Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2038/09.3TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
ABUSO DE CONFIANÇA
CONCURSO
Data do Acordão: 03/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30º, 205º Nº 1, 255º E 256º Nº 1 D) CP
Sumário: 1.- Comete o crime de falsificação de documento, quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, nomeadamente, fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante.

2.- Documento será a declaração de um pensamento humano que possa constituir meio de prova, declaração que, além de corporizada em documento, seja também idónea para provar facto jurídico relevante;

3.- A falsidade existirá, mesmo que o facto não seja dos que o documento tem por finalidade certificar ou autenticar, ou dos que não são essenciais para a validade do documento, bastando que seja juridicamente relevante; ou seja, o documento apresenta-se genuíno ou materialmente verdadeiro, só que o seu conteúdo intelectual não corresponde à versão, uma vez que nele foi inserido, aquando da sua feitura um facto que não é real;

4.- No crime de falsificação o bem jurídico protegido é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita á prova documental;

5.- No crime de abuso de confiança, o bem jurídico tutelado é a propriedade;

6.- Tendo o arguido recebido das testemunhas, em momentos distintos, montantes parcelares da dívida global que cada uma delas tinha para com os credores respetivos, e, por outro lado, também em momentos díspares, o arguido subscreveu e lhes entregou os respetivos recibos, resulta que o arguido não falsificou para abusar da confiança, antes, em momentos temporais distintos, abusou desta confiança e ulteriormente falsificou os dois ditos recibos, pelo que praticou os referidos crimes em concurso real de infrações.

Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. O arguido A..., entretanto já melhor identificado, foi submetido a julgamento sob a aludida forma de processo comum singular, porquanto acusado pelo Ministério Público, no uso da faculdade concedida pelo art.º 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, da
crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. através das disposições conjugadas dos art.ºs 30.º, n.º 2 e 205.º, n.º 1, ambos do Código Penal, em concurso real de infracções, com a prática de um crime de falsificação de documento, igualmente sob a forma continuada, p. e p. pelos art.ºs 30.º, n.º 2; 79.º e 256.º, n.º 1, alínea c), todos ainda daquele diploma.
U... – ., Lda., também com os sinais dos autos, deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido, concluindo pela procedência respectiva e decorrente condenação do demandado a pagar-lhe a quantia de € 5.648,39, acrescida dos juros desde a data dessa dedução e até seu integral pagamento à demandante.
Realizado o contraditório Em cujo decurso foi dado cumprimento ao disposto pelo art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, ut despacho exarado em acta a fls. 163. , mostra-se proferida sentença por cujo intermédio, e ao ora relevante, se determinou:
- Condenar o arguido pela autoria dos dois ilícitos mencionados [embora o segundo agora através das disposições conjugadas dos art.ºs 30.º, n.º 2; 79.º e 256.º, n.º 1, alíneas a), b), d) e e)], nas penas parcelares de duzentos e cinquenta (250) dias de multa, e, de cento e setenta (170) dias de multa, todos à razão de oito euros (€ 8,00) dia, e a que, em cúmulo jurídico logo operado, se fez corresponder a pena única de trezentos e cinquenta (350) dias de multa, à dita razão de oito euros (€ 8,00) dia, ou seja, no total de dois mil e oitocentos euros (€ 2.800,00).
- Julgar parcialmente procedente o pedido cível e condenar consequentemente o demandado a solver à demandante a quantia de mil, seiscentos e vinte e seis euros, noventa e três cêntimos (€ 1.626,93), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data da sua notificação para o contestar, até integral pagamento.
1.2. O arguido/demandado, desavindo, interpõe recurso, extraindo da motivação com que minutou tal discordância, a seguinte ordem de conclusões:
1. Impugnam-se especificadamente os factos dados como provados nos itens n.ºs 3, 4, 6 e 7 da decisão recorrida.
2. O Tribunal a quo, como resulta da respectiva motivação, fundamentou a prova respectiva, além do mais, nos depoimentos de ... e do representante legal da X..., Lda., bem como na prova documental, mormente de fls. 15 e 20.
3. O crime de falsificação pune não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação de uma declaração stricto sensu, estando em causa pois a falsificação das declarações que os recibos de fls. 15 e 20 pretendem respaldar.
4. O documento de fls. 20 não consubstancia sequer uma declaração, porquanto não está assinado, e desconhece-se se de original ou de fotocópia se trata.
5. Já quanto ao de fls. 15, bastou-se o tribunal, sem levar a cabo uma perícia científica à letra desse documento, com a prova testemunhal de que ele fora assinado e entregue pelo arguido, quando na realidade tal documento, que deveria documentar uma declaração, não é mais que mera fotocópia, jamais confrontada com o original (que se desconhece).
6. A punibilidade pela falsificação protege a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, que uma mera fotocópia não belisca, pelo que não é prova bastante.
7. E mesmo que concatenada com as declarações das testemunhas acima indicadas, certo é que as mesmas assumem que já pagaram a dívida (que todavia ainda devem), e são estes os principais interessados na junção de um documento comprovativo, original, de quitação, que eles próprios jamais juntaram. Aliás, são os verdadeiros ofendidos.
8. Sendo estes os únicos motivos em que a sentença assenta que fora o arguido quem lhes entregou tais recibos, bem se vê a perigosidade do raciocínio, que só poderia ser afastada por tal prova pericial, não realizada.
9. Por outro lado, dá o Tribunal a quo como motivação para o crime a ausência de dinheiro por parte do arguido, e ao mesmo tempo, ao fundamentar o crime continuado, afirma que ele adoptou um modus operandi idêntico pelo êxito, facilidade e impunidade.
10. Do testemunho da sua companheira, ..., resulta, porém, ao contrário do que conclui o dito Tribunal, que o arguido saiu da empresa porque andava a pagar para trabalhar, o que não parece, à saciedade, lógico.
11. Parece mais de acordo com as regras da experiência comum que com tal impunidade o arguido insistisse em tais condutas, mantendo-se ao serviço da empresa, ao invés de conscientemente abandonar um serviço que só lhe trazia prejuízo. Justamente porque se se houvesse apoderado de tais quantias (cerca de € 4.500,00) não teria, como teve, problemas de liquidez.
12. Verifica-se, assim, quanto a tais factos, quer o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada por provada (i.é., o Tribunal a quo deixou de investigar, podendo-o fazer, toda a matéria de facto que se encontrava ao seu alcance, mormente quanto a buscar os originais), quer o de erro notório na apreciação da prova (i. é., lançou mão de uma conclusão ilógica, irracional, violadora da experiência comum), por neste último caso (ou seja, na ausência de outra prova testemunhal que houvesse lidado directamente com o arguido) se haver violado o princípio do in dúbio pro reo, e cuja preterição, e só ela, permitiu dar como provados os factos elencados supra.
13. A ofendida dos autos (U..., , Lda.) em boa verdade não o é, pelo que era parte ilegítima para deduzir a competente queixa-crime pelo crime de abuso de confiança perpetrado pelo arguido.
14. Este crime protege a propriedade e os titulares de um direito real sobre a coisa que, literalmente, entregam ao abusador, sendo vítimas de uma inversão do título de posse por parte deste. Esta opera-se por oposição do abusador ao possuidor em nome próprio, que não era a aqui ofendida.
15. São os devedores, ... e X..., Lda., os verdadeiros ofendidos; esses sim, possuidores/proprietários, é que confiaram as suas quantias ao arguido com o propósito de este as vir a entregar aos credores que haviam contratado a empresa cobradora. Esta última tinha apenas um direito a uma comissão contratada sobre tais quantias, isto é, a um direito de crédito, pelo que não era possuidora, nem sequer em nome alheio.
16. Tais devedores, sabedores de que às quantias que haviam entregue ao arguido não havia sido dado o destino por eles pretendido, não reagiram criminalmente em tempo contra o arguido, apesar de serem eles os titulares do bem jurídico protegido por tal norma.
17. Sendo este um mero prestador de serviços, eram estes devedores quem devia pedir responsabilidade ao arguido quanto ao destino do dinheiro, sob pena de, mesmo tendo-lhe entregue o dinheiro, continuarem a dever (os credores não chegaram a receber e são-lhes indiferente todas as relações de permeio). E não o fizeram.
18. Carecia pois o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal.
19. Tal legitimidade, por se considerar que a U... tinha um direito de crédito e nada mais, tem repercussões no PIC.
20. A causa de pedir da demandante lesada (em 35 %) nos presentes autos é o facto ilícito “abuso”, quando na realidade existe apenas uma violação da obrigação contratual derivada da prestação de serviços: a de entregar as quantias à sociedade empregadora. E tal petitório por incumprimento contratual é de sede civil, defeso em processo penal (art.º 71.º, do Código de Processo Penal).
21. Ainda que tenha sido feita prova que U... tinha apenas direito a 35 % sobre os valores cobrados (ponto 11), certo é que a sentença recorrida motiva a medida da pena por referência aos valores de 100 % (os dados por provados em 3).
22. Contradiz-se pois o Tribunal a quo, de forma insanável, quando dá por provado o ponto 11, dá também por provado o ponto 6 [que o arguido ao fazer seu o dinheiro, actuava contra a vontade da sua legítima proprietária (a U...)], mas, contraditoriamente dá por não provado, o que aceita o recorrente, o ponto 12 [que as quantias apropriadas pertenciam à mesma U...].
23. Por hipótese, a não proceder a arguição de ilegitimidade, i. é., mesmo que se considere que a U... é proprietária dos 35 %, teria então o arguido de ser punido por referência circunscrita a tal percentagem, e não à totalidade.
24. Diminuição de valor que seria bastante para esmorecer o grau de ilicitude para patamares não tão significativos e, consequentemente, baixar a medida da pena que lhe foi aplicada.
25. Também não podia o Tribunal valorizar, como o fez, para determinação da medida da pena, as condenações do arguido que, à data da prática dos factos destes autos (Maio e Agosto de 2008), não haviam ainda sido objecto de trânsito em julgado; não podia, mais concretamente, levar em consideração os factos praticados pelo arguido em 2004, cujo trânsito apenas ocorreu em Setembro de 2008.
26. O juízo de culpa é sempre um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, i. é., à data da prática dos factos ora em análise. E tais “antecedentes” ainda não constavam, nem podiam constar, do CRC do arguido, devendo o tribunal situar-se, ao proferir a condenação, na posição em que estaria caso os julgasse imediatamente.
27. Tais considerandos de antecedentes (que formalmente o não eram) deveriam ter sido relegados apenas para sede de medida da pena por concurso de crimes, sob pena de se fazer um juízo duplicado de culpa e assim se aumentarem os limites mínimos e máximos de tal pena.
28. O crime de falsificação e de abuso de confiança dos autos estão numa relação de consumpção, uma vez que a inversão do título de posse se dá com a falsificação, e com ambos se procura o mesmo e único benefício ilegítimo.
29. Decidindo pela forma em que o fez, a decisão recorrida violou o disposto nos art.ºs 49.º; 71.º 127.º e 164.º, do Código de Processo Penal; 30.º; 71.º; 77.º; 113.º; 205.º e 256.º, todos do Código Penal, e, por fim, 29.º, n.º 4 e 32.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Terminou pedindo que:
- Seja revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que determine o arquivamento dos autos quanto ao imputado crime de abuso de confiança e desconsidere o PIC apresentado, perante a falta de legitimidade do Ministério Público em exercer a acção penal.
- Seja decretada a absolvição do recorrente, quer por insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada (ausência de prova); por erro notório na apreciação da prova (nomeadamente, violação ao princípio do in dúbio pro reo), e quer por contradição insanável entre os próprios factos dados como provados e entre estes e a decisão.
Quando assim se não entenda,
- Seja determinado o reenvio do processo para a 1:ª instância.
Improcedendo todas as demais,
- Seja proferida decisão que estabeleça uma pena circunscrita à efectiva culpa do recorrente, ponderando-se, mormente, que:
1) Os montantes pertencentes à queixosa (por referência aos 35 %, de comissão e não à totalidade);
2) Não serem de valorar os seus antecedentes criminais (por referência a uma decisão transitada em julgado) por serem formalmente inexistentes à data do cometimento dos factos ora em causa.
1.3. Cumprido o disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público sustentando a manutenção do decidido.
1.4. Proferido despacho admitindo a impugnação, e cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer conducente a idêntica subsistência do veredicto da 1.ª instância.
Após cumprimento do estatuído pelo subsequente artigo 417.º, n.º 2, no exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se nenhuma circunstância impôr a apreciação sumária do recurso, ou obstar ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir seus termos, com a recolha dos vistos devidos, o que se verificou, e submissão à presente conferência.
Cabe, pois, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. A sentença sob censura teve por provada a seguinte factualidade:
(Da acusação)
1. Entre o dia … de 2008 e o mês de Outubro do mesmo ano, o arguido esteve ao serviço da sociedade U... – ., Lda., mediante um contrato de prestação de serviços, sendo que no âmbito das suas funções lhe competia localizar devedores de dinheiro a clientes daquela sociedade, promover a efectiva cobrança extrajudicial das dívidas que lhe estavam distribuídas e entregar de imediato nas instalações da referida sociedade, sitas na Av. … , em Coimbra, os montantes em numerário, cheques ou qualquer outro meio de pagamento que recebesse dos devedores, nas suas gestões de cobrança extrajudicial.
2. Para tal o arguido tinha em seu poder um livro de recibos devidamente numerado, destinado a conferir quitação aos devedores que interpelava e dos quais obtinha cobrança.
3. Todavia, e não obstante o arguido saber que as importâncias monetárias que dessa forma recebia deveriam ser entregues de imediato à sociedade U... – ., Lda., foi atrasando a entrega das mesmas nas instalações da firma e, aproveitando-se do facto de tal situação não ter sido logo detectada, renovou sucessivamente a resolução de se apoderar de tal dinheiro, não entregando aos representantes dessa sociedade as seguintes quantias monetárias, que passou a utilizar em proveito próprio:
- € 162,01, valor entregue ao arguido por ..., legal representante da firma X..., Lda., o que ocorreu nas instalações desta empresa, sitas na Rua … , no dia 28 de Maio de 2008, e que se destinava ao pagamento da dívida que esta empresa tinha para com a firma Z... – Representações, Lda., que por sua vez havia incumbido a U... – ., Lda., de cobrar tal crédito;
- € 4.486,38, valor entregue fraccionadamente ao arguido, até ao dia 1 de Agosto de 2008, por ..., o que ocorreu na residência desta, sita na Rua … , e que se destinava ao pagamento da dívida que a mesma tinha para com a firma Y..., Lda., que por sua vez havia incumbido a U... – ., Lda., de cobrar tal crédito, totalizando tais valores a quantia de € 4.648,39.
4. Acresce que o arguido, com vista a dar quitação das importâncias monetárias que os aludidos ... e ... lhe entregaram, em vez de lhes dar um recibo do livro de recibos, devidamente numerado, que tinha em seu poder e pertencia à U... – ., Lda., decidiu emitir e entregar-lhes os seguintes documentos, que para o efeito fabricou:
- O recibo n.º 0127 que acabaria por ser por si utilizado para dar quitação a outra cobrança, recebida no dia 13 de Junho de 2008, foi também usado desta vez pelo arguido, agora como cópia do original, no qual inscreveu o nome da empresa X....Com. K..., Lda., o valor de € 162,01, a data e local em que tal pagamento ocorreu (28.05.2008) e a sua rubrica (no local destinado ao gestor), facultando-o ao representante da pagadora para aposição da respectiva assinatura;
- O recibo n.º 70985 que o arguido criou através de uma aplicação informática e no qual fez constar que no dia 1 de Agosto de 2008 a firma Y..., Lda., tinha recebido de ... a quantia de € 1.826,70 referente ao pagamento da factura 275 e a quantia de € 2.859,68 referente a juros de mora, e cujo conteúdo não correspondia à realidade, porquanto a firma Y..., Lda. nunca recebeu aqueles quantitativos nem emitiu o referido recibo.
5. Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente;
6. Com a intenção alcançada de fazer seu o dinheiro proveniente das cobranças dos créditos pagos pelos devedores dos clientes da sociedade U... – ., Lda., dinheiro esse que lhe foi entregue na qualidade de cobrador de dívidas que lhe estavam distribuídas com a obrigação de entregar de imediato esses montantes em numerário nas instalações da referida sociedade, bem sabendo que tais quantias não lhe pertenciam, que, dessa forma, actuava contra a vontade da sua legítima proprietária, a quem causou um prejuízo correspondente aos valores a que tinha direito; e
7. Com o propósito concretizado de fazer uso dos referidos recibos adulterados, cujo conteúdo sabia não corresponder à realidade, colocando em causa a confiança que esses documentos merecem, fazendo crer aos devedores que as dívidas ficavam pagas aos seus credores e, dessa forma, omitindo à U... – ., Lda., a realização das citadas cobranças, obtendo um benefício ilegítimo que de outra forma não lograria alcançar;
8. Sabia as suas condutas contrárias à lei e criminalmente puníveis.
9. Aufere cerca de € 485,00 líquidos mensais; vive com uma companheira, que aufere cerca de € 475,00 líquidos mensais (subsídio de desemprego), em casa arrendada por € 400,00 mensais; tem o Bacharelato em Comunicação.
10. Foi condenado, a 8 de Julho de 2008, pela prática, a 1 de Junho de 2004, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, de um crime de burla simples, e de um crime de abuso de confiança, em 360 dias de multa (pena única) – extinta pelo pagamento; e, a 27 de Fevereiro de 2009, pela prática, a 28 de Julho de 2007, de um crime de violência doméstica, em 20 meses de prisão, suspensa na sua execução, condicionalmente, pelo período de três anos.
(Do pedido cível)
11. A demandante cível em causa recebia de cada cliente, como contrapartida das dívidas cobradas, a percentagem de 35% do valor respectivo.
2.2. Já no que concerne a factos não provados, foram considerados na decisão em causa, que:
12. As importâncias monetárias de que o arguido se apropriou pertenciam à U... – ., Lda.
13. A conduta do arguido afectou de forma negativa a seriedade, honestidade, credibilidade e bom-nome comercial da U... – ., Lda. junto dos seus clientes.
14. Provocando-lhe danos de valor não inferior a € 1.000,00.
Quaisquer outros factos emergentes da discussão da causa, para além dos que ficaram descritos como provados.
2.3. Por fim, tem o teor seguinte a motivação probatória inserta na mesma peça processual:
Foram determinantes para fundamentar a convicção do tribunal:
Factos provados:
1.º a 4.º: O depoimento da testemunha … , representante legal da queixosa/A. cível U... – ., Lda. – que confirmou a relação contratual da sociedade com o arguido, os deveres deste para com a sociedade, a saída voluntária do arguido em Outubro de 2008, o conhecimento posterior das cobranças dadas por assentes sem entrega do dinheiro respectivo na sociedade, após contacto com os próprios pagadores (precisando que o arguido dizia que nunca tinha recebido desses devedores), a entrega pelo arguido na sociedade dos valores cobrados a que se refere o doc. de fls. 16 (€ 23,66), ser à altura o arguido o único gestor de cobranças ao serviço da sociedade, ser a rúbrica do gestor constante do doc. de fls. 15 pertencente ao arguido, terem conferido os canhotos do livro dos recibos de que o arguido era portador e apenas existir um com o n.º 0127, e não ser da empresa respectiva o recibo de fls. 20 –, complementado pelo teor dos docs. de fls. 9 a 13 (contrato de prestação de serviços celebrado entre a empresa queixosa e o arguido, do qual ressaltam as cláusulas referentes nos termos dados por assentes) e 14 (declaração assinada pelo arguido de recebimento da caderneta de recibos da qual fazia parte o de n.º 0127) – e pelos depoimentos das testemunhas … , representante legal da firma Y..., Lda. – que confirmou ser a queixosa quem fazia as cobranças da dívida da sua empresa, precisando nunca ter emitido recibos relativos às cobranças pela mesma efectuadas, nem por preencher; mais confirmou a dívida de ... para com a sua empresa e ter ficado a queixosa encarregue da sua cobrança; garantiu também que o doc. de fls. 20 não corresponde aos recibos emitidos pela sua empresa, embora lhe vislumbre algumas semelhanças –, ..., representante legal da X..., Lda. – que confirmou ter entregue ao arguido o montante constante do doc. de fls. 15, no dia aí constante, recebendo do arguido esse recibo com a rubrica do (gestor) e no qual apôs a sua assinatura, adiantando que voltou a ser contactado pela empresa queixosa a cobrarem a dívida depois de a ter pago –, ... – que igualmente confirmou ter pago ao arguido a dívida constante do doc. de fls. 20, recibo esse que lhe foi entregue pelo arguido no dia em que lhe pagou a última parcela dessa dívida, em inícios de Agosto de 2008, sendo que mais tarde foi novamente abordada para voltar a pagar por outro senhor da empresa queixosa –, e docs. de fls. 15 e 20 (pretensos recibos entregues pelo arguido, já referenciados, de onde resultam os elementos referentes), prova essa que não mereceu qualquer tipo de contestação, tanto mais que o arguido usou da faculdade de não se pronunciar sobre os factos imputados, e que foi inclusive reforçada pelo depoimento da testemunha … , companheira do arguido já à altura – que veio fornecer ao tribunal a razão de ser da prática dos factos por parte do arguido, quando referiu que o arguido se queixava que ganhava pouco, que tinha muitas despesas e que o dinheiro faltava, o que o levou a sair da empresa queixosa.
[Resulta assim, de forma clara, que o arguido se apoderou dos montantes dados por assentes, depois de os cobrar aos devedores das empresas clientes da sociedade queixosa, tendo-lhes entregue como recibo de quitação um doc. que forjou depois de duplicar o original do recibo n.º 0127 (doc. de fls. 15), cuja caderneta tinha na sua posse e onde apôs a sua rubrica na qualidade de gestor (de cobranças), e um doc. que criou tendo por referência um original de recibo da firma Y..., Lda. (doc. de fls. 20), respectivamente; a entrega do valor cobrado, referente ao doc. de fls. 16, faz presumir ser este o original];
5.º a 8.º: Presunção natural, atenta a idade do arguido, experiência criminal respectiva e experiência de vida;
9.º: As declarações do arguido – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis;
10.º: O teor do doc. de fls. 136 a 140 (CRC do arguido, de onde resultam os elementos especificados);
11.º: Os depoimentos coincidentes das testemunhas … , representante legal da U... – ., Lda., e … , representante legal da Y..., Lda. – que confirmaram essa factualidade –, não tendo sido objecto de contestação alguma.
Factos não provados:
12.º: Prova em sentido contrário – vd. facto 3. e respectiva convicção;
13.º e 14.º: Prova em sentido contrário:
Foi o próprio representante legal da U... – ., Lda., … , quem afirmou que os credores respectivos continuaram como clientes, não tendo sido feita qualquer prova que apontasse para dano algum na imagem da empresa.
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III – Fundamentação de facto.
3.1. O objecto de um recurso penal define-se por intermédio das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal –.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º 1, daquele art.º 412.º, e conforme jurisprudência pacífica e constante Designadamente, do Supremo Tribunal de Justiça – Acórdãos datados de 13 de Maio de 1998; de 25 de Junho de 1998 e de 3 de Fevereiro de 1999, in, respectivamente, BMJ´s 477/263; 478/242 e 477/271., o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19 de Outubro de 1995, in Diário da República, I.ª Série – A, de 28 de Dezembro de 1995..
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – ditos art.ºs 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e 2. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva In “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2.ª edição, 2000, fls. 335.: “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.”
Nesta perspectiva, e porque não ocorre qualquer circunstância conducente à aludida intervenção oficiosa, vistas as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões decidendas consistem em apurarmos se:
- Foram incorrectamente ajuizados os factos provados insertos nos itens n.ºs 3, 4, 6 e 7 da decisão recorrida e ocorre contradição insanável entre os factos aí vertidos como provados em 6 e 11 e não provado em 12.
- O Ministério Público carecia de legitimidade para o exercício da acção penal relativamente ao assacado crime de abuso de confiança.
- Entre os assacados crimes de falsificação e de abuso de confiança intercede uma relação de consumpção, sendo este consumido por aquele.
- In casu, o pedido de indemnização apresentado se mostra inadmissivelmente deduzido com fundamento no art.º 71.º do Código de Processo Penal.
- Na determinação da medida concreta da pena – acaso se sufrague ser devida –, o Tribunal a quo devia apenas considerar que o prejuízo advindo à demandante se mostra de 35% dos montantes em causa, além de que não podia ter valorado as condenações anteriores do recorrente.
Vejamos de todas elas, salvo eventual prejudicialidade que a ponderação de alguma possa ter em relação à (s) subsequente (s).
3.2. Decorre das conclusões 1.ª a 12.ª que o recorrente controverte do acolhimento enquanto provados dos factos constantes dos itens 3, 4, 6 e 7, por alegadamente incursa a decisão recorrida, a propósito, nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada por provada e de erro notório na apreciação da prova.
Concretizando:
Primeiro vício: o documento de fls. 20 não consubstancia sequer uma declaração, pois que não está assinado, e não se logrou apurar se constitui um original ou sua mera fotocópia; no que concerne ao documento de fls. 15, concluiu o tribunal, sem levar a cabo uma perícia científica à letra dele constante, e bastando-se com a prova testemunhal, que o mesmo fora assinado e entregue pelo arguido, quando na realidade tal documento, que deveria documentar uma declaração, não é mais que mera fotocópia, jamais confrontada com o original (que se desconhece). Ora, embora concatenados com as declarações das testemunhas ... e Amado, sendo estes os verdadeiros ofendidos e por isso os principais interessados na junção de um documento comprovativo original, de quitação – que eles próprios jamais juntaram –, mostra-se patente da perigosidade do juízo formulado segundo o qual fora o arguido quem lhes entregou tais recibos, que apenas prova pericial não efectivada, podia suportar.
Segundo vício: enquanto na motivação para o crime o Tribunal recorrido dá a ausência de dinheiro por parte do arguido, já ao fundamentar o crime continuado, afirma que ele adoptou um modus operandi idêntico pelo êxito, facilidade e impunidade.
Do testemunho da sua companheira, ..., resulta, porém, ao contrário do que conclui o dito Tribunal, que o arguido saiu da empresa porque andava a pagar para trabalhar, o que não parece, à saciedade, lógico.
De acordo com as regras da experiência comum afigura-se mais verosímil que com tal impunidade o arguido insistisse em tais condutas, mantendo-se ao serviço da empresa, ao invés de conscientemente abandonar um serviço que só lhe trazia prejuízo. Justamente porque se se houvesse apoderado de tais quantias (cerca de € 4.500,00) não teria, como teve, problemas de liquidez.
Acresce ademais na conclusão 22.ª a invocação pelo recorrente do vício de contradição insanável na decisão recorrida, pois que dando como provados os itens n.ºs 6 [Agiu o arguido com a intenção alcançada de fazer seu o dinheiro proveniente das cobranças dos créditos pagos pelos devedores dos clientes da sociedade U... – ., Lda., dinheiro esse que lhe foi entregue na qualidade de cobrador de dívidas que lhe estavam distribuídas com a obrigação de entregar de imediato esses montantes em numerário nas instalações da referida sociedade, bem sabendo que tais quantias não lhe pertenciam, que, dessa forma, actuava contra a vontade da sua legítima proprietária, a quem causou um prejuízo correspondente aos valores a que tinha direito] e 11 [A demandante cível em causa recebia de cada cliente, como contrapartida das dívidas cobradas, a percentagem de 35% do valor respectivo], sufraga, acto contínuo, como não provado em 12, que [As importâncias monetárias de que o arguido se apropriou pertenciam à U... – ., Lda.]
Ressalvado o devido respeito, do exposto decorre apenas que, no intuito de questionar os factos elencados, o arguido traça uma bissectriz entre as duas formas possíveis de impugnação da matéria de facto, sem que, depois e em rigor, acabe por definir, devida e estruturadamente, uma correcta opção por ambas ou alguma delas, em particular.
Na verdade:
O recorrente titubeia entre a invocação de uma deficiente apreciação da prova [conclusão 1.ª – impugnam-se especificadamente os factos dados como provados nos itens n.ºs 3, 4, 6 e 7 da decisão recorrida] e a invocação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [alíneas a) – de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada por provada – e c) – de erro notório na apreciação da prova, por preterição ao princípio do in dúbio pro reo –, conclusões 2.ª a 12.ª, além de contradição insanável entre os factos provados de 6 e 11 e não provado de 12, ut alínea b), do mesmo inciso - conclusão 22.ª].
Sucede que:
Na situação da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art.º 412.º, do Código de Processo Penal, a apreciação pretendida implica uma reapreciação da prova produzida e documentada, dentro dos condicionalismos legais, pois que, sabe-se, dependente tal reapreciação do cumprimento de requisitos de forma e sempre com condicionantes e limites.
No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um tríplice ónus, a saber:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe.
Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do encimado art.º 412.º).
- Indicar que provas pretende sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
Com a imposição de tais ónus, visa-se a delimitação tanto quanto possível objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe.
Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas [alínea c) do n.º 3 do mesmo art.º 412.º].
«Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e a sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o Tribunal» Cfr. Acórdão do STJ, de 5 de Dezembro de 2007, no processo n.º 3460/07.. «O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto» Cfr. Acórdão do STJ, de 8 de Março de 2006, no processo n.º 185/06-3.ª.. «A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso» Cfr. Acórdãos do STJ, de 10 de Janeiro de 2007, no processo n.º 3518/06-3.ª, e de 15 de Outubro de 2008, no processo n.º 2894/08-3.ª..
Ora, nenhum destes ónus se mostra cumprido pelo recorrente.
Já a segunda forma de impugnação ao serviço do recurso relativo à matéria de facto é a que resulta da sua impugnação restrita, isto é, aquela que se atém à letra da decisão, só por si ou conjugada com regras de experiência comum, não interferindo na análise quaisquer outros dados, ainda que resultantes do julgamento ou documentados nos autos, na previsão do citado art.º 410.º, n.º 2.
Compulsando-se as conclusões do recorrente decorre que o mesmo também não acatou o aí consignado, pois que arredia a sua irresignação tão só ao texto da decisão recorrida.
À míngua desta correcta definição estrutural, sempre, porém, e após audição da prova oralmente produzida no decurso da audiência, podemos afoitamente afirmar que improcede o oposto ao acervo factual acolhido.
Afirmação que, contudo, impõe um breve excurso sobre os pressupostos que comporta o crime de falsificação de documentos.
Determina o art.º 256.º, n.º 1, do Código Penal, que:
1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
(…)
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
(…)
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Ou seja, comete o crime de falsificação de documento, quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, nomeadamente, fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante.
Curial, então, descortinar se os documentos constantes de fls. 15 e 20 dos autos se hão de haver como assim falsificados pelo recorrente.
O bem jurídico protegido com a criminalização da falsificação de documento é a respectiva fé pública: pretende-se salvaguardar o sentimento geral de confiança que devem revestir os documentos.
Numa evolução mais recente, a doutrina tem vindo a entender que o bem jurídico do crime de falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental Helena Moniz, in O crime de falsificação de documentos, 1999, 41 e segs..
Falsificação de documentos é uma falsificação da declaração incorporada no documento, podendo assumir a forma de uma falsificação material ou una falsificação ideológica.
Na material, o documento não é genuíno, na ideológica o documento é verídico. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.
Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa fórmula, com a preocupação de dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico.
Na intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora una declaração falsa, una declaração escrita, integrada no documento.
Por seu turno, na falsidade em documento, integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, trata-se pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é que abra ensejo à obtenção de um beneficio Neste sentido, Helena Moniz “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667” e Acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 13 de Maio de 2009, in processo n.º 457/07.9 TASCD.C1, sendo Relator o Ex.mo Desembargador Jorge Dias; de 7 de Fevereiro de 2007, in processo n.º 1540/05.0 TAAVR.C1, subscrito enquanto Relator pelo Ex.mo Desembargador Esteves Marques, bem como do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16 de Novembro de 2009, no processo n.º 1289/06.7 TAVCT.G1, sendo Relatora a Ex.ma Desembargadora Teresa Baltasar, todos acessíveis em www.dgsi.pt..
De facto o crime de falsificação de documentos é um crime intencional, terminologia associada à existência de um dolo específico enquanto particular intenção do agente, definida pelo tipo, quando da realização do mesmo, para além da mera existência de um dolo genérico, como mero conhecimento e vontade de realização do tipo.
Necessariamente integrado como elemento do tipo, no caso concreto essa especial intenção concretiza-se na fórmula legal “com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.
E a intenção de obter benefício ou causar prejuízo não tem que ser contemporânea desse benefício ou prejuízo. Estes podem ocorrer no futuro (casos mais frequentes) mas podem ter já ocorrido e a falsificação terá então o papel de intenção de manutenção do benefício ou prejuízo.
Documentos nos quais é mister o agente fazer constar factos jurídicamente relevantes e que apenas enquanto tais – isto é, “documentos”, na definição dada pelo art.º 255.º, do Código Penal –, possam ser considerados.
Na verdade, conforme definição aqui inserta, “Para efeito do disposto no presente capítulo, considera-se: a) Documento: a declaração corporizada num escrito (...) que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer á generalidade das pessoas ou a um cero círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”
Como refere Helena Moniz In Comentário…citado, pág. 667., “Documento, para efeito do direito penal, não é o material que corporiza a declaração mas a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação) …”.
Documento será, então, a declaração de um pensamento humano que possa constituir meio de prova e, como resulta do enunciado do art.º 255.º, declaração que, além de corporizada em documento, seja também idónea para provar facto jurídico relevante. A falsidade existirá, mesmo que o facto não seja dos que o documento tem por finalidade certificar ou autenticar, ou dos que não são essenciais para a validade do documento, bastando que seja juridicamente relevante; ou seja, o documento apresenta-se genuíno ou materialmente verdadeiro, só que o seu conteúdo intelectual não corresponde à versão, uma vez que nele foi inserido, aquando da sua feitura um facto que não é real.
O caso vertente, no qual, ponderados os depoimentos das testemunhas ……………………., é fora de dúvida ter sido o arguido quem falsificou os “documentos” constantes de fls. 15 e 20 dos autos.
Em síntese essencial, referiram tais testemunhas:
- …:
Na sua qualidade de gestor de cobranças da U..., abordou a testemunha ... por causa de uma dívida que ela teria para com Y... (e cuja cobrança a mesma cometera à U...), sendo que a testemunha lhe referiu já ter efectuado o pagamento a uma outra pessoa (o arguido).
No processo existente na U... relativamente a Y... não constava (como seria então devido) a realização de tal pagamento.
Entretanto a testemunha … fez-lhe chegar o recibo junto a fls. 20.
O depoente iniciou as suas funções para a U..., enquanto prestador de serviço, em Fevereiro de 2009, sucedendo ao arguido que já de lá saíra há alguns meses.
Quando a U... recebe dinheiro, o agente cobrador passa um recibo próprio, o que assim não sucedia com o junto pela testemunha ... que era dos próprios Y.... Urgia, então, esclarecer a situação.
Quando os clientes da U... têm um sistema de cobrança informatizado, é possível saber se o pretenso crédito ainda está ou não em dívida.
Instada pelo mandatário da demandante cível, precisou:
Cada cliente da U... tem um processo no qual tudo é registado.
Acaso tivesse sido efectuado um pagamento, deveria o facto estar nele registado.
O recibo passado pela U... ao devedor é sempre o seu (da U...), nunca o do credor.
O recibo da U... é passado em 3.ª via: o original é entregue ao devedor; a 2.ª via é junta ao processo respectivo e o terceiro é logo entregue na própria U.... A testemunha ... apenas apresentou o recibo constante de fls. 20.
Por seu turno a instância do defensor do arguido, esclareceu:
Perante a devedora ... apresentou-se como funcionário da U... e por conta do credor original.
A testemunha ... afirmou-lhe ter feito o pagamento ao arguido, em diversas prestações, em numerário, não podendo explicar o facto de apenas existir então um recibo único, o de fls. 20. Porém, a testemunha ... adiantou-lhe que o “cobrador” terá afirmado que apenas, no fim, seria emitido um recibo único. Testemunha que também lhe afirmou ter sido o arguido quem lhe entregou tal recibo.
Relativamente ao débito de X..., Lda., ao abordar a devedora, foi-lhe dito já ter sido realizado o pagamento em dívida, e exibido o recibo (fotocópia) de fls. 15, no qual já constava a assinatura do arguido.
Existindo dois recibos com o n.º 127 – fls. 15 e 16 –, nada sabe quanto ao de fls. 16.
- … , representante legal da U...:
A U..., tem dois sistemas de cobranças implementados: nuns casos, recebido o dinheiro dos devedores, são passados recibos da própria, como o junto a fls. 16; noutros casos, quando o devedor o exige, pede á sua cliente credora que o entregue ao devedor.
O arguido foi admitido a prestar serviço de cobranças na U... em Janeiro/Fevereiro de 2008 e aí permaneceu até Outubro de 2008, altura em que, pretextando ter uma proposta de trabalho mais vantajosa, abandonou a U....
Durante tal período, o arguido era o único gestor de cobranças da U....
Tinha, entregue pela U..., um livro de recibos próprio (declaração de fls. 14).
Y... não entregou na U... qualquer recibo referente á dívida em causa.
Comunicado o pretenso pagamento pela testemunha ..., através de uma comparação do recibo de fls. 20, com outros de Y... existentes no processo respectivo existente na U... (cada processo pode comportar a cobrança de várias dívidas para com os credores respectivos), verificou que o recibo de fls. 20 resultava de uma manipulação informática.
O arguido, pela gestão que fazia, tinha acesso a tais outros recibos.
A U... recebeu a quantia referente ao recibo constante de fls. 16 dos autos, mas não a atinente ao de fls. 15.
A U... recebe 35% sobre o valor dos créditos cobrados. Existem honorários iniciais, fixados de acordo com escalões, e cujo recebimento é independente da boa cobrança.
- … , representante legal de Y...:
Contratou com a U... que esta procedesse, em exclusivo, à cobrança de um crédito que detinha sobre a testemunha .... Nesta perspectiva, Y... apenas podia receber desta acaso a U... o autorizasse.
A determinada altura, a U... informou Y... de que um funcionário seu (da U...) se apoderara indevidamente do dinheiro que era para receber.
Y... nunca emitiu o recibo que é fls. 20; aliás, à data, nem sequer tinha um sistema informático implementado; esse recibo terá sido feito informaticamente por alguém alheio a Y....
A dívida inicial, desde 4 de Março de 1995, era de € 1.826,70. Foi a U... quem procedeu ao cálculo dos juros que entretanto se teriam vencido.
Da dívida em questão, nada recebeu até ao presente.
- ...:
O arguido abordou-a enquanto representante de uma empresa de Coimbra, para receber o dinheiro em dívida para com Y....
A depoente fez o pagamento em 5 prestações, por numerário entregue ao arguido.
Pagou ainda mais € 200,00 de multa.
O recibo de fls. 20 foi-lhe entregue, pelo arguido, em Agosto de 2008, aquando do pagamento da última prestação.
Em Março de 2009, foi abordada de novo, agora pela testemunha … , para pagamento da mesma quantia, ainda alegadamente em dívida, o que a depoente negou fazer, mediante a exibição do dito recibo.
Cada vez que efectuava um pagamento, o arguido telefonava ao “chefe” referindo ter recebido mais uma prestação.
Foi a própria que solicitou ao arguido um comprovativo do pagamento da quantia em dívida.
- Amado Rodrigues, representante legal de X..., Lda.:
Entregou ao arguido, este enquanto cobrador da U... e por duas vezes, dinheiro para saldar o pagamento de uma dívida que a empresa que representa tinha para com a empresa Z....
Como comprovativo, o arguido entregou-lhe o recibo de fls. 15.
A data e a sua assinatura aí apostas correspondem à verdade.
Dos depoimentos coligidos, nenhum deles, é certo, constatou directamente ter sido o arguido quem falsificou os dois documentos em causa.
Nem por isso era contudo vedado ao Tribunal concluir no sentido em que o fez.
Sabe-se que a prova pode ser directa ou indirecta/indiciária Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II volume, págs. 99 ss.. Enquanto aquela se refere directamente ao tema da prova, a segunda reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um minus relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, para que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Os depoimentos coligidos fora de dúvida que suportam a conclusão de ter sido o arguido o autor das falsificações operadas. Na verdade, as testemunhas ... e … , foram inequívocas no sentido em que lhe efectuaram os pagamentos em dívida, respectivamente, a Y... e Z... que, na qualidade de gestor de cobranças da U..., como se apresentou, tinha poderes para receber. Quantias jamais entregues pelo arguido à mesma U.... Tanto, que esta, mais tarde, encetou novas diligências (por intermédio agora da testemunha … ) no sentido de lograr obtê-las. Altura em que foi confrontado pela invocação já do seu pagamento por aquelas duas testemunhas, que, comprovando-o, exibiram então os recibos de fls. 20 e 15, também respectivamente. Documentos que ambas afirmaram, inequivocamente, haverem-lhe sido entregues pelo arguido. Arguido que vista essa omissão de entrega tinha assim móbil para encetar a falsificação. Falsificação alheia à U..., aos próprios devedores e que, regras da experiência o dizem, apenas a si próprio convinha.
E conclusão a dispensar a necessidade de produção de outras provas, nomeadamente periciais, como pretexta o recorrente, aqui vislumbrando emergir o vício da elencada alínea a), do n.º 2, do art.º 410.º, do Código de Processo Penal.
A prova da falsificação não impõe, obrigatoriamente, que o julgador tenha de se socorrer á respectiva produção. Ditarão as circunstâncias da razoabilidade ou não dessa feitura. No caso, Y..., através do seu representante, negou ter emitido o recibo de fls. 20. E, pergunta-se, com que interesse o haveria de fazer pois sequer um tostão recebeu até ao presente da dívida contraída pela testemunha ...? Na própria U... se descortina interesse em que o fizesse, já que o recebimento da percentagem de 35% apenas operaria acaso fosse lançado na conta-corrente da credora Y... o recebimento da quantia paga pela devedora .... Também até agora tal sucedeu. Restaria o interesse desta própria testemunha no intuito de se descartar de um pagamento não efectuado, conceda-se, e circunstância que malevolamente o arguido foi insinuando: mas, foi categórico o seu depoimento e o arguido teve hipótese de o contraditar pessoalmente, acto a que porém se subtraiu.
Seja, em conclusão, da inverificação do vício alegado.
Segundo vício oposto o de erro notório na apreciação da prova, atenta a pretensa preterição ao princípio do in dúbio pro reo. Isto, relembramos, no segmento em que, alega o recorrente, se na motivação para o crime o Tribunal recorrido dá a ausência de dinheiro por parte do arguido, já ao fundamentar o crime continuado, afirma que ele adoptou um modus operandi idêntico pelo êxito, facilidade e impunidade.
O recorrente começa por se referir a um facto que a sentença jamais considerou, qual seja o de que a sua actuação resultou da falta de dinheiro que o mesmo então teria.
Mas, em todo o caso, confunde a propósito o arguido o pretenso móbil do crime, com as circunstâncias em que o mesmo se terá desenrolado.
Diga-se, antes do mais, que o testemunho da sua companheira, ..., dizendo que ele saiu da U... porque andava a pagar para trabalhar, se mostra, inclusive contraditório, com o que o próprio afirmou perante o seu representante legal, ou seja, de que abandonava a empresa porque teria uma proposta mais vantajosa. Sem aquilatarmos da bondade a atribuir a uma ou outra dessa versões, nada porém obstava a que ambos esses factos fossem tidos por assentes: a circunstância de actuar motivado pela ausência de dinheiro, não prejudicava que, fruto de circunstâncias externas que iam mantendo a sua impunidade, continuasse o iter delituoso. Coisas distintas, cada uma delas.
E, não concorrem as regras da experiência comum, no sentido em que constatando a impunidade na sua actuação, continuasse o arguido a delinquir, pois, ao invés de conscientemente abandonar um serviço que só lhe trazia prejuízo, justamente se poderia ter apurado de cerca de € 4.500,00 que, estes sim, obstariam á sua falta de liquidez. Ao esgrimir por tal forma, o arguido menospreza um pormenor não despiciendo: o de se vir a detectar a sua conduta delitiva, como sucedeu, volvidos meses é certo, mas que, assumira outros foros, quiçá mais cedo teria sido detectada!
Em todo o caso, à emergência do vício indicado necessário seria resultar do texto da decisão que, perante a dúvida, o julgador tivesse decidido desfavoravelmente ao arguido. Ora, em ponto algum se detecta tal dúvida e opção. Antes, se vislumbra uma opção inequívoca do M.mo Juiz face aos meios de prova produzidos no decurso da audiência.
Igualmente não procede a vislumbrada contradição entre os itens n.ºs 6 [Agiu o arguido com a intenção alcançada de fazer seu o dinheiro proveniente das cobranças dos créditos pagos pelos devedores dos clientes da sociedade U... – ., Lda., dinheiro esse que lhe foi entregue na qualidade de cobrador de dívidas que lhe estavam distribuídas com a obrigação de entregar de imediato esses montantes em numerário nas instalações da referida sociedade, bem sabendo que tais quantias não lhe pertenciam, e que, dessa forma, actuava contra a vontade da sua legítima proprietária, a quem causou um prejuízo correspondente aos valores a que tinha direito] e 11 [A demandante cível em causa recebia de cada cliente, como contrapartida das dívidas cobradas, a percentagem de 35% do valor respectivo], quando em contraponto com o não provado em 12 [As importâncias monetárias de que o arguido se apropriou pertenciam à U... – ., Lda.].
A prova produzida suporta cabalmente todo o consignado em tais itens. O que consta dos dois primeiros, suficientemente explicitados pelas testemunhas … e … Representante legal da U... e seu agente cobrador, respectivamente), e … (legal representante de Y...), os quais precisaram pormenorizadamente, tal como fixado nos itens 6 e 11 os termos em que reciprocamente se haviam contratualizada quanto à titularidade e forma de cobrança das quantias em causa. Por outro lado, precisando, inequivocamente, que perante tal acordo a titularidade respectiva não pertencia à U..., como, prejudicialmente, não assente em 12.
A improcederem pelos fundamentos expostos, as conclusões 1.ª a 12.ª e 22.ª.
3.3. Segundo segmento de irresignação do recorrente [conclusões 13.ª a 18.ª], o que se refere a uma alegada falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal quanto ao assacado crime de abuso de confiança.
A fundamentação avançada para o efeito é como segue:
- No crime de abuso de confiança, protege-se a propriedade e os titulares de um direito real sobre a coisa que, literalmente, entregam ao abusador, sendo vítimas de uma inversão do título de posse por parte deste. Esta opera-se por oposição do abusador ao possuidor em nome próprio.
In casu, são os devedores, ... e X..., Lda., os verdadeiros ofendidos; esses sim, possuidores/proprietários, é que confiaram as suas quantias ao arguido com o propósito de este as vir a entregar aos credores que haviam contratado a empresa cobradora U.... Esta última tinha apenas um direito a uma comissão contratada sobre tais quantias, isto é, a um direito de crédito, pelo que não era possuidora, nem sequer em nome alheio.
Tais devedores, sabedores de que às quantias que haviam entregue ao arguido não havia sido dado o destino por eles pretendido, não reagiram criminalmente em tempo contra o arguido, apesar de serem eles os titulares do bem jurídico protegido por tal norma.
Sendo o arguido um mero prestador de serviços, eram estes devedores quem lhe devia pedir responsabilidade quanto ao destino do dinheiro, sob pena de, mesmo tendo-lhe entregue o dinheiro, continuarem a dever (os credores não chegaram a receber e são-lhes indiferente todas as relações de permeio). E não o fizeram.
A U..., Lda. não se mostra assim ofendida, sendo então parte ilegítima para deduzir a competente queixa-crime pelo crime de abuso de confiança perpetrado pelo arguido, e, consequentemente, carecia pois o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal.
Quid iuris?
A versão originária do Código Penal previa para o tipo do abuso de confiança dois graus: o simples e o qualificado em razão do valor consideravelmente elevado da coisa ou da qualidade em que o agente a tivesse recebido (art.º 300.º).
Nem no crime simples nem no qualificado era legalmente possível a desistência da queixa.
Com a revisão operada em 1995, o Código passou a prever, no que concerne ao abuso de confiança, três graus: o simples, o qualificado (em razão do valor elevado da coisa) e o especialmente qualificado (em função do valor consideravelmente elevado da coisa) [art.º 205.º, n.ºs 1, e 4, alíneas a) e b), respectivamente].
Ou seja, ao passo que aquele primeiro (simples), por força do n.º 3 do art.º 205.º assume natureza semi-pública, a outras duas formas previstas revestem a natureza de crime público Isto sem que se olvide, ainda, a natureza particular que o ilícito pode assumir, excepcionalmente, na previsão do art.º 207.º, do mesmo Código Penal..
O art.º 48.º, do Código Penal, decorrente do n.º 1 do art.º 219.º, da Constituição da República Portuguesa, atribui ao Ministério Público legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos art.ºs 49.º a 52.º.
O princípio da oficialidade, assim consagrado, tem limitações e excepções – no dizer de Figueiredo Dias In Direito Processual Penal (Lições coligidas por M.ª João Antunes) – Coimbra Editora, 1988/89, págs. 90 e segs., as limitações correspondem aos crimes de natureza semi-pública e as excepções aos crimes de natureza particular –, resultantes da natureza do crime.
Como é sabido, no essencial, há crimes cujo procedimento criminal, segundo a lei, está dependente de queixa; outros cujo procedimento criminal está dependente de acusação particular e, por fim, outros em que a lei nada diz.
Os primeiros são denominados doutrinariamente crimes semi-públicos, os segundos crimes particulares e os últimos crimes públicos.
Relativamente aos primeiros, para que o Ministério Público, titular da acção penal, tenha legitimidade para iniciar a investigação criminal, é necessário que o ofendido ou pessoa (s) a quem e lei confira legitimidade para tal, apresente queixa (art.º 49.º, do Código de Processo Penal).
Já quanto aos segundos, a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal também está dependente de queixa do ofendido ou de quem para tal tenha legitimidade mas, para além disso, aquele tem que constituir-se assistente e deduzir acusação particular (art.º 50.º, do Código de Processo Penal).
Finalmente, nos crimes públicos, o Ministério Público, por sua iniciativa, tem legitimidade para promover a acção penal.
É também sabido que o direito de queixa funciona como pressuposto processual ou de procedibilidade e traduz-se numa declaração de vontade do ofendido, correspondente a um direito pessoal do titular do interesse especialmente protegido pela incriminação.
Quanto à forma da queixa, ensina Figueiredo Dias In Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, pág. 675, §1086.: “tanto o Código Penal, como o Código de Processo Penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. (…) Tão-pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal.
Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona.”
Também Germano Marques da Silva In Curso de Processo Penal III, pág. 98. escreve, a propósito: “…a queixa não tem de ser qualificada, isto é, não é essencial que o queixoso qualifique juridicamente os factos objecto da queixa; o que condiciona a legitimidade do Ministério Público são os factos descritos na queixa e não a sua qualificação jurídica” e cita o Ac. da Relação de Évora, de 17 de Novembro de 1998, in BMJ 481/561, segundo o qual “À face do artigo 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o que é necessário é que o titular do direito de queixa dê conhecimento do facto ao Ministério Público, pouco importando que esse facto venha a integrar o crime x, y ou z.”.
Estatui o citado art.º 205.º, ao que ora releva, e sob a epígrafe “Abuso de confiança”, que:
1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
(…)
3. O procedimento criminal depende de queixa.”
Isto é, o crime de abuso de confiança simples assume agora natureza semi-pública.
Por outro lado, e a propósito deste normativo, escreve o Prof. Figueiredo Dias, Figueiredo Dias In Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo II, págs. 94 e segs.: “Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma, (…) violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, «apropriação indevida»). Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade; tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia; e, ainda como o furto, revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação.
Pese às identidades que ficam anotadas, o crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de MAIWALD, diferentemente do que sucede com o ladrão, «ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de “subtrair” a coisa» (M / S / MAIWALD 1 § 34 1).
§ 3 A partir desta conclusão não falta quem sublinhe que o perigo para a propriedade resultante do abuso de confiança é mais pesado e grave que o resultante do furto. O argumento que a propósito se esgrime nas literaturas jurídico-penais alemã e italiana é o de que esse maior peso e gravidade deriva da circunstância de o proprietário da coisa furtada poder exigi-la de terceiro adquirente de boa fé, o que já não sucede com o proprietário da coisa apropriada através de abuso de confiança. Este argumento não vale porém perante o direito civil português, sabido como é que a aquisição a non domino, mesmo de boa fé, não é por princípio protegida em qualquer dos casos (…). Em todo o caso a conclusão apontada não deixará porventura, também entre nós, de ter o seu valor não em função de uma consideração jurídica, mas prática: a de que a posição jurídico-processual da vítima de abuso de confiança será em geral mais difícil e gravosa do que a da vítima de furto, por ser mais custoso provar a «inversão do título de posse» – que, como se dirá infra § 20, constitui a essência típica da conduta abusiva da confiança – do que a «subtracção» que se viu ser elemento essencial da tipicidade do furto.
Face a esta essencialidade, de resto, não tem hoje sentido, mesmo só em perspectiva formal – sistemática, integrar o crime de abuso de confiança nos «furtos», seja como “furto impróprio” (assim CARLOS ALEGRE, «Crimes contra o Património», Cadernos da RMP 3 1988 77 ss.), seja como “furto especial” (assim J. A. BARREIROS, Crimes contra o Património 1996 82): uma tal integração representaria, salvo melhor opinião, o retrocesso de mais de um século na elaboração dogmática dos crimes contra o património (a propriedade).
§ 4 Por quanto fica já exposto não deixa de ser em alguma medida equívoca a redução da essência do abuso de confiança à apropriação de coisa móvel alheia, sem quebra de posse ou detenção (supra § 1; e sobre a questão que se segue, entre nós e por último, PEDROSA MACHADO, RPCC 1997 495 ss.). Sendo isto em si exacto, toma-se em todo o caso indispensável que o agente tenha detido a coisa (que a coisa «lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade», como claramente se exprime o art.º 205.º-1). Assim, entra na própria conformação do bem jurídico um elemento novo, que serve inclusivamente para contrapor o abuso de confiança à mera apropriação indevida. Depara-se aqui com uma linha de pensamento e uma orientação legislativas de segura tradição francesa. Com efeito, já o C.P. napoleónico de 1810 (art.º 408.º) era muito claro no sentido de que a apropriação só poderia ter lugar depois do recebimento da coisa (…).
E em que consiste concretamente o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido: a apropriação? Segundo o mesmo Mestre, diferentemente do que ocorre no crime de furto, no qual a apropriação intervém como elemento do tipo subjectivo de ilícito (como «intenção de apropriação» Ob. citada, anotação ao art.º 203.º, § 27., no abuso de confiança, na sua estrutura de apropriação qua tale, isto é, na sua veste objectiva de elemento do tipo objectivo de ilícito. Por isso ensinava já Eduardo Correia Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 90, págs. 35 e segs., com plena pertinência, que a apropriação no abuso de confiança «não pode ser... um puro fenómeno interior - até porque cogitationis poenam nemo patitur - mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento que o releve e execute» (doutrina que a jurisprudência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). E a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação. A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras, como sempre ensinou Eduardo Correia, na obra citada, a propósito da interpretação a conferir às expressões «desencaminhar ou dissipar» que constavam do art.º 453.º do CP de 1886; e também Cavaleiro Ferreira Direito e Justiça IV 243.: o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção» e é nela que se traduz e se consuma a apropriação…
Nos presentes autos U..., Lda., apresentou queixa contra o ora arguido, descrevendo factos que qualificou como integradores, inter alia, de dois crimes do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo citado art.º 205.º, n.º 1.
Embora a correcta ou incorrecta qualificação jurídico-penal dos factos feita pelo queixoso não assuma relevância, já o seu relato se mostra essencial para determinar se é configurado algum crime e, dentro do possível, o tipo de crime (designadamente, se se trata de crime público, semi-público ou particular), por forma a que o Ministério Público, titular da acção penal, possa aferir da sua legitimidade (art.º 48.º, do Código Penal).
É esse juízo jurídico-qualificativo prévio dos factos denunciados que vai permitir saber se o queixoso tem legitimidade para apresentar queixa e/ou constituir-se como assistente, pois só conhecendo a norma incriminatória se pode determinar o (s) titular (es) do interesse protegido com a incriminação.
No caso, perante os factos relatados na queixa, o Ministério Público, entendeu, e bem, que sendo os mesmos passíveis, pelo menos à primeira vista, de integrarem um crime de natureza semi-pública, estava assegurada a sua legitimidade.
Daí que, na sequência dessa queixa, tenha instaurado inquérito e desenvolvido a sua actividade, procedendo às diligências que entendeu necessárias com vista à averiguação da existência do crime e à determinação da responsabilidade do denunciado (que constituiu arguido), conforme lho impõem os art.ºs 53.º e 262.º, ambos do Código de Processo Penal.
Terminadas essas, encerrou o inquérito, deduzindo acusação na qual imputa ao arguido a prática de um crime continuado de abuso de confiança, p. e p. pelo mencionado art.º 205.º, n.º 1.
Vimos que neste tipo de crime o bem jurídico protegido é exclusivamente a propriedade. E aferindo-se a legitimidade do queixoso em função do tipo criminal concreto configurado pelos factos constantes do processo, no caso, a factualidade tida por provada conduz à conclusão de que a U..., Lda. é a titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, e, consequentemente, tinha legitimidade para apresentar a queixa e, por conseguinte, também o Ministério Público legitimidade para promover o processo.
De facto, vem provado que relativamente aos montantes cobrados às testemunhas ... e … , o arguido inverteu o título de posse, passando a fazê-los seus, ut domino, enquanto efectivamente seu mero detentor adstrito a entregá-los na U..., Lda., para a qual prestava serviços, uma vez que a esta incumbia proceder á respectiva entrega aos credores Y... e Z..., deduzida que fosse a percentagem de 35% do seu montante, contratualmente acordada entre esses mesmos credores e a denunciante U....
Ao menos pois quanto às percentagens indicadas era a U... proprietária. E, por seu turno, “apropriação” inequívoca aquela levada a cabo pelo recorrente.
3.4. Pomo subsequente de discórdia do arguido, ut 28.ª conclusão, o que diz respeito à pretensa relação de consumpção que intercede entre os assacados crimes de falsificação e de abuso de confiança.
Que dizer, a propósito?
A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade ide infracções) Acompanharemos doravante o expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Outubro de 2004, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Henriques Gaspar, no âmbito do processo n.º 04P3210, acessível em www.dgsi.pt., das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art.º 30.º, do Código Penal, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.
Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor Cfr. v. g. H. H. Jescheck e Thomas Weigend, in Tratado de Derecho Penal, 5.ª edição, págs. 788 e segs.
.
A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode, pois, encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.
Isto é, o critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática.
No crime de falsificação o bem jurídico protegido é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita á prova documental Helena Moniz, apud Comentário…, ob. cit, tomo II, pág. 680..
Já no crime de abuso de confiança, o bem jurídico tutelado é a propriedade, vimo-lo supra.
A tal distinta tutela de bens jurídicos diferenciados, acresce, in casu, um pormenor que importa realçar: o de serem distintas as resoluções criminosas assumidas pelo arguido.
Com efeito, como resulta provado, o mesmo recebeu das testemunhas ... e … , em momentos distintos (por 5 vezes quanto à primeira e, por duas vezes quando ao segundo) montantes parcelares da dívida global que cada uma delas tinha para com os credores respectivos, e, por outro lado, também em momentos díspares, o arguido subscreveu e lhes entregou os recibos de fls. 20 e 15, respectivamente.
Noutros termos, resulta pois provado que o arguido não falsificou para abusar da confiança, antes, em momentos temporais distintos, abusou desta confiança e ulteriormente falsificou os dois ditos recibos Com interesse, ob. antes citada, pág. 690..
Rectas contas, praticou então os ilícitos assacados, em concurso real de infracções.
3.5. Nas conclusões 19.ª e 20.ª, o demandado cível controverte da bondade de dedução do pedido de indemnização civil nos presentes autos.
Algumas, parcas, considerações acerca das linhas gerais do quadro legal atinente ao pedido indemnizatório deduzido no processo penal, coadjuvarão ao delinear da sorte desta questão.
O princípio da adesão, consagrado no art.º 71.º, do Código de Processo Penal, impõe que o pedido indemnizatório fundado na prática de um crime seja deduzido (pelo lesado, que a lei, de acordo com a noção fornecida pelo n.º 1 do art.º 74.º, do mesmo diploma, claramente mais abrangente do que a de assistente, considera ser a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime) no processo penal respectivo – não o sendo, a reparação dos prejuízos só pode ter lugar dentro do condicionalismo estabelecido no seguinte art.º 82.º-A –, vindo contemplados no art.º 72.º os casos excepcionais cuja verificação permite o afastamento da regra da adesão obrigatória.
Por seu turno, o art.º 129.º, do Código Penal, estabelece que “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”
Destes preceitos resulta, por um lado, que o pedido indemnizatório enxertado no processo penal tem, necessariamente, como causa de pedir a prática de um crime – e não qualquer outra, de natureza contratual. O que não implica, necessariamente que a procedência do pedido indemnizatório dependa da condenação em termos criminais, admitindo a lei expressamente a condenação do arguido, e bem assim do responsável civil que haja intervindo no processo penal, no pagamento de indemnização civil, mesmo em caso de sentença absolutória e a menos que haja remissão para os meios civis dentro do condicionalismo estabelecido no n.º 3 do art.º 82.º, “sempre que o pedido vier a revelar-se fundado” (cfr. art.º 377.º, ainda do Código de Processo Penal).
Por outro lado, e porque a indemnização que se pode fazer valer em processo penal se funda exclusivamente em danos (de qualquer natureza) emergentes da prática de um crime (doloso ou negligente) – a remissão da respectiva regulação (abrangendo os pressupostos e o quantitativo da indemnização) que o art.º 129.º faz para a lei civil (substantiva; a regulação processual pertence, em exclusivo à lei adjectiva penal), tem (e só poderia ter) como alvo os preceitos reguladores da responsabilidade por factos ilícitos, em concreto os art.ºs 483.º e seguintes do Código Civil.
De fora ficam, pois, a responsabilidade por factos lícitos (por motivos óbvios) e a responsabilidade contratual. “ (…) a responsabilidade por facto ilícito (extracontratual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual, são essencialmente diferentes, porquanto resulta da inexecução de uma determinada obrigação preexistente entre credor e devedor, enquanto a primeira deriva de um facto ilícito prejudicial a alguém independentemente de qualquer obrigação preexistente entre o lesante e o lesado. Tanto uma como a outra se traduzem na obrigação de reparar o dano causado, mas a primeira, por isso mesmo que é consequência de uma relação preexistente, regula-se pelo regime jurídico dessa mesma relação, que nem sempre é idêntico ao da responsabilidade delitual ou derivada de facto ilícito Cfr. José Tavares, Os Princípios Fundamentais de Direito Civil, Coimbra, 1922, vol. I, págs. 516 e 517.
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O facto ilícito criminal, fundamento do pedido cível enxertado no processo penal, não é por si fonte geradora nem pode ser, de responsabilidade contratual.
Assim, se é verdade que os mecanismos institucionais de direito privado servirão para o estabelecimento de um nexo de causalidade entre a conduta criminosa e as suas consequências danosas, e bem assim para a determinação do quantum do prejuízo, não é menos verdade que o estabelecimento do nexo de imputação (subjectivo) ao agente do facto criminal danoso, resulta não das normas de direito privado mas, isso sim, das normas de direito penal. Concretizando: será agente lesante, para os fins que aqui importam, o autor do facto criminal causador de danos. Ou seja, a própria circunstância de o agente praticar um facto típico qualificado como crime determina a sua responsabilização, caso os danos dele hajam efectivamente resultado. (Estabelecido este nexo de imputação pessoal, subjectiva, entra em acção o direito civil para o estabelecimento de um nexo de causalidade entre a conduta do agente e os danos e para a sua reparação ou quantificação).
A resolução desta questão encontra-se até já prejudicada, ou ao menos subentendida, pela que antes demos no ponto 3.3.
A argumentação do recorrente assentava na definição da natureza do direito eventualmente detido pela U... (sustentava ser de crédito, lembramos).
Essa não foi contudo a solução sufragada. Teve-se como de proprietário, e, neste enfoque, mostra-se inquestionável da imperiosidade de dedução conjunta neste processo do pedido de indemnização apresentado.
3.6. Resta agora aquilatar se, na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal a quo devia apenas considerar que o prejuízo advindo à demandante se mostra de 35% dos montantes em causa, além de que não podia ter valorado as condenações anteriores do recorrente (conclusões 23.ª a 27.ª).
A decisão recorrida aponta para os critérios acolhidos na tarefa de determinação da medida concreta das penas devidas, e mostrando-se adequada a afirmação do recorrente, sufragamos todavia que o diferencial em causa não assume virtualidade bastante a que, por tal fundamento, se altere o quantum fixado.
De acordo com o art.º 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, a conduta anterior ao facto.
Isto em linha, aliás, com o consignado pelo art.º 339.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, que nenhuma restrição faz quanto à consideração de outros elementos coadjuvantes dessa determinação, pois que todos inseridos no objecto da discussão da causa.
Nem outra poderia ser a solução legal, sob pena de atentar contra a harmonia do sistema jurídico. De facto, a lei a lei remete para o julgador um envolvimento específico e uma relativa autonomização do momento da determinação da sanção, que o deverá levar, inclusive e sempre que necessário, à produção de prova suplementar [o sistema de cesure ténue de que é tributário o nosso sistema processual penal – art.ºs 369.º, n.º 2 e 371.º, do Código de Processo Penal].
Concretamente no que se refere à relevância dos antecedentes criminais, o art.º 274.º, deste mesmo diploma, ordena a junção aos autos de certidões e de certificados de registo criminal que se afigurem necessários, ao estabelecer que São juntos aos autos as certidões e certificados de registo, nomeadamente o certificado de registo criminal do arguido, que se afigurem previsivelmente necessários ao inquérito ou à instrução ou ao julgamento que venham a ter lugar e à determinação da competência do tribunal.
Sendo certo que na conduta anterior do arguido se integram os seus antecedentes criminais que constam do registo criminal, todavia aí se não incluem as condenações ainda não transitadas [Ac. STJ, de 12 de Dezembro de 1991, BMJ 412.º/368].
Operando na determinação da medida da pena devida ao recorrente, o M.mo Juiz a quo atentou nas condenações anteriores pelo mesmo já sofridas, mormente aquela referente á prática de crime de idêntica natureza aos ora em ponderação.
Sucede que á data da prática dos factos objecto dos autos presentes, ainda não transitara, efectivamente, a sentença que impusera a condenação por tais nacos de vida.
Neste sentido, mostrava-se vedado considerar tal condenação enquanto relevante na conduta anterior do arguido.
Sucede sufragarmos que, e malgré a desconsideração que assim impõe atribuir-se a tal circunstância, vista a demais factualidade provada, se mostram adequadas e proporcionadas as penas (parcelares e única) aplicadas.
Vale por dizer, em conclusão, da improcedência das conclusões 23.ª a 27.ª.
*
IV – Decisão.
São termos em que e pelos fundamentos expostos, negamos provimento ao recurso interposto.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça arbitrada em 6 UCs.
Notifique.
*
Brízida Martins (Relator)
Orlando Gonçalves