Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1675/09.0T2AGD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
LEGITIMIDADE
PROMITENTE-COMPRADOR
ARRESTO
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL 303/07, DE 24.8 E ART. 5º NºS 1 E 4 DO CRP
Sumário: I – Constituindo os embargos de terceiro um incidente da execução, que não da correspondente acção declarativa e tendo completa autonomia quanto a essas espécies processuais, é à data da sua instauração que deve aferir-se a aplicabilidade da nova lei processual decorrente do DL n.º 303/07, de 24.8 quanto ao prazo de interposição do recurso;

II – É aos factos provados e não ao nomen dado pelas partes a determinada realidade contratual (comodato) que o tribunal deve atender para os subsumir o quadro legal aplicável;

III - Tendo a promitente-compradora efectuado parte do pagamento do preço do apartamento à imobilária e tendo-lhe esta entregue as chaves para passar a habitá-lo, o que ocorreu, mobilando-o e para ele levando todos os sues haveres e dos 2 filhos menores consigo conviventes, requisitando sem seu nome e pagando o fornecimento de água, luz e gás, aí fazendo a sua vida e recebendo os amigos, como quem exerce plenos poderes sobre coisa que lhe pertence, detém a posse em nome próprio (corpus e animus) que a legitima a embargar de terceiro, por arresto posteriormente convertido em penhora sobre o imóvel;

IV – O arresto, registado, não produz efeitos relativamente à posse da promitente-compradora com tradição do apartamento, na medida em que esta não é terceira relativamente ao arrestante (art.º 5.º, n.ºs 1 e 4, do CPR).

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

A..., por apenso à Execução n.º 1282/06.0TBAGD-B e A pendente no Juízo de Execução da Comarca do Baixo Mondego em que é exequente B...e executada “C..., Lda.”, em 2.9.08 deduziu, contra estes, embargos de terceiro, alegando, em resumo, que a fracção predial autónoma destinada a habitação aí penhorada e que identificou, lhe pertence, dela tendo a posse desde 27.8.05 por via do contrato-promessa com tradição firmado com a embargada e a respectiva propriedade desde a celebração da respectiva escritura pública de compra e venda de 6.1.06, pelo que o arresto de 20.12.05, convertido em penhora em 11.3.08, ofendeu a sua posse sobre a fracção, violação de que teve conhecimento na 2.ª quinzena de Agosto de 2008.

Após produção de prova informatória foram os embargos recebidos e notificados ao embargados para os contestar, veio o exequente fazê-lo, alegando a caducidade do direito da embargante, com fundamento no registo do arresto em 20.12.05, de que a embargante tomou conhecimento, e impugnou a demais matéria alegada e com base na prevalência do registo predial concluiu pela improcedência dos embargos e manutenção da penhora sobre a fracção.

A embargante replicou no sentido da tempestividade dos embargos e no desconhecimento do registo do arresto, que não se encontrava publicitado no correspondente registo predial, conforme certidão com que instruiu a escritura pública de compra e venda da fracção, nem teve nem lhe foi dado conhecimento da penhora.

Proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, sem reclamação, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto, igualmente sem reclamação.

Proferida sentença, foi julgada improcedente a excepção de caducidade de dedução dos embargos e, na procedência destes, foi ordenado o levantamento da penhora e do arresto, bem como o cancelamento dos respectivos registos incidentes sobre a fracção predial em causa.

Inconformado, recorreu o embargado, apresentando extensas e prolixas alegações que rematou com as seguintes úteis conclusões:

a) – O quesito 12.º deveria ter sido julgado não provado na parte em que dispos “como quem exerce plenos poderes sobre coisa que lhe pertence”, porquanto no aditamento ao contrato-promessa de compra e venda ficou consignado que a sociedade promitente-vendedora autorizava a promitente-compradora a habitara fracção a partir de 1.9.05 sobre a forma de comodato e, portanto, gratuitamente, e que teria que deixar o imóvel caso a escritura não fosse outorgada;

b) – A concluir-se pela insuficiência de prova para desse concluir deverá ampliar-se a matéria de facto nos termos do n.º 4 do art.º 712.º do CPC e ser ordenada a repetição da prova;

c) – A actuação da embargante, como se de coisa sua se tratasse ficou sempre dependente da outorga da escritura, que veio ocorrer nem 6.1.06, sendo que, até lá, houve mera tolerância da recorrente na utilização do imóvel, inexistindo animus na posse, apenas lhe vindo a pertencer depois de realizado o contrato translativo da propriedade;

d) – As testemunhas D..., E... e F...não referiram factualidade integradora do animus da posse;

e) – Um contrato-promessa de compra e venda nunca confere ao promitente-comprador, por si só, a posse sobre a coisa prometida, que é sempre precária e em nome alheio, ainda que haja tradição da coisa;

f) – Não ocorrem, na situação em apreço, os casos excepcionais da posse efectiva e em nome próprio por pagamento total do preço, nem inversão do ónus da prova;

g) – A posse invocada não deve prevalecer sobre o arresto, que foi validamente registado (art.º 5.º do CRP);

h) – A decisão recorrida violou o disposto nos art.ºs 351.º do CPC, 410.º, 1251.º, 1265 e 1285, do CC e 5.º do CRP, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue os embargos improcedentes.

Em resposta, a recorrida, suscitou a questão prévia da extemporaneidade do recurso por, constituindo um apenso de uma acção declarativa iniciada em 20.4.06, deveria seguir as regras processuais vigentes de interposição de recurso, em 10 dias após notificação da sentença e não 40 dias, como ocorreu e, cautelarmente, quanto à apelação propriamente dita, pugnou pela manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

1. A questão prévia da extemporaneidade do recurso suscitado pela recorrida;

2. A impugnação da resposta dada ao quesito ou artigo 12.º da base instrutória;

3. A natureza da posse da promitente-compradora;

4. A prevalência (ou não) do registo do arresto posteriormente convertido em penhora.


*

            2. Fundamentação

2.1. De facto

Foram os seguintes os factos tidos como provados pela decisão recorrida:

a) - Por contrato-promessa escrito, outorgado em 20 de Junho de 2005, a aqui executada C..., Lda., prometeu vender à ora Embargante, livre de ónus e encargos, a fracção autónoma a seguir identificada, pelo preço de 90.000,00 €: Fracção autónoma identificada pela letra “F”, destinada a habitação, tipo T3, correspondente ao 1º andar esquerdo poente, com entrada pela fachada principal (entrada poente) do edifício, com uma garagem na cave, lado norte, a quinta a contar da nascente para poente em relação a entrada e designada por F – do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em ..., freguesia e concelho de Águeda – descrita na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º ..., inscrita na matriz predial respectiva sob o art. ... (facto assente A);

b) - Tal contrato foi objecto de aditamento, assinado por ambas as partes, em 27 de Agosto de 2005 (facto assente B));

c) - As partes acabaram por celebrar, no dia 6 de Janeiro de 2006, a escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial de Aveiro do lic. G..., lavrada de fls. 7 a 8 do livro de Notas para Escrituras Diversas nº22-G daquele Cartório Notarial (facto assente C);

d) - A propriedade da embargante encontra-se registada a seu favor sob a Ap. 11 de 29/12/2005, após conversão do registo provisório de aquisição através da Ap. ... de 24/01/2006 (facto assente D);

e) - Consta da própria escritura – outorgada com base em certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Águeda em 30/12/2005 – a existência, apenas, de uma hipoteca a favor do Banco H..., S.A. (facto assente E));

f) - O prédio referido em A) encontra-se penhorado à ordem dos presentes autos desde 11.03.2008, por conversão do arresto registo sob a inscrição F–AP ... de 20.12.2005 (facto assente F);

g) - Em finais de Agosto de 2005, a promitente-vendedora entregou a fracção e as respectivas chaves à ora Embargante, que as recebeu, a fim de nela passar a habitar (ponto 2 da base instrutória);

h) - No dia 1 de Setembro de 2005, a ora Embargante passou a habitar a referida fracção, conjuntamente com os seus dois filhos menores, dela fazendo a sua residência (ponto 3 da base instrutória);

i) - A partir dessa data, a Embargante colocou as suas mobílias e todos os haveres pessoais, seus e de seus filhos, na referida fracção, fazendo dela a sua casa de morada de família (ponto 4 da base instrutória);

j) - Contratando, desde então, o fornecimento de água e electricidade para a referida fracção e pagando as respectivas facturas, emitidas em seu nome (ponto 5 da base instrutória);

l) - Partir dessa mesma data, ininterruptamente, e até aos dias de hoje, a Embargante passou, conjuntamente com os seus filhos, a morar na referida fracção (ponto 6 da base instrutória);

m) - Aí confeccionando as suas refeições (ponto 7 da base instrutória);

n) - Aí dormindo (ponto 8 da base instrutória);

o) - Aí recebendo os seus familiares e amigos (ponto 9 da Base Instrutória);

p) - E procedendo, desde então, às obras de conservação da referida fracção (ponto 10 da base instrutória);

q) - Fazendo, desde então, face a todos os encargos com a mesma (ponto 11 da base instrutória)

r) - Sem qualquer oposição ou interrupção, até aos dias de hoje, à vista de toda a gente, como quem exerce plenos poderes sobre coisa que lhe pertence, sem qualquer tipo de restrições e na ignorância e se lesar direitos ou interesses alheios (ponto 12 da base instrutória).


*

            2.2. De direito

            a) – Quanto à questão prévia da extemporaneidade do recurso, tal como entendido no respectivo despacho de admissibilidade do tribunal a quo, os embargos de terceiro configuram um incidente, não da acção declarativa (intentada em 2006), mas, nos termos do n.º 1 do art.º 353.º do CPC, incidente da execução para pagamento de quantia certa intentada pelo embargado B... contra a embargada “ C...” em 21.2.08 (fls. 286).

            Para além disso e o que por si só é decisivo, os embargos de terceiro assumem-se como verdadeira acção declarativa autónoma, em nada dependendo daquela acção declarativa de onde emergiu o título executivo pendente em 1.1.08.

            Face ao exposto, não podendo os presentes autos ser considerados “processo pendente” para efeitos do n.º 11.º do DL n.º 303/07, de 24.8, nos termos, ainda, do seu art.º 12.º, é-lhes aplicável o novo regime dos recursos, v. g., o disposto no art.º 685.º, n.º 1, que fixou em 40 dias o respectivo prazo de interposição no caso de ter por objecto, como tem no caso, a reapreciação da prova gravada.[1]

            Assim, porque interposto em tempo o recurso, improcede a questão prévia suscitada.


*

            b) – Quanto à reapreciação da resposta dada ao art.º 12.º da base instrutória, perguntava-se nele se [a embargante passou conjuntamente com os seus filhos a morar na fracção] “sem qualquer oposição ou interrupção, até aos dias de hoje, à vista de toda a gente, como quem exerce plenos poderes sobre coisa que lhe pertence, sem qualquer tipo de restrições e na ignorância e sem lesar direitos ou interesses alheios” (?) e respondeu-se provado, pretendendo a recorrente seja suprimida, na resposta, a expressão “como quem exerce plenos poderes sobre coisa que lhe pertence”.

            E são dois os fundamentos da impugnação:

            As testemunhas em que o tribunal recorrido baseou a sua convicção não se referiram àquela “constatação”, que mais não é que o “animus” da posse.

            Por outro lado, está provado plenamente por documento (aditamento ao contrato-promessa de fls. 47) que a posse exercida se reconduziu à figura contratual acordada entre as partes de comodato, ou seja, tratou-se de uma posse precária, em nome de outrem, da promessa de venda da fracção, sem animus possidendi.

            Quanto ao 1.º argumento, ouvido o registo fonográfico dos depoimentos das testemunhas indicadas (as demais nada de relevante indicariam, sendo que a última, como ascendente da embargante, usou da prerrogativa de recusar o depoimento), coincidente (como não podia deixar de ser) com a transcrição efectuada pelo recorrente, todas indicaram como razão de ciência ser amigas da embargante há cerca de 20 anos, tê-la ajudado na mudança para a ”nova casa” em Agosto de 2005, sendo a F... ainda madrinha de um dos seus filhos, as quais participaram num jantar de inauguração da “casa nova” em Setembro do mesmo ano.

            Ressalta de tais depoimentos, criticamente apreciados (art.º 653.º, n.º 2, do CPC), que a embargante (viúva, com 2 filhos então menores), desde que passou a habitar a fracção em causa, fê-lo como qualquer outra pessoa que vai desfrutar de uma casa sua. Mobilou-a, aí passou a pernoitar, a fazer as refeições, a receber os amigos e familiares, ninguém pondo em causa ser a respectiva dona, resultando dos documentos juntos (fls. 189-194), dispor de água, luz e gás requisitados em seu nome.

            Tudo como se fosse dona do andar que julgavam haver já sido comprado à construtora, como de resto viria a ser formalizado cerca de 4 meses após.

            Trata-se de uma realidade da vida que é, aliás, o normal das situações de contrato-promessa com tradição da fracção predial.

            Daí que não mereça qualquer censura a resposta dada aos art.ºs 2.º a 12.º da base instrutória, sendo verdade que só a do 12.º vem parcialmente impugnada, mas sem razão face a tais documentos e depoimentos, de onde criticamente se conclui, como o tribunal recorrido concluiu, que a utilização da casa decorreu talqualmente se de um proprietário se tratasse seja quanto à materialidade do uso (corpus da posse), seja quanto à intencionalidade (animus da posse).

            Mas, não será obstáculo a tal conclusão a subscrição, pela própria embargante enquanto promitente-compradora, do aditamento ao contrato-promessa de 27.8.05 (fls. 47), cuja conclusão 2.ª expressamente refere que o “primeiro outorgante [embargada promitente-vendedora “ C...”] autoriza a segunda [enquanto promitente-compradora] a habitar a fracção a partir do dia 1 de Setembro de 2005, sobre forma de comodato e, portanto, gratuita”?

            Trata-se de questão pertinente, não apreciada pela sentença, nem tratada nas contra-alegações da apelada.

            Para a resposta, convém salientar haver-se clausulado, ainda, que a água, electricidade e gás constituiriam cargos da promitente-compradora (4.ª) e se esta se recusasse outorgar a escritura de compra e venda, “estando todos os documentos necessários devidamente prontos, deverá deixar de imediato de habitar o referido imóvel” (5.ª).

            Como é sabido, comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir (art.º 1129.º do CC), o que constitui uma situação de simples detenção e mera posse, posse precária ou, ainda, posse em nome de outrem (art.º 1253.º do CC).

            Como qualquer contrato, deverá ser pontualmente cumprido (art.º 406.º do CC) e aquele aditamento, enquanto documento particular, não expressamente impugnado, faz prova plena quanto às declarações contrárias aos interesses da promitente-compradora (art.ºs 376.º, n.ºs 1 e 2, do CC).

            Quanto a este aspecto há que sublinhar, contudo, que a eficácia probatória dos documentos particulares respeita somente à materialidade das declarações e não, também, à sua exactidão.[2]

            Antes, porém, de ser apreciada a força probatória de qualquer documento importa fixar o sentido da declaração documentada quando as expressões da declaração inseridas no texto do documento não tenham um sentido claro e inequívoco.[3]

            De referir, ainda, que o juiz não se encontra adstrito à qualificação dos factos efectuada pelas partes, mormente quando dão o nome a qualquer espécie contratual, pois só os factos e só eles têm que ser interpretados pelo julgador, que é livre na sua qualificação, nos termos do art.º 664.º do CPC.

            Tendo presente este quadro e princípios legais, voltando ao caso dos autos, pese embora a referência, no aditamento ao contrato-promessa, à habitação “sobre a forma de comodato”, interpretando-o, não se configura tal espécie contratual, porque desde logo não foi fixada a obrigação de restituição à promitente-vendedora da fracção.

            A restituição ficou, sim, dependente da atitude da promitente-compradora, isto é, só ocorreria se recusasse a outorga da escritura marcada para 20.11.05. E não recusou, pois que esta foi efectuada!

            Depois, quanto à eficácia probatória do documento, a realidade que veio a ser apurada foi no sentido de se haver provado não só o requisito da materialidade da posse (corpus), como a intenção de se agir como beneficiário do direito (animus), como a seguir melhor veremos, ou seja, uma posse em nome próprio e não em nome de outrem, no caso da promitente-vendedora (art.º 1251.º do CC), o que exclui, também, a figura contratual de comodato.

            Daqui se conclui pela irrelevância ou inconsequência da remissão da cláusula 2.ª daquele aditamento para tal espécie contratual e, assim, pela improcedência da impugnação parcial da resposta dada ao art.º 12.º da base instrutória.


*

            c) – Quanto à natureza da posse, precária ou em nome próprio, da promitente-compradora, tradiciária da fracção, para lá do exposto, cumpre salientar mais o seguinte.

            - Dada a natureza provisória de um contrato-promessa, a mera celebração de um tal contrato relativo a negócio definitivo, translativo, não permite qualificar o promitente-transmissário como possuidor.

            Havendo lugar à entrega da coisa, ainda assim a regra aponta no mesmo sentido, não se transmitindo a posse do objecto em causa, por mero efeito da traditio, cujo sujeito se torna, em princípio, em mero detentor ou possuidor em nome alheio, uma vez que, passando a dispor do corpus possidendi, falta-lhe, contudo, o respectivo animus sibi habendi, requisitos que, como é sabido, o art.º 1251.º do CC exige para a posse.

            Todavia, as realidades da vida e a consciência de maior protecção social dos consumidores de bens essenciais (como o é o direito à habitação, arvorado em direito social fundamental – art.º 65.º da CRP), foram impondo excepções àquela norma nos casos em que o tradiciário praticasse em relação à coisa actos materiais, em nome próprio, correspondentes ao exercício do direito de propriedade.

            Como salienta Gravato Morais[4], transcrevendo do acórdão do STJ de 17.4.07[5] tal ocorrerá quando obtido o corpus pela tradição a coberto da pressuposição de cumprimento do contrato definitivo e na expectativa fundada de que tal se verifique, pratica actos de posse com o animus de estar a exercer o correspondente direito de propriedade em seu próprio nome, ou seja, intervindo sobre coisa como se fosse sua.

            A jurisprudência do STJ evoluiu de um dogmatismo de recusa, pura e simples, ao promitente-transmissário com traditio, do direito de dedução de embargos de terceiro contra o arresto ou penhora da coisa[6], para uma apreciação casuística da afirmação da posse, tudo dependendo do animus que a acompanhe e a forma como se revele na realidade.[7]

            Para essa evolução foram determinantes, na doutrina, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela[8], Vaz Serra[9] e Calvão da Silva[10].

            No caso dos autos, os factos provados apontam para actos materiais e efectivos de posse exercidos pela embargante (corpus) acompanhados do animus, que (et pour cause) se presume (art.º 1268.º do CC).

            Com efeito, a embargante pagou parte do preço, em finais de Agosto de 2005, a promitente-vendedora entregou a fracção e as respectivas chaves à embargante, que as recebeu a fim de nela passar a habitar, mobilou o andar, para lá levou todos os seus pertences pessoais e dos dois filhos, menores, fazendo dela a sua casa de morada de família, contratando, desde então, em seu nome, os fornecimentos de água, luz e gás, cujas facturas vem pagando, aí recebendo os amigos e familiares e procedendo a obras de conservação, sem qualquer oposição ou interrupção, à vista de toda a gente, como quem exerce plenos poderes sobre coisa que lhe pertence e na ignorância de lesar direitos alheios e outorgando a escritura pública de compra e venda cerca de 4 meses após ter passado a residir na fracção.

            Em suma, o uso do imóvel pela embargante foi-se processando até à escritura, e após, não na convicção de que o andar ainda era pertença da imobiliária promitente-vendedora, antes com a séria intenção de dele ser dona, praticando os actos de posse em  nome próprio, agindo com animus possidendi e, por isso, se tratando de verdadeira possuidora e não mera detentora da fracção.


*

            d) – Quanto à última questão, da alegada prevalência do registo do arresto, cumpre salientar o seguinte:

            - Dispõe o n.º 1 do art.º 5.º do CRP que os actos sujeitos a registo só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo e o n.º 4 que, terceiros para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

            Este dispositivo veio consagrar a doutrina do Acórdão Unificador de Jurisprudência (AUJ) n.º 3/99, de 18.5.99[11] que alterou o anterior AUJ n.º 15/97, de 20.5.97, no qual (ainda) se louva a recorrente para sustentar a prevalência da inscrição registral do arresto sobre a embargante.

            Daquele dispositivo legal resulta hoje com clareza a exigência de que ambos os direitos em conflito advenham do mesmo adquirente comum, pelo que estão manifestamente excluídos de qualquer prevalência registral os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito derivem de uma diligência judicial, como o arresto ou a penhora.[12]

            Nenhuma prevalência registral existe, pois, do arresto, convertido em penhora.


*

            3. Sumariando (art.º 713.º, n.º 7, do CPC):

            I – Constituindo os embargos de terceiro um incidente da execução, que não da correspondente acção declarativa e tendo completa autonomia quanto a essas espécies processuais, é à data da sua instauração que deve aferir-se a aplicabilidade da nova lei processual decorrente do DL n.º 303/07, de 24.8 quanto ao prazo de interposição do recurso;

            II – É aos factos provados e não ao nomen dado pelas partes a determinada realidade contratual (comodato) que o tribunal deve atender para os subsumir o quadro legal aplicável;

            III - Tendo a promitente-compradora efectuado parte do pagamento do preço do apartamento à imobilária e tendo-lhe esta entregue as chaves para passar a habitá-lo, o que ocorreu, mobilando-o e para ele levando todos os sues haveres e dos 2 filhos menores consigo conviventes, requisitando sem seu nome e pagando o fornecimento de água, luz e gás, aí fazendo a sua vida e recebendo os amigos, como quem exerce plenos poderes sobre coisa que lhe pertence, detém a posse em nome próprio (corpus e animus) que a legitima a embargar de terceiro, por arresto posteriormente convertido em penhora sobre o imóvel;

            IV – O arresto, registado, não produz efeitos relativamente à posse da promitente-compradora com tradição do apartamento, na medida em que esta não é terceira relativamente ao arrestante (art.º 5.º, n.ºs 1 e 4, do CPR).


*

            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelo recorrente.


***

Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] Neste sentido, v. o Ac. desta Relação de 21.6.11, Proc. 879/09.0T20VR-A.C1, in www.dgsi.pt.
[2] V. Ac. STJ de 17.4.08, Proc. 08B731, in www.dgsi.pt.
[3] V. Gonçalves Sampaio, “A Prova por Documentos Particulares na Doutrina, na Lei e na Jurisprudência”, 3.ª ed., 2010, pág. 126.
[4] “Contrato-Promessa em Geral – Contratos-Promessa em Especial”, 2009, pág. 245.
[5] Proc. 07A 480, in www.dgsi.pt.
[6] V., a título de exemplo, os Acs. de 2.3.95, Proc. 086368, 14.1.99, Proc. 99A433 e 27.4.04, Proc. 04A1037, in www.dgsi.pt.)
[7] Entre outro, v. os Ac.s de 21.9.98, Proc. 99B113, 23.5.06, Proc. 06A1128, 17.4.07, Proc. 07A480, 12.3.99, Proc. 09A0265,  7.1.10, Proc. 860/03.3TBLBGS-B.E1.S1 e 29.11.11, Proc. 322-D/1999.E1.S2, in www.dgsi.pt.
[8] “CC, Anot.”, III, págs. 6 e 7.
[9] RLJ, 169-º347 e 348.
[10] “Sinal e Contrato-Promessa”, 11.ª ed., nota 55 da pág. 231.
[11] DR. I-A, de b10.7.99.
[12] Ac. STJ de 29.2.00, Sum. – 1.ª, 38.º-29.