Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/03.4TBLMG-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ALIMENTOS
MENORES
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
MAIORIDADE
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES FGADM
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - LAMEGO - INST. CENTRAL - 2ª SEC. F. MEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1880, 1905 CC, LEI Nº 75/98 DE 19/11, LEI Nº 121/2015 DE 1/9, ARTS.13, 70,74, 76 CRP
Sumário: 1. A obrigação (e a intervenção) do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores cessa com a maioridade do respectivo beneficiário e não se estende às despesas educacionais de maiores, que se encontrem na situação do art.º 1880º do Código Civil (CC).

2. A protecção social dos jovens, designadamente para formação educacional ou profissional, prevista no art.º 1880º do CC, em cumprimento da directiva prevista no art.º 70º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, bem como das incumbências dos normativos seguintes da mesma Lei Fundamental, há-de buscar-se em outros instrumentos ou mecanismos legais.

3.A Lei 75/98 de 19/11, interpretada no sentido da sua não aplicação aos maiores de 18 anos na situação prevista do art. 1905º nº2 CC, não está ferida de inconstitucionalidade material.

Decisão Texto Integral:     





       
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. O Ministério Público veio requerer nos autos de incumprimento das responsabilidades parentais em que são, requerente, M (…) e, requeridos, R (…) e S (…) a correr termos na Comarca de Viseu (Lamego – Inst. Central – 2ª Sec. F. Men.), que fosse fixado o montante que o Estado, em substituição dos requeridos, pais dos menores R (…), R (…) e J (…)  deveria garantir a título de alimentos.

            Por sentença de 05.3.2015, o Tribunal a quo decidiu fixar em € 100 a prestação de alimentos devida aos menores, a satisfazer mensalmente pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), até ao início do efectivo cumprimento da obrigação ou até que cesse a obrigação a que a mãe está obrigada.

            Atingida a maioridade (em 21.10.2015), o referido R (…) veio alegar, e requerer, em 17.02.2016, que o FGADM deixara de satisfazer ao mesmo a prestação de alimentos, passando a satisfazer os alimentos apenas aos seus dois irmãos menores, e que, mantendo-se os requisitos de que a lei faz depender a intervenção do FGADM (designadamente, persistindo o incumprimento da sua progenitora e estando ainda em curso a sua formação) e face ao estabelecido pela Lei n.º 121/2015, de 01.9 (maxime, à nova redacção conferida ao n.º 2 do art.º 1905º, do Código Civil/CC), em vigor desde 01.10.2015, deveria o FGADM pagar, além do mais, a prestação devida ao requerente, à razão de cem euros mensais.

            Por despacho de 09.3.2016, a Mm.ª Juíza a quo decidiu:

            «(…) Independentemente das razões argumentativas do requerente, certo é que não tendo havido qualquer alteração legislativa relativa à intervenção do FGADM, que tivesse como objectivo acompanhar as alterações legislativas relativas às responsabilidades dos progenitores no pagamento de alimentos devidos aos filhos, para além da maioridade e até que se mantenha a sua formação escolar ou profissional, não pode o tribunal deixar de atender à regra legal imposta pelo n.º 2 do art.º 1º da Lei n.º 75/98, de 19.11, na sua redacção actual, que estatui claramente que o pagamento devido pelo Estado através do FGADM cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos.

            Pelo exposto, indefere-se o requerido. (…)»

            Inconformado, o dito R (…) interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O recorrente perfez 18 anos de idade em 21.10.2015.

            2ª - Nessa data o FGADM cessou o pagamento das prestações de alimentos a que se encontrava obrigado em substituição da mãe do recorrente.

            3ª - A Lei 121/2015, de 01.9, alterou a redacção ao n.º 2 do art.º 1905º do CC, no sentido de que verificados os requisitos aí constantes (que o recorrente cumpre) se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade.

            4ª - O art.º 1º, n.º 2 da Lei 75/98, mantém-se inalterado cessando a obrigação de o FGADM prestar alimentos no dia em que o menor atinja os 18 anos de idade.

            5ª - A norma do art.º 1905º, n.º 2 do CC visa essencialmente permitir que aos menores de 25 anos de idade continuem a dispor da pensão de alimentos fixada durante a sua menoridade para através dela concluírem o seu processo de educação ou formação profissional.

            6ª - A sentença em apreço considerou cessada a obrigações do FGADM quando o recorrente perfez 18 anos de idade, efectuando uma interpretação da norma do n.º 2 do art.º 1º da Lei 75/98 que se encontra actualmente ferida de inconstitucionalidade, por violação do art.º 13º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e que deve ser interpretada conforme a Constituição.

            7ª - Todas as normas devem ser interpretadas conforme a Constituição e os princípios basilares do Estado de Direito, dos quais destacamos o princípio da igualdade.

            8ª - O entendimento defendido na sentença recorrida traduz um privilégio para aqueles cujos pais lhes podem prestar alimentos em detrimento daqueles cujos pais não têm essa possibilidade e que afronta o princípio da igualdade ínsito ao art.º 13º da CRP, na medida que, em razão da sua situação económica, uns terão o benefício e o privilégio de prosseguir os estudos e concluir a sua educação e formação ao passo que outros, nascidos noutros berços, verão negada essa possibilidade.

            9ª - A aplicação que o Tribunal recorrido faz da norma do n.º 2 do art.º 1º da Lei 75/98, viola também o art.º 74º, n.º 1 da CRP que confere a todos o direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar e também o art.º 76º, n.º 1 da CRP que estabelece que o regime de acesso à Universidade e demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades.

            10ª - Impondo-se aos pais a obrigação de pagar a pensão de alimentos fixada durante a menoridade do alimentado para garantir a conclusão do seu processo de educação ou formação profissional, não é admissível a extinção dessa obrigação por parte do FGADM aos 18 anos do alimentado, pois tal cria acentuadas e irreversíveis desigualdades entre os jovens além do mais na igualdade de oportunidades de acesso ao ensino, às Universidades e às instituições do ensino superior.

            11ª - Caso assim se não entenda, verifica-se então uma inconstitucionalidade por omissão resultante de uma situação de inadequação em virtude de o legislador não ter aperfeiçoado ou corrigido as normas existentes (nomeadamente o n.º 2 do art.º 1º da Lei 75/98) e que por ter alterado a norma que rege uns casos e não ter alterado a norma que rege outros, cria um regime de incompreensível inaceitável desigualdade entre os cidadãos.

            12ª - Não tendo alterado a norma do art.º 1º, n.º 2 da Lei 75/98, o legislador criou um regime desigual que permite aos filhos dos pais mais ricos prosseguir com a sua formação, os seus estudos, frequentar o ensino superior, ao passo que os filhos dos pais pobres que até aí viam a sua prestação de alimentos ser satisfeita pelo FGADM ficam sem qualquer suporte, numa situação de manifesta desigualdade em relação aos outros nomeadamente no que toca ao acesso ao ensino superior e à conclusão do seu processo de formação, daí emergindo uma clara, indesejável e ilegal, desigualdade de oportunidades entre uns e outros.

            Rematou dizendo que deverá:

            a) Ser a norma do n.º 2 do art.º 1º da Lei 75/98 julgada inconstitucional por violação do princípio da igualdade previsto nos art.ºs 13º, 74º, n.º 1 e 76º, n.º 1 da CRP.

            b) Ser a sentença em apreço substituída por outra que reconheça ao recorrente o direito de receber as prestações de alimentos do FGADM, enquanto preencher os requisitos de que depende o art.º 1905º do CC, na redacção actual ou até perfazer os 25 anos de idade.

            Subsidiariamente à al. a):

            c) Ser declarada a inconstitucionalidade por omissão resultante de uma situação de inadequação em virtude de o legislador não ter aperfeiçoado ou corrigido a norma do art.º 1º, n.º 2 da Lei 75/98.

            O M.º Público respondeu à alegação concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente, se a obrigação do FGADM subsiste após o atingir da maioridade e verificado o condicionalismo previsto no art.º 1880º do CC, bem como se o decidido tem adequada cobertura constitucional.


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que consta do procedente relatório e a seguinte factualidade:[1]

            a) O R (…) nasceu a 21.10.1997, o R (…) nasceu no dia 18. 8.1999 e J (…) nasceu no dia 08.6.2001.

            b) Por sentença de 04.11.2013, transitada em julgado, a guarda dos menores foi confiada aos avós maternos, I (…) e M (…) tendo ficado estipulado que cada um dos progenitores contribuiria mensalmente a título de alimentos com a quantia de € 100 (cem euros) para os menores.

            c) o R (…), o R (…) e o J (…) vivem com os avós maternos, em (...) , (...) , Lamego.

            d) Este agregado familiar tem como rendimentos a pensão de invalidez do avô, o rendimento do trabalho da avó, o abono de família e a pensão de alimentos que o pai tem vindo a pagar.

            e) No primeiro trimestre de 2015, o rendimento per capita do agregado familiar era de € 290,63.

            f) A S (…) (mãe) tem faltado reiteradamente à liquidação da prestação de alimentos em que foi condenada.

            g) E não satisfez as quantias em dívida pelas formas previstas no art.º 189º da Organização Tutelar de Menores, tendo sido proferida decisão, em 05.12.2014, a julgar procedente o incidente de incumprimento, reconhecendo o débito das prestações de alimentos.

            h) O R (…) está/esteve matriculado no ano lectivo de 2015/2016, no 2º Ano do Curso de Formação Inicial/“Técnicas Cozinha Pastelaria (NQP IV)”.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.     

            Estatui o art.º 1º da Lei n.º 75/98, de 19.11 (sob a epígrafe Garantia de alimentos devidos a menores, na redacção conferida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31.12): Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do DL n.º 314/78, de 27.10, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação (n.º 1). O pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado, nos termos da presente lei, cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos (n.º 2).

            Nos termos do art.º 1880º do CC (na redacção do DL n.º 496/77, de 25.11), Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior[2] na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.

            Preceitua o n.º 2 do art.º 1905º, do CC (na redacção introduzida pela Lei n.º 122/2015, de 01.9[3]): Para efeitos do disposto no art.º 1880º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respectivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.

            E prevê o art.º 989º, do Código de Processo Civil (na redacção conferida pela mesma Lei): Quando surja a necessidade de se providenciar sobre alimentos a filhos maiores ou emancipados, nos termos dos art.ºs 1880º e 1905º do Código Civil, segue-se, com as necessárias adaptações, o regime previsto para os menores (n.º 1). Tendo havido decisão sobre alimentos a menores ou estando a correr o respectivo processo, a maioridade ou a emancipação não impedem que o mesmo se conclua e que os incidentes de alteração ou de cessação dos alimentos corram por apenso (n.º 2). O progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos pode exigir ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos, nos termos dos números anteriores (n.º 3). O juiz pode decidir, ou os pais acordarem, que essa contribuição é entregue, no todo ou em parte, aos filhos maiores ou emancipados (n.º 4).

            3. O que está na base da norma do art.º 1880º do CC é a incapaci­dade económica do filho maior para prover ao seu sustento e educa­ção, quando as circunstâncias impuserem aos pais, não obstante a maioridade do filho, a obrigação de, em nome do bem-estar e do futuro deste, continuar a suportar as despesas inerentes à completude da formação profissional; a obrigação excepcional prevista neste normativo tem um carácter tempo­rário, balizado pelo “tempo necessário” ao completar da formação profis­sional do filho, e obedece a um critério de razoabilidade - é necessário que, nas concretas circunstâncias do caso, seja justo e sensato, exigir dos pais a conti­nuação da contribuição a favor do filho agora de maioridade.

            Não se trata de um caso de direito a alimentos, mas de uma exten­são da obrigação dos pais para além da menoridade dos filhos, de modo a que a estes seja possível alcançar o termo da sua formação profissional[4] - a situação do filho maior que apenas precisa da assistência parental para completar a formação profissional radica noutras exigências, que não as alimentares em sentido estrito, havendo que presumir que o filho maior disporá, em regra, de aptidão para o seu sustento mesmo em caso de emergência familiar, como será o caso dos pais não disporem de condições económicas para o auxiliarem a completar a forma­ção profissional.

            4. Afirmou-se na exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 975/XII/4ª, de 29.5.2015 (relativo à Lei n.º 122/2015, de 01.9):

            - Por um lado, a urgência em dar resposta a uma questão particular relativa ao regime de exercício das responsabilidades parentais e que “penaliza de forma desproporcionada as mulheres que são mães de filhos ou filhas maiores e que estão divorciadas ou separadas dos respectivos pais” [porquanto - a) “é hoje comum que, mesmo depois de perfazerem 18 anos, os filhos continuem a residir em casa do progenitor com quem viveram toda a sua infância e adolescência e que, na esmagadora maioria dos casos, é a mãe”; - b) depois, por se verificar “que a obrigação de alimentos aos filhos menores cessa, na prática, com a sua maioridade e que cabe a estes, para obviar a tal, intentar contra o pai uma acção especial”; - c) por último, que “esse procedimento especial deve provar que não foi ainda completada a educação e formação profissional e que é razoável exigir o cumprimento daquela obrigação pelo tempo normalmente requerido para que essa formação se complete”], sendo que, “como os filhos residem com as mães, de facto são elas que assumem os encargos do sustento e da formação requerida”, e “(…), sobretudo quando ocorreu ou ocorre violência doméstica, (…) [os filhos maiores] não intentam a acção de alimentos” ou, quando o fazem, “a decretação dos processos implica, por força da demora da justiça, a privação do direito à educação e à formação profissional”, gerando-se, por consequência do descrito, uma “desigualdade evidente entre filhos de pais casados ou unidos de facto e os filhos de casais divorciados ou separados”, no que concerne à “situação dos filhos maiores ou emancipados que continuam a prosseguir os seus estudos e formação profissional”.        

            - Por outro lado, a necessidade de conferir legitimidade processual activa ao “progenitor a quem cabe o encargo de pagar as principais despesas de filho maior para promover judicialmente a partilha dessas mesmas despesas com o outro progenitor”.

            Acolhendo, no essencial, o que se fizera constar do mencionado Projecto de Lei, as alterações introduzidas pela Lei n.º 122/2015 (à lei civil substantiva e à lei civil processual) tornaram claro que a obrigação de pagamento da pensão alimentícia (para efeitos do disposto no art.º 1880º do CC) se mantém após a maioridade do filho e até que este perfaça 25 anos de idade, excepto se o mesmo tiver desistido voluntariamente dos estudos/formação profissional ou se não for razoável impor ao progenitor tal obrigação (segunda parte do n.º 2 do art.º 1905º do CC); por outro lado, o progenitor que assumir a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores pode exigir ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação destes.

            5. Segundo a Lei Fundamental da República Portuguesa, os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente, no ensino, na formação profissional e na cultura (art.º 70º, n.º 1, alínea a) da CRP); todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar (art.º 74º, n.º 1); na realização da política de ensino incumbe ao Estado, designadamente: garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística, e estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino (n.º 2, alíneas d) e e)); o regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do país (art.º 76º, n.º 1).

            Os jovens têm os mesmos direitos económicos, sociais e culturais que todos os cidadãos mas, enquanto jovens, têm um direito particular à protecção do Estado para realização desses direitos.

            A Constituição deixou ao legislador a selecção dos meios e formas de realização do direito à protecção especial dos jovens para a realização de tais direitos, pelo que existe uma ampla margem de liberdade de conformação legislativa, como é a regra nos direitos sociais, sendo que terá de tratar-se de medidas especificamente destinadas aos jovens, e não à população em geral, embora nada impeça a diferenciação dentro dos próprios jovens, por exemplo conforme a idade ou os recursos (v. g., medidas reservadas para os jovens desprovidos de meios financeiros próprios).

            O direito ao ensino compreende o direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar, pelo que importa implementar e garantir o apoio social escolar (auxílio económico, transportes escolares, cantinas escolares, saúde escolar) tendente a anular as discriminações de ordem económica no acesso e na frequência escolar, privilegiando-se, nomeadamente, os alunos que não estão em condições, individuais e/ou familiares, de suportar os custos económicos e financeiros do ensino superior (v. g., através da ampliação do sistema social de isenção de propinas e bolsas de estudo/apoios financeiros), assegurando-se, assim, a quem não tem meios o acesso e a frequência dos graus mais elevados do ensino.[5]

            6. Analisando a Lei n.º 75/98, de 19.11 e o DL 164/99, de 13.5 (bem como o preâmbulo deste diploma) que a veio regulamentar, verifica-se que apenas se prevê a prestação de alimentos (a cargo do FGADM) a favor de menores; a obrigação do Estado refere-se apenas à garantia da prestação de alimentos devidos a crianças ou a menores.

            Ora, porque o intérprete não pode considerar um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, tal como não pode partir do princípio que o legislador adoptou uma solução incongruente ou incoerente ou presumir que não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, antes deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art.º 9º do CC), antolha-se evidente que o apontado quadro legal inculca que o seu círculo de intervenção é o de assegurar o pagamento de alimentos a menores, não sendo possível estender a sua aplicação a maiores.[6]

            A este elemento interpretativo de ordem literal, acresce o pensamento legislativo que esteve na origem da criação do FGADM e da publicação dos dois indicados diplomas, retirando-se do preâmbulo do DL 164/99, entre outras, as seguintes expressões: “assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção[7], mediante a criação de “uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento do objectivo de reforço da protecção social devida a menores”.

            Ante aquela clara opção pela tutela exclusiva dos menores, mostra-se assim desnecessário considerar outros elementos de interpretação das normas.[8]      

            7. Na obrigação legal a cargo do FGADM a prestação de alimentos incumprida pelo primitivo devedor funciona apenas como um pressuposto justificativo da intervenção subsidiária do Estado para satisfação de uma necessidade actual do menor; não há paridade entre o dever paternal e o dever do Estado quanto a alimentos, pois não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação de alimentos fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito do Fundo (este, quando procede ao pagamento de prestação de alimentos, em conformidade com o mencionado regime jurídico, fá-lo no cumprimento de uma obrigação própria e não alheia).[9]

            Por isso, se entende que a obrigação de garantia das referidas prestações (a cargo do FGADM) não se estende a maiores, na situação prevista no art.º 1880º do CC.

            Se o propósito do legislador fosse o de vincular o Estado com a garantia de prestação de alimentos para além da menoridade aos jovens em fase de formação profissional, então teríamos de admitir igual tratamento para todos os jovens nessas circunstâncias.[10]

            A protecção social dos jovens, designadamente para formação educacional ou profissional, prevista no art.º 1880º do CC, em cumprimento da directiva prevista no art.º 70º, n.º 1, da CRP, bem como das incumbências previstas nos normativos seguintes da mesma Lei Fundamental, há-de buscar-se em outros instrumentos ou mecanismos legais[11]; e se o “filho maior” reunir condições para aceder às prestações sociais instituídas, esse direito não lhe será declinado e, por essa via, lhe será assegurada a protecção social de que necessita.[12]

            8. Daí que se conclua que a obrigação de prestar alimentos por parte do FGADM cessa necessariamente com a maioridade do respectivo beneficiário, entendimento que tem sido seguido pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores[13] e que, como decorre do exposto, não se deverá afastar[14].

            E atendendo ao expendido em II. 5. e 7., supra, pese embora a actual redacção do art.º 1905º do CC (Lei 121/2015, de 01.9) que confere aos jovens com mais de 18 anos o direito de nas circunstâncias aí previstas continuarem a receber pensão de alimentos dos pais até aos 25 anos de idade, também não se poderá concluir que a decisão sob censura faz uma interpretação da norma do n.º 2 do art.º 1º da Lei 75/98, de 19.11, ferida de inconstitucionalidade, por violação dos art.ºs 13º, 70º, 74º, n.º 1 e 76º, n.º 1, da CRP, ou pela existência de qualquer discrepância ou incongruência violadora da mesma Lei Fundamental.

            9. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas a cargo do requerente/apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza (fls. 12).


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13.9.2016


Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro

               


[1] Cf., sobretudo, os documentos de fls. 3 e 13.
[2] Reza o art.º 1879º do CC (sob a epígrafe “Despesas com o sustento, segurança, saúde e educação dos filhos”, na redacção do DL 496/77, de 25.11) que os pais ficam desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos.

[3] Que alterou o Código Civil de 1966 e o Código de Processo Civil de 2013, no que respeita ao regime de alimentos em caso de filhos maiores ou emancipados, em vigor desde 01.10.2015 (cf. os art.ºs 1º e 4º da Lei n.º 122/2015, de 01.9).
[4] Vide Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, 2002, pág. 107.
[5] Vide, nomeadamente, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 874 e seguinte, 895 e seguintes e 911.

[6] A propósito da relevância do elemento literal ou gramatical da interpretação, vide, nomeadamente, J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 17ª reimpressão, 2008, págs. 181 e seguinte e 189; Manuel de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Arménio Amado-Editor, Sucessor, Coimbra, 1987, págs. 28 e 65 [onde se refere que “muitos textos de lei têm um significado linguístico absolutamente nítido e preciso, apenas consentindo uma única interpretação”] e J. Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 354 [“Se se prescinde totalmente do texto já não há interpretação da lei, pois já não estaremos a pesquisar o sentido que se alberga em dada exteriorização”].
[7] E refere-se, depois, no dito preâmbulo, que a “protecção à criança, em particular no que toca ao direito a alimentos, tem merecido também especial atenção no âmbito das organizações internacionais especializadas nesta matéria e de normas vinculativas de direito internacional elaboradas no seio daquelas. Destacam-se, nomeadamente, as Recomendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, e R(89)l, de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como o estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade [sublinhados nossos].
[8] Desenvolvendo argumentação alargada aos elementos racional ou teleológico, sistemático e histórico, e concluindo, também, que o pensamento legislativo é o que está traduzido no texto da lei e pelo consequente afastamento da interpretação extensiva da norma no sentido de enquadrar os alimentos devidos a filhos maiores, cf. o acórdão da RP de15.11.2011-processo 21/1995.P2, publicado no “site” da dgsi.
[9] Cf. o Acórdão Uniformizador do STJ n.º 12/2009, de 07.7, publicado no DR, 1ª Série, n.º 150, de 05.8.2009.

[10] Cf. o acórdão do STJ de 27.01.2004-processo 03A3648, publicado no “site” da dgsi [que, depois, questiona: Que razão e fundamento constitucional haveria para um tratamento diferenciado, por parte do Estado, entre os jovens maiores a quem garantiu a prestação de alimentos desde a menoridade e aqueles que, encontrando-se na mesma situação de privação do necessário à sua formação profissional, apenas necessitassem da mesma protecção social do Estado após a sua maioridade?].
[11] Ibidem.
[12] Cf. o cit. acórdão da RP de15.11.2011-processo 21/1995.P2.

[13] Cf. ainda, entre outros, os acórdãos da RP de 26.11.2001-processo 0151505, 10.01.2012-processo 42/04.7TBCHV-A.P1, da RG de 18.12.2012-processo 47-B/2000.G1 [aresto que salienta que a especial protecção, a cargo do Estado/FGADM, “reside nas fragilidades e incapacidades inerentes à própria condição de criança e menor, que já não se verificam quando atingida a maioridade. Um jovem adulto tem uma autonomia de vida, que a lei lhe consagra, completamente diferente de um menor, não depende, querendo, do poder parental, pode seguir a sua vida, celebrar contratos, encontrar ferramentas para subsistir. (…) Através deste mecanismo o Estado não pretendeu intervir, substituindo-se aos incumpridores, em todas as situações em que são devidos alimentos. Apenas às crianças e jovens até aos 18 anos de idade.”] e da RE de 08.5.2014-processo 87-A/1995, publicados no “site” da dgsi.

[14] Defendendo entendimento contrário, vide, porém, o voto de vencido ditado no cit. acórdão da RP de 26.11.2001-processo 0151505, no sentido de que se o FGADM, antes de o menor atingir a maioridade estiver já a prestar alimentos no quadro de subsidariedade que Lei lhe impõe, caso o menor atinja a maioridade e se verifique o condicionalismo do art.º 1880º do CC, então está agora obrigado a prover ao sustento do alimentando, de harmonia com a regra e a medida do art.º 1880º do CC, desde que obtida a obrigatória autorização do Tribunal, sendo igual a paridade entre o dever paternal e o dever do Estado.