Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
562/09.7T2AVR-P.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SOBRE A MASSA
CRÉDITOS SOBRE A INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 46.º, N.º 1; 51.º; 128.º; 172º; 224.º, N.º 1 DO CIRE
Sumário: 1. Numa insolvência, um mesmo crédito não pode ser tratado e qualificado, ao mesmo tempo, indistintamente, como “crédito sobre a massa” e como “crédito sobre a insolvência”.

2. Quem se arrogar titular de um crédito sobre a massa não preenche a previsão do artigo 128.º do CIRE e não pode reclamar o seu crédito nos termos de tal preceito; devendo antes aguardar/requerer que tal crédito, sobre a massa, lhe seja liquidado, com precipuidade, nos termos do artigo 172.º do CIRE.

3. Deve ser considerado como “crédito sobre a insolvência” o crédito resultante e emergente da cessação de contrato de trabalho declarado cessado pela administração da devedora/insolvente, que, ao abrigo do artigo 224.º, n.º 1 do CIRE, está a administrar a massa insolvente.

4. Os créditos consistentes na compensação/indemnização por cessação do contrato de trabalho, correspondentes às vicissitudes/encerramento da empresa insolvente, são créditos da insolvência; não preenchendo alguma das alíneas do artigo 51.º do CIRE.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório
Por apenso à acção especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação a sociedade “A...” – a Administradora apresentou a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art. 129º do CIRE.
Entre os créditos reconhecidos, incluiu, sem que tivesse sido reclamado, o crédito, no montante de 541,27 € (do Subsídio de Natal de 2008), do trabalhador B....
Cumprido o disposto no art. 129.º, n.º 4, do CIRE veio o B..., com os demais sinais dos autos, apresentar impugnação nos termos do art. 130.º do CIRE, dizendo, em síntese, que, além do referido crédito de 541,27 € sobre a insolvente, tem um crédito de 14.071,16 € sobre a massa insolvente.
A Administradora respondeu dizendo, em resumo, que tal crédito “está em condições” de ser reconhecido.
Em 09/04/2010, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos; sentença que não inclui o crédito constante da impugnação do B....
E, em 11/05/2010, foi proferida em relação à impugnação do B... a decisão que, na íntegra, se passa a transcrever:

“ Ao abrigo do disposto no art. 146° do CIRE A... instaurou os presentes autos para verificação ulterior de crédito de natureza laboral contra a insolvente (crédito não reclamado no prazo que nos autos principais foi fixado para reclamação de créditos), nos montantes de:

- € 1.623,81 a título de retribuições referentes aos meses de Setembro a Novembro de 2009;

- e € 1.488,49 a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal referente ao ano de 2009;

- € 10.958,86 a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador com fundamento em extinção do posto de trabalho à razão de 1 mês de retribuição (€ 541,27) por ano de antiguidade (20 anos mais 90 dias).

Em fundamento do pedido alega, em síntese, que prestou a sua força de trabalho ao serviço da insolvente desde 01.09.1989 até 21.09.2009, data em que cessou por vontade da entidade patronal com fundamento em extinção do posto de trabalho, conforme lhe foi comunicada por carta de 16.09.2009, que não respeitou o aviso prévio de 75 dias, pelo que lhe são devidas retribuições até 30.11.2009.

Não foi deduzida oposição.

O tribunal é competente, o processo o próprio e nada obsta à apreciação de mérito.

A falta de contestação importa o reconhecimento dos factos alegados (art. 784° do CPC, ex vi art. 148° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e, pelo enquadramento jurídico que os mesmos merecem, a procedência do pedido com o reconhecimento do crédito laboral do autor como crédito com privilégio mobiliário e imobiliário especial a pagar em primeiro lugar pelo produto de todos os bens móveis apreendidos ou a apreender para a massa insolvente, a par dos demais créditos laborais já verificados no âmbito do apenso para verificação e graduação de créditos.

Decisão

Em conformidade, julgo verificado o crédito laboral reclamado pelo autor, o qual se qualifica como crédito com privilégio mobiliário geral e imobiliário especial, a pagar rateadamente com os demais créditos laborais e pela graduação para eles estabelecida por sentença proferida no apenso de reclamação de créditos (pontos B, V, 1° do respectivo dispositivo).

Sem custas por delas estar isento o autor. ”

Inconformado, interpôs o B... recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que estabeleça que o crédito verificado é dívida da Massa Insolvente, a pagar nos termos do art. 172°, n.° 1 a 3, do CIRE.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 - Esta acção visou e logrou verificar créditos constituídos posteriormente ao fim do prazo das reclamações de créditos, vencidos por força da continuação em vigor do contrato de trabalho do recorrente;

2 - Nos termos do art. 51°, n.° 1, al. f) e g) do CIRE, as dívidas constituídas no âmbito da execução deste contrato são dívidas da Massa Insolvente;

3 - São assim dívidas que serão pagas antes dos créditos sobre a Insolvência, por disponibilidades monetárias advindas da retirada de bens ou direitos da Massa Insolvente. (art. 172°, n.°s 1 a 3).

4 — Assim sendo, este crédito do recorrente é dívida da Massa Insolvente devendo ser-lhe aplicado o regime do art. 172° e não a sua inserção na Sentença de graduação de créditos ao lado dos demais créditos laborais e pela graduação aí estabelecida, como foi decidido.

Assim decidindo, violou o Exmo Juiz “a quo”, as disposições dos art.°s 51°, n.° 1, ais. f) e g) e 172°, n.°s 1 a 3, do CIRE.

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

A) A empresa A... apresentou-se à insolvência em 15 de Maio de 2009.

B) Com a PI, a então requerente juntou a relação do pessoal ao seu serviço, de que fazia parte o trabalhador B....

C) A A empresa A... foi por sentença proferida em 26.05.2009 – transitada em julgado no dia 07.07.2009 – declarada insolvente; tendo-se determinado, nos termos do art. 224.º, n.º 1, do CIRE, que a administração da massa insolvente fosse assegurada pelo devedor, através do seu actual administrador.

D) Tal administrador da A..., por carta enviada, em 16 de Setembro de 2009, procedeu ao despedimento do recorrente, nos seguintes termos:

“ (…)

Como é do seu conhecimento, há já vários anos que a empresa se encontra com graves dificuldades económicas e financeiras, motivadas por uma redução da procura de bens e serviços por nós prestados.

A presente situação tem vindo a implicar uma redução significativa da actividade comercial desempenhada pela empresa, com a consequente quebra de encomendas por parte dos clientes.

A situação supra descrita tem-se vindo a agravar com o passar dos anos, apresentando nos últimos anos um elevado prejuízo.

Em face da presente situação, não nos restou outra alternativa serão a de aderir ao processo de insolvência.

Assim, cumpre-nos informar que o contrato de trabalho sem termo celebrado com V. Exa. em 28/09/1989 deixará de vigorar no próximo dia 21/09/2009

(…)”

E) A Administradora da Insolvência apresentou oportunamente o seu relatório, ao abrigo do art. 155.º do CIRE, tendo sido apresentados Planos de Insolvência propondo a liquidação da Insolvente e acabando, a final, estando a actividade da Insolvente já encerrada, por ser deliberada a liquidação da massa insolvente pela Sr.ª Administradora.

F) A administradora da insolvência enviou ao recorrente carta, datada de 28 de Setembro de 2009, com o seguinte teor:

“ (…) Venho contactá-lo na qualidade de Administradora da Insolvência de A..., cujo processo corre no Juízo do Comércio da Comarca do Baixo Vouga sob o n° 562/09.7T2AVR.

Cumpre-me informar, nos termos do Artigo 129° n° 4 do CIRE, que o seu crédito, não reclamado no Processo acima referido, foi por mim reconhecido, conforme cópia da Relação de Créditos Reconhecidos que junto lhe envio.

Pode V.ª Ex.ª impugnar tal Relação de Créditos, nos termos do Artigo 130° n° 1 e 2 A do CIRE. Caso pretenda apresentar impugnação deve fazê-lo no prazo de 10 dias mediante requerimento dirigido ao Meritíssimo Juiz do Processo do Tribunal da Comarca do Baixo Vouga. Os prazos são contínuos, não se suspendendo durante as férias judiciais (artigo 9° n° 1 do CIRE).

Às impugnações é aplicável o disposto no n° 2 do Artigo 25° do CIRE, pelo que devem ser oferecidos todos os meios de prova de que disponha.

(…)”

G) Na sequência de tal missiva, o recorrente, no requerimento inicial destes autos, entrado em 13/10/2009, diz que “(…) vem impugnar a lista de credores reconhecidos na insolvência (…), nos termos do art. 130.º, n.º 1 e 2, do CIRE (…)”; referindo no art. 9.º que “os seus créditos são, assim, do total de 14.612,43 €, sendo 541,27 € sobre a insolvente e 14.071,16 € sobre a massa insolvente”; e terminando a “ (…) requerer o seu acrescento à lista de credores reconhecidos, na parte ainda aí não constante e verificação dos seus créditos para ulterior pagamento segundo a graduação que lhes competir face à sua qualidade”.

H) Integral conteúdo da decisão recorrida, supra transcrita.


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III – Fundamentação de Direito

É usual e ajustado iniciar a apreciação dum recurso dizendo-se que o mesmo se encontra delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. art. 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do CPC).

Trata-se de afirmação que, no caso, não é apenas de “estilo”.

A 1.ª observação/ponderação a fazer tem justamente a ver com a delimitação, positiva e negativa, do objecto da apelação.

Está unicamente em causa, no presente recurso, a “qualidade” do crédito – se sobre a insolvência ou se sobre a massa – do recorrente.

Não se discute pois o seu montante (de 14.071,16 €) e/ou a sua proveniência (ligada à cessação do contrato de trabalho do recorrente); e tão pouco se discute o lugar da respectiva graduação caso a sua “qualificação”, como crédito sobre a insolvência, esteja correcta.

Significa o que se acaba de dizer que não nos diz respeito debruçar-nos sobre a bondade da “convolação” do requerimento de impugnação do art. 130.º do CIRE para requerimento de verificação ulterior do art. 146.º do CIRE[1].

E significa também que não nos diz respeito apurar da validade/regularidade da cessação do contrato de trabalho operada, quando, não obstante a administração ser assegurada pelo devedor (cfr. al. C) dos factos provados), estava declarada a insolvência e nomeada e em funções a Administradora da Insolvência.

O recurso – a divergência do recorrente[2] e, por via disso, o objecto do recurso – “aceita” e pressupõe o crédito e o seu montante, iniciando-se no momento imediatamente a seguir ao reconhecimento de tal crédito (emergente e decorrente da cessação do contrato de trabalho – alínea D) dos factos provados).

A questão – toda a questão, insiste-se – está pois, apenas e só, em saber se tal crédito deve ser considerado como um “crédito sobre a massa” e não, ao invés do considerado na decisão a quo, como um “crédito sobe a insolvência”; tendo-se em vista beneficiar da precipuidade prevista nos artigos 172.º e 46.º, n.º 1, do CIRE.

Questão em que, desde já se antecipa, não assiste razão ao recorrente e que, acrescenta-se, até foi introduzida, salvo o devido respeito, de modo algo “irregular”.

Vejamos porquê:

Em termos processuais – tanto na impugnação do art. 130.º do CIRE, como na verificação ulterior do art. 146.º do CIRE – estamos ainda e sempre, é seguro, no apenso expressamente previsto no art. 132.º do CIRE.

Dito doutro modo, estamos no vulgarmente designado apenso de verificação e graduação de créditos, que visa verificar e graduar os créditos sobre a insolvência; e não também os créditos sobre a massa.

Que é assim resulta com cristalina clareza do art. 128.º, n.º 1, do CIRE, em que se diz que, “dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória de insolvência, devem os credores da insolvência (…) reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham (…)”.

Sendo certo – acrescenta-se, embora se afigure despiciendo – que a expressão “credores da insolvência” tem no CIRE, como resulta do cotejo entre os artigos 47.º e 51.º do CIRE, um sentido preciso que não inclui nem abarca todos aqueles que sejam titulares de créditos; que não inclui nem abarca – é o que aqui importa salientar – os credores da massa.

Aliás – confirmando tal sentido preciso e diverso dos dois conceitos em causa – a epigrafe do citado art. 47.º é nem mais nem menos que “conceito de credores da insolvência” e o também citado art. 51.º, n.º 2, adverte que “os créditos correspondentes a dívidas da massa insolvente e os titulares desses créditos são neste código designados, respectivamente, por créditos sobre a massa e credores da massa”.
Significa o que se acaba de dizer que um mesmo crédito não pode ser tratado e qualificado, ao mesmo tempo, indistintamente, como “crédito sobre a massa” e como “crédito sobre a insolvência”.
Se é uma coisa não é a outra e, por conseguinte, quem é titular – ou se arroga – dum crédito sobre a massa não preenche a previsão do art. 128.º do CIRE e não deve, tem ou pode reclamar o seu crédito nos termos de tal preceito; devendo antes aguardar/requerer que tal crédito, sobre a massa, lhe seja liquidado, com precipuidade, nos termos do art. 172.º do CIRE.
Concluindo pois neste ponto, quem, credor sobre a massa e invocando tal “qualidade” para o seu crédito, o reclame nos termos do art. 128.º do CIRE não pode/deve ver o seu crédito verificado e graduado; uma vez que não é este o desígnio da verificação de créditos do Título V do CIRE (o mesmo é dizer, do apenso, e respectivos incidentes, previsto no art. 132.º do CIRE).
É verdade que na sentença que encerra tal apenso de verificação e graduação se costuma dizer, a final, em regra, que “as dívidas da massa saem precípuas”, porém, isto não passa duma “lembrança”, duma fórmula abstracta, que nada acrescenta à letra da lei e que vale quer conste quer não conste de tal sentença de graduação; tanto mais que não se diz – nunca se diz – quais são as concretas dívidas da massa que gozam de precipuidade (aliás, elas podem ocorrer e ocorrem após a sentença de graduação e até ao termo final do processo).
Enfim, se se considerasse – o que não é o caso, como já antecipámos – que o crédito do recorrente era um “crédito sobre a massa”, a consequência, em termos decisórios (da decisão substitutiva), seria apenas e só a de o extirpar da graduação; e não também, em termos decisórios, de o graduar com precipuidade.
É que, insiste-se uma última vez, o apenso em que o presente recurso se situa e a sentença que lhe põe termo – em que a decisão sob recurso se incorpora – visam o reconhecimento e graduação dos créditos sobre a insolvência; apenas destes créditos e não também dos créditos sobre a massa.
Daí o termos referido ter sido a questão introduzida de modo algo “irregular”.
Efectivamente, dizendo-se o recorrente, como fez no requerimento inicial, titular dum “crédito sobre a massa” e pretendendo assim reclamá-lo, a solução imediata – quer se esteja na impugnação do art. 130.º do CIRE (como consta do requerimento inicial) quer na verificação ulterior do art. 146.º do CIRE – seria a de o elucidar, sem que tal envolvesse uma qualquer apreciação sobre a “qualidade” do crédito, que estava no meio processual “errado”, uma vez que, aqui, só são reclamados, reconhecidos e graduados os créditos sobre a insolvência e, em consequência, a solução imediata seria a de determinar que a reclamação não iria ser aqui considerada, devendo, antes, ser apresentada à Administradora da Insolvência para efeitos do art. 172.º do CIRE.
E assim se evitaria o paradoxo, perdoe-se-nos a expressão – num meio processual que tem como único e exclusivo objectivo reconhecer/verificar e graduar créditos sobre a insolvência – de haver um credor/reclamante que recorre duma decisão que, atento o desiderato processual do meio processual em causa, lhe concede, à primeira vista, total “ganho de causa”[3].
Mas, isto dito, debrucemo-nos sobre a substância da questão:
O crédito do recorrente é mesmo, como bem foi considerado, um “crédito sobre a insolvência”[4].

A empresa insolvente foi assim declarada por sentença proferida em 26.05.2009, transitada em julgado no dia 07.07.2009.

À sentença de insolvência não se seguiu, imediatamente, o encerramento da empresa; que só veio a ocorrer mais tarde.

Porém, sublinha-se, o crédito em causa (os 14.071,16 €) não decorre ou emerge de trabalho prestado, não pago, após a data da sentença de insolvência.

O crédito reclamado é desencadeado e emerge, todo ele, da cessação do contrato de trabalho do reclamante/recorrente[5]

Contrato de trabalho que foi declarado cessado, em 21/09/2009, pela administração da devedora/insolvente, que, ao abrigo do art. 224.º, n.º 1, do CIRE, estava a administrar a massa insolvente.

Mas, é este o ponto, a circunstância de ter sido a administração da devedora/insolvente a fazer cessar o contrato de trabalho não destrói, inutiliza ou faz esquecer a circunstância de estar já declarada a insolvência da empresa.

Começámos por referir que não faz parte do objecto do recurso a existência do crédito a favor do recorrente e o montante de tal crédito.

Todavia, para o “qualificarmos” – como “crédito sobre a insolvência” ou como “crédito sobre a massa” – não podemos deixar de considerar/ponderar como é que um tal crédito é devida e correctamente constituído.

Embora o CIRE dedique todo o Capítulo IV (sob a epígrafe “efeitos sobre os negócios em curso” - art. 102.º e ss.) do Título IV (em que regula os efeitos da declaração de insolvência) ao destino dos negócios celebrados pelo insolvente antes do momento em que tal situação ocorre, o certo é que nenhuma de tais normas é aplicável à insolvência do empregador.

Quanto ao destino do contrato de trabalho, na insolvência do empregador, vale a norma do art. 277.º do CIRE, em que se dispõe que “os efeitos da declaração de insolvência relativamente a contratos de trabalho e à relação laboral regem-se exclusivamente pela lei aplicável ao contrato de trabalho”.

E nos termos do art. 347.º, n.º 1, primeira parte, do actual C. de Trabalho[6]a declaração judicial de insolvência do empregador não faz cessar o contrato de trabalho”; o que significa que a declaração de insolvência do empregador não determina a extinção dos contratos de trabalho dos trabalhadores ao seu serviço, nem determina sequer a sua suspensão.

Sendo assim, declarada a insolvência, incumbe ao administrador da insolvência continuar a satisfazer as obrigações contratuais para com os trabalhadores da insolvente; incumbência que pertencerá ao devedor/insolvente quando, como foi o caso dos autos, lhe é atribuída a administração da massa insolvente nos termos do art. 223.º e ss. do CIRE.

Mas, evidentemente, excluída a eficácia extintiva automática da declaração de insolvência em sede de contrato de trabalho, tal não significa que as vicissitudes da insolvente – da empresa ou estabelecimento da insolvente – não deixem de se repercutir e/ou que não façam cessar os contratos de trabalho.

Que assim é – como porventura não pode deixar de ser[7] – resulta claramente do disposto na parte final do n.º 1 e do n.º 2 do actual 347.º do C. Trabalho[8]; em que se dispõe:

1 - A declaração judicial de insolvência do empregador não faz cessar o contrato de trabalho (…) enquanto o estabelecimento não for definitivamente encerrado.”

“ 2 - Antes do encerramento definitivo do estabelecimento, o administrador da insolvência pode fazer cessar o contrato de trabalho de trabalhador cuja colaboração não seja indispensável ao funcionamento da empresa.”

Acrescentando-se no n.º 3 que “ a cessação de contratos de trabalho decorrente do encerramento do estabelecimento ou realizada nos termos do n.º 2 deve ser antecedida de procedimento previsto nos artigos 360.º e seguintes, com as necessárias adaptações.[9]

É pois à luz deste normativo que um crédito como o do reclamante/recorrente é devida e correctamente constituído.

E uma de duas:

O contrato de trabalho do reclamante/recorrente cessou ou em resultado do encerramento definitivo da empresa ou por o administrador[10], antes do encerramento definitivo da empresa, ter considerado a sua colaboração dispensável à manutenção do funcionamento da empresa[11].

Ao lado da situação indiscutivelmente qualificável como de caducidade do contrato de trabalho, a lei admite uma segunda situação em que, sendo a recepção da prestação de trabalho ainda possível, confere poderes ao administrador – tendo presente que o mesmo deve agir como gestor diligente e evitar, quanto possível, o agravamento da situação económica da insolvente – para promover o despedimento dos trabalhadores dispensáveis.

E para ambas as situações estatui-se, no referido n.º 3 do art. 347.º, que a cessação do contrato de trabalho “deve ser antecedida de procedimento previsto nos artigos 360.º e seguintes, com as necessárias adaptações”; ou seja, deve ser antecedida do procedimento previsto para o despedimento colectivo, aplicado com as necessárias adaptações.

Não vamos, evidentemente, aqui averiguar do integral cumprimento, em relação à cessação do contrato do reclamente/recorrente, das “necessárias adaptações”[12] – uma vez que, insiste-se, não faz parte do objecto do recurso a existência do crédito a favor do recorrente e o montante de tal crédito – porém, há uma, relacionada com o art. 383.º, c) do C. Trabalho, que importa analisar.

Dispõe-se em tal preceito[13] que o despedimento colectivo é ilícito se o empregador “não tiver posto à disposição do trabalhador despedido, até ao termo do prazo de aviso prévio, a compensação a que se refere o artigo 366.º e os créditos vencidos ou exigíveis em virtude da cessação do contrato de trabalho, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 4 do artigo 363.º

Claramente, a particularidade da situação de insolvência justifica que a não disponibilidade das compensações/créditos devidos não torne a cessação do contrato de trabalho ilícita.

Porém, isto dito, coloca-se ainda a seguinte questão:

Sendo a disponibilidade de tais compensações/créditos, nos termos do C. do Trabalho, um requisito de licitude, será que tais compensações/créditos não devem passar a beneficiar, dispensada a sua disponibilidade para conferir licitude à cessação do contrato de trabalho, dum regime especial e privilegiado de pagamento, isto é, da precipuidade própria dos créditos da massa insolvente?

Trata-se de questão a que, como resulta do desfecho que logo “ab initio” traçámos, respondemos negativamente[14].

Com se vê do art. 162.º do CIRE, a liquidação da massa deve privilegiar a venda global da empresa e, embora isso não pressuponha necessariamente a continuidade da exploração, a verdade é que, por vezes, tal continuidade é importante para a viabilização da alienação em termos satisfatórios; competindo à assembleia de credores, na sua reunião de apreciação do relatório do administrador judicial, decidir sobre o encerramento ou manutenção em actividade da empresa – ex vi art. 156.º, n.º 2, do CIRE – que, em princípio, continuará em funcionamento até essa altura, a não ser que seja decidido fechá-la em conformidade com o art. 157.º do CIRE.

Independentemente de saber se foi isto – encerramento antecipado – ou não que exactamente ocorreu[15], o certo é que a essência da ratio da existência de dívidas qualificáveis como “dívidas da massa”, a pagar com precipuidade, está na circunstância de haver dívidas do funcionamento da empresa do período posterior à declaração de insolvência e de haver dívidas que são contraídas tendo exclusivamente em vista a própria actividade de liquidação e partilha da massa, situação em que não estão ou se enquadram as dívidas por cessação dos contrato de trabalho, principalmente quando tal cessação, como é o caso, está indissoluvelmente ligada às vicissitudes que “laceravam” a empresa insolvente, que a conduziram à sua insolvência[16] e que culminaram com o seu encerramento.
A pensar-se diferentemente – não representando a declaração de insolvência a extinção dos contratos de trabalho em que a insolvente é empregadora – teríamos que, em caso de encerramento final da empresa da insolvente, todas as indemnizações/compensações por cessação de contratos de trabalho seriam sempre créditos sobre a massa[17]; apenas e só, na generalidade dos casos, por formalmente a cessação dos contratos de trabalho ocorrer em procedimentos já levados a cabo na vigência temporal da Administração da Insolvente.
Mais, assim vistas as coisas – declarada a insolvência, privado o insolvente duma administração “independente” e/ou esta entregue ao administrador da insolvência – uma vez que quase tudo passa pela actuação do administrador, uma vez que em quase tudo estão incorporados actos do administrador, então, tudo ou quase tudo seriam dívidas da massa.
O despropósito da conclusão desacredita, como sempre, a bondade do raciocínio[18].
Os créditos consistentes na compensação/indemnização por cessação de contrato de trabalho, subsequente às vicissitudes/encerramento da empresa insolvente, são créditos da insolvência; não preenchendo alguma das alíneas do art. 51.º do CIRE[19].

Em conclusão, improcede “in totum” o que o apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o completo naufrágio da apelação e a confirmação do decidido na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam.


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IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


Barateiro Martins (Relator)
Arlindo Oliveira
Emídio Santos

[1] Matéria sobre a qual os autos não nos dão uma informação completa do que porventura possa ter acontecido; designadamente, sobre as razões quer da intempestividade da impugnação quer da verificação da excepção constante do art. 146.º, n.º 2, al. a), parte final, do CIRE.
[2] Dizendo respeito, sublinha-se, tão só ao crédito de 14.071,16 € constante do requerimento de impugnação.
[3] Passe o exagero, é quase como um “venire contra factum proprium”, uma vez que o credor põe-se a reclamar num meio processual que pressupõe um determinado tipo de pedido e que conduz a um determinado resultado e, obtido na íntegra o pedido/resultado típicos do meio processual em que se inseriu, chama a atenção que queria outro e diverso resultado. Assim vista a situação – e procuramos tentar não a ver assim – receamos que a solução até passa/deva ser a de considerar que, em face do pedido do reclamante/recorrente, não é este apenso (do art. 132.º do CIRE) o meio processual próprio, o que, em termos práticos, poderá conduzir a uma solução assaz desagradável para o reclamante/recorrente; uma vez que quando usar o meio processual próprio, para a sua pretensão, deparar-se-á com o obstáculo substantivo do seu crédito ter sido por si mal qualificado e, nessa altura, já não estará a tempo para “voltar atrás” e, com o pedido correcto, recorrer ao meio processual em que nos movemos. Enfim, será/seria algo “farisaico”, reconhecemo-lo, mas o reclamante/recorrente, perdoe-se-nos, “põe-se a jeito”.
[4] Daí que se compreenda – tratando-se dum crédito sobre a insolvência e reclamado no meio processual em que estes créditos devem ser reclamados – que o tribunal o haja aqui reconhecido e graduado, em vez de se ter limitado a dizer, como podia ter dito, que este não é o local processual próprio para reclamar créditos que diz e invoca serem “créditos sobre a massa”.

[5] Mesmo aquilo que o reclamante/recorrente designa como retribuições de Setembro/Novembro de 2009 é, na sua óptica, por o pré-aviso de 75 dias não ter sido respeitado; e não por haver tempo efectivo de trabalho não pago.

[6] Em tudo semelhante ao disposto no art. 391.º, n.º 1, do C. Trabalho de 2003.

[7] Efectivamente, quando e se ocorre o encerramento definitivo do estabelecimento, verifica-se uma impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação do trabalho, o que sempre configurará uma situação de caducidade do contrato de trabalho – cfr. art. 343.º, b), do C. Trabalho actual e art. 387.º, b), do C. Trabalho de 2003.
[8] Cujo sentido não difere do que constava dos n.º 1 e 2 do art. 391.º do C. Trabalho de 2003.

[9] Cujo conteúdo também existia no n.º 3 do art. 391.º do C. Trabalho de 2003.
[10] No caso, o devedor/insolvente.

[11] Se porventura se sustentar que a cessação do contrato de trabalho do recorrente foi por outra causa e noutra modalidade, então, o devedor/insolvente exorbitou dos seus poderes de administração e, em consequência, não estamos sequer perante dívidas emergentes de actos da administração da insolvência, o que conduz, do mesmo modo, mas por outra via, à solução de não qualificar o crédito do recorrente como “crédito sobre a massa”.

[12] “Necessárias adaptações” que, aliás, serão seguramente bem maiores, em relação aos formalismos do C. Trabalho, no caso da cessação do contrato ser por encerramento definitivo da empresa (isto é, neste caso, as “necessárias adaptações” tornarão dispensáveis a generalidade das exigências e formalismos do C. Trabalho).
[13] Que corresponde ao art. 431.º, n.º 2, c), do C. Trabalho de 2003.

[14] Divergimos pois da posição que Carvalho Fernandes defende – in “Efeitos da declaração de insolvência no contrato de trabalho segundo o CIRE”, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, pág. 234 – quanto à cessação do contrato de trabalho por dispensa dos trabalhadores.

[15] Embora, a final, quando foi deliberada a liquidação da massa insolvente, já a actividade da insolvente estivesse encerrada.
[16] Isto é, quando tal cessação é ainda uma consequência/decorrência do que já vinha de trás, do que antes aconteceu na empresa – a própria “situação de insolvência”.
[17] Passando o art. 333.º do C. Trabalho – sobre os privilégios creditórios dos trabalhadores – a ter uma aplicação residual na graduação efectuada em processo de insolvência.
[18] Sujeito à “prova de resistência” das suas últimas consequências.
[19] O recorrente – quase nos esquecíamos – invoca as alíneas f) e g) do art. 51.º do CIRE, alíneas estas que, manifestamente, dizem respeito a situações que está fora de causa poderem englobar os créditos decorrentes da cessação de contratos de trabalho; alíneas estas que grosso modo dizem respeito à contraprestação do insolvente – assim qualificada como dívida da massa – em contratos cujo cumprimento, pela contraparte, o administrador considerou ser vantajoso, para a massa, exigir.