Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2614/19.6T8LRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 235, 239, 241 CIRE, 351 CC
Sumário: 1.- O que é determinante, para excluir rendimentos da cessão ao Fiduciário, não é exactamente o que os devedores/insolventes invocam como despesas que entendem necessárias para o seu sustento e/ou actividade (o que cada um de nós entende ser imprescindível ao seu próprio sustento e/ou actividade é algo relativamente variável, subjectivo e até especulativo).

2.- O critério decisivo, para excluir rendimentos da cessão ao Fiduciário, está no que é necessário, num plano de normalidade, razoabilidade, comedimento e sobriedade, para um sustento minimamente digno, independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até pode ter gerado ou contribuído para a situação de insolvência – e/ou se aspira a manter; e isto – o que é indispensável para um sustento minimamente digno – é um dado da experiência comum (que é suposto os tribunais portugueses conhecerem e que é um meio de prova – cfr. art. 351.º do C. Civil).

3.- O sistemático pedido de fixação dum rendimento indisponível superior aos rendimentos auferidos revela ou a intenção de não querer efectivamente entregar nada ao Fiduciário (acautelando a hipótese dum qualquer “acesso de fortuna”) ou a confissão de que se mantêm um trem de vida que não está ajustado às possibilidades e rendimentos, o que está ao arrepio do compromisso de quem, tendo-se deixado cair em situação de insolvência, requer a exoneração do passivo restante.

Decisão Texto Integral: Exoneração do Passivo Restante

Montante indispensável para o sustento minimamente digno.

1 – O que é determinante, para excluir rendimentos da cessão ao Fiduciário, não é exactamente o que os devedores/insolventes invocam como despesas que entendem necessárias para o seu sustento e/ou actividade (o que cada um de nós entende ser imprescindível ao seu próprio sustento e/ou actividade é algo relativamente variável, subjectivo e até especulativo); o critério decisivo, para excluir rendimentos da cessão ao Fiduciário, está no que é necessário, num plano de normalidade, razoabilidade, comedimento e sobriedade, para um sustento minimamente digno, independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até pode ter gerado ou contribuído para a situação de insolvência – e/ou se aspira a manter; e isto – o que é indispensável para um sustento minimamente digno – é um dado da experiência comum (que é suposto os tribunais portugueses conhecerem e que é um meio de prova – cfr. art. 351.º do C. Civil).

2 – O sistemático pedido de fixação dum rendimento indisponível superior aos rendimentos auferidos revela ou a intenção de não querer efectivamente entregar nada ao Fiduciário (acautelando a hipótese dum qualquer “acesso de fortuna”) ou a confissão de que se mantêm um trem de vida que não está ajustado às possibilidades e rendimentos, o que está ao arrepio do compromisso de quem, tendo-se deixado cair em situação de insolvência, requer a exoneração do passivo restante.

Rel.: Barateiro Martins;

Adjs.: Arlindo Oliveira e Emídio Santos

Apelação n.º 2.614/19.6T8LRA-C.C1
Comarca da Leiria – Juízo de Comércio


Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – Relatório

No requerimento de apresentação à insolvência, a devedora/apresentante A (…), com os sinais dos autos, requereu a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos art. 235.º e ss. do CIRE.

Tendo sido declarado insolvente e prosseguindo os autos, tendo em vista a requerida exoneração do passivo restante, a Exma. Juíza considerou não existir motivo legal para o indeferimento liminar de tal pretensão da insolvente e, entre outras coisas, veio a ser determinado que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível – tudo o que a devedora aufira e que exceda por mês o valor correspondente a um salário mínimo nacional – se considera cedido à fiduciária nomeado.

Inconformada com este segmento da decisão, interpõe a devedora/insolvente o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outro que determine que seja “aumentado o rendimento mínimo disponível para um valor não inferior a um salário mínimo nacional e meio.”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

1. Veio o despacho liminar de exoneração do passivo restante atribuir à Insolvente enquanto rendimento disponível, um salário mínimo nacional; não pode a Insolvente conformar-se com tal,

2. A Insolvente, suporta todas as suas despesas sozinha.

3. Só em despesas básicas despende de uma quantia nunca inferior a €850,OO,

4. Como qualquer outra pessoa, necessita de se deslocar para o trabalho, se não o faz de transportes públicos, por serem inexistentes para o seu local de trabalho atendendo ao seu horário por turnos, na sua grande maioria à noite

5 A insolvente vive numa casa de pertença de seu pai e da sua mãe, mas com a mãe desempregada (sem receber subsídio de desemprego) e o pai a ganhar o ordenado mínino tem que ajudar a comparticipar em todas as despesas de casa.

6. Só pode a Insolvente "suplicar" por mais rendimento disponível que não apenas a retribuição mínima mensal que lhe permitam a realidade do sustento condigno seu e da sua família e da sua doença.

7. Deve ser concedido à Insolvente um rendimento mínimo disponível nunca inferior a um salário mínimo nacional e meio.

(…)”

Não foram produzidas quaisquer contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II a) Fundamentação de Facto

Resulta dos autos, nomeadamente dos documentos juntos aos autos pela requerente e do relatório apresentado pela Srª. Administradora, que:

1º- A Requerente nasceu no dia 07.05.1988, encontrando-se divorciada.

2º- A requerente se encontra empregada, exercendo a profissão de operadora de posto de abastecimento, tendo como empregador a S (…), Lda, auferindo a retribuição mensal ilíquida de € 620,00, mais subsídio de turno parcial prolongado, no montante mensal de € 124,00.

3º- A Requerente tem residência habitual e permanente, desde o divórcio, num imóvel que pertence aos seus pais, habitando lá sem pagar renda, mas que, segundo alega, contribui com 400 € mensais para ajudar os pais nas despesas de alimentação, água, luz, gás, telecomunicações, e demais despesas correntes e familiares.

4º- A Requerente alega que tem despesas fixas mensais de saúde no montante de cerca de € 100,00.

5º- A Requerente alega que, por indicação médica, precisa de praticar exercício físico, frequentando um ginásio que mensalmente tem um custo de € 25,00.

6º- A Requerente alega que se desloca da casa onde habita para o seu emprego num veículo automóvel que pertence ao seu irmão, mas que é ela que suporta todas as despesas inerentes ao automóvel, nomeadamente gasóleo no montante de € 150,00 mensais, o seguro do automóvel no montante de €126.00, semestrais, e as despesas de manutenção do veículo no montante de € 150.00, semestral.

7º- A Requerente alega que, acrescendo a todas estas despesas, tem sempre outras, como seja vestuário, calçado, óculos, dentista, que em média perfazem sempre um valor mensal de cerca de € 100.00.

8º- Da lista de créditos reconhecidos o valor do passivo ascende a €268.881,84.

9º- A Requerente é proprietária do direito a metade indivisa do prédio urbano com o artigo matricial nº 4243, fracção “C”, registado na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 9326/20100104-C, da freguesia de (...) , estimando o valor actual de tal prédio na sua totalidade em € 95.670,73 ( correspondente ao respectivo valor patrimonial tributário).


*

II b) - De Direito

Não será supérfluo começar por referir[1] – contextualizando juridicamente a (única) questão sob recurso, respeitante ao “quantum” do rendimento auferido pelo devedor que deve ser excluído da cessão – que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e libertação do devedor e como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[2].

É assim uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade[3]; a “exoneração” não se pode/deve aplicar aos devedores que se endividaram de forma completamente “leviana”, aos que não pensaram “duas vezes” quando se deram conta que era “fácil” obter um financiamento, aos que se recusaram a perceber que jamais iriam ter meios para liquidar as dívidas que estavam a contrair “levianamente”, aos que, contraídas avultadas dívidas[4], apenas pretendem, pura e simplesmente, nada pagar ou quase nada pagar.

É esta, pelo menos, a história e a razão de ser do “instituto”; como, “confessadamente”, o CIRE o assumiu no seu preâmbulo.

Vem isto a propósito – não estando já em causa o não indeferimento liminar da exoneração do passivo – da concretização prática da exoneração, que deve ser efectuada em linha com o seu escopo e ratio, não podendo/devendo equivaler a uma modalidade de “remissão”.

Vejamos:

É ainda no despacho inicial – em que não se indefere liminarmente o pedido de exoneração – que o juiz determina a parte do rendimento que fica excluída da cessão à entidade designada por “fiduciário”; que o juiz determina que, durante um período de 5 anos – prazo fixo que não depende do prudente arbítrio do juiz – subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado como período de cessão, o rendimento disponível do devedor se considera cedido a uma entidade, designada fiduciário, para os fins do art. 241.º.

Rendimento disponível” que, segundo o art. 239.º/3 do CIRE, é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão, designadamente, “do que seja razoavelmente necessário para: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional: ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional.

A exclusão em causa – é uma dedução óbvia – é uma solução forçosa e obrigatória, imposta pelas necessidades e exigências que a subsistência/sustento e exercício da actividade colocam ao devedor/insolvente (e ao seu agregado familiar); ou seja, na definição da amplitude do “rendimento disponível”, fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora (do “rendimento disponível” a ceder) uma parte do rendimento do devedor/insolvente, parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência e actividade.

Cumprindo tal inevitabilidade, o legislador enunciou, a nosso ver, em termos de limite mínimo da exclusão, o critério “do que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”; ou seja, o legislador não adoptou um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno, porém, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não estamos autorizados a afirmar que o legislador, quando, ano após ano, fixa o montante do salário mínimo nacional, não o considera e avalia como suficiente a um sustento minimamente digno[5].

Enfim, encurtando razões, a exclusão imposta pelo art. 239.º/3/b), i) pode evidentemente ser do montante do salário mínimo nacional[6]; ou seja, não nos parece que possa/deva partir da ideia do salário mínimo nacional não permitir um sustento minimamente digno.

Montante em que – concordando com a decisão recorrida – se considera adequado fixar a quantia com que a devedora/recorrente deve ficar durante o período da cessão; em que se considera adequado fixar os rendimentos a excluir da cessão.

Alude o art. 239.º, b), i), do CIRE ao sustento minimamente digno, não só do devedor, mas também do seu agregado familiar; que, no caso, é composto apenas pela devedora/recorrente.

Ficará pois com um montante – um salário mínimo nacional – que a obrigará a viver, nos cinco anos da cessão, com bastante comedimento e modéstia; não é sequer preciso um qualquer elemento factual explícito para sustentar tal afirmação, uma vez que pertencem ao domínio dos factos públicos e notórios os gastos/despesas que é imprescindível toda e qualquer pessoa ter que efectuar para obter o indispensável para o seu sustento, habitação e vestuário.

Importa não esquecer – daí o percurso e ênfase iniciais – que o escopo do instituto da “exoneração”, requerido pela recorrente, é a extinção de todas as sua obrigações – é o começar de novo, “aprendida a lição”, sem dívidas – o que necessariamente significa e implica, para a requerente/recorrente, a assunção de “custos” e sacrifícios durante os 5 anos da cessão.

Não se quer com isto dizer que não haveria custos e sacrifícios se, em vez de 1 SMN, passasse a ficar excluído, como a devedora/apelante pretende, 1,5 SMN; só que tal pretensão da requerente/recorrente, embora aparentemente razoável, é, bem vistas as coisas e no contexto dos autos, inaceitável.

Pelo seguinte:

Apresentou-se a devedora/recorrente à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante e dizendo (é um pressuposto da exoneração) que se compromete a entregar ao fiduciário todo o seu rendimento disponível.

Todavia, chegado o momento de concretizar o seu comprometimento, passando da “teoria” à “prática”, não pretende vir a ceder qualquer rendimento durante os 5 anos; uma vez que admite auferir mensalmente, em termos líquidos, não mais de € 700,00 e pretende ver excluídos da cessão € 952,50 (1,5 SMN)[7].

Tudo isto porque – é a conclusão inevitável – não quer assumir quaisquer “custos” ou sacrifícios durante os 5 anos da cessão; na medida em que sustenta ter despesas que, somadas, rondam quantia não inferior a € 825,00 (sem suportar despesas de habitação), dizendo necessitar, mensalmente, para ter e garantir um sustento minimamente digno, de quantia superior à que aufere mensalmente[8].

Sucede, como repetidamente temos escrito – a propósito da fixação do montante do rendimento indisponível – que o que é determinante, para excluir rendimentos da cessão, não é exactamente o que os devedores/insolventes invocam como despesas que entendem necessárias para o seu sustento e/ou actividade (efectivamente, o que cada um de nós entende ser imprescindível ao seu próprio sustento e/ou actividade é algo relativamente variável, subjectivo e até especulativo); a nosso ver, o critério decisivo, para excluir rendimentos da cessão, está no que é necessário, num plano de normalidade, razoabilidade, comedimento e sobriedade, para um sustento minimamente digno[9], independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até pode ter gerado ou contribuído para a situação de insolvência – e/ou se aspira a manter.

É justamente por isto que até consideramos pouco relevantes os montantes que os devedores/insolventes repetidamente invocam como absolutamente necessários para viver[10]: é um dado da experiência comum (que é suposto/exigível os tribunais portugueses conhecerem e que é um meio de prova – cfr. art. 351.º do C. Civil) o que é indispensável para um sustento minimamente digno, pelo que é escusado – são normalmente requerimentos sem valor jurídico-processual – vir dizer-se (e juntar “papéis”) a procurar demonstrar que se precisa de mais de 1.000 € por mês para viver e pedir que lhe seja fixado esse montante de rendimento indisponível (quando, na maioria das vezes, o rendimento que se diz ter é bem inferior ao montante que se quer ver fixado como rendimento indisponível[11]).

Mais, repete-se, a existência dum salário mínimo nacional significa que se entende que, em Portugal, é possível viver com o montante em que o mesmo é fixado; com bastante comedimento e sobriedade, é certo, mas, segundo o entendimento de quem o fixa, com um mínimo de dignidade[12].

Seja como for – independentemente dos subjectivismos de cada um sobre o que entende ser imprescindível ao seu próprio sustento e/ou actividade – não se pode/deve, até para não se cair em situação de insolvência, contrair mais despesas que os próprios rendimentos.

Vem isto a propósito da devedora/insolvente invocar que precisa que lhe seja fixada a indisponibilidade de 1,5 SMN (actualmente, € 952,50) para viver, quando não aufere mais do que cerca de € 700,00 líquidos de rendimento mensal.

Enfim, insiste-se, do que verdadeiramente se trata, como já se pode dizer ser típico e recorrente nestes procedimentos (decorridos 15 anos sobre a entrada em vigor do CIRE), é do aqui devedor/insolvente se pretender furtar ao cumprimento da obrigação imposta pelo art. 239.º/4/c) do CIRE.

Mas não pode ser, uma vez que os sacrifícios, como é justo e equitativo, devem ser repartidos entre os credores (que ficarão para sempre sem receber uma parte seguramente significativa dos seus créditos) e os devedores (que durante o período da cessão não se podem eximir a pagar tudo o que lhes for possível); não sendo proporcional os devedores alijarem todos os “sacrifícios”.

Se os credores não foram prudentes, se, como porventura possa ter sido o caso, instituições de crédito emprestaram montantes que, à partida e num plano de análise sensata de risco, logo se percebia nunca os devedores iriam ter possibilidades de pagar, não podem legitimamente aspirar a que devedores – porventura afoitos a pedir e a aceitar empréstimos de montantes que não podiam pagar – fiquem perpetuamente vinculados às dívidas; a exoneração do passivo também tem em vista evitar as situações de imprudência dos credores, também existe para provocar contracção no crédito e produzir impacto positivo na economia, para impor exigência e responsabilidade a quem concede crédito, uma vez que, se assim se proceder, menor será o risco de sobre endividamento e de insolvência.

Mas – é a outro vertente – a extinção dos créditos e a exoneração dos devedores, no final dos 5 anos, também não pode, é a nossa firme convicção, equivaler a uma remissão e muito menos induzir ou incentivar um desvalor comportamental.

A exoneração dos créditos pressupõe que os mesmos não tenham sido integralmente pagos, o mesmo é dizer, pressupõe que algo foi pago pelos devedores[13] e esse “algo”, numa repartição justa e equitativa dos sacrifícios (entre credores e devedores), é tudo aquilo que lhe for possível pagar desde que não belisque “o sustento minimamente digno do devedor”.

E para o “sustento minimamente digno do devedor” – não obstante tudo o que é invocado e pedido pela devedora/apelante – tem que ser considerado como adequado, no contexto específico da exoneração do passivo restante em que nos encontramos, o montante correspondente ao salário mínimo nacional.

Em conclusão, confirma-se a decisão recorrida, em que se determinou que, durante o período da cessão (que se prolongará por 5 anos), fique excluída tão só uma quantia igual a um salário mínimo nacional.


*


III – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante (sem prejuízo do art. 248.º/1 do CIRE).

Coimbra, 04/02/2020

Barateiro Martins ( Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] No que se segue de perto o que já se deixou escrito em inúmeros e idênticos recursos, designadamente nas apelações n.º 324/11.1TBNLS-H.C1, 432/12.1TBLSA-B.C1, 48/15.0T8SEI.C1 e 1.393/15.0T8ACB-D.C1.
[2]A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133.
[3] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.
[4] Para o rendimento e património de quem contrai tais dívidas.

[5] Mais, no nosso ordenamento jurídico, “abaixo” do salário mínimo, existe até o rendimento social de inserção, criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio, que consiste numa prestação que visa conferir apoios para a satisfação das necessidades essenciais.

[6] Mais ainda, conforme o sustentado no Ac. desta Rel. de Coimbra de 16/12/2015 2015, in CJ, Tomo V, pág. 285, com que concordamos, “ainda que o valor do salário mínimo nacional seja um elemento a que o tribunal possa recorrer para fixar o montante necessário a garantir ao devedor e á sua família o sustento com o mínimo de dignidade, a referência legal feita ao salário mínimo nacional não serve para dizer que esse sustento minimamente digno não pode ser assegurado com um montante inferior.”

[7] Em termos práticos – falando claro – nada pretende pagar aos seus credores, limitando-se com o presente meio processual a acrescentar despesa ao Estado (o que deve/ia fazer repensar a racionalidade deste meio processual), que vai ter que suportar os honorários do seu mandatário, do administrador da insolvência, do fiduciário e de toda a máquina judicial (que movimenta estes milhares de meios processuais em que existe um abismo entre o objectivo da lei e o que na prática sucede).

[8] Ou seja, noutra perspectiva, requer a exoneração – requer que as suas dívidas antigas sejam extintas – e de imediato começa a contrair novas dívidas, na medida em que “confessa” viver com um deficit mensal de € 125,00 (e sem despesa com a habitação).

[9] Cfr. Ac do STJ de 03/11/2015, in CJ, Tomo III, pág. 125.

[10] Juntando documentos e “papéis”, que nem demonstram que sejam despesas deles e muito menos, não raras vezes, o comedimento das mesmas (para quem está a requerer a exoneração do passivo restante).

[11] Ou seja, ainda nem sequer foi proferido o despacho liminar e os requerentes já estão a revelar a sua intenção de não querer efectivamente entregar nada ao Fiduciário; acautelando, para a hipótese dum seu qualquer acesso de fortuna, que os credores continuem a não receber. Para além de, por outro lado, confessarem, repete-se, que mantêm um trem de vida que não está ajustado às suas possibilidades e rendimentos, o que está completamente ao arrepio do compromisso de quem, tendo-se deixado cair em situação de insolvência, requer a exoneração do passivo restante.
[12] Há certamente dezenas de milhar de portugueses a viver com tal rendimento e que não caíram nem se vão deixar cair em situação de insolvência.

[13] Ou seja, quem requer a exoneração do passivo restante com a “reserva mental” de, chegado o momento de concretizar o seu comprometimento, nada ceder/pagar, nem estará a ter um comportamento “(…) pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé (…), único comportamento elegível para se ser merecedor da nova oportunidade em que a exoneração se traduz; pelo que, sendo manifesta tal “reserva mental”, até talvez se possa/deva passar a dizer, no limite, que tal constitui motivo bastante para o não deferimento liminar da exoneração.