Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/10.2GTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 03/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 258º E 261º, DO C. PENAL
Sumário: 1. No caso de uso de cartão tacográfico de terceira pessoa para falsificar uma notação técnica, os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global do arguido entram em plena conexão, intercepcionando-se entre si, razão pelo que «se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes - dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas -, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art.º 77º».
2. Verifica-se, assim, um concurso aparente de crimes, ficando consumido o previsto no art.º 261º (“uso de documento de identificação alheio”) pelo previsto no art.º 258º (“falsificação de notação técnica”), ambos do C. Penal.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

            1. No processo n.º 14/10.2GTRD do Tribunal Judicial de Celorico da Beira, recorre o Ministério Público da decisão instrutória datada de 29/11/2010, cujo veredicto foi o seguinte:

«Não pronuncio o arguido MC..., pela prática do crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261°, n.° 1, por referência à al. c) do artigo 255º, ambos do Código Penal; e

Pelos fundamentos de facto constantes da acusação pública a fls. 152 e ss., para a qual remeto, ao abrigo do disposto no artigo 307.º, n.° 1, do Código de Processo Penal, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, pronuncio o arguido MC..., melhor identificado no TIR de fls. 8, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258º, n.º 1, al. b), e n.° 2, por referência à al. b) do artigo 255º, ambos do Código Penal».

Recorda-se que o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido pela prática dos dois crimes em causa, tendo este requerido a abertura da fase instrutória (artigo 287º, n.º 1, alínea a) do CPP), a qual vem a culminar na prolação de um despacho misto de pronúncia e despronúncia.

2. O recorrente, motivando o seu recurso, apresenta as seguintes CONCLUSÕES (em transcrição):

«1. Por decisão instrutória proferida nos presentes autos, o arguido MC... não foi pronunciado pela prática do crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo art. 261.°, n.° 1 do Código Penal, e foi pronunciado pela prática de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo artigo 258.°, n.° 1, al. c) e n.° 2, por referência ao art. 255.°, al. a) ambos do CP, de que vinha acusado.

2. O Tribunal a quo considerou, para o efeito, que há lugar apenas à punição do arguido pelo crime de falsificação de notação técnica o qual surge como crime fim, ficando então afastada, por via da subsidiariedade, a punição do crime de uso de documento de identificação alheio como crime meio, pelo que a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto.

3. E, verificando-se indícios suficientes da prática, pelo arguido, do crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.°, n.° 1 al. b) por referência à al. a) do artigo 255.° ambos do CPP, o Tribunal a quo pronunciou o arguido apenas pela prática deste crime.

4. A nossa discordância relativamente à decisão instrutória recorrida diz respeito ao concurso de crimes, por entendermos que o arguido deve ser pronunciado pela prática, cm concurso efectivo, dos crimes de falsificação de notação técnica e uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelos artigos 258.°, n.° 1 al. b) e n.° 2 e 261.º, n.° 1 ambos do CP, pelos factos constantes da acusação pública proferida nos presentes autos.

5. A determinação da existência de uma unidade ou pluralidade criminal de infracções na conduta de um agente será determinada em função do número de valorações que no mundo jurídico-criminal correspondem a uma certa actividade, ou seja, aplicando critério jurídico e não naturalístico.

6. Entendemos que o legislador penal, com a revisão introduzida ao Código Penal através da Lei 59/2007, de 04.09, pretendeu punir o uso de documento alheio de forma mais abrangente ao introduzir a expressão com intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

7. Com a punição do uso de documento de identificação alheio protege-se o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório.

8. Enquanto com a punição do crime de falsificação de notação técnica tutela-se o interesse da segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos prosseguido pelo Estado.

9. O crime de uso de documento de identificação alheio só é punível com o uso efectivo de um documento de identificação alheio.

10. Propugnamos que o legislador penal quis punir, de forma autónoma, duas condutas em separado e de forma autónoma: uma com o uso desse documento de identificação alheio e outra com a falsificação da notação técnica por constarem dados falsos que não correspondem à verdade juridicamente relevante.

11. In casu, entendemos que não se verifica qualquer relação de subsidiariedade entre o crime de uso de documento de identificação alheio e o crime de falsificação da notação técnica.

12. O sentido de ilicitude na conduta do arguido de cuja factualidade se encontra acusado, e não foi posta em causa pelo mesmo no requerimento de abertura de instrução, insere-se num quadro de uma duplicidade de ilicitude, uma vez que, por um lado, usou o documento de identificação, o cartão tacográfico, que não lhe pertencia e, por outro lado, a notação técnica emitida encontra-se revestida de falsidade por conter dados jurídicos que não correspondem à verdade, nomeadamente os dados registados quanto à identificação do condutor do veículo em causa.

13. O legislador quis punir estes dois ilícitos de forma autónoma por se verificar aqui uma duplicidade de ilicitude nesta conduta complexa perpetrada pelo arguido, atendendo, desde logo, à relevância jurídico-penal do documento de identificação alheio.

14. O documento de identificação ou de viagem é um conceito penal com assaz relevância, definindo-o o artigo 255.°, alínea e), e, nesta medida, o simples uso deste documento por pessoa diferente do seu titular constitui já um ilícito penal. O crime de falsificação de notação técnica é punido já por outra razão de política criminal, tendo em conta o bem jurídico subjacente a essa punição.

15. Assim sendo, pelo supra exposto, e salvo o devido respeito por diferente entendimento, entendemos que o arguido deve ser pronunciado pela prática do crime de uso de documento de identificação alheio, para além da pronuncia pela prática do crime de falsificação de notação técnica, por se verificar uma relação de concurso efectivo entre eles, numa pena única determinada ao abrigo do artigo 77º do CP.

Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, considerando, assim, que o arguido MC... deve ser pronunciado e julgado, pela prática, na forma consumada, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de uso de documento de identificação alheio e de um crime de falsificação de notação técnica».

            3. Não houve respostas a este recurso.

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto defendeu a procedência do recurso, aderindo às razões do recorrente seu Colega.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (Cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste no seguinte:

· Deve o arguido ser pronunciado pela prática, em concurso real de infracções, de um crime de uso de documento de identificação alheio e de um crime de falsificação de notação técnica?

           

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

1º DESPACHO RECORRIDO


DECISÃO INSTRUTÓRIA
«O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade.
Não se suscitam nulidades ou quaisquer outras excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

*
O arguido MC... requereu a abertura da presente instrução
porquanto, em suma, pese embora admita a prática da factualidade objectiva descrita no despacho de acusação a fls. 152 e ss., defende que a mesma integra apenas o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, p. e p. pelo artigo 261.°, do Código Penal, por referência ao artigo
255.°, al. c), do mesmo código.
Tendo sido aberta a Instrução, o arguido arrolou testemunhas, cuja inquirição foi indeferida, na medida em que o objecto da presente instrução se cinge a questões de direito, tendo-se realizado, a final, o debate instrutório.
*

A Instrução é uma fase do processo penal com carácter facultativo e com a qual se visa a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou no a causa a julgamento (artigo 286.°, n.° 1 e n.° 2, do Código de Processo Penal).
Nesta fase, deve-se ter presente que o Juiz de Instrução se encontra, à partida, limitado pela factualidade objecto do requerimento de abertura da instrução e, portanto, o seu procedimento e decisão são orientados pelas razões de facto e de direito aí invocados (artigo 287.°, n.° 1 e n.° 2 e artigo 288.°, n.° 4, ambos do Código de Processo Penal).
Deve-se, ainda, atender ao disposto no artigo 283.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 308.°, n.° 2, do mesmo diploma, no concernente a considerarem-se suficientes os indícios sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
A Prof. Fernanda Palma entende que a definição legal “não é uma simples
definição de prova indiciária dos factos, a qual está afinal pressuposta, mas uma exigência de antecipação de um juízo de culpa”.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/5/2003 entendeu-se que “constituem indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime e de que alguém determinado é responsável” e, ainda, que “tais elementos, logicamente relacionados e conjugados, hão-de formar uma presunção da existência do facto e da responsabilidade do agente, criando a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação”.
Assim, se até ao encerramento da instrução, se recolherem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos factos, caso contrário, profere despacho de não pronúncia (artigo 308.°, n.° 1, do Código de Processo Penal).
*
A fls. 152 e ss., o Ministério Público deduziu acusação contra MC... pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.°, n.° 1, ai. b), e n.° 2, por referência à al. b) do artigo 255.°, ambos do Código Penal, e um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.0, n.° 1, por referência à al. c) do artigo 255.°, ambos do Código Penal;
*
Inconformado com tal acusação, veio o arguido, a fls. 170 e ss., requerer a abertura
de instrução.

In casu, o arguido não colocou em dúvida a prática, dos factos que lhe vêm imputados na acusação pública, apenas invocando, como fundamento da sua pretensão, que não deverá ser sujeito a julgamento pela prática do crime de falsificação de notação técnica de que vem acusado.

Apreciando.

Do crime de falsificação de notação técnica
Dispõe a al. b) do n° 1 do artigo 258.° do Código Penal que é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa aquele que, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo, falsificar ou alterar notação técnica.
Já o n.° 2 do mesmo artigo equipara à falsificação de notação técnica a acção perturbadora sobre aparelhos técnicos ou automáticos por meio da qual se influenciem os resultados da notação.
O bem jurídico protegido pela norma é a segurança e credibilidade na informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos.
Já o objecto da acção é o aparelho técnico que, de forma totalmente automática, produz a notação técnica, ou seja, a acção do agente não incide sobre a própria notação como seria no caso de um crime de falsificação, mas sim sobre o aparelho que, depois, de forma automática, gera a notação técnica onde constará o facto falso e juridicamente relevante.
Ora, no caso, a conduta do arguido consistiu na introdução no tacógrafo digital do veículo pesado de matrícula 24-CZ-75, de um cartão digital que identifica o condutor do veículo que não era o seu, mas sim de outro condutor, desta forma interferindo no funcionamento do aparelho em causa e provocando que o mesmo, de forma totalmente automática, gerasse notação técnica - o relatório que dele se retira - onde constava que era outra pessoa o condutor do veículo em causa.
Assim, a acção perturbadora sobre o tacógrafo da viatura 24-CZ-75 foi, no caso dos autos, a introdução no mesmo de um cartão de identificação não pertencente ao condutor do veículo, levando a que o aparelho em causa gerasse, sem qualquer outra intervenção posterior, uma notação técnica de conteúdo falso, pois a mesma atestava que o veículo estava a ser conduzido por terceiro que não o arguido.
Tal facto afigura-se como juridicamente relevante, na medida em que permite ao condutor do veículo, passado que seja um determinado período de tempo, retirar aquele cartão e introduzir o seu, logrando assim conduzir o veículo para além dos tempos permitidos por lei e furtando-se, desse modo, ao registo de factos que integram a previsão de normas contra-ordenacionais relativas aos tempos máximos de condução seguida permitidos por lei e duração das pausas obrigatórias para descanso, previstas no DL n.° 272/89, de 19/08.
Por sua vez, tal possibilidade de conduzir por períodos superiores aos legalmente protegidos, sendo ilegítima, desde logo porque alvo de previsão em tipos contra-ordenacionais, constitui sempre um benefício para aquele que retira lucro da exploração do veículo em causa, pois utiliza o mesmo por mais tempo sem necessidade de contratar um motorista adicional para conduzir enquanto o outro descansa.
No caso, não se apurou em concreto se tal benefício foi auferido pelo arguido, por ele e por terceiro ou só por terceiro, mas isso não prejudica que também nesta parte se verifique o preenchimento da previsão normativa, porquanto se desinteressou o legislador de saber, em concreto, quem o obteve, como bem se retira da passagem “para si ou para terceiro”.
Provou-se, por fim, que o arguido de forma intencional e ainda com a especial intenção de conduzir mais tempo do que o permitido, pelo que, em face do que vai dito, dúvidas não restam quanto ao preenchimento, tanto a nível objectivo como subjectivo da previsão da norma em questão.


Do crime de uso de documento de identificação alheio

Vem ainda o arguido acusado da prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.°, n.° 1, do Código Penal, integrado pela contra-ordenação p. e p, pelo artigo 7.°, n.° 3, al. d), do DL 169/09, de 3 1/07.
Dispõe o n.° 1 do artigo 261.° do Código Penal que quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar ou encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
O bem jurídico protegido pela norma é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.
O tipo objectivo preenche-se quando, com uma ou mais das especiais intenções previstas na norma, o agente faz uso de documento de identificação que não lhe pertence para se identificar.
No caso, provou-se que o arguido introduziu de forma intencional no tacógrafo da viatura …, o cartão tacográfico pertencente a JV....
Ora, sendo o cartão em questão um suporte que contém a identificação do seu titular, seja graficamente, através da inscrição do seu nome e fotografia, seja através da introdução de tal informação num suporte de dados que o tacógrafo depois lê, não restam dúvidas que se trata de um cartão de identificação pessoal.
Por outro lado, a introdução do cartão no tacógrafo constitui também, sem dúvida alguma, uso do mesmo, pois é precisamente essa a utilização principal que lhe é destinada.
Também a intenção de obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo resultou provada e está preenchida nos mesmos termos que se analisaram supra quanto ao crime de falsificação de notação técnica, para os quais se remete.
Igualmente se preenche a norma na parte em que se prevê o uso de documento alheio como meio de executar outro crime.
Com efeito, a utilização do cartão visou, no caso, exclusivamente, permitir a
execução do crime de falsificação de notação técnica, pois foi precisamente tal acto que permitiu ao arguido fazer constar da notação técnica gerada automaticamente pelo tacógrafo o facto falso e juridicamente relevante de que era JV… e não ele quem conduzia o veículo …, no período que precedeu a sua fiscalização.

Assim, se dúvidas não restam quanto ao preenchimento da previsão legal de ambas as normas, há que verificar se o concurso entre as mesmas é efectivo ou meramente legal.

Do concurso

Nos termos do artigo 30.°, n.° 1, do CÓDIGO PENAL, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Atende-se assim ao número de tipos legais de crime que são efectivamente preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preenche o mesmo tipo legal de crime, assim se adoptando a unidade e pluralidade de tipos violados como critério básico de distinção entre a unidade e pluralidade de crimes.
No que diz respeito aos casos de concurso aparente, conforme refere Maia Gonçalves, in Código Penal Português, l8. ed., pág. 155. “são formalmente violados vários preceitos incriminadores, ou é várias vezes violado o mesmo preceito. Mas esta plúrima violação é tão só aparente; não é efectiva, porque resulta da interpretação da lei que só uma das normas tem cabimento, ou que a mesma norma deve funcionar uma só vez. Apontam-se diversas regras, das quais as mais indiscutidas são as da especialidade e da consunção, para delimitar estes casos.”
Assim quanto à regra da especialidade, um dos tipos aplicáveis (lex specialis) incorpora os elementos essenciais de um outro tipo aplicável (lex generalis), acrescendo elementos suplementares ou especiais referentes ao facto ou ao próprio agente. Assim e dentro do princípio que a lei especial derroga a lei geral, só deve aplicar-se o tipo especial.
Relativamente à regra da consunção, o preenchimento de um tipo legal (mais
grave) inclui o preenchimento de um outro tipo legal (menos grave), devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especificidade do caso concreto.

Como escreve Eduardo Correia Direito Criminal, Vol. II, pág. 205. “uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra “ne bis in idem”, se tenha de concluir que “lex consumens derogat legi consumtae”. O que, porém, ao contrário do que sucede com a especialidade, só em concreto se poderá afirmar, através da comparação dos bens jurídicos violados”.
Pode no entanto acontecer o caso inverso da consunção impura, em que, como refere Eduardo Correia (obra citada, pág. 207), a lei descreve um tipo de crime que só se distingue doutro por uma circunstância tal que apenas se pode admitir tê-la querido o legislador como circunstância qualificativa agravante — verificando-se todavia que a pena para ela cominada é inferior à do tipo fundamental.
Ora, enquanto no tipo legal do crime de falsificação de notação técnica o bem jurídico protegido é a segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos, no de uso de documento de identificação ou de viagem alheio é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório, o que, à partida, pela comparação dos bens jurídicos violados, como acima se referiu, parece afastar a verificação de um mero concurso de normas.
Sucede que, na revisão do Código Penal operada pela Lei n.° 59/2007, de 04/09, o legislador introduziu no tipo do crime de uso de documento alheio como, aliás, também no de falsificação, a expressão, “com intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código Penal, a propósito do crime de falsificação para onde remete no comentário ao crime de uso de documento alheio, “o legislador deixou claro que a acção típica (...) pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjectivo e não um factor de agravação (...). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção de política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime fim”.
Assim, in casu, verificando-se que há lugar à punição pelo crime de falsificação de notação técnica (crime fim), fica então afastada, por via da assinalada subsidiariedade, a punição do crime de uso de documento alheio (crime meio).
Pelo exposto, entendo existirem indícios suficientes da prática, pelo arguido, do crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.°, n.° 1, al. b), e n.° 2, por referência à al. a) do artigo 255.°, ambos do Código Penal.
*
Pelo exposto:
- Não pronuncio o arguido MC..., pela prática do crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261°, n.° 1, por referência à al. c) do artigo 255.º, ambos do Código Penal; e
- Pelos fundamentos de facto constantes da acusação pública a fls. 152 e ss., para a qual remeto, ao abrigo do disposto no artigo 307.º, n.° 1, do Código de Processo Penal, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, pronuncio o arguido MC..., melhor identificado no TIR de fls. 8, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.° 1, al. b), e n.° 2, por referência à al. b) do artigo 255.º, ambos do Código Penal».

*

Prova: toda a constante da acusação do Ministério Público.
Medida de coacção: atendendo aos princípios da proporcionalidade e da adequação, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos processuais sujeito a TIR, já prestado a fls. 8.
*
Nos termos do disposto no artigo 40.°, al. b), do Código de Processo Penal, declaro-me impedido de intervir na fase de julgamento.
Oportunamente, remeta os autos de imediato ao Mmo. Juiz substituto legal.
Notifique».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. Debrucemo-nos, então, sobre a decisão instrutória dos autos, assente que o recurso versa exclusivamente matéria de DIREITO.

3.2. A fase da instrução, em processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento - art. 286º, n.º1 do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente - artigos 283º e 308º, n.º 1 do CPP.

Já na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento, por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais.

Adianta o art. 308º, n.º 1 do CPP:

“Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Por seu lado, o artigo 283º, n.º2 do mesmo diploma - aplicável por força do disposto no n.º 2 do art. 308º - estipula que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.

Ora, o que se entende, nesta sede, por “indícios suficientes”?

Tem-se tal entendido como a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar - com um juízo de certeza e não de mera probabilidade - os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder – Acórdão do STJ de 10/12/1992 (pr. n.º 427747, consultado em http://www.dgsi.pt).

O Professor Figueiredo Dias doutrina que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que absolvição. (…) (…) na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” (Direito Processual Penal, pág. 133-134).

Indícios, no sentido da expressão contida no artigo 308º do CPP, são, assim, vestígios, presunções, suspeitas, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e que o responsável pela sua prática é o arguido, não sendo necessário para a pronúncia uma certeza da existência da infracção, juízo que se guarda como imprescindível para a convicção do juiz do julgamento – basta-se a lei e a doutrina dominante com um grau de suficiência e quantidade de indícios, de forma a que, todos relacionados e conjugados entre si, constituam um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é criminalmente imputado.

De facto, para a pronúncia ou para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.

Sem esquecer que no juízo de quem pronuncia, tem de estar presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade da sua protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, aqui se invocando preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, com incidência constitucional entre nós, tem sido entendido que esta possibilidade razoável de condenação é um possibilidade mais positiva do que negativa - o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.

Ou seja, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta.

O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim de uma fase preparatória como é a INSTRUÇÃO.

Tal significa que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento.

Veja-se, no entanto, que se logo a este nível do juízo, no plano dos factos, se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não devem ser considerados suficientes, não havendo prova bastante para a pronúncia.

Tal juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (incontornável) de discricionariedade.

A opção por um despacho de pronúncia depende, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos.

Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é necessário, não obstante, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.

A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária.

Como explica Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios "enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime".

É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no artigo 308º do CPP.

Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar "alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva, "as provas recolhidas nas fases preliminares o processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de era decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento".

Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de "julgamento antecipado" nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público ou do Assistente de acusar.

Nessa verificação deverá, contudo, o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.

Em qualquer dos casos, essa verificação da suficiência de indícios não implica apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, apenas se julgando a verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.

Importa agora aquilatar da existência de indícios que suportem a existente pronúncia, assim se fazendo o seu controlo jurisdicional.

No nosso caso, o MP acusa, o arguido requer a abertura de instrução [ARTIGO 287º/1 a) do CPP] e o JIC pronuncia por apenas um dos dois crimes do libelo acusatório.

3.3. A INSTRUÇÃO é, de facto, uma fase processual jurisdicional e facultativa que compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

O JIC não tem intrínsecas funções investigatórias em sentido técnico-jurídico, sendo antes o seu mister o de comprovar de forma chancelar – porque jurisdicional - uma investigação que foi feita previamente por quem é titular da acção penal.

Deste modo, o artigo 288.º, n.º 4 estipula que: «O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior

Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), que é reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º, não é absoluta, estando limitada pelo objecto da acusação.

Vários doutrinadores já se têm pronunciado sobre esta «investigação» levada a cabo na fase instrutória de um processo penal.

Germano Marques da Silva opina que (Curso de Processo Penal, 2.ª edição, 2000, p. 132): «Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limitam a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.»

            Anabela Miranda Rodrigues (“O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77) salienta, no mesmo sentido, «que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo».

A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289.º, n.º 1, do C.P.P., na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32.º n.º 1 e 5 da C.R.P.).

3.4. Vejamos o nosso caso.

Ninguém coloca em dúvida de que se está perante a prática indiciária, pelo arguido, de um crime de falsificação de notação técnica[2] p. e p. pelo artigo 258º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, por referência ao artigo 255º, alínea b) do CP (noção de «notação técnica»).

Pode colocar-se a dúvida sobre se estará ou não perfectibilizado o crime de uso de documento de identificação alheio p. e p. pelo artigo 261º/1, por referência ao artigo 255º, c) do CP, decisão que é prévia à que está controvertida neste recurso – saber se existe concurso real ou aparente entre estas duas infracções.

Será o cartão tacógrafo mencionado nos autos um verdadeiro documento de identificação para os efeitos da alínea c) do artigo 255º do CP?

Estatui o artigo 261º do CP que:

«1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

2 - Na mesma pena incorre quem, com intenção de tornar possível o facto descrito no número anterior, facultar documento de identificação ou de viagem a pessoa a favor de quem não foi emitido».

Por seu lado, a alínea definitória c) do artigo 255º do CP reza assim:

«c) Documento de identificação ou de viagem - o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível».

A definição do cartão tacográfico consta do Decreto-Lei n.º 169/09, de 31 de Julho [diploma que define o regime contra-ordenacional aplicável ao incumprimento das regras relativas à instalação e uso do tacógrafo estabelecidas no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 2135/98, do Conselho, de 24 de Setembro, e pelo Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março], mais propriamente do seu artigo 2.º, alínea b), onde se refere que se trata de um “cartão com memória destinado à utilização com o aparelho de controlo e que permite determinar a identidade do titular, armazenar e transferir dados destinados, segundo o respectivo titular, ao condutor, á empresa detentora do veículo, ao centro de ensaio e às entidades de controlo[3].

Estamos assim a falar de um documento emitido pelo IMTT, que é imprescindível para a condução de veículos equipados com tacógrafos digitais[4] e é, segundo as informações do IMTT, um documento pessoal e intransmissível que regista 28 dias de actividade do motorista. Este tacógrafo emite um aviso sonoro 15 minutos antes de terminar um período de condução de 4 horas.[5]

A factualidade típica que aqui analisamos consiste em trabalhadores/motoristas por sua iniciativa, utilizando cartões de outros motoristas, conduzirem por um número superior de horas, frustrando desta forma os objectivos legais visados com o estabelecimento de máximos de horas de condução possíveis.

Aqui chegados, somos tentados a concordar que este cartão de condutor, que é pessoal e intransmissível, permitindo, em exclusivo, aceder à condução de veículos equipados com tacógrafo digital, se integra na definição de documento prevista no artigo 255.º, alínea c), do Código Penal.

De facto, este cartão desempenha funções semelhantes a uma carta de condução, já que a condução de veículos equipados com tacógrafo digital depende da titularidade de um cartão com aquela especificidade. Este documento é, se assim poderemos dizer, habilitante (face ainda às disposições legais específicas referidas supra), para aquela condução específica e é susceptível, por isso, de conferir um direito (de conduzir veículos equipados com aquele tacógrafo).

Por outro lado, o tacógrafo, como máquina que é, assume que é o detentor do cartão que o introduz e conduz que está efectivamente a conduzir. Se alguém introduz um cartão que não apresenta correspondência com quem o apresenta, isso pode equivaler a uma apresentação de documento e, como tal, pode perfeitamente inserir-se no ilícito típico do uso de documento de identificação alheio.

Por fim, refira-se que a obtenção do benefício ilegítimo é clara[6].

3.5. Resta a questão fulcral – responderá o arguido pelos dois crimes ou só por um, por força da relação de subsidiariedade?

Entende o JIC que só responde pelo crime de falsificação.

Opina a recorrente que deverá responder pelos dois delitos.

Sabemos que a multiplicidade de factos criminalmente relevantes permite equacionar três hipóteses, muito bem delineadas em Acórdão desta Relação de 20/5/2009 (relator: Jorge Jacob):

· Crime único, decorrente de uma só resolução criminosa;

· Realização plúrima (concurso real de crimes);

· Crime continuado.

Esta problemática reconduz-se, num primeiro momento, à determinação da unidade ou pluralidade de crimes por recurso à valoração das condutas naturalísticas desenvolvidas pelo agente (trata-se de uma questão do foro subjectivo, que se traduz em averiguar, à luz do critério legal e por via da análise dos factos provados passíveis de juízos de censura, se estes podem e devem ser considerados como fruto de uma só intenção estruturada ou se, pelo contrário, traduzem uma renovação da intenção e vontade de agir).

Num segundo momento, reconduz-se à verificação da identidade (na acepção de coincidência material) dos elementos típicos do crime, com vista à determinação de eventual violação do princípio ne bis in idem.

A primeira das vertentes assinaladas – um só crime decorrente de um só desígnio criminoso – nem sempre se afirma com a simplicidade que parece sugerir, como se evidencia particularmente se se considerarem os delitos de execução continuada.

Retenhamos a doutrina de Figueiredo Dias, “… a unidade de resolução é em absoluto compatível com a pluralidade de sentidos autónomos de ilícito dentro do comportamento global, mesmo que não exista descontinuidade temporal entre os diversos actos praticados. E isto é assim, trate-se de bens jurídicos lesados eminentemente pessoais (…) ou não (v. g., a propriedade, o património, o meio ambiente, a ordem e a tranquilidade públicas)” [7], constatação que resulta do critério perfilhado pelo mesmo autor relativamente à determinação da unidade ou pluralidade de crimes, assente na “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes”.

No concurso de crimes, tal como no crime único, o critério da sua determinação é o do art. 30º, nº 1, do Código Penal: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente.

Por último, o crime continuado determina-se pelo critério consagrado no nº 2 do art. 30º, estatuindo que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Também não nos pronunciaremos sobre nada de novo quando falamos de concurso de crimes.

Tudo já foi pensado. E escrito.

E daí também aqui nos socorrermos do Acórdão do STJ de 27 de Maio de 2010 (474/09.4PSLSB.L1.S1):

«I - A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

II- O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

III- A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.

IV - Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

V- O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

VI- Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras.

VII- A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.

VIII- A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segundo regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.

IX - Há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cf. H. H. Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, pág. 788 e ss.).

X- A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.

XI- O bem jurídico, ainda numa projecção difusa de uma pluralidade de bens jurídicos e numa dimensão mais ampla, autonomiza-se de cada um dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afectados na respectiva titularidade concreta, sendo, por si, autonomamente e ex ante, considerado com relevante para justificar a definição de um crime de perigo».

Ou seja:

Estamos perante um Concurso real quando o comportamento do agente preencher vários tipos incriminadores e a sua responsabilidade contemplar todas essas infracções praticadas.

Já navegaremos por águas do Concurso aparente quando, aparentemente, na prática de um facto, convergem diversas disposições legais, mas na verdade só uma se lhe aplica, afastando todas as outras (sabemos que quando se pune um agente por uma situação de concurso aparente segundo as regras do concurso real, estamos a violar o princípio constitucional “ne bis in idem”, pois está se a valorar e punir mais do que uma vez o mesmo facto).

Nesse concurso aparente de normas, encontramos três modalidades:

  • A relação de especialidade – Existe uma relação lógica de subordinação entre as normas, assim, quando um tipo legal é constituído a partir de outro, ou seja, se apresenta em relação àquele como qualificado ou privilegiado (ex. 132º, 133º e 134º em relação ao art. 131º todos do CP);
  • A relação de subsidiariedade – Nestes casos existe uma intersecção de normas, cada norma pode ter um âmbito de aplicação autónomo, mas há também uma sobreposição, tornando-se uma subsidiária de outra, com aquela que tem a pena mais leve absorvida pela que tem a mais grave;
  • A relação de consunção – Existe nestes casos uma relação de instrumentalidade: a violação duma disposição legal é instrumental para a violação de outra.

Conhecemos a polémica jurisprudencial e doutrinal sobre o concurso entre os crimes de falsificação e de burla.

Esta questão já se colocava na vigência do Código Penal de 1982, tendo dado origem ao Assento do STJ de 19-02-92, publicado no D.R. I-A, de 09-04-1992, o qual ditou que: "No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes."

Com a entrada em vigor do Código Penal revisto (DL 48/98, de 15/03) não se verifica qualquer alteração substancial da jurisprudência anteriormente fixada, visto que o Assento 8/2000 de 04-01-2000, publicado no D.R. I-A, de 23-05-2000, de forma idêntica, veio fixar a seguinte jurisprudência: «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º , n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.»

Referem este acórdãos que, no caso de concurso entre os crimes de burla e de falsificação de documentos, verifica-se um concurso real, já que estes crimes tutelam a protecção de bens jurídicos diferentes, e assim, o crime de burla tutela o património do ofendido, já a falsificação de documentos tutelando a verdade intrínseca do documento enquanto tal.

Contudo, existe uma outra corrente, ultimamente mais fortalecida (Helena Moniz, Catarina Amaral da Costa, Paulo Pinto de Albuquerque) que vem defender a existência de um concurso aparente – opina ela que, no caso da conduta do agente preencher as previsões destes dois crimes, verifica-se um concurso aparente, e assim o crime de burla consome o crime de falsificação de documentos.

Entendem que no concurso aparente de infracções, o campo de aplicação das duas normas assemelha-se a dois círculos concêntricos, de forma que todos os elementos que cabem numa norma e também na outra, e os mesmos elementos de facto, não podem ser apreciados duas vezes, sendo exactamente isto que acontece no caso em que a falsificação envolve com certeza o erro ou engano sobre os factos astuciosamente provocados a que alude o crime de burla, sendo assim, este resultado a consequência geral daquela actividade.

Desta forma, ao punir o crime de burla já se está a contar com a actividade de falsificação, sendo de incluir no tipo legal da burla todos os meios usados pelo agente para cometer o ilícito, no sentido de utilização de erro ou engano.

Dir-se-á que a falsificação faz parte do tipo legal de burla e não pode ser autonomizada, em relação à burla de que faz parte, sob pena de violação do princípio “ne bis in idem”.

Para essa tese, perante um crime de burla e de falsificação de documentos verifica-se um concurso aparente de normas, pelo facto da falsificação constituir um meio, instrumento necessário para a prática do crime de burla, sendo o crime de falsificação um acto preparatório e executório do crime de burla (o acto de falsificar documentos para que, desta forma, uma terceira pessoa acredite na veracidade dos mesmos consubstancia o conceito de astúcia em provocar engano sobre factos, elemento essencial e típico do crime de burla).

Vejamos o assertivo e exemplar texto do Acórdão da Relação de Lisboa de 28/6/2010 (Pº 4395/03.6TDLSB.L1-5) e que também toma partido por esta 2ª tese:

«A punição autónoma do crime de falsificação, representaria uma dupla valoração dos factos respectivos, ora como factos integradores do crime de burla, ora como factos integradores do crime de falsificação, o que é constitucionalmente inadmissível.

É esta a posição actual de Figueiredo Dias (tornada pública desde Agosto de 2007 – o estudo que lhe deu origem só em Set2009 foi publicado: Unidade e pluralidade de crimes: «Ou sont les neiges d' antan?" contido nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves - Vol. III Direito Público, Direito Penal e História do Direito, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, 92, Dez2008), que se entende seguir, contra a doutrina firmada nos dois acórdãos de uniformização de jurisprudência do STJ: o publicado no DR I de 9/4/1992 e o de 4/5/2000, publicado no DR I de 23/5/2000 que reafirmou, no âmbito da vigência da redacção de 1995 do CP, a jurisprudência que já tinha sido fixada no ac. anterior.

Desde que o último destes acórdãos foi publicado, surgiram pelo menos sete novos dados que servem de fundamentação suficiente da divergência relativamente àqueles acórdãos de fixação de jurisprudência (art. 445/3 do CPP).

Um é a anotação de Helena Moniz publicada na RDCC 2000/3/457 àquele ac. de 2000, em que a autora mantém a posição contrária que já tinha assumido na sua tese de mestrado.

Outro é uma pequena nota de Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do CP, Coimbra Editora, Tomo II, 1999, págs. 109/110 (que terá de ser interpretada com as devidas adaptações, pois que o autor está a falar do concurso entre o abuso de confiança e a falsificação): “Quanto à possibilidade de concurso efectivo com o crime de falsificação, a nossa jurisprudência tem tendido decisivamente (louvando-se as mais das vezes numa interpretação rígida do pensamento básico de Eduardo Correia em matéria de concurso de crimes e, consequentemente, do art. 30/1) para o afirmar. O problema não é específico do crime de abuso de confiança (podendo porventura em termos substancialmente idênticos pôr-se para outros crimes patrimoniais, maxime o de burla), mas do crime de falsificação. Sempre se adiantará no entanto que a solução do concurso aparente (porventura ligado à figura da consunção e, em especial, do facto prévio não punível) não nos parece afastada naqueles casos em que a falsificação tenha esgotado o seu sentido – e o seu dano material – na sua estrita utilização como meio de alcançar a inversão do título e a consequente apropriação”.

Um terceiro é a posição tomada por Figueiredo Dias e Costa Andrade quanto ao concurso aparente entre o crime de fraude fiscal (crime de falsidade) e a burla (O crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português: Considerações sobre a Factualidade Típica e o Concurso de Infracções, na RPCC, 1996, págs. 71 e segs) que haveria a tentação de considerar transferível para o domínio do direito penal comum, como o entendeu Luís Duarte D’Almeida, no seu O “Concurso de Normas” em Direito Penal, Almedina, Março de 2004, págs. 71/73, e Helena Moniz, no já referido comentário. Note-se entretanto que Costa Andrade esclareceu que não o entende assim (nota 47, da pág. 347, do seu estudo sobre A Fraude Fiscal – Dez anos depois, ainda um “crime de resultado cortado”, publicado na RLJ 135/3939).

Ou seja, que o facto de defender a tese do concurso aparente no âmbito do direito penal tributário não quer dizer que a mesma tese seja defensável no direito penal comum.

O quarto dado é a posição do referido Luís Duarte D’Almeida que, depois de negar a existência de concurso aparente de normas, já que tudo é uma questão de aplicabilidade externa da lei (como resultado de uma operação de individuação normativa: pág. 19), defende que a punição pelo regime do concurso efectivo de crimes (de falsificação e de burla) é excessiva, propondo que seja punido, tal concurso, de forma mais benévola, como continuação criminosa, desde que haja entre os dois crimes uma certa conexão objectiva e subjectiva (págs. 106/127).

O quinto é a referida posição de Figueiredo Dias, na nova edição das suas lições Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª edição, Agosto de 2007, em que este Professor expõe, a págs. 1018/1019, §§21 e 22, de forma nova e fundamentada, a sua adesão expressa à tese do concurso aparente entre burla e falsificação com a intenção de burlar exclusivamente uma determinada pessoa, porque há no comportamento global um sentido de ilicitude absolutamente dominante ou mesmo único que permite a sua recondução jurídico-penal à unidade do facto, de acordo com uma construção doutrinal completa do concurso de crimes em que, finalmente, se rebate a ideia, que está na base daqueles acórdãos, de que, havendo mais do que um bem jurídico violado, há necessariamente sempre um concurso efectivo de crimes (págs. 1011 a 1027).

Ou seja, nesta nova edição, com vários capítulos novos, três deles sob um título dedicado ao concurso, obra que começa a ser “recebida” agora, Figueiredo Dias esclarece, primeiro, o seguinte (págs. 990/991):

[…] haverá que começar por determinar se uma pluralidade de normas ou de leis incriminadoras convocadas em abstracto por um certo conteúdo de ilícito são concretamente aplicáveis umas ao lado das outras [=> concurso de crimes: cap. 43] ou se, diferentemente, há uma(s) norma(s) que prevalece(m) sobre a(s) outra(s) e exclui(em) por conseguinte a sua aplicação [=> unidade de lei =>cap. 42: é aqui que se põem as questões da especialidade e subsidiariedade].

Se [num segundo momento…] face às normas concreta e efectivamente aplicáveis, vários tipos legais se encontrarem preenchidos pelo comportamento global haverá concurso, mas não necessariamente concurso efectivo, pois pode ser aparente. Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível, presunção que pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente [=> cap. 43].

Ou seja, Figueiredo Dias deixa hoje claro que o concurso aparente nada tem a ver com um concurso de normas ou de leis, que não existe; e que não se deve falar de concurso de normas, pois o que há é unidade de lei: as operações de natureza lógico-conceitual da subsidiariedade e da especialidade vão apurar que apenas uma das normas é aplicável. Quando se fala de concurso aparente, de crimes, já se passou aquela primeira operação (veja-se pág. 992).

E, neste sentido, há hoje coincidência com o que é defendido por Luís Duarte D’Almeida, na obra já referida, por exemplo (págs. 129 e 131): não há qualquer “concurso de normas” se coube apenas seleccionar, para verificação subsuntiva de aplicabilidade interna, um tipo legal de crime. […] “Concurso de normas”, por isto tudo, é coisa que não existe.

Num segundo momento, isto é, depois de se concluir que há um concurso de crimes, que há duas normas penais que têm de ser aplicadas, é que se coloca a questão do concurso ser efectivo ou aparente e aí (de novo Figueiredo Dias, obra citada, pág. 989): é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes.

Ou seja, há concurso de crimes em todos os casos em que o comportamento global do agente preenche mais que um tipo legal – ou o mesmo tipo legal várias vezes – concretamente aplicáveis.
Desta circunstância não resulta por necessidade que o tratamento unitário de toda a categoria deva ser unitário e submetido, em termos de punição, à pena conjunta do art. 77. Uma tal solução não é compatível com aqueles casos, embora tecnicamente de concurso, em que os conteúdos de ilícito – segundo o seu sentido no contexto do comportamento global – se interceptam parcialmente em maior ou menor medida.

Há pois dois grupos de casos (pág. 990):

- o caso normal em que os crimes em concurso são na verdade reconduzíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis – hipótese a que chamaremos de concurso efectiva (art. 30/1), próprio ou puro;

- e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma preponderante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados – hipóteses que chamamos de concurso aparente, impróprio ou impuro.

Com a consequência de que só para o primeiro grupo de hipóteses deverá ter lugar uma punição nos termos do art. 77, enquanto para o segundo deverá intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida da pena.

Dito de outro modo (pág. 1011):

A pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global [ou seja, ultrapassada a questão da unidade da lei, isto é, as questões da especialidade e da subsidiariedade] constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícito autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio. Casos existem, no entanto, em que uma tal presunção pode ser elidida porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas -, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77.

E dá o seguinte exemplo (pág. 1012, §12):

[…] Devem ser igualmente tratados – em termos de forma de punição, é claro – A, que em múltiplos dias, pela noite, mata, fere gravemente ou viola sexualmente diversas vítimas; e B, que falsifica um documento com a intenção de burlar (como vem de facto a suceder) exclusivamente uma determinada pessoa? […] Não será aventuroso avançar que a avaliação teleológica-normativa dos casos em termos de unidade ou pluralidade do facto global é diferente, pese embora a circunstância que deve reconhecer-se, de em qualquer deles se verificar uma pluralidade de violações de tipos legais de crime concretamente aplicáveis. E é diferente, insistimos, porque os sentidos de ilicitude revelados pela conduta global de A […] são em definitivo plúrimos (concurso efectivo), enquanto relativamente a B […] há no comportamento global um sentido de ilicitude absolutamente dominante ou mesmo único que permite a sua recondução jurídico-penal à unidade do facto (concurso aparente).

E mais à frente (pág. 1018/1019):

§21. O critério acabado de apresentar parece possuir virtualidades bastantes para abranger todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente. Por outras palavras, aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. Parece aqui particularmente claro – […] – que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso (infra, §56). Impõe-se, por isso, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente. Sem que importe, uma vez mais, a existência ou não de uma conexão objectiva (parentesco dos bens jurídicos violados) ou subjectiva (unidade ou pluralidade de resoluções) entre os tipos legais violados pelo comportamento global.

§22. A questão mais vivamente discutida neste enquadramento tem sido a da relação entre uma falsificação de escrito utilizada unicamente como meio de burlar alguém; questão que, desde há muito, divide irremediavelmente a doutrina e a jurisprudência portuguesas. Não temos qualquer dúvida em convir, por via de princípio e só por ela – tudo dependendo, em última palavra, da configuração no caso concretos dos ilícitos singulares concorrentes face ao sentido social do ilícito global – na solução do concurso aparente.

Nesse sentido falam duas considerações fundamentais: a de o ato de falsificação ser levado a cabo unicamente no contexto situacional da realização do crime-fim e de nele esgotar a sua danosidade social; e a de a falsificação constituir já uma parte do ilícito da burla, pelo que a autonomização do conteúdo de ilícito daquele significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto (33). Problema discutível pode ser o de saber se isto é assim suposta a unidade de resolução, ou se ainda poderá abranger hipóteses de dupla resolução, eventualmente espaçadas no tempo (34). Cremos exacta, para certas constelações, esta segunda alternativa: se alguém toma a decisão de fabricar documento falso para se, proporcionando-se a situação, burlar com ele alguém; e se esta eventualidade se verifica mais tarde relativamente a uma certa vítima, implicando assim uma segunda resolução ou uma renovação da resolução anterior, ainda aí parece deverem ser os princípios do concurso impuro que devem reger a situação.

Ponto é sempre, naturalmente, que se não verifique uma alargamento da actividade criminosa ou não venha a verificar-se uma multiplicação das vítimas.

Pedro Caeiro, já aplica esta “revisão” da teoria do concurso no seu estudo sobre A Consunção do Branqueamento pelo Facto Precedente, nos Estudos em Homenagem ao Prof. Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Junho de 2010, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica, 100, Coimbra Editora, págs. 187 e segs (vejam-se especialmente as págs. 192 a 196). O mesmo se passa noutro estudo publicado nesta obra, que é o de Jorge Godinho, Sobre a Punibilidade do Autor de um Crime pelo Branqueamento das Vantagens dele Resultantes, págs. 363 e segs (especialmente págs. 374 e segs e 380 a 384 para a fundamentação da “recusa do critério do bem jurídico como a pretensa ‘prova dos nove’ da arte de bem contar crimes”).

O sexto dado novo é a alteração ocorrida com a Lei 59/2007, de 04/09.

A redacção anterior dizia:

1: Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:

Agora diz-se: 1: Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:.

Para este elemento chama a atenção Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, nota 23 ao art. 256, pág. 674, que a propósito escreve (sendo este o sétimo dado novo):

«Há concurso aparente (consunção) entre o crime de falsificação de documento e o crime de burla ou qualquer outro crime que tenha sido preparado, facilitado, executado ou encoberto por intermédio de documento falso, tendo o legislador propositadamente afastado a jurisprudência dos acórdãos de fixação de jurisprudência do STJ de 19/02/1992 e 8/2000, cuja constitucionalidade foi testada pelo ac. do TC 303/2005 (a favor da jurisprudência fixada, Miguel Machado, 1998 a: 254, mas contra ela, Helena Moniz, 1993, 84 e 86, e 2000: 466). Com efeito, o legislador deixou claro, na revisão do CP de 2007, que a acção típica de falsificação pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjectivo e não um facto de agravação (como sucede no crime de homicídio). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime-instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime-fim (com conclusão idêntica em face da nova lei, mas com argumentação distinta, Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2008: 664)».

Como tal, para esta 2ª tese, um agente deve ser punido pelo concurso aparente dos crimes de burla qualificada e de falsificação (a burla consome a falsificação), dentro da moldura penal correspondente, no caso dos autos, ao crime com a moldura penal mais grave (Figueiredo Dias, obra citada, págs. 1036/1038) tomando o outro crime como factor agravante da medida da pena.

Tenderemos a concordar com esta tese, rebatendo apenas o 6º argumento.

Pensamos, de facto, que a nova redacção do art. 261º nada altera no que diz respeito à situação do eventual concurso de normas.

Ela (a nova redacção) limita-se a ampliar o âmbito de punibilidade do art. 261º, passando a prever mais comportamentos, quer pela via do dolo (específico), quer pela via do próprio elemento objectivo. Assim, punem-se agora como crime do art. 261º mais comportamentos[8].

Por outro lado, no caso de a norma em causa (agora com um âmbito de aplicação por si mais abrangente) concorrer com uma outra, estaremos então perante um concurso de normas a resolver pelas regras gerais do concurso, para as quais teremos que convocar o art. 30º, a que a nova redacção do 261º nada retira nem acrescenta[9].

3.7. E QUE POSIÇÃO ENTÃO TOMAR AGORA, DEPOIS DESTE TRAJECTO?

Aqui chegados, parece-nos mais coerente a tese do tribunal recorrido, no sentido do concurso aparente.

Partiremos também nós de uma construção doutrinal completa do concurso de crimes em que se refuta a concepção segundo a qual, havendo mais do que um bem jurídico violado, há necessariamente sempre um concurso efectivo de crimes.

Sabemos que com a punição do uso de documento de identificação alheio protege-se o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório.

Com a punição do crime de falsificação de notação técnica tutela-se o interesse da segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos prosseguido pelo Estado (no crime de falsificação de documentos tem-se em vista a protecção de um específico bem jurídico criminal - a segurança e credibilidade do tráfico jurídico-probatório, que o legislador entendeu que a sua tutela penal deveria ser antecipada à verificação do perigo abstracto de lesão daquele bem jurídico).

A definição do artigo 255° está intrinsecamente relacionada com o bem jurídico protegido pela norma penal e com a caracterização do ilícito formal e material do crime de falsificação de documento.

Como a falsificação de documentos tem como objectivo primordial proteger a especial segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, evitando a ocorrência de ameaça ou perigos de lesões a esses bens, esse perigo de lesão ou lesão só têm possibilidade de se verificar, se essa declaração falsa tiver por objecto um facto ou conjunto de factos juridicamente relevantes e a sua corporização seja apta a demonstrá-los judicialmente.

Somos de parecer que, considerado a identidade de acção realizada, não será conforme à Constituição, por violação do “ne bis in idem”, uma interpretação normativa que pelo mesmo facto - o uso de documento alheio para forjar documento autónomo – fizesse corresponder uma dupla incriminação.

Ou seja, deve apenas o agente ser punido pelo artigo 258º, na forma consumada, quando utiliza um documento alheio, consumando uma falsificação.

Na outra interpretação (inversa) seria dizer que o legislador quis mesmo punir autonomamente (duplamente) os casos em que o agente para falsificar um documento recorre à utilização, de algum modo, de um documento fidedigno alheio.

Diga-se ainda que, in casu, o perigo colocado pelo potencial de ameaça ao bem jurídico não é efectivamente diverso nas duas situações. A que acresce o facto de inexistir, in casu, um desmembramento ou desconexão temporal suficientemente extensa para que se possa falar em dupla resolução criminosa, autónoma e independente (desde o 1º momento, o agente quer praticar o crime do artigo 258º, sendo o uso do cartógrafo do colega um mero meio para atingir a consumação daquele ilícito verdadeiramente dominante).

Assim, seguiremos a teoria do sentido dominante do ilícito (atrás mencionado, como de autoria de Figueiredo Dias), resolvendo, pois, o concurso pelo lado do legal aparente, punindo apenas pelo crime resultado porque mais grave e absorvente (logo, o do artigo 258º).

Neste caso (uso de cartão tacográfico de terceira pessoa para falsificar uma notação técnica), os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global do arguido entram em plena conexão, intercepcionando-se entre si, razão pelo que «se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas -, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77º».

Verifica-se, assim, um concurso aparente de crimes, ficando consumido o do artigo 261º (o delito instrumental) pela falsificação fim.

 Por isso, não procede o recurso, validando-se a decisão recorrida.

3.8. Acabemos da mesma forma como iniciámos esta fundamentação.

Pelos indícios suficientes.

Não ignoramos que no juízo indiciário há que levar em linha de conta o seguinte:

“I - A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame;

II - Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.º daquela Declaração e 27.º da CRP);

III- Nestes termos, vem-se entendendo que a «possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa» - o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, sendo suficientes os indícios quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição».

IV - [o ambiente do processo penal] é dominado por uma atmosfera densificada de emotividade e conflitualidade. O que deve valer como um estímulo ao exercício quotidiano da tolerância e da disponibilidade para aceitar limiares particularmente qualificados de risco permitido e de sacrifício socialmente adequado do bem jurídico mais intensamente coenvolvido, a saber, a honra.

V - De outra forma, abrir-se-ia a porta a limitações tão drásticas como intoleráveis da liberdade de expressão e actuação dos diferentes sujeitos processuais. Estes não podem viver sob a ameaça constante da invocação das reacções criminais em nome da tutela da honra, uma espada de Dâmocles que só poderia redundar em manifestações perversas de auto-censura» (cf. sumário aposto no Acórdão do STJ de 28/6/2006, visionado em www.dgsi.pt).

De facto, a nosso ver, e atenta a fase processual em que nos encontramos, opinamos no sentido de que existem no processo elementos suficientes para levar o arguido a julgamento pelo crime identificado – o tal crime-fim - no despacho de pronúncia, pelo que o recurso interposto deverá improceder.

            III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:

· negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, manter a douta decisão instrutória (despacho de pronúncia) nos termos delineados a fls 218.

            Sem tributação, já que é recorrente o Ministério Público.



Paulo Guerra (Relator)
Cacilda Sena


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.
[2] A noção de notação técnica encontra-se definida no artº 255º al. b) do Cod. Penal como sendo "a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente".
Desta forma, a notação permite reconhecer ao seu destinatário um facto juridicamente relevante, sendo que para efeitos do crime de falsificação o que constitui “documento” não é a notação mas o valor, peso, medida ou decurso de um acontecimento que aquela representa.
[3] Acompanharemos nesta sede de muito perto as explanações em parecer a que tivemos acesso da autoria da Exmª Srª Drª Dália Mouta, Procuradora-Adjunta no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, que nos permitiu esta partilha de opiniões.

[4] Todos os veículos novos, pesados de passageiros (mais de 9 lugares incluindo o de condutor) e de mercadorias (com mais de 3.500Kgs de peso bruto), com data de primeira matrícula posterior a 1 de Maio de 2006,têm de vir equipados com tacógrafo digital.
[5] As perguntas mais frequentes acerca dos tacógrafos digitais e cartão do motorista podem ser consultadas no sítio:
- www.imtt.pt/.../Tacografo%20digital_PERGUNTAS%20FREQUENTES%20SiteIMTT_25-11-08.pdf

[6] Isto sem prejuízo da punição deste comportamento também como contra-ordenação.

Refere o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 169/09, de 31 de Julho, que o regime sancionatório que o diploma visa introduzir pretende ser dissuasor da prática de infracções relacionadas com as obrigações relativas ao aparelho de controlo que impendem sobre motoristas, entidades transportadoras e centros de ensaio.

Se assim é, parece poder entender-se que aquela disposição legal que fere de contra-ordenação a “utilização de cartão de condutor por pessoa diferente do seu titular, sem prejuízo da responsabilidade criminal.” (cfr. artigo 7º, n.º 3, alínea d) do referido Decreto-Lei), entende que esse sancionamento não é suficiente para observar os objectivos legais, prevendo a responsabilidade criminal.

Isso significa que o texto legal não parece deixar outra opção que não o preenchimento simultâneo de contra ordenação e crime.

Repare-se que a estruturação daquele artigo 7º do Decreto-Lei n.º 169/09, de 31 de Julho, parece acompanhar, nas molduras das coimas a aplicar, de certa forma, as molduras previstas para os crimes que “acompanham” tais contra-ordenações. Para tal atente-se, por exemplo, no artigo 7º, n.º 2, alínea b), que refere igualmente “sem prejuízo da responsabilidade criminal”, aí se prevendo aquilo que no Código Penal consubstancia um crime de falsificação de documento ou falsificação de notação técnica. Mais grave, portanto, do que a moldura legal prevista para o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, previsto e punido pelo artigo 261º do Código Penal, e com moldura contra-ordenacional mais leve, acompanhando, mais uma vez, a pena abstractamente aplicável.
 
[7] Cfr. “Direito Penal - Parte Geral”, tomo I, 2ª Ed. pag. 1008.
[8] A exposição de motivos da proposta de lei 98/X que procedeu à 21ª alteração do CP (em 2007) é calar em afirmar que «o âmbito das condutas típicas é ampliado», não lançando qualquer luz sobre a razão das mudanças legislativas, em sede dos crimes de falsificação, a leitura das Actas – a 14ª datada de 6/3/2006 – da Unidade de Missão para a Reforma Penal.
[9] A previsão autónoma daquele elemento subjectivo denota que o legislador pretende punir autonomamente o comportamento do "usuário", ainda que o mesmo tenha a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.