

«O aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.

Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.

A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».

O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.

O DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, e 17.º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19.º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21.º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27.º-A e 30.º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50.º, 53.º, 58.º, 59.º, n.º 2, 68.º e 72.º-A)».

A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7.º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.).

Assim sendo, o DL n.º 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.

Assim mesmo dispõe o artigo 32.º:

«Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal».
Note-se que o regime original do DL 433/82 veio a ser revisto pelos DL 356/89 de 17/10 e 244/95 de 14/9 (já aqui aludido) e pela Lei n.º 109/2001 de 24/9.

Não o ignoramos - as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.

Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.

A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, n.º 10, da CRP e art. 50º do RGCOC).

Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC.

Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

Desta forma, são aplicáveis no processo contra-ordenacional as normas do artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP.

Falou-se em fase administrativa do processamento das contra-ordenações.

Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo[3]).

Decidiu o Acórdão do STJ n.º 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito:

«O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33.º do regime geral das contra-ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41.º, n.º 1).

Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas».

d)- O artigo 58.º do RGCOC estatui sobre os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa condenatória.

Tal decisão, que aplica a coima ou as sanções acessórias, deve conter:

· a identificação dos arguidos;

· a identificação dos factos imputados com indicação das provas obtidas;

· a indicação das normas segundo as quais se pune

· a fundamentação da decisão; a coima e as sanções acessórias;

· a informação de que a condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º e que em caso de impugnação judicial o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham mediante simples despacho;

· e, ainda, a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de dez dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão e a indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.

Como se vê, a estrutura da decisão administrativa aproxima-se, de forma muito aparentada, da estrutura da sentença penal, assente o teor do artigo 374.º do Código de Processo Penal (divisão da sentença penal em três partes: relatório, fundamentação e dispositivo).

Emergindo o dever de fundamentação directamente do artigo 205.º da CRP, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático, o direito a conhecer as razões do sancionamento é comum quer ao processo criminal quer ao processo de contra-ordenação.

Recorde-se:

Estatui o art.° 58º/1 c) do RGCO que a decisão que aplica a coima deve conter “a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão” (isto além dos outros elementos que constam das als a) e b) do n.° 1 daquele preceito).

Ora, a lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas tem-se entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem no art.° 374º/2 do CPP, pelas seguintes razões:

1º- por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito criminal[4] (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa);

2º- por outro lado, porque aquela decisão administrativa, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.° 62º/1 do DL 433/82, de 27/10).

Não faz, assim, qualquer sentido que a decisão administrativa - que em caso de impugnação se converte em acusação - tenha que obedecer aos requisitos da sentença penal, como se tal acusação tivesse que obedecer a um rigor de fundamentação igual ao da sentença penal.

Por fim, seria incongruente e destituído de sentido que a fundamentação estabelecida no art.° 58 n.° 1 al. c) do DL 433/82 tivesse a amplitude prevista no art.° 374º, n.° 2 do CPP, no que à fundamentação da sentença respeita, quando naquele se estabelecem outros elementos que deve conter a decisão administrativa - essa exigência não faria sentido se ao dever de fundamentar que aí se prevê se atribuísse o alcance que resulta do art.° 374º, n.° 2 do CPP, retirando sentido à exigência contida nas als. b) e c) daquele art.° 58º.

No fundo, essa fundamentação, tal como é estabelecida no art.° 58º do RGCO, será suficiente desde que se justifique as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.

Ora, na nossa situação, constam da decisão administrativa todos os elementos exigidos pelo art.° 58º/1, sendo clara a razão pela qual veio a ser a arguida condenada com uma coima (constando também na parte decisória as normas jurídicas que pela mesma foram violadas e o montante da coima em que foi condenada, por violação das normas que ali são indicadas, e a forma como foram cometidas, ou seja, todos os elementos necessários para que a arguida pudesse exercer, como exerceu, o seu direito de defesa).

O que se pretende é que o arguido saiba as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a sua impugnação por meio de recurso e, já na fase judicial, ao tribunal de recurso conhecer o processo de formação da decisão recorrida.

No fundo, e aludindo ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 1/2003, publicado no DR-I-A, de 25-01-03, rectificado pela Declaração de Rectificação n° 70/2008, de 26/11[5], não poderemos dizer que a autoridade administrativa não forneceu TODOS os elementos necessários para que a arguida ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, tendo sido, ao contrário, informada a arguida do necessário para se poder – bem – defender.

Não nos esqueçamos que foi feito um julgamento, não tendo havido uma decisão por mero despacho - na decisão por despacho, e no que concerne à matéria de facto, ter-se-á de ter por assentes os factos que na decisão administrativa são imputados ao arguido na medida em que este, renunciando à audiência de julgamento, se conformou com a matéria de facto dada como assente naquela decisão (cfr. Ac. Relação do Porto de 24 de Janeiro de 2007, proc. nº 0615898, in http://www.dgsi.pt), sendo esses os factos a atender no recurso, até porque perante o julgador que dele vai conhecer, nenhuma prova foi produzida, que pudesse levar à consideração de outros (na verdade, se o juiz entende que deve decidir através de despacho está implicitamente a admitir que a prova produzida na fase administrativa é suficiente para a decisão, sendo irrelevantes outros factos que não aqueles que ali resultaram provados - cfr. Cons. Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 171).

Ora, no nosso caso, houve julgamento, tendo-se aferido todos os factos narrados pela acusação e pela defesa.

e)- Concordamos com a tese que defende que a inobservância do disposto no artigo 58º/1 do RGCOC configura uma nulidade e não uma mera irregularidade.

Por exemplar, transcreveremos aqui parte do sentenciado pelo Acórdão do STJ de 29/1/2007, no Pº 06P3202:

«Embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contra-ordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita á enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas.

A função dos elementos da decisão no procedimento por contra-ordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso.

A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respectivos destinatários.

Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um acto que não suporta todos os elementos necessários à sua validade.

A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.

Dada a natureza (sancionatória) do processo por contra-ordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contra-ordenação) aproximam-na de uma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da Administração que contenha um acto administrativo.

Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.

A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação - interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão.

Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão - são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua da aplicação das normas chamadas a intervir.

A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58º, nº 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efectivo com o adequado conhecimento dos factos imputadas, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.

A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não directa quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41º do RGCOC sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374º, nº 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias».

Contudo, analisado ao aresto em causa, constatamos que, no caso, nem sequer factos provados e não provados existiam na decisão administrativa, o que gera indubitavelmente tal vício supremo.

Note-se que também no Acórdão da Relação do Porto de 1/6/2005, aludido na argumentação do presente recurso, se entendeu que a «preterição do direito de defesa no processo de contra-ordenação constitui nulidade insanável» - no entanto, nesse caso foi absolutamente olvidada e desconsiderada a defesa escrita do arguido por se ter entendido ter sido ela extemporânea (como tal, compreende-se a nulidade pois ajuizou-se que se estava perante um caso de inexistência de defesa, o que não correspondia à verdade pois, sendo afinal tempestiva a defesa, existiam novos factos que urgia apurar).

No nosso caso, há fundamentação tida por suficiente, como bem aferiu a decisão recorrida, opinando nós também que não se mostra necessária, neste campo contra-ordenacional, uma análise crítica de toda a prova, bastando-se a lei com a sua enumeração (se o exigisse, o artigo 58º/1 tê-lo-ia expressamente dito, como o fez o artigo 374º/2 in fine do CPP e, no que tange à decisão administrativa do Código da Estrada, o artigo 181°, n.°1, alínea b), do Decreto-Lei n.°114/94, de 03 de Maio).

Decidiu o tribunal recorrido que a indicação das provas é clara por parte da entidade administrativa, consistindo elas nos seguintes itens:

- «análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social, do auto de notícia n.º795/2009 e relatório de inspecção n.º1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e do depoimento das testemunhas».

Quanto à questão da indicação de provas por remissão, ajuizou o tribunal recorrido que tal artigo 58º não exclui que a indicação das provas se possa fazer por remissão, invocando vários acórdãos das nossas Relações que isso mesmo decidiram.

No que diz respeito ao tal exame crítico das provas, escreveu-se:

«É verdade que na decisão administrativa em causa, no que concerne à materialidade dos factos que são imputados à arguida não foi feito o exame crítico da prova a que alude o n.º2 do artigo 374º do Código de processo Penal.

No entanto, não obstante a posição supra transcrita (no sentido de que o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá consubstanciar nulidade nos termos do artigo 379º do Código de processo Penal), a verdade é que mesmo assim não vislumbramos a necessidade de tal exame.

Primeiro porque o citado artigo 58º o não exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas (no sentido de que a fundamentação das decisões administrativas se basta com a indicação das provas, não sendo exigível o seu exame crítico, contrariamente ao que ocorre com as decisões judiciais, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10-7-2003, proc.º n.º 903/03, rel. Maria Augusta).

O que o artigo 58º da RGCO visa que é assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Daí que conforme sublinham os Conselheiros Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58º “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”(Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006, p. 387).

Ou seja, mesmo para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa poderá configura uma nulidade nos termos do artigo 379º do Código de Processo Penal, temos de admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença. O que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa” (neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 4-6-2003, C.J., ano XXVIII, T.3, p.40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2003, processo n.º1223/03, in www.trc.pt) e Acórdão da Relação de Guimarães de 24.09.2007, Desembargador Cruz Bucho, processo n.º1403/07-1, disponível em www.dgsi.pt.).

Mais acresce que a fundamentação deve ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir, e, no caso dos autos, a questão reveste simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se torne clara para a arguida, como, de resto, para qualquer cidadão.

No caso concreto, a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e a razão por que tais factos lhe foram imputados».

E nós de acordo.

O que discute a recorrente neste seu recurso é o facto de na decisão administrativa se ter escrito algo como sendo aquilo que ela contesta, quando é certo que tal não corresponde à verdade.

Invoca que:

- no âmbito da defesa escrita apresentada pela Recorrente foi invocado, resumidamente, que a mesma não praticou a infracção de que vinha acusada por falta de preenchimento dos pressupostos da infracção, nos seguintes termos:

· A montagem das instalações destinadas a operações de eliminação de resíduos perigosos não está sujeita a Declaração de Impacto Ambiental, mas apenas a sua laboração;

· A Agência Portuguesa para o Ambiente defende a aplicação do regime jurídico dos CIRVER em relação a algumas unidades a licenciar pela arguida, pelo que será esse o regime aplicável e não o Decreto-Lei n.°197/2005, de 08 de Novembro, invocado pelo IGAQT, o que determina a falta de fundamento legal da presente contra-ordenação.

· Sem prescindir a arguida invocou ainda que sempre actuou com vontade de cumprir a lei e em estreita colaboração com a administração e solicitou que o IGAOT usasse da faculdade prevista no artigo 39•0 do RJCOA e suspendesse a execução da sanção mediante o cumprimento pela arguida de certas obrigações ou que se estipulasse a coima no seu mínimo legal.

· Requereu que fossem inquiridas as testemunhas B... . da Mota e ....

Ora, para si, a decisão administrativa condenatória apenas alude à defesa apresentada pela Recorrente em dois momentos: num primeiro momento, refere de forma vaga e genérica que a prova dos factos teve por base a análise critica e conjugada do “auto de notícia n.°795/2009, do Relatório de Inspecção n.°1861/2009, bem como da pronúncia e dos documentos juntos pela sociedade arguida e depoimentos das testemunhas.”; num segundo momento refere expressamente que “em sede de defesa ao ora processo contra-ordenacional, a arguida alega a nulidade do auto de notícia e, consequentemente, da acusação, invocando para o efeito nomeadamente a omissão da fundamentação de facto e de direito.

Convenhamos que a decisão administrativa não prima pela correcção e pelo rigor.

Mas daí a considerar que esse «erro» de identificação das questões aduzidas pela defesa na sua «contestação» configuram nulidade da decisão administrativa é levar longe demais a dimensão garantística dos direitos de defesa de um arguido em processo contra-ordenacional.

Não poderemos dizer que a defesa se viu coarctada nos seus direitos com este lapso cometido no texto da decisão administrativa, razão pela qual não fará qualquer sentido invocar-se uma violação do artigo 32º/10 da CRP.

O que tal normativo constitucional não exige é que o processo contra-ordenacional, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal, como bem acentua o Acórdão desta Relação, datado de 29/2/2012:

«Conforme salientado já por este Tribunal, a norma do art.° 32º/10 da CRP introduzida pela revisão constitucional de 1989 quanto aos processos de contra-ordenação e alargada pela revisão de 1997 a quaisquer processos sancionatórios implica a inviabilidade constitucional da aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são fritas (direito de defesa), reagindo contra uma acusação prévia, apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cfr. Ac. n.° 659/06 e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo 1, Coimbra, 2005, p. 363).

Sem prejuízo dos demais direitos que outras normas constitucionais incluem no conjunto das garantias asseguradas aos arguidos em processos sancionatórios (cfr. art. 20º da CRP), o alcance atribuível à norma do n.° 10 do art.° 32º é, todavia, conforme igualmente acentuado na jurisprudência constitucional, apenas o que se deixou exposto, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios “, de “todas as garantias do processo criminal” (...)

Quer isto significar que a configuração constitucional do processo contra-ordenacional, se o subordina ao reconhecimento de um conjunto de garantias inerentes à respectiva natureza sancionatória, não o equipara, contudo, ao processo penal, não conduzindo, por isso, no plano da aplicação do direito ordinário, à directa transposição para o primeiro de todas e quaisquer regras expressamente previstas para o segundo, designadamente em termos de os elementos que este particularmente inclui se tornarem, só por isso, comuns àquele.

Da modelação constitucional do processo contra-ordenacional extraem-se, portanto, duas ideias de sentido aparentemente oposto mas complementar: a de que o processo contra-ordenacionais, como sancionatório que é, se encontra subordinado ao reconhecimento de um conjunto de garantias que o aproximam do processo penal, e, a de que tais garantias não são equivalentes ou equiparáveis às garantias asseguradas no âmbito do processo criminal, designadamente em termos de viabilizar a conversão daquela aproximação numa sobreposição integral de regimes».

No nosso caso, a arguida percebeu bem o que estava em causa no auto de notícia e defendeu-se.

Do conjunto da decisão administrativa resulta que tal defesa foi considerada, embora mais de forma indirecta do que explicitamente directa.

Entende a recorrente que invocou aspectos que colocam em causa os pressupostos da infracção imputada.

Na nossa opinião, a decisão administrativa acabou por arredar tais argumentos, de forma assaz indirecta – obviamente não muito correcta -, não se compreendendo ou aceitando que, nesta fase judicial do procedimento contra-ordenacional, se conheça de vícios – não essenciais - da primitiva decisão administrativa, quando é certo que já existe uma decisão judicial, após julgamento, onde se suprem tais eventuais anteriores vícios – mais de forma do que de conteúdo -, aí sim, de forma assaz directa.

Entender-se o contrário (um máximo de exigência na apreciação do texto da decisão administrativa) seria desvirtuar este processo legalmente mais célere e menos garantístico (porque não mexe com direitos, liberdades e garantias com dimensão ética penal), caminhando, a olhos vistos, para prescrições indesejáveis e para uma natural impunidade dos reais infractores às normas contra-ordenacionais.

Note-se ainda que não é razoável que se imponha à autoridade administrativa a tarefa de apreciar explicitamente cada uma das questões invocadas, reportando-se a nulidade em causa ao conhecimento de «questões», não sendo necessário apreciar todos os argumentos invocados pelas partes[6].

Por tal motivo, só resta indeferir a requerida nulidade.

f)- No que concerne à alegada falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão da execução da coima (artigo 39° do Decreto-Lei n.°50/2006, de 29.08) entendemos, no seguimento do sabiamente sentenciado, que tal “não constituiu qualquer nulidade porquanto não prevista no artigo 119° e 120º do C.P.P, nem nos artigos 374º e 379° do C.P.P, o que poderá constituir é uma mera irregularidade, perfeitamente sanável nesta sede aquando da determinação da medida da coima, se a mesma se impuser”.

Foi o que foi feito pelo tribunal recorrido.

Escreveu-se a este propósito:

«Atentos os antecedentes da recorrente não se reputa como proporcional, nem adequado ao caso concreto, a suspensão da execução da coima nos termos do artigo 39º do DL 50/2006, de 29.08, mas apenas a redução da coima pela falta de benefício económico».

Afastou, deste modo, a suspensão da execução da coima e nós estamos perfeitamente de acordo com isso – não esqueçamos que estamos a falar de uma empresa que tem antecedentes contra-ordenacionais:

«21. Do cadastro ambiental da recorrente constam averbadas condenações no pagamento de coimas, nos montantes de 2500,00 €, 4.000,00 €, 3.500,00 € pela prática de contra-ordenações, p. e p. pelos DL n.º46/94, de 22.02, DL 239/97, de 09.09, DL por factos praticados em 09.10.2006, 17.02.2005, 16.02.2004.

22. Do cadastro ambiental da recorrente consta a menção da existência de processos pendentes de decisão de impugnação judicial».
Note-se ainda que a decisão administrativa, ao contrário do tribunal recorrido, acaba por concluir existir benefício económico para a arguida, o que leva a que se compreenda que nem sequer tenha cogitado a hipótese de aplicação da figura da suspensão da execução da coima[7].

3.4. Como tal, e perfectibilizada que foi, sob o ponto vista objectivo e subjectivo, a prática da contra-ordenação p. e p. pelo nos termos dos artigos 17° e 37°. n° 1, alínea c) do Decreto-Lei n° 69/2000, de 3 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n° 197/2005, de 8 de Novembro, relativa à execução do projecto de ampliação de uma unidade sujeita a AIA sem a necessária DIA, o recurso da arguida só pode improceder, só nos restando validar a justeza material e formal da sentença recorrida.

3.5. O ambiente somos nós que o fazemos, não nos cansamos de dizer.
Costumeiramente observamos o português atribuindo aos governos responsabilidades por diversos factos quotidianos.
Com as questões ambientais não é diferente.
Não raras vezes, vemos, ouvimos e lemos reclamações entre pessoas próximas em relação a depósitos irregulares de lixo, a materiais de construção, a poluição sonora, a poluição hídrica, a veículos em situações irregulares…
No entanto, por tantas e tantas vezes, essas reclamações restringem-se a uma rápida conversa ou mesmo a um «stress momentâneo».
Passado aquele momento de revolta, simplesmente retomamos a nossa rotina, como se nada tivesse acontecido.
Ao invés de reclamarmos ou atribuirmos a culpa das mazelas quotidianas às tutelas deveríamos, inicialmente, colher informação bastante sobre as nossas obrigações legais.
Em Portugal, os princípios legais supremos em matéria ambiental são atribuídos pela Constituição, mormente, no seu artigo 66º.
Acreditamos, ainda, que o factor mais importante a se colocar aqui é que a obrigação se apresenta muito mais ampla do que a simples preservação do ambiente. Usar racionalmente os recursos naturais, não dispor dos resíduos de maneira inadequada, respeitar as restrições ambientais, manter veículos funcionando dentro das normas ambientais de emissões de ruídos e atmosféricas, entre outros, são sim obrigações, não sendo, contudo, as únicas.
Também é nossa obrigação a defesa do ambiente.
Isso mesmo defendem Vital Moreira e Gomes Canotilho na sua CRC anotada, ao escreverem que «este dever de defesa do ambiente, previsto no artigo 66º da CRP, é caracterizado por 3 aspectos:
- a obrigação de não atentar contra o ambiente
- a existência das obrigações positivas, como, por exemplo, a obrigação de tratar de resíduos ou efluentes domésticos e industrias;
- o dever de impedir os atentados de outrem ao ambiente, incluído pelo exercício da acção popular».
Que não se chegue a esse ponto e que as decisões dos nossos tribunais sejam corajosas, proactivas, preventivas e suficientemente severas para fazer recuar o cego e surdo transgressor, o infiel «jardineiro/cidadão», a empresa mais negligente…
Deste modo, manteremos o montante da coima tal como foi gizado pelo tribunal recorrido, não nos merecendo qualquer censura a operação intelectual feita para dosear a sua medida exacta, respeitados que foram, com equidade e justo equilíbrio, os pressupostos do artigo 18º do RGCOC e do artigo 20º, n.º 1 da Lei n.º50/2006 de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º89/2009, de 31 de Agosto.

            III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em negar provimento ao recurso intentado por W... –, LDA, mantendo na íntegra a sentença recorrida.



            Custas pela arguida, com a taxa de justiça fixada em 3 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP, ex vi do artigo 74º/4 do RGCO, e 8º/4 e Tabela III do RCP já aplicável aos autos].

 


Paulo Guerra (Relator)

Alberto Mira



[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] Tal normativo prescreve que:

«1. A autoridade administrativa que procedeu à aplicação da sanção pode suspender, total ou parcialmente, a sua execução.

2. A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a saúde, segurança das pessoas e bens e ambiente.

3. O tempo de suspensão da sanção é fixado entre um e três anos, contando-se o seu início a partir da data em que se esgotar o prazo da impugnação judicial da decisão condenatória.

4. Decorrido o tempo de suspensão sem que o arguido tenha praticado qualquer contra-ordenação ambiental, e sem que tenha violado as obrigações que lhe hajam sido impostas, fica a condenação sem efeito, procedendo-se, no caso contrário, à execução da sanção aplicada».

[3] Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário.

[4] Sobre esta consideração, é profusamente explícito o Acórdão da Relação do Porto de 1/10/2008 (Pº 0843223), lido em www.dgsi.pt –, onde se deixou escrito o seguinte:

«Então, o que há que apurar é se do RGCO resulta que a data da audição das testemunhas não tem que ser comunicada ao arguido durante a fase administrativa.

Tendo presente o CPP e o regime das contra-ordenações, é fácil ver que se trata de procedimentos muito diferentes, sujeitos a regras também muito diferentes.

Uma regra do procedimento contra-ordenacional claramente distinta da do processo penal consta do art. 44º e dispõe que no processo de contra-ordenação as testemunhas não são ajuramentadas. Esta é uma diferença essencial e tem que ser entendida no sentido de a lei estar a transmitir a mensagem de que os processos são muito diferentes, como diferentes são as exigências formais e substanciais a cumprir.

Ao chamarmos a atenção para as diferenças de regimes não queremos dizer, evidentemente, que no processo de contra-ordenação o arguido é desprotegido. Claro que assim não é pois que a garantia de defesa dos seus direitos tem assento constitucional. Efectivamente, conforme determina o art. 268º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, «é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas».

Entendemos que este direito está devidamente salvaguardado no diploma, através do direito de audiência e do direito de assistência por defensor, direito este que não equivale à sua presença necessária a todos os actos isto, claro está, no que respeita à fase administrativa do processo, que é aquela que aqui está em causa.

Mas, em sentido contrário, podemos esgrimir com o preceituado no art. 46º, n.º 1, defendendo que ao determinar que todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pela autoridade administrativa têm que ser comunicadas, a norma impõe, então, a notificação do despacho que designa data para a inquirição das testemunhas.

Sendo certo que é um entendimento possível, não concordamos com ele.
Repetindo, o processo penal e a fase administrativa do processo contra-ordenacional são processos muito diferentes, sujeitos a regras diferentes porque as situações tuteladas são, também, muito diferentes. Transpor as regras daquele para este, sem mais, apenas por as situações não estarem previstas leva, fatalmente, a um desvirtuamento deste processo, tudo em frontal oposição com as suas características próprias.

Isto por um lado.

Por outro lado, o que a norma do art. 46º pretende é assegurar o pleno exercício dos direitos de defesa e estes ficam devidamente salvaguardados, neste específico processo e nesta fase concreta, com o direito de audiência.

Assim, e em conclusão, diremos que não é pelo facto de determinadas situações não estarem expressamente previstas que temos que transpor para o processo contra-ordenacional todas as normas do processo penal. Isso significaria adulterar a natureza específica do processo contra-ordenacional, introduzindo-lhe regras pensadas para situações completamente diferentes, principalmente quando ainda estamos em sede de fase administrativa, engrossando o seu normativo e tornando o processo fatalmente menos ágil».

[5] Nele se determinou, a certo passo, que:

“IV- Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.°, n.° 3, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 42.°, n.° 2, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 20 dias após a notificação (artigos 205.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41º, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.°, n.° 3, alínea c), e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações».

Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenaçõesJ. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada (artigos 121.°, n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações).

[6] Leia-se, a este propósito e nesta linha, o Acórdão da Relação de Coimbra de 29/2/2012, no Pº 125/11.7TBFCR.C1.
[7] Aí se escreveu: «Finalmente e no que toca ao benefício económico retirado pela arguida com a prática da contra- ordenação, o apuramento deste benefício deverá ser feito tendo em consideração a natureza da contra-ordenação cometida e o apuramento das circunstâncias que rodearam a sua prática, entendendo-se por benefício económico todo o proveito económico que não ocorreria no património do agente se este tivesse adoptado a conduta que o ordenamento lhe impunha e não tivesse contrariado a acção administrativa.
Assim sendo, no caso concreto em apreço, considera-se que terá, de facto, existido algum benefício económico, consubstanciado nos custos inerentes ao procedimento de avaliação de impacte ambiental».