Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
550/09.3GBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE JÚRI
CRIME DE HOMICÍDIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
Data do Acordão: 05/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º Nº 3 DO DEC. LEI 387/87 DE 29/12; 323º Nº 1 A) E B), 368º E 369º CPP; 133º CP
Sumário: 1.- Na fase da sentença é da competência do Tribunal do Júri, conhecer e decidir das questões da culpabilidade e da determinação da sanção.
2.- Compete aos Juízes do Tribunal Colectivo, que compõem o Tribunal de Júri, decidir as questões prévias ou incidentais, a que se alude no artº 368.º, n.º 1 do C.P.P.

3.- O Tribunal de Júri, composto por três Juízes, que constituem o Tribunal Colectivo e por quatro Jurados, apenas decide e já na fase da sentença, as questões da culpabilidade e da determinação da sanção.

4.- Compete aos três Juízes, que constituem o Tribunal Colectivo, decidir da admissibilidade da prova requerida ao abrigo do disposto no artº 340.º, n.º1 do C.P.P.

5.- A competência para ordenar oficiosamente a produção de prova nos termos do artº 340.º , n.º 1 do C.P.P., durante a audiência de julgamento, é não só do Tribunal Colectivo, , mas também, do Juiz Presidente.

6.- Não é homicídio privilegiado o daquele que, com a arma empunhada à altura da cintura se aproxima da vítima que caminhava algemada e agarrada no braço esquerdo pelo militar da GNR, sem oferecer resistência e meio curvada, e após ter perguntado ao militar da GNR se sabia quem era o indivíduo, lhe dá, voluntariamente, um tiro, que foi causa directa e necessária da sua morte, já que um homem médio, “ fiel ao direito, sabendo que a pessoa responsável por um eventual assalto ao armazém de uma de empresa de que é administrador, estava já detida e era levada pela autoridade policial sem oferecer resistência, não deixaria de se libertar do estado emocional violento que porventura se tivesse desencadeado nele.

Decisão Texto Integral:         Relatório

Pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de WWW..., sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum colectivo, com Tribunal de Júri, o arguido

             AB..., , em cumprimento da medida de coacção, à ordem destes autos, de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, imputando-se-lhe a prática, em autoria material e concurso real, sob a forma consumada,

- de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132.º, n.º 2, alíneas c) e e), por referência ao n.º 1 do artigo 131.º e n.º 1 do artigo 132.º, todos do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, do Novo Regime Jurídico das Armas e suas Munições, Lei n.º 5/2006, de 23/2, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio;

- de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e artigo 99º-A, nº 2, do Novo Regime Jurídico das Armas e suas Munições aprovado pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio; e

- de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, nº 1, alínea a), ex vi dos artigos 143º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea l), todos do Código Penal.

Os assistentes FS... e LS..., deduziram pedido de indemnização civil contra AB..., peticionando a quantia global de € 203.000,00, sendo € 43.000,00 a título de danos patrimoniais, e € 160.000,00 a título de danos morais, dos quais € 75.000 são relativos à perda do direito à vida, € 60.000,00 pelos danos não patrimoniais próprios e € 25.000 pelos danos decorrentes das dores e angústia sofridas pelo filho antes da morte.

                                                             

Realizada a audiência de julgamento - no decurso da qual foi comunicada uma  alteração não substancial, para efeitos do artigo 358º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, quer no atinente a factos, quer quanto à alteração da qualificação jurídica, nos termos vertidos em acta -, o Tribunal de Júri, por acórdão de 30 de Novembro de 2010, decidiu:

- Absolver o arguido AB... da acusação da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132.º, n.º2, alíneas c) e e), por referência ao artigo 131.º e n.º 1 do art. 132.º, todos do Código Penal;

- Absolver o arguido AB... da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º, nº 1, alínea a), ex vi do artigo 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea l), todos do Código Penal;

- Considerar verificados os factos integradores de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal e declarar extinto o procedimento criminal relativamente a este crime, nos termos do n.º 4 do artigo 148.º e n.º 1 do artigo 115.º, ambos do Código Penal;

- Condenar o arguido AB... pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131.º do Código Penal, agravado pelo cometimento com arma, p. e p. pelo nº 3 do artigo 86.º da lei nº 5/2006, de 23/2, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 17/2009, de 6/5, na pena de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão;                                                     

- Condenar o mesmo arguido pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23/2, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 17/2009, de 6/5, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;

- Em cúmulo, condenar o arguido AB..., na pena única de 13 (treze) anos de prisão;

- Declarar perdida a favor do Estado a arma apreendida nos autos, da marca “Famars”; declarar perdidos os restantes objectos e ordenar a sua destruição;

- Manter a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica aplicada ao arguido AB...;

- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes FS... e LS... contra o demandado AB..., e, em consequência, condenar este a pagar àqueles a quantia de € 111.000,00 (cento e onze mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação do pedido sobre a quantia de € 1.000,00 e desde a presente data sobre a quantia de 110.000,00€, absolvendo-o do mais peticionado.

Inconformado com o douto acórdão dele interpôs recurso o arguido AB..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

B1: É intolerável que os órgãos de polícia criminal presentes no “teatro” dos acontecimentos tenham meramente “alertado” o arguido para observar cuidados no manuseamento da caçadeira de que era portador, quando era dever deles desapossá-lo dessa arma

B2: o que só não fizeram por, atendendo às condições de tempo (noite escura) e lugar (ermo) terem eles próprio sentido medo da situação tal como ela objectivamente se apresentava e de eventuais consequências deletérias para a sua saúde. Nesta sequência

B3: o arguido, ao inquirir, em conversa a dois, o militar da G.N.R. sobe a identidade do ladrão, mais tarde vítima, por certo já o havia avistado, tanto mais que o assinalado militar, que auxiliava a vítima no percurso até junto das viaturas, paradas no terreno que medeia entre as instalações da XX... e a Estrada Nacional n.º 1, ia munido de uma lanterna. Por outro lado,

B4: O tribunal do júri guardou o mais obstinado silêncio sobre as seguintes questões absolutamente cruciais; Desde quando o arguido empunhava a arma à altura da cintura? Qual a posição em que empunhava essa arma quando travou o assinalado diálogo com o militar?

Já viria a mesma apontada à região axilo/temporal de um pessoa de estatura normal?

B5: uma coisa é certa: qualquer pessoa normal não deixará de questionar-se como foi possível, face ao narrado no acórdão que um disparo provindo da lado direito do referido militar, após um trajecto curto e superficial pelo corpo da vítima, tenha atingido aquele no lado oposto, mais concretamente na zona da axila e do braço esquerdo. Por outro lado,

B6: é ininteligível a afirmação segundo a qual o “arguido não contou com a presença próxima do militar DB..., ..., poderia atingir o corpo do mesmo” uma vez que havia falado com ele era portador de uma lanterna

B7: sendo porventura ainda mais misterioso que o tribunal tenha dado como não provado que o dito militar transportasse a lanterna com o braço esquerdo estendido.

B8: A referida assunção probatória só é explicável em função da circunstância de, após a alteração não substancial dos fatos constantes da acusação, a que se procedeu, o tribunal colectivo não ter permitido ao arguido produzir a prova que este se propusera

B9: Também não se compreende o fato de haver diversos veículos pesados com os respectivos depósitos de combustíveis violados e de os bidons apreendidos todos se apresentarem vazios.

810: A circunstância de ter ficado não provado que o sangue da vítima, para além de vestígios de morfina apresentava os de codeína, como pericialmente demonstrado, coenvolve a violação do art. 163.º-2 do CPP e, por conseguinte, um vício na assunção da prova que deve conduzir à anulação do julgamento

B11: Alguns dos “meios de prova” de que o tribunal fez uso - aqueles referidos supra, no ponto A3.1.1. da motivação -, pelo menos porque não tomados em conta na audiência, violaram o disposto no art.355º-1 do CPP e 32º-5, segunda parte, da CRP, o que deve, também, conduzir à anulação do julgamento. Acresce que

B11: mesmo as questões conexamente referentes ao futuro julgamento e determinação da sanção, nos incidentes processuais relevantes a este propósito, foram apenas decididas pelo colectivo que votou, a tal propósito, contra a lei, os jurados ao total ostracismo, quando seria mister que os mesmos tivessem co-intervindo na decisão dos mesmos. Com efeito

B12: é essa a prática genericamente assumida, entre nós, pelo comum dos tribunais do júri, por ser aquela que encontra respaldo e imposição legal, como demonstrou FARIA COSTA no parecer junto aos autos e cujo inteiro teor foi dado por reproduzido, acima, no momento próprio. Na verdade,

B13: o assinalado ilustre professor catedrático da faculdade de direito da universidade de Coimbra, conclui o seu estudo, da seguinte forma: “2 A competência do tribunal de júri encontra-se estabelecida no artº 13.º do Código de Processo Penal, sendo o seu regime estabelecido no Decreto-Lei no 387-A/87, de 29 de Dezembro, que regula a constituição do tribunal, a capacidade para ser jurado, e a selecção dos jurados e o estatuto do jurado.

      2.1….  

      2.2. Particular interesse revela a norma ínsita no n.º 3 do art. 2.º do DL n.º 387-A/87, segundo o qual o júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção.

      2.3. Daqui resulta que, actualmente, do regime vigente resulta que o júri detém um poder de decisão em matéria de direito, ou seja, a realidade do júri tem uma competência, mais ampla, afirmando-se cada vez mais enquanto realidade una do que enquanto conceito espartilhado. O júri substitui, assim, a (mera) adição de juízes e jurados.

      3. Dos artigos 368.º e 369.º do CPP resulta, assim, que o júri, detém um poder decisório em matéria de direito muito amplo, fundamentado na sua intervenção na decisão das questões sobre a culpabilidade e sobre a determinação da sanção.

     3.1....

     3.2....

     4. A decisão sobre a culpa e sobre a sanção determina de facto et de iure, a intervenção em questões materiais que com estas sejam conexas.

     4.1. Não podendo fazer-se uma aplicação analógica da norma contida no n.º 2 do artigo 369.º do CPP (determinação da sanção) ao artigo 368.º (questão da culpabilidade), do mesmo código deverá sempre fazer-se uma aplicação analógica do princípio ínsito naquela norma relativo à sanção para as questões da culpabilidade.

    4.2. O que implica que as decisões sobre os requerimentos feitos em sede de Audiência de Julgamento relativos à admissibilidade de meios de prova suplementares ou diversos daqueles previamente indicados, constituem uma questão material conexa com a decisão sobre a culpabilidade, justamente porque podem ser fundamentais à formação de uma convicção por parte dos membros do júri indispensáveis, portanto, para a boa decisão da causa.

    (…)  

    7.2. Qualquer uma das três questões - junção de documento, interrogatório de testemunha sobre matéria para que não tinha sido arrolada, produção de prova suplementar tem consequências em matéria dos fatos em análise, logo fundamentais para a decisão sobre a culpabilidade.

    7.3. Não obstante, nenhuma destas questões foi decidida pelo júri, de outro modo, qualquer uma destas decisões foi tomada por quem para ela não tinha competência.

    7.4. No caso vertente, o júri foi usurpado da sua competência decisória, a mesma foi-lhe, ilegitimamente, coarctada e exercida para quem para tanto não tinha competência. Em duas ocasiões o Juiz Presidente e, em uma terceira, pelo Tribunal Colectivo.

    7.5....

   7.6. Em causa encontra-se a falta absoluta de jurados, ou seja, para lá da mera falta de número. Vício a que corresponde a inexistência por o mesmo ser mais grave do que aquele previsto na norma legal acima citada.

    7.7. Assim, a cumulação de actos inexistentes - os por nós detectados foram três - põe em crise, de modo irreparável, a própria relação jurídica processual entre o júri e o arguido que lhe cabia julgar, tornando-a absolutamente inválida.

     7.8. Nesta sequência, qualquer decisão final tomada no seio desta relação carece de legitimação, pelo que não pode verificar-se o caso julgado devendo a relação voltar a restabelecer-se com o início de um novo Julgamento em que o júri seja chamado a intervir em todas as questões materiais conexas tanto com a culpabilidade como com a determinação da sanção.

     8. Em síntese conclusiva final dir-se-á o julgamento de AB... é nulo, por se encontrar ferido com actos inexistentes que determinam a própria inexistência da relação jurídica processual, devendo o mesmo julgamento ser repetido e nele cumpridos, então, os postulados da competência do júri enquanto unidade incindível em todas as questões ligadas à culpabilidade e à determinação da sanção.”

B14: O recorrente solicitou à Delegação do Centro do INML a elaboração de um Parecer técnico-científico sobre as circunstancias que, no caso concreto, determinaram o surgimento do resultado fatal. Como acima se referiu, na Motivação sob A5.1, o dito Parecer vai junto e o seu integral teor foi dado como integralmente reproduzido nesse local da Motivação. De tal Parecer, todavia, respiga-se o seguinte: “Ora, do atrás exposto resulta como absolutamente inequívoco que a vítima foi atingida no tórax da direita para a esquerda ligeiramente de baixo para cima e quase tangencialmente, com ligeira inclinação póstero-anterior atento o formato da caixa torácica não tendo sido atingido o coração órgão torácico vital por excelência. Tal orientação e trajecto não é, de forma alguma, consentânea com uma intenção de matar, tendo do ponto de vista da interpretação objectiva pericial, muito mais compatível com uma situação de disparo acidental. Com efeito, a querer-se provocar a morte, não se iria dar um tiro tangencial que, aliás, só por mero acaso acabou por provocar a morte (e seguramente mais pelo pneumotórax indirectamente decorrente d situação do que das lesões directamente provocadas pelos chumbos) acresce que, a estar o arguido e autor do disparo a segurar simultaneamente a vítima (de acordo com algumas declarações constantes do processo), então estaria apenas com uma mão a segurar a espingarda provavelmente pela zona do gatilho o que facilitaria a etiologia acidental.” Com efeito,

B15: As Ilustres Médicas legistas dele autoras concluem da seguinte forma:

      1) Os elementos decorrentes da autópsia e da consulta do processo permitem concluir que o tiro que vitimou JL... resultou de disparo de arma caçadeira, dado a curta distância e com uma orientação absolutamente tangencial relativamente à superfície corporal.

     2) Todas as características do quadro lesional são muito mais consentâneas com uma natureza acidental do disparo do que com uma situação de disparo intencional.

      3) Esta perspectiva sai reforçada pelas declarações constantes do processo respectivamente à forma como o evento terá decorrido e os momentos subsequentes”. Ademais,

B16: A distonia que o recorrente pretende demonstrar relativamente ao julgamento da matéria de facto atine à incorrecção de julgamento de que padece o Acórdão sob escrutínio relativamente aos factos que rodearam o disparo letal e à conclusão que daí se extrai para dar como demonstrada a intenção de matar que o Tribunal recorrido imputa ao recorrente.

B17: Dando cumprimento à normatividade plasmada no art.412.º do C.P.P., designadamente o seu n.º 3, alínea a), incorre o douto Acórdão nos vícios contidos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, considerando-se incorrectamente julgados os pontos : “21. Quando o arguido chegou ao local acima referido, já aí se encontravam quatro militares da G.N.R., devidamente uniformizados, que se preparavam para abordar o armazém e tentar a detenção do autor do furto que estava a decorrer, que suspeitavam ainda se encontrar no seu interior. (...) 27. os militares da G.N.R. DB...e PP... alertaram o arguido para não levar a arma de fogo acima referida consigo, mas não o conseguiram demover. (...) 52. Tinha os canos apontados à região axilar/peitoral do lado direito de JL.... 53. Estava com a arma municiada, em posição de fogo (rápido) e colocou o dedo no gatilho. 54. Accionou o primeiro gatilho, correspondendo ao cano inferior da referida espingarda. 55. Como consequência direta e necessária, foi realizada a deflagração de um cartucho de calibre 12, da marca "SPECIAL COMPETITION" e "PULVICHUMBO”, carregados com bagos de chumbo n.º 7 ½ de plástico de cor vermelho. (...) 79. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de matar . 80. Sabia que o falecido se encontrava manietado, algemado e detido por militar da G.N.R, e que existiam outros três militares a tomarem conta da ocorrência. 81. Agiu com o propósito de lhe tirar a vida, com recurso a arma de fogo. 82. Nomeadamente por XX..., S.A. já ter sido objeto de vários furtos em que não se apurou autoria dos mesmos. 83. Quis apontar o cano da arma de fogo à região axilar/peitoral do lado direito de JL..., em zonas onde sabia estarem alojados órgãos vitais do corpo humano, a curta distância do mesmo. 84. Sabia que estava com a arma e posição de fogo, sem a desarmar e com o dedo no gatilho no momento do disparo. 85. Sabia que havia sido intimado a não utilizar a referida arma. 86 Devia ter desarmado e entregue a referida arma a militar da G.N.R. 87. Previu e quis acionar o gatilho da arma que empunhava e em consequência realizar disparo letal contra JL.... 88. Agiu subitamente sem que a vítima se pudesse defender, perfeitamente indiferente à presença de quem quer que fosse, nomeadamente de militares da GNR. 89. Não contou com a presença próxima do militar DB..., estando obrigado e sendo capaz de a constatar, descurando que, atenta a proximidade, poderia atingir o corpo do mesmo.” e o ponto xviii dos factos não provados: Nunca passasse pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previsse a morte como consequência da sua conduta e não se tenha conformado com o desfecho.”.

B18: No que tange ao ponto 21., atente-se ao depoimento prestado pela testemunha PP..., declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida no dia 28-09-2010, às 15:31:23 e constantes do Ficheiro nº. 20100928153122 e às 15:57.05 e constantes do Ficheiro nº. 20100928155705.

B19: É manifesto do depoimento em causa que quando o arguido chegou ao local ainda não se encontrava nenhuma patrulha da G.N.R, pelo que

B20: O ponto 21. encontra-se incorretamente julgado, sendo que a fatualidade que deveria ter sido dado como provada, por correspondente à realidade, é a seguinte: “Quando o arguido chegou ao local ainda não se encontrava nenhuma patrulha da G.N.R.. Após, chegou ao local a patrulha da G.N.R, de WWW... composta por dois elementos devidamente uniformizados.”.

B21: No que atina ao ponto 27. da matéria de fato dada como provada, sempre se dirá que, efetivamente, da prova testemunhal carreada aos autos não resulta que houve qualquer ordem, expressão ou gesto no sentido de o arguido não poder levar consigo a arma consigo, como se pode inferir dos depoimentos prestados pelas testemunhas DB...- declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida do dia 28-09-2010, às 09:54:36 e constantes do Ficheiro n.º 20100928095436 e às 09:54.36 e às 11.41:.18 e constantes do Ficheiro n.º 20100928114118 - e PP…, declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida no dia 28-09-2010, às 15:31:23 e constantes do Ficheiro no.20100928153122 e às 15:57:05 e constantes do Ficheiro nº. 20100928155705, pelo que

B22: Tal factualidade deverá ser dada como provado mas com o seguinte teor: “o militar da G.N.R. DB...aconselhou o arguido para pôr a arma em segurança e não a disparar. O militar PP... aconselhou, uma vez, o arguido a guardar a arma.”.

B23: A matéria de fato considerada assente no Acórdão recorrido relativa à intenção da matar - aquela constante nos pontos 51. a 55. e posteriormente os pontos 79. a 89. da matéria de fato dada comprovada - não tem suporte na prova que o Tribunal recorrido reputou determinante para a formação da sua convição. Com efeito,

B24: Realce-se que existe apenas e tão só uma única testemunha presencial dos fatos - o militar DB... declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida do dia 28-09-2010, às 09:54.36 e constantes do Ficheiro nº. 20100928095436 e às 09.54.36 e às 11.41:18 e constantes do Ficheiro nº. 20100928114118 - a qual não conseguiu descrever ao Tribunal a forma como o recorrente carregava a arma imediatamente antes do disparo letal, por falta de visibilidade - era de noite, não existia iluminação e a visibilidade estava substancialmente diminuída o que, aliás, resultou provado no Acórdão em discussão.

B25: A despeito desta lacuna - rectius, inexistência - probatória, o Tribunal recorrido oferece uma descrição pormenorizada dos acontecimentos e desta factualidade extrai a intenção de matar por banda do recorrente. Ora,

B26: Das declarações prestadas, flui a convicção da aludida testemunha no sentido de que o disparo foi acidental, acentuando que, se assim não fosse, o recorrente poderia tê-lo vitimado gravemente ou mesmo fatalmente - o que não deixa de corresponder à verdade. Aliás,

B27: Acresce referir que a forma como o Tribunal a quo entende que o arguido carregava a arma e a disparou (pontos 52 a 54), conjugada com os fatos não provados - vejam-se os pontos ix: O arguido empunhasse a espingarda com ambas as duas mãos e x: Antes já estivesse com o dedo no gatilho - e com as regras da experiencia comum, não é, nem pode ser, sustento para dar por provada a intenção de matar. Com efeito,

B28: Considerando-se a fatualidade provada nos autos - a arma pesa cerca de 3,20 quilogramas; é necessária uma força de 2,95 quilogramas para accionar o gatilho; o recorrente empunhava a arma com uma só mão; antes do disparo não tinha o dedo no gatilho; a direção do disparo foi da direita para a esquerda, ligeiramente de baixo para cima e com ligeira inclinação de lado para a frente, quase tangencial; o arguido sabia manejar bem a arma - conclui-se sem pejo que o recorrente, quando se preparava para auxiliar o militar da GNR a conduzir o detido, colocou acidentalmente o dedo no gatilho, o que provocou o disparo letal.

B29: E que o recorrente bem sabe ser inviável disparar um tiro certeiro com uma só mão se a arma se encontrar apoiada à cintura - como o acórdão em crise dá provado - já que, com a força de disparo, a arma recua com força, sendo impossível direccionar o seu tiro.

B30: Aliás, tal conclusão resulta, de resto, das regras experiência comum e assalta o espírito de qualquer leitor atento Acórdão em crise...,

B31: O que foi de resto corroborado pelas declarações prestadas pelo perito AG... - declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida do dia 27-09-2010, às 15:29:09 e constantes do Ficheiro nº. 20100927172905 -, quando refere que, quando o disparo é intencional, porque há um apontar da arma, a trajectória do projéctil é de cima para baixo, ao contrário do sucedido nos presentes autos.

B32: Por fim, neste sentido, tende o Relatório de Patologia Forense constante de fls. 834/839 no qual se remata que “Medico-legalmente e só pela autópsia, não é possível efectuar o diagnóstico diferencial seguro entre a natureza homicida ou acidental do disparo”,

B33: Conclusão esta que foi totalmente menosprezada pelo Tribunal recorrido.

B34: Em abono do agora alegado, não pode o recorrente resistir a invocar a declaração de voto de vencida expressada pela jurada MC... que considera que se tratou de disparo acidental e manifesta a opinião de que os pontos 79 a 84 e 87 deveriam ser considerados não provados.

B35: Em conclusão, o ponto 52. dos factos provados foi incorrectamente julgado devendo ser dado como não provado.

B36: No que concerne ao ponto 53. a ser dado como provado deve sê-lo com o seguinte teor: “Estava com a arma municiada, em posição de fogo (rápido) e, acidentalmente colocou o dedo no gatilho”.

B37: Relativamente ao ponto 54, outrossim o mesmo se encontra incorrectamente julgado, devendo ser dado provada a seguinte factualidade: “Acidentalmente accionou o gatilho, correspondendo ao cano inferior da referida espingarda.”

B38: Atentas as alterações aludidas, os pontos 55,79 a 89 deviam ter sido dados como não provados.

B39: Consequência directa do esforço recursivo agora ensaiado e da análise dos meios de prova convocados - e que aqui se dão por reproduzidos - emerge a incorrecção de julgamento no que respeita ao ponto xiii dos factos não provados, o qual deverá ser dada como provado.

B40: Ademais, em face da prova produzida, o tribunal a quo devia ter considerado assentes fatos que se afiguram de extrema importância para a qualificação jurídica do comportamento do recorrente e para a escolha da medida concreta da pena a aplicar-lhe, mas que, ao invés, foram ignorados ou apenas indicados na parte da fundamentação referente aos fatos considerados não provados, reveladores da errada apreciação da prova.

B41: Tal fatualidade é, pois, a seguinte: “O arguido referiu várias vezes aos militares da G.N.R. que o disparo que vitimou JL… e acertou no militar da G.N.R. DB... não foi intencional. O arguido pediu ao sobrinho (ver empregado) para chamar uma ambulância. Nunca passou pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previu a morte como consequência da sua conduta e não se conformou com o desfecho.”.

B42: O Tribunal recorrido devia ter considerado assentes os seguintes fatos: A) O arguido referiu várias vezes aos militares da G.N.R. que o disparo que vitimou JL... e acertou no militar da G.N.R. DB... não foi intencional; B) o arguido pediu ao sobrinho (ver empregado) para chamar uma ambulância; C) Nunca passou pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previu a morte como consequência da sua conduta e não se conformou com o desfecho.”.

B43: Com efeito, tais factos emergem das declarações prestadas pelas testemunhas LM... (declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida do dia 28-09-2010, às 14:17:20 e constantes do Ficheiro nº. 20100928141720), PP... (declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida no dia 28-09-2010, às 15:31:23 e constantes do Ficheiro nº. 20100928153122 e às 15:57:05 e constantes do Ficheiro nº. 2MA0928155705) e JB... (declarações estas gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento decorrida no dia 28-09-2010, às 17:14:50 e constantes do Ficheiro nº. 20100928171444).

B44: Resulta, outrossim, das declarações referidas no ponto anterior, bem como do restante material probatório, que efectivamente “Nunca passou pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previu a morte como consequência da sua conduta e não se conformou com o desfecho” pelo que outrossim deve ser considerado assente.

B45: Face à intrincada e praticamente ininteligível matéria dada como provada no que toca ao crime de homicídio simples e respetiva etiologia verifica-se que o tribunal não fez apelo ao princípio do in dubio pro reo (CRP artigo 32.º, n.º 2) que nessa medida omissiva foi violado B46: pois toda a referida matéria inculca que o tribunal não conseguiu inteligir a forma pela qual ocorreu o decesso - como aliás, está demonstrado no parecer médico-legal junto devendo, pois, o arguido ser absorvido deste crime ou,

B47: a não se entender assim, quando muito condenado pela prática de um crime de homicídio privilegiado a que deverá acrescer, nesta última hipótese a condenação pela prática de um crime de detenção de arma proibida

B48: tudo em montante inferior a cinco anos de prisão e, nessa medida, por não se verificarem circunstancias que o desaconselhem antes pelo contrário suspensa a referida pena na sua execução.

B49: e ainda substancialmente diminuído o montante dos danos não patrimoniais sofridos pelos pais da vítima o qual, para cada um destes, não deve ultrapassar os dez mil euros.

Termos em que o julgamento deverá ser anulado ou, não se entendendo assim, o arguido condenado pelo crime de homicídio privilegiado e de detenção de arma proibida em pena cujo cúmulo deverá ser suspenso na sua execução, ou antes, absolvido do crime de homicídio e substancialmente reduzido o montante indemnizatório fixado a favor de cada um dos demandantes.

            O Ministério Público no Círculo Judicial de Alcobaça respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela manutenção do acórdão impugnado, com a excepção de poder eventualmente proceder quanto à alteração da redacção do facto provado no ponto 21, nos termos da conclusão 59 da resposta. 

O assistente FS... respondeu ao recurso pugnando pela manutenção do douto acórdão recorrido.

A Ex.ma Procuradora-geral adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

            O arguido respondeu ao parecer da Ex.ma P.G.A., concluindo como no recurso.

 

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

      Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva convicção constante do acórdão recorrida é a seguinte:

Factos provados

A1) -  Da acusação

1. No dia  …de 2009, cerca das 2 h 10 m, JL... preparava-se para se introduzir nas instalações dos Armazéns “XX..., S.A.”, sita na IC2, em …, WWW..., através de uma abertura na parede do armazém.

2. Actuava com o objectivo de subtrair e fazer seus todos os objectos de valor que encontrasse, nomeadamente gasóleo que se encontrava no depósito de combustível de veículos pesados aí estacionados, contra vontade da legítima proprietária.

3. O arguido, alertado por seu funcionário VS..., deslocou-se para o local armado com uma espingarda caçadeira, de calibre 12, de dois canos sobrepostos, da marca “FAMARS , com dois canos sobrepostos, calibre 12, fuste e coronha em madeira, de tiro a tiro, de 2 canos, de alma lisa com o comprimento do cano de 708 mm e o comprimento da(s) câmara(s) de 70 mm.

4. A referida arma pesa 3,20 Kg.

5. Esta é uma arma de tiro unitário múltiplo, com um sistema de percussão central e indirecta.

6. O seu mecanismo de disparo são dois percutores e dois gatilhos, correspondendo o primeiro gatilho (anterior) ao cano inferior.

7. Para accionar os referidos gatilhos, é necessário realizar um peso de 2,95 Kg. no primeiro gatilho (anterior) e de 2,82 Kg no segundo gatilho (posterior).

8. É composta por dois canos sobrepostos, basculantes, de alma lisa, com fita de refrigeração, no cano superior.

9. Apresenta choke(s) / diâmetro(s) à boca dos canos de 17,8 mm no cano Inferior e 17,7 mm no cano superior.

10. O seu sistema de segurança é por fecho.

11. Apresenta extractor automático comum a ambas as câmaras (canos) o qual é accionado com o basculamento dos canos.

12. A sua alimentação é manual, por introdução dos cartuchos nas câmaras.

13. A carcaça da arma é metálica, com coronha e fuste em madeira, com chapa de coice em plástico.

14. Apresenta um comprimento total de 1135 mm.

15. O seu aparelho de pontaria é um ponto de mira fixo.

16. A referida arma apresentava-se em boas condições de funcionamento com ausência de qualquer deficiência assinalável que afectasse a realização de disparos em ambos os canos.

17. A arma apenas permite a realização de disparos por acção sobre as teclas dos gatilhos, existindo ausência de libertação involuntária do seu mecanismo de disparo se sujeita a pancada e/ou queda.

18. A referida arma encontra-se na posse do arguido desde 14 de Janeiro de 1983 e registada em seu nome desde 21 de Outubro de 1983, sendo objecto do Livrete de Manifesto de Armas n.º 64622, série G.

19. O arguido havia municiado a referida arma com dois cartuchos de calibre 12, da marca “SPECIAL COMPETITION” e “PULVICHUMBO”, carregados com bagos de chumbo n.º 7 1/2, de plástico de cor vermelho, em boas condições de utilização, deflagráveis à primeira percussão.

20. O arguido ainda transportava consigo, pelo menos, 3 cartuchos de características similares aos acima referidos.

21. Quando o arguido chegou ao local acima referido, já aí se encontravam quatro militares da G.N.R., devidamente uniformizados, que se preparavam para abordar o armazém e tentar a detenção do autor do furto que estava a decorrer, que suspeitavam ainda se encontrar no seu interior.

22. Os referidos militares decidiram separar-se por equipas e circundar o referido armazém.

23. Os militares da G.N.R.  PP... e LM... circundaram o armazém pela direita.

24. O militar da G.N.R. da KX... PS... ficou junto à porta principal.

25. O militar da G.N.R. DB...acompanhado do arguido, circundaram o armazém pela esquerda e desceram um caminho em terra batida paralelo ao armazém.

26. O arguido empunhava a espingarda caçadeira acima referida, municiada com dois cartuchos.

27. Os militares da G.N.R. DB...e PP... alertaram o arguido para não levar a arma de fogo acima referida consigo, mas não o conseguiram demover.

28. O militar da G.N.R. DB...disse ao aqui arguido para ter cuidado com o manuseamento da caçadeira que empunhava e para que não a disparasse.

29. Cerca das 2 h 30 m, a alguns metros de uma abertura vertical então existente na parede do armazém, com altura e largura para um adulto passar, no pinhal próximo de um caminho florestal em terra batida e brita, paralelo, pelo lado esquerdo, aos armazéns da empresa “XX...”, a cerca de 322 metros do IC2, o militar DB...apontou a lanterna para o local e viu um indivíduo a fugir.

30. De imediato gritou "-Alto, G.N.R.!".

31. Junto aos bidões apreendidos, JL... levantou-se e começou a correr para o interior do pinhal.

32. DB... guardou a arma de serviço que empunhava e correu atrás do mesmo.

33. Percorreram alguns metros, tendo realizado um trajecto em meia-lua, no sentido do caminho de terra batida, sempre dentro do pinhal.

34. Depois de percorrer alguns metros, DB... alcançou JL....

35. Sozinho, manietou-o e algemou-o, colocando-lhe os braços atrás das costas.

36. Simultaneamente, durante o momento temporal de perseguição acima referida, o arguido continuou a caminhar e a descer pelo caminho de terra batida.

37. Junto à abertura na parede das instalações da sociedade XX... S.A., acima referida, situada a 22 metros do local onde posteriormente foi encontrado o cadáver de JL..., o arguido procedeu a dois disparos com a acima referida espingarda.

38. Acto contínuo, no interior do armazém, procedeu ao basculamento dos canos comum da espingarda e procedeu à sua alimentação manual, por introdução de um cartucho em cada uma das duas câmaras da arma.

39. O arguido andou mais 38 metros no referido caminho.

40. Após, procedeu à realização de dois disparos com a espingarda.

41. Acto contínuo, procedeu ao basculamento dos canos comum da espingarda e procedeu à sua alimentação manual, por introdução de pelo menos um cartucho de calibre 12, da marca “SPECIAL COMPETITION” e “PULVICHUMBO”, carregado com bagos de chumbo n.º 7 1/2, de plástico de cor vermelho na câmara inferior da arma.

42. Simultaneamente, após algemar JL..., o militar DB...encaminhou-o para o acima referido caminho florestal, agarrando-o pelo braço esquerdo com o seu braço direito.

43. A sua arma de serviço encontrava-se guardada no coldre.

44. Na sua mão esquerda, com o braço levantado, transportava uma lanterna que iluminava o caminho.

45. Andaram cerca de 10 metros.

46. JL... caminhava sem oferecer resistência, meio curvado.

47. O arguido caminhou 60 metros e deslocou-se para o referido militar.

48. No referido local, o arguido perguntou ao militar da G.N.R. quem era o indivíduo.

49. DB...disse-lhe não saber e que deviam continuar a caminhar para junto das viaturas policiais.

50. O arguido inverteu a marcha que trazia e aproximou-se de JL....

51. Empunhava a espingarda, à altura da cintura.

52. Tinha os canos apontados à região axilar/peitoral do lado direito de JL....

53. Estava com a arma municiada, em posição de fogo (rápido) e colocou o dedo no gatilho.

54. Accionou o primeiro gatilho, correspondendo ao cano inferior da referida espingarda.

55. Como consequência directa e necessária, foi realizada a deflagração de um cartucho de calibre 12, da marca “SPECIAL COMPETITION” e “PULVICHUMBO”, carregados com bagos de chumbo n.º 7 1/2, de plástico de cor vermelho.

56. JL... sofreu no seu corpo o impacto da bagada de chumbos, ainda todos concentrados, que lhe foi causa directa e necessária:

    a. Na cabeça, de equimose arroxeada na região supra-ciliar direita, com 3,5 cm x 2 cm; vária escoriações na região frontal esquerda e média, a maior com 2,5 cm x 1 x cm, à esquerda; equimose arroxeada na região malar direita, com 3 cm x 2 cm; escoriações várias, superficiais, circulares, na região sub-mentoneana, com cerca de 4-5 mm de diâmetro; escoriações várias, na mesma região, lineares e paralelas entre si, ligeiramente oblíquas, da direita para a esquerda e ligeiramente de baixo para cima, umas com 2 cm x 0,5 cm e outras com 1 cm x 0,5 cm (lesões por bagos de chumbo); equimose arroxeada, ocupando toda a zona sub-mentoneana, prolongando-se ao pescoço;

    b. No pescoço: zona equimótica, arroxeada, na região anterior do pescoço, com 10 cm x 5 cm; várias pequenas feridas perfurantes, superficiais, com perfuração da pele e tecido celular subcutâneo, sem atingir os planos musculares correspondendo a lesões por bagos de chumbo após embate na grelha costal, com infiltração sanguínea dos músculos esterno-cleido-mastoideus e infiltração sanguínea peri-esofágica ;

    c. No tórax: um orifício de entrada de bagos de chumbo no hemitórax direito, a cerca de 3 cm da linha axilar anterior e 10 cm do mamilo direito, circular, com 2,5 cm de diâmetro, com orla de escoriação e de queimadura, bordos ligeiramente escoriados e invertidos para dentro; orla de negro de queimadura em forma de hemi-circulo direito, com 2 mm de espessura e prolongando-se até à axila, em forma de triângulo, com contornos de equimose arroxeada; duas faixas equimóticas na axila, sobre as quais assentam três zonas de negro de queimadura paralelas entre si, respectivamente com 1,2 cm x 0,2 cm, 1 ,5 cm x 0,2 cm e 1 cm x 0,8 cm, com lesões perfurantes dos planos musculares e grelha costal, com fractura dos arcos médios e anteriores da 1ª ,2ª e 3ª costelas direitas e esquerdas e do manúbrio esternal, com enfisema pulmonar no pulmão direito e lobo superior com vários pequenos orifícios, circulares, superficiais e perfurações do parênquima com infiltrações sanguíneas (trajecto de bagos de chumbo) associado a congestão, mais acentuada no lobo superior do referido pulmão direito e no pulmão esquerdo enfisema pulmonar com o lobo superior com vários pequenos orifícios circulares, superficiais e várias perfurações do parênquima, com infiltrações sanguíneas (trajecto de bagos de chumbo) e congestão mais acentuada do lobo inferior;

    d. No tórax, um orifício de saída de bagos de chumbo, com solução de continuidade na região do manúbrio esternal e paraesternal direita, irregular, bordos rasgados e evertidos, corados de negro de queimadura, com 12 cm de eixo horizontal e 9 cm de eixo vertical, evidenciando destruição de tecidos e costelas; equimose arroxeada, com 22 cm x 17 cm, na região esternal e supra-clavicular

57. A chumbada proveniente do disparo atravessou o corpo de JL..., nos termos acima referidos e atingiu a zona da axila e do braço esquerdo do militar DB....

58. Como consequência directa e necessária do disparo, este sofreu feridas múltiplas com aspecto de dispersão com aspecto compatível com ferimentos produzidos por projécteis de arma de fogo, sendo de dimensões oscilando entre os 3 mm e os 5 mm, arredondadas, mas abundantes nas faces anteriores e internas do membro superior esquerdo e outra da palma da mão esquerda, as maiores com 16 por 3 mm e 16 por 5 mm.

59. Que lhe determinaram um período de doença de dez dias, sendo oito com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

60. A direcção do disparo, foi da direita para a esquerda, ligeiramente de baixo para cima e com ligeira inclinação de lado para a frente, quase tangencial, a uma distância não superior a 50cm da zona do toráx de JL... onde se deu a entrada dos chumbos nos termos acima referidos

61. DB... sentiu calor no seu braço esquerdo e disse ao arguido que este o atingira.

62.O arguido respondeu que caso o tivesse atingido, não seria nada de especial.

63. Após, o arguido transportou a arma na mão direita e com o seu braço esquerdo pegou no braço direito da JL... e auxiliou-o a andar pelo caminho para junto das viaturas policiais.

64. JL... caminhou pelo seu pé, apoiado pelo arguido e pelo militar DB..., cerca de 120 metros.

65. A cerca de 300 metros do IC2, antiga Estrada Nacional 1 e cerca de 14 metros do início do muro JL... desfaleceu e caiu ao chão, primeiro de joelhos e depois em decúbito dorsal.

66. Respirava e gemeu. 

67. Como consequência directa e necessária de lesões traumáticas torácicas acima referidas, JL... morreu.

68. Às 3 h 15 m foi verificado o óbito de JL....

69. A noite apresentava-se escura, com visibilidade reduzida.

70. A única luz existente provinha do foco da lanterna do militar DB....

71. O arguido conhecia JL... desde que o mesmo era jovem.

72. JL... já havia trabalhado na empresa "XX..., S.A.", de que o arguido é administrador, durante cerca de um ano. 

73. Estiveram juntos em ocasiões sociais, porquanto um irmão do falecido esteve casado com uma filha do arguido.

74. O arguido sabia manejar bem a arma.

75. Sabia quais os actos materiais para manter a mesma em segurança, nomeadamente abrindo a mesma e descarregar os referidos cartuchos. 

76. Já exerceu caça com a referida arma.

77. O arguido foi titular da Licença de Uso e Porte de Arma de Caça n.º 147, válida de 11 de Janeiro de 2002 a 10 de Janeiro de 2005.

78. Na data de 16 de Outubro de 2009 o arguido não era titular de qualquer licença de uso e porte de arma de fogo.

79. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de matar JL....

80. Sabia que o falecido se encontrava manietado, algemado e detido por militar da G.N.R. e que existiam outros três militares a tomarem conta da ocorrência.

81. Actuou com o propósito de lhe tirar a vida, com recurso a arma de fogo.

82. Nomeadamente por XX..., S.A. já ter sido objecto de vários furtos em que não se apurou autoria dos mesmos.

83. Quis apontar o cano da arma de fogo à região axilar/peitoral do lado direito de JL..., em zonas onde sabia estarem alojados órgãos vitais do corpo humano, a curta distância do mesmo.

84. Sabia que estava com a arma em posição de fogo, sem a desarmar e com o dedo no gatilho no momento do disparo.

85. Sabia que havia sido intimado a não utilizar a referida arma.

86. Devia ter desarmado e entregue a referido arma a militar da G.N.R.

87. Previu e quis accionar o gatilho da arma que empunhava e em consequência realizar disparo letal contra JL....

88. Agiu subitamente sem que a vítima se pudesse defender, perfeitamente indiferente à presença de quem quer que fosse, nomeadamente de militares da GNR.

89. Não contou com a presença próxima do militar DB..., estando obrigado e sendo capaz de a constatar, descurando que, atenta a proximidade, poderia atingir o corpo do mesmo.

90. Bem sabia que DB... era militar da G.N.R., no exercício das suas funções, devidamente uniformizado.

91. Sabia que não podia deter aquela arma de fogo sem licença e que a licença de que era titular já havia caducado na data acima referida.

92. Bem sabia que deveria ter diligenciado pelo respectivo licenciamento junto da respectiva autoridade policial, tinha capacidade para o ter feito e não o fez.

93. Tinha capacidade de determinação segundo as prescrições legais.

A2) – Da contestação

94. O arguido é administrador da empresa de armazém e venda de materiais de construção que gira sob a firma “ARMAZÉNS XX..., MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, S.A.” a qual é proprietária de um stand de venda ao público e de um armazém sito no concelho de WWW..., do lado esquerdo da Estrada Nacional nº 1, para quem segue no sentido Norte/Sul.

95. De há uns tempos atrasadamente à data da ocorrência a que se referem os autos, o dito estabelecimento (sobretudo na sua parte de armazém), foi alvo de sucessivos assaltos, ocorridos durante a noite, por força dos quais, quem os praticava se apropriava ilegitimamente e contra a vontade da proprietária XX..., de diversas coisas móveis e em especial do combustível (gasolina, gasóleo) ali existente, quer em recipientes próprios, quer nos depósitos dos veículos pesados de tal firma, que ali recolhiam durante a noite.

96. Só no período de mais ou menos um mês antes dos acontecimentos a que se reportam os autos, a mesma foi alvo de pelo menos quatro assaltos durante a noite, dos quais deu conta às autoridades competentes (GNR de WWW...).

97. Atenta esta factualidade, a XX... entendeu mandar reforçar a vedação do seu logradouro mediante o alteamento do muro já existente, o que foi feito pouco antes da fatídica noite.

98. Muro este em tijolo, ferro e cimento com a extensão de cerca de 70 metros e a altura de cerca de 4 metros, tendo ainda mandado instalar um sistema de segurança electrónico, que só foi colocado após os factos dos autos.

99. Na ocasião a que se reportam os autos, esse muro tinha um buraco para colocação de um pilar, do lado esquerdo tendo em conta a situação do edifício principal, virado para a antiga Estrada Nacional nº 1, tendo sido pelo mesmo que alguém se introduziu no espaço traseiro (logradouro) da empresa na noite a que se reportam os autos, e onde recolhiam, a céu aberto, as viaturas pesadas

100. Na noite em questão, a vítima fazia-se deslocar no veículo marca Opel, modelo Corsa, de cor azul, matrícula …, que se encontrava junto ao local da ocorrência – no interior de um pinhal adjacente – que foi apreendida e de que era proprietária ou lhe foi emprestado.

101. No exterior encontravam-se seis bidons para transporte de líquidos, ainda vazios, além de mangueiras.

102. No interior das instalações, várias das viaturas pesadas tinham os depósitos de combustível violados,

103. No interior da viatura Opel já referida encontravam-se maços de tabaco de enrolar e um isqueiro.

104. A vítima era toxicodependente de longa data.

105. Nas análises ao sangue recolhido da vítima foi detectada a existência de vestígios de morfina.

106. O arguido é um “self made man”, que conseguiu angariar apreciáveis meios de fortuna à custa do seu esforço pessoal desde a juventude.

107. Trata-se de pessoa (empresário) muito respeitada e acreditada ao nível local, bem como noutras localidades, como KX..., ..., ..., ....

       A3) – Outros factos provados

Mais se provou que:

108. O arguido é administrador da empresa XX..., S.A. e de outras empresas.

109. É dono de três prédios urbanos, que deu de arrendamento a terceiros.

110. Em 2008 e em 2009 teve rendimentos líquidos de € 53.108,26 e de € 58.703,86, respectivamente.

111. Goza de grande estima entre a generalidade das pessoas, contribuindo com frequência para colectividades e associações e ajudando algumas pessoas com dificuldades.

112. Possui uma personalidade de estrutura equilibrada, assente em traços de estabilidade emocional, revelando propensão para agir com pouca ansiedade.

113. Não tem antecedentes criminais.

A4) – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

114.Os factos provados da acusação.

115.O demandado é proprietário de imóveis e utiliza veículos de luxo.

116.Uma filha do demandado foi casada com um filho dos demandantes, irmão da vítima.

117.Viviam em aldeias próximas, convivendo, tendo a demandante Maria, uma filha desta e a vítima, sido funcionários da XX..., havendo relações pessoais e de amizade.

118.O demandado conhecia a vítima.

119.Os factos foram comentados na região e publicados na imprensa.

120.A vítima é filho dos demandantes, seus únicos herdeiros, tinha 42 anos e era divorciado.

121.Encontrava-se desempregado,

122. tendo antes a profissão de carpinteiro.

123. Vivia num anexo, junto da casa dos pais.

124. A sua morte causou profunda tristeza nos demandantes.

125. Entre o momento dos disparos e a sua morte passaram alguns minutos.

126. Teve de caminhar amparado,

127. tempo este em que padeceu fortes dores, com dificuldade em respirar.

128. Com plena consciência da gravidade dos ferimentos,

129. E da iminente morte.

130. O demandante FS...encontra-se reformado.

131. A demandante Maria era, à data dos factos, funcionária da empresa XX..., onde não voltou a trabalhar após a baixa.

132. A vítima exercera, antes de se encontrar desempregada, a profissão de carpinteiro.

133. Os demandantes despenderam, com o funeral do filho, quantia não apurada.

              A5) – Da contestação ao pedido de indemnização

134. Foram a demandante LS...e a filha RR..., quem, por sua vontade, puseram fim à relação laboral que mantinham com a empresa XX..., em 10 de Maio de 2010, posteriormente à dedução do pedido de indemnização civil.

135. A vítima trabalhara para a XX... até data que se situa há mais de 10 anos, dependendo directamente do irmão, ao tempo genro do demandado.

136. Há já vários anos que não trabalhava, sobrevivendo do que a mãe lhe dava.

A) FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram todos os demais factos [sendo que ao Tribunal, nesta sede, só compete ajuizar factos, e não juízos de valor jurídico ou conclusões – e que por isso não serão aqui indicados, devendo considerar-se terem essa natureza] que se não compaginam com a factualidade apurada, designadamente e no essencial que:

B1) – Da acusação

(i) JL... introduziu-se nas instalações dos Armazéns XX..., S.A.)

(ii) Actuava sozinho.

(iii) O arguido transportasse consigo, pelo menos, 4 cartuchos similares.

(iv) Fosse atendendo à urgência da situação que os militares da GNR não o conseguiram demover.

(v) Tenha sido introduzido um cartucho em cada uma das câmaras da arma.

(vi) DB... transportasse a lanterna com o braço estendido.

(vii) JL... caminhasse quieto, calado e cabisbaixo.

(viii) O arguido não tivesse proferido palavra alguma.

(ix) O arguido empunhasse a espingarda com ambas as duas mãos.

(x) Antes já estivesse com o dedo no gatilho.

(xi) Após, o arguido passasse a arma para a mão direita.

(xii) JL... caminhasse sem nada dizer.

(xiii) DB... tivesse retirado a espingarda ao arguido e aberto a mesma.

(xiv) O arguido tivesse actuado com insensibilidade, indiferença e profundo desprezo pelo valor da vida humana.

(xv) Nomeadamente pela situação particularmente indefesa da vítima, deixando-se motivar pela vingança e putativa defesa da sua propriedade.

(xvi) O arguido cumprisse um desígnio já anunciado que o fez munir-se de arma adequada ao efeito pretendido e sair de casa com a espingarda e munições suficientes.

(xvii) O arguido tivesse configurado como possível, atento o ângulo do disparo e a proximidade do militar DB..., que os bagos de chumbo provenientes do cartucho deflagrado com disparo atingissem o corpo deste e por isso se tenha conformado com essa realização.

 B2) – Da contestação

(xviii) Nunca passasse pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previsse a morte como consequência da sua conduta e não se tenha conformado com o desfecho.

(xix) Tivesse sido mandado instalado um sistema de segurança electrónico junto ao muro de vedação, à data dos factos.

(xx) Na ocasião a que se reportam os autos o muro tenha sido devassado por alguém que tivesse destruído a cofragem do mesmo e aberto um buraco.

(xxi) Alguém já tivesse conseguido encher diversos “jerricans” com gasóleo retirado das viaturas pesadas estacionadas.

(xxii) Fossem sete os bidons ainda vazios que se encontravam no exterior.

(xxiii) As chaves de fendas se encontrassem no interior das instalações da XX....

(xxiv) Houvesse mais do que um isqueiro no interior do veículo Opel Corsa.

(xxv) Fossem oito os veículos com os depósitos de combustível violados.

(xxvi) O combustível que viesse eventualmente a ser furtado se destinasse a revenda e a posterior aquisição de estupefacientes.

B3) – Do pedido de indemnização civil

(xxvii)  Factos dados como não provados da acusação.

(xxviii)  O arguido seja pessoa de grandes recursos económicos, seja o principal accionista da sociedade XX... e que esta seja patrocinadora do futebol da ....

(xxix) O arguido seja proprietário de veículos de luxo.

(xxx) Tivesse qualquer relação de parentesco com os demandantes.

(xxxi) O arguido privasse com a vítima.

(xxxii ) Na altura dos factos constatasse quem era a vítima.

(xxxiii) À data dos factos a vítima tivesse 46 anos e fosse solteiro.

(xxxiv) Na profissão de carpinteiro tivesse auferido 1.200,00€ mensais.

(xxxv) Fosse homem forte e robusto, activo e com alegria de viver, socialmente considerado e respeitado.

(xxxvi) Vivesse na mesma casa com os pais e fosse um conforto para estes.

(xxxvii) Ajudasse na lida doméstica e contribuísse para as despesas familiares.

(xxxviii) Tivesse uma esperança de vida de 29 anos ou superior.

(xxxix) Fosse carinhoso, amigo dos pais e outros familiares e fosse um elo forte na alegria do lar e família.

(xl) Com a morte os pais tenham entrado em depressão e se tenham socorrido de apoio a nível psicológico.

(xli) O demandante FS… tenha 70 anos e aufira de reforma 200€.

(xlii) A demandante LS...tenha 66 anos de idade.

(xliii) Não recebesse da segurança social.

(xliv) A vítima tivesse também tido a profissão de serralheiro e nela auferisse 1200 euros mensais.

(xlv) A vítima entregasse todos os meses aos pais 500 euros ou qualquer outra quantia, para ajuda das despesas domésticas.

(xlvi) A vítima auxiliasse no quotidiano e os demandantes contassem com esses apoios.

(xlvii) Os demandantes tivessem, sem o apoio da vítima, de frequentar lares ou ajuda de terceiros e os lares custem mais de 1200 euros por mês e por pessoa.

(xlviii) Os demandantes contassem com a vítima para ter a velhice assegurada e por falta da mesma vivam numa situação difícil.

(xlix ) Os demandantes tenham despendido 1000 euros com o funeral da vítima.

        B4) – Da contestação ao pedido de indemnização

(l)  O demandado conhecesse a vítima apenas muito superficialmente e não tivesse fixado as suas feições.

          C)  Motivação de facto

A convicção do Tribunal alicerçou-se na inteligibilidade e análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente na prova de natureza pericial e demais prova documental existente nos autos e nos depoimentos das testemunhas.

O nosso sistema processual em sede probatória acolheu o sistema da prova livre ou livre convicção do julgador, o que de modo algum significa arbitrariedade mas antes “uma liberdade de acordo com um dever (…) de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (Castanheira Neves, Sumários de processo Criminal, Coimbra, João Abrantes, 1968, pág. 50), como decorre do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal. Este princípio da livre convicção do julgador é aplicável não só quanto à prova produzida oralmente em audiência, proveniente do arguido, dos assistentes, das partes civis e das testemunhas, mas também quanto à apreciação da prova documental, com excepção dos documentos autênticos, em que se aplica o critério legal plasmado no artigo 169º do Código de Processo Penal e a prova pericial, como decorre do nº 1 do artigo 163º do mesmo diploma legal.

No caso vertente o arguido não prestou declarações (aliás no uso de um direito que lhe assiste (artigo 343º, nº 1 do Código de Processo Penal), senão para dizer que não tinha matado…que tinha sido um acidente (declarações finais).

Vejamos pois as restantes provas produzidas, por referência aos factos provados e não provados nos termos apurados e acima devidamente transcritos.

Quanto aos documentos constantes dos autos relevou de forma importante o auto de exame directo à arma, constante de fls. 60, bem como o relatório pericial à mesma respeitante, constante de fls. 863/872 (em especial fls. 865), no que concerne aos factos provados 3 (a partir de “espingarda”) a 17. Com referência também à arma, no que tange à posse da mesma pelo arguido, foi determinante o Livrete de  Manifesto de Arma inserido no envelope de fls. 11, e do qual consta o nº do Livrete, a série e a data mencionados no facto 18.

Dos factos referidos deve reter-se em especial e para já, que para accionar os gatilhos da arma (em número de 2, o anterior e o posterior) é necessário realizar um peso de 2,95Kg no gatilho anterior (que corresponde ao cano inferior), sendo apenas por acção sobre os gatilhos que é possível disparar a arma (não disparando se sujeita a pancada ou queda), que a arma tem de comprimento 1 metro e 135 mm e o peso de 3,20 Kg., encontrando-se em boas condições de funcionamento (sem deficiência susceptível de afectar a realização dos disparos). A sua alimentação é manual, por introdução dos cartuchos nas câmaras, apresentando extractor automático, accionado com o basculamento dos canos. É de 2 canos sobrepostos, com o comprimento de cano de 708mm.

Quanto às características dos cartuchos encontrados no local, conforme resulta da informação de serviço da PJ de fls. 27/30, auto de apreensão de fls. 31, fotos de fls.41/43 e 46, bem como do Relato de Diligência Externa da PJ de fls. 199/205,incluindo o croquis anexo a este, (elementos que adiante serão analisados com mais pormenor), relevou a perícia de fls.863/872 (em especial fls. 866), deste modo se justificando a prova dos factos 19 e 26, já que o arguido disparou, pouco depois, 2 tiros, ainda na parte interior do muro de vedação e junto da abertura que este apresentava.

No que respeita aos factos 56, 57 (1ª parte) 60, 67 e 68 foi determinante o relatório de patologia forense (autópsia) de fls. 834/840, de onde consta também ter a vítima acusado a presença de morfina no sangue, bem como o documento do INEM de fls. 12, tendo relevado, no que concerne aos factos 57 (2ª parte), 58, 59 e  a perícia de avaliação do Dano Corporal de fls. 317/319.

Quanto aos vestígios e objectos encontrados no local, o Tribunal de Júri fundou-se nos autos de apreensão de fls. 10 (que contém indicação do local onde os mesmos foram encontrados e respeitam aos bidons – em número de 6 e não 7 – às mangueiras, e à viatura Opel de matrícula …), 31 (que reportam aos cartuchos deflagrados e chaves de fendas, com menção do local onde se situavam), 59 (3 bagos de chumbo retirados do braço esquerdo de DB...), e 63 (pólo que o arguido vestia), complementados com as fotos de fls. 91, 92, 41/43 e 46/51.

Para além destes vestígios, foram localizados vestígios de sangue (hemáticos) constantes das fotos de fls. 44, 45 e 47, que se veio a comprovar pertencerem à vítima, conforme consta do relatório pericial de fls. 882/884.

Após o 1º interrogatório do arguido foi entretanto recolhido, no muro que vedava a propriedade da XX..., e a cerca de 120 metros do local onde ficou prostrado o corpo da vítima, um vestígio de importância crucial para a prova dos factos, por permitir estabelecer, sem margem para dúvidas, o local onde se verificou o disparo fatal: Trata-se de um impacto de chumbada no referido muro, com chumbos próprios de arma de caça, cuja dispersão revela ter sido proveniente de disparo desferido a curta distância, na direcção de trás para a frente (no sentido do muro), e sensivelmente de baixo para cima. Acontece ainda que no local do impacto foi detectada uma grande projecção de vestígios biológicos (sangue), tudo conforme consta do Relato de Diligência Externa da PJ (com fotos) de fls.199/202, de cuja análise resultou a prova de que tais vestígios biológicos pertenciam à vítima JL.... Deste Relato, devidamente confirmado pelo seu autor (inspector NV…) consta ainda ter sido detectado um silvado que denotava ter sido recentemente “espezinhado”, podendo ser indicador da local por onde a vítima e o agente DB... terão saído do interior do pinhal.

Estes dados contribuíram também, de forma decisiva, para a convicção do Tribunal no que respeita à generalidade dos factos respeitantes ao elemento subjectivo do crime (como adiante melhor se explicitará) e reforçou a prova da 1ª parte do facto 57, aliás já decorrentes do Relatório da Autópsia já referido.

Todos os vestígios mencionados foram devidamente classificados pelo inspector NV..., a fls. 205, tendo o mesmo elaborado, a partir dos mesmos, o croquis aí anexo, de onde resulta a localização dos vestígios e, com base nesta localização, o itinerário percorrido pelo agente da GNR DB... e pelo arguido, bem como destes já com a vítima JL…, e que foi devidamente explicado pelo seu autor (NV...) no seu depoimento.

Assim, a localização das chaves de fendas constitui os vestígios nºs 1 (junto ao cadáver), 7 (local próximo daquele em que se verificou a detenção da vítima pelo agente da GNR) e 9 (próximo da entrada aberta no muro); o vestígio nº 2 é constituído por apenas um cartucho deflagrado encontrado a 2 metros do cadáver, enquanto os vestígios 3 e 5 representam, cada um deles, 2 cartuchos deflagrados, os primeiros localizados no interior da XX..., junto da entrada aberta no muro e os segundos no caminho, a 60 metros do local onde se verificou o disparo fatal. Por se tratar de dois conjuntos de 2 cartuchos, estes vieram, aquando da perícia de balística de fls. 863/862 a ser subdivididos em vestígios 3A e 3B e 5ª e 5B.

Os vestígios de natureza hemática foram classificados com os nºs 4(grande mancha, a 47 metros do local onde se encontrava o cadáver), 6 (a 20 metros do local onde se verificou o disparo fatal) e 11(no muro, no próprio local do disparo fatal). O vestígio nº 12 é constituído pelos indícios de impactação dos chumbos no muro, compatíveis com os vestígios hemáticos classificados sob o nº 11 e o vestígio nº 8 é constituído por uma bucha, parte integrante de um cartucho de calibre 12, encontrada a 12 metros do local do disparo fatal.

Por seu turno, os locais de referência foram classificados com as letras A a C, sendo A o local onde se encontravam os bidons plásticos, B onde terá sido efectuada a abordagem e detenção da vítima pelo agente da GNR DB... e C o local onde teve lugar o disparo fatal.

Com a letra D foi assinalada a trajectória do disparo fatal, de trás para a frente no sentido do (para o) muro onde se encontravam os vestígios hemáticos e de impactação de bagos de chumbo.

Da perícia de balística de fls. 863/872 resulta que o cartucho encontrado perto do cadáver (vestígio nº 2), foi disparado pelo cano inferior da arma examinada nos autos, o mesmo sucedendo relativamente a dois dos cartuchos que constituem os vestígios 3 e 5 (3B e 5B), tendo-se estabelecido a probabilidade de que os outros dois que conjuntamente com estes foram encontrados (3A e 5ª), tenham sido disparados pelo cano superior da arma. De notar que o cartucho identificado como vestígio nº 2, encontrado perto da cadáver da vítima, foi o correspondente ao tiro fatal, só tendo sido ejectado no local onde a vítima ficou prostrada pelo facto de, logo após o tiro, o arguido ter de imediato passado a apoiar a vítima segurando-lhe no seu braço direito, não tendo no local do disparo ejectado o cartucho (nenhum cartucho aí se encontrava).

Do que ficou explanado resulta com clareza a prova do facto 20, pois foram deflagrados 5 cartuchos no total (os que foram encontrados) e se a arma tinha colocados 2, restavam outros 3 (dois que vieram a ser deflagrados ainda na ausência da vítima e o tiro fatal. Daí que, pelo menos (não se exclui que pudessem ser 4, mas a verdade é que não foi feita prova sequer sobre quem efectuou o basculamento dos canos após o disparo fatal) os cartuchos ainda em poder do arguido fossem em número de 3.

E do mesmo modo se encontram justificados os factos 37,38, 40 e 41 (este último pelas razões apontadas a propósito do facto 20, e tendo em conta que da perícia de balística de fls. 863/872 resulta que o cartucho encontrado isolado, perto do cadáver, foi disparado do cano inferior da arma.

Ao nível documental, foram ainda relevantes os autos de exame directo aos bidons, mangueiras e chaves de fendas de fls. 876 e ao veículo Opel VJ-26-87 de fls. 878 e fotos de fls. 879/880.

De notar que deste veículo foram retiradas pontas de cigarro as quais se mostrou, nos termos da perícia de fls. 882/884 terem sido usadas pela vítima JL..., o que mostra ter sido o veículo usado para o transporte dos bidons, por parte da vítima (os bidons podiam ser todos transportados naquele veículo como se alcança da foto de fls. 195 (podendo ver-se um isqueiro junto à alavanca de velocidades e tabaco de enrolar em cima do banco do lado oposto ao condutor (factos provados 100 e 103). De resto, a possibilidade de o veículo comportar todos os bidons decorre também do Relato de Diligência Externa de fls. 490/491. Deste elemento de prova e do anteriormente mencionado resulta que o veículo apenas pela vítima JL... foi utilizada, o que não significa que tenha sido apenas ele que pretendeu efectuar o furto de gasóleo nas instalações da XX..., atento o facto de terem sido encontradas 3 chaves de fendas, que indicam a possibilidade de participação de outros indivíduos. Como igualmente não pode desde logo ter-se como certo que a vítima já se tivesse introduzido nas instalações da XX..., pois os bidons e as mangueiras ainda se encontravam no pinhal, perto da viatura. E daí a prova relativa dos factos 1 e 2, pois não se apurou de forma cabal que JL... Silva actuasse sozinho no que ao furto se refere, embora seja indiscutível que se preparava para o realizar.

Quanto aos factos 74 a 77 foi determinante a licença de uso e porte que se encontra no interior do envelope de fls. 11, da qual consta a sua validade até 10 de Janeiro de 2005 (e não 1/1/2005), o que bem revela que o arguido já fora caçador e nessa qualidade não podia deixar de saber manejar a arma, a qual no dia a que se reportam os autos até disparara antes do tiro fatal, por quatro vezes, tendo procedido portanto também ao seu recarregamento.

Foram relevantes para a prova dos factos 94 e 107 os documentos de fls.255, 287, 299, 306 e 309.

No que aos factos 95, 96 e 97 (2ª parte) concerne, foram relevantes os documentos juntos em contestação pelo arguido a fls. 1222/1242.

Quanto à personalidade do arguido, e concretamente no que concerne ao facto 111, relevou o relatório de observação psicológica de fls. 991/996.

No que respeita aos antecedentes criminais (facto 112), o CRC de fls. 1505.

Relevou também a certidão de nascimento da vítima, constante de fls.100, da qual resulta que a mesma tinha 42 (e não 46) anos de idade à data dos factos e era divorciada (e não solteira, como se afirma no pedido de indemnização civil).

Quanto aos rendimentos do arguido (factos 108 e 109) baseou-se o Tribunal de Júri nos documentos (declarações de IRS) juntos pelo arguido em audiência, constantes de fls.1479/1491.

Importa ainda referir os documentos de fls. 1386/1394, no que se refere ao facto 133 (contestação do pedido de indemnização civil e o documento de fls. 1433, do qual resulta que a vítima só esporadicamente trabalhava desde 2004, auferindo sempre menos de 400 euros, não havendo indicação de que tenha trabalhado posteriormente a Julho de 2006 (factos 120, 121 e 135).

Do que já foi referido resulta já a prova dos factos 101,102 e 104 (da contestação), 114 (1ª parte), e 119 e 131 (pedido de indemnização civil).

Analisada a prova documental e pericial, vejamos agora a prova testemunhal produzida, eventualmente em conjugação com as referidas.

O inspector da PJ NV... depôs de forma circunstanciada e rigorosa, demonstrado ter desenvolvido um criterioso trabalho de investigação ao elaborar a lista de vestígios e o croquis de fls. 205, tendo em audiência explicado de forma clarividente as razões encontradas para elaborar tais documentos, com base nos vestígios recolhidos, dessa forma tendo estabelecido os percursos percorridos, primeiro pela vítima e o agente da GNR DB... (após este ter efectuado a detenção e o algemamento, concomitantemente o percurso do arguido e as acções desenvolvidas (disparo de dois tiros, novo disparo de dois tiros, cruzamento com a dupla formada pelo agente da GNR e a vítima, retrocesso e novo encontro, perto do local onde teve lugar o disparo fatal, disparo, início e continuação do percurso em direcção à entrada principal da XX... com passagem na abertura do muro, queda e prostração da vítima.

Quanto à forma como o disparo foi efectuado, esta testemunha sustentou que o mesmo terá sido efectuado empunhando a arma com ambas as mãos, à altura da cintura, dessa forma se explicando o ângulo de tiro que foi apurado, atento o local atingido (axila direita da vítima). E sem dúvida o disparo teve de ser efectuado com a arma nessa posição, embora não necessariamente empunhando a arma com ambas as mãos, podendo sê-lo apenas com uma, e sendo certo, também neste caso, que atento o peso dos canos, o centro de gravidade da arma se situava à frente (no sentido do terminus dos canos) do local onde se encontram os gatilhos, circunstância esta que exigiria um esforço de levantamento, por forma a ficar em posição ligeiramente de baixo para cima, e seria também reveladora da intenção de desferir o disparo orientadamente para um determinado ponto (axila da vítima). Em qualquer dos casos estaria afastada a hipótese de disparo acidental, atento o direccionamento intencional necessário e o facto de ser necessária uma pressão de quase 3 Kgs no gatilho para que o disparo se verifique.

Desta forma se justificam os factos provados 36, 39, 42 (no segmento “encaminhou-o para o referido caminho florestal”, 45, 47, 50, 51, 52, 53, 54, 55 e 65

A testemunha DB..., o agente da GNR que deteve a vítima relatou a forma como a sua patrulha teve conhecimento de um “assalto” que estaria a acontecer na XX... (comunicação via rádio), tendo-se deslocado para o local juntamente com o colega  e onde já encontrou, à chegada, a patrulha do Posto da GNR de WWW..., acompanhada de um senhor que agora sabe ser o arguido (não o conhecia então). Falavam entre eles, dizendo que os indivíduos (assaltantes) ainda deviam encontrar-se lá dentro. Na altura, não reparou que o arguido tinha uma arma na mão. Foi decidido que a sua patrulha contornaria a XX... pelo lado esquerdo e a outra patrulha pelo lado direito. No entanto, o arguido veio atrás da sua patrulha, e quando chegou perto do colega D... é que a testemunha viu que trazia a arma, tendo-lhe então dito que pusesse a arma em segurança e não a disparasse, ao que o arguido respondeu que não se preocupassem. Um pouco mais adiante o seu colega D... ficou junto a um portão (o arguido dissera que os indivíduos podiam sair por ali), tendo o arguido seguido consigo, para lhe mostrar o local por onde os indivíduos poderiam ter entrado. Seguiram por uma estrada em terra batida, havendo, a certa altura, uma curva para a direita (v. croquis, ponto A). A seguir, um pouco mais abaixo, estava a parede aberta, aparentemente por lá irem construir um pilar. Ele e o arguido entraram nesse “buraco”, não tendo visto quem quer que seja. Mas quando saíram, apercebeu-se de qualquer coisa, provavelmente um barulho, tendo dito ao arguido para ficar ali naquela entrada enquanto ia ver o que se passava. Na altura levava a sua arma na mão direita e a lanterna na mão esquerda. Apontou a lanterna a cerca de 10 metros do local em que se encontrava (estava escuro, mas viam-se vultos), internou-se no pinhal e passou a lanterna em redor, tendo então visto uns bidons. Logo de seguida viu um eucalipto a abanar mais do que o normal, e até pensou que fosse um animal, quando verificou um indivíduo deitado. Gritou “Alto, GNR”, tendo-se o indivíduo levantado e ido para o lado oposto àquele em que se encontrava, correndo. Foi no seu encalço com a arma, sem disparar, acompanhando a fuga com a lanterna. Nessa altura ouviu 3 ou 4 disparos, que supôs serem de caçadeira, atrás de si. Continuou a perseguição, tendo o indivíduo que fugia feito uma meia lua para ir ter outra vez ao caminho. Como o indivíduo não aparentava estar armado, guardou a sua arma para melhor o poder perseguir. O indivíduo tropeçou numas silvas e caiu de barriga para baixo, tendo-se deitado por cima dele e conseguido colocar-lhe as algemas. Voltou ao caminho, começando a caminhar em direcção aos colegas. Quando já estava no caminho, apareceu o arguido, que perguntou quem era o indivíduo, ao que respondeu que isso não interessava, e era melhor irem para cima. Entretanto, ficou com a ideia de que o arguido se colocou do lado direito da vítima, tendo pensado que seria para a ajudar, não tendo reparado se nessa altura o arguido estava armado. Desconhece se o arguido reconheceu a vítima. Passados uns metros foi surpreendido por um disparo vindo do lado direito, tendo a testemunha dito: “acertaste-me”, ao que o arguido respondeu que aquilo não havia de ser nada. Não lhe perguntou porque disparou, tendo caminhado, sendo certo que naquela altura pensou que só ele é que tinha sido atingido, sendo certo que havia um muro à sua esquerda. A vítima não gemia, pelo que não sabia que estava ferida. Chamou, pela rádio, uma ambulância para ele (testemunha), pois havia sentido um calor na mão e no braço. Entretanto apareceu um veículo, com as luzes ligadas, não tendo, mesmo nessa altura, reparado que a vítima havia sido atingida. Depois a viatura deu a volta, e foi então que reparou na vítima ferida, tendo pedido ao arguido que lhe desse a arma, o que ele fez. Mas não se recorda se a arma estava aberta. Entregou-a a um dos colegas, não recorda qual. Na altura do disparo, e posteriormente, o arguido não lhe disse que tinha disparado sem querer, ou por querer. Também não perguntou ao arguido quantos cartuchos tinha, nem o revistou, não sabendo se algum colega o fez. Ficou com a ideia de que o arguido não fez de propósito ao atingi-lo a ele. Depois disto, não voltou a falar com o arguido.

Este depoimento, inicialmente tão circunstanciado, passa a ser extremamente lacunar a partir do momento em que a testemunha e a vítima encontram o arguido. E de modo algum se mostra credível no que respeita ao facto de a testemunha ter afirmado não se ter apercebido que a vítima tinha sido atingida. Basta atentar nas fotos de fls. 38 e no tipo de ferimentos de que a vítima era portadora para logo constatar a inveracidade dessa afirmação, desde logo porque o impacto do tiro teria necessariamente projectado a vítima contra a testemunha de forma violenta, mas ainda porque a respiração da vítima ao continuar a caminhar não poderia deixar de transparecer o estado dilacerado dos pulmões, e as dores forçosamente implicariam que a vítima gemesse, como aliás foi referido pela testemunha VS... (que disse ter visto passar a vítima, ladeada pelo arguido do lado esquerdo e pelo agente da GNR do lado direito, no local da entrada do muro onde então se encontrava, e também pela testemunha JB..., aliás sobrinho do arguido (e que conduzia a viatura que se cruzou com a vítima, que referiu ouvirem-se os gemidos da vítima à distância de uns 30 metros.

Também se não compreende como diz não recordar se a arma estava aberta ou o colega a quem a entregou, tratando-se de factos importantes e ocorridos (na altura do depoimento) há menos de um ano…

De qualquer modo, o depoimento desta testemunha foi determinante para a prova dos factos 21 a 26, 27 (juntamente com o depoimento da testemunha PP..., também agente da GNR), 28 a 35, 42 a 49, 57 (2ª parte) a 62 e 64.

O agente LM... confirmou o relato inicial de DB..., reiterando ter sido dito ao arguido para não utilizar a arma, tendo o mesmo respondido que não se preocupassem. Também ouviu vários tiros, sabendo que não eram provenientes das armas policiais. Referiu ainda que a vítima ainda estava viva quando chegou perto dele e não sabe explicar a razão pela qual o seu colega DB... não terá perguntado ao arguido o motivo e a forma do disparo que este dera na vítima. Mas o arguido dizia que tinha sido um acidente. O INEM esteve a assistir a vítima, que se contorcia com dores, tendo-lhe administrado qualquer coisa, não sabe o quê. A vítima estava então ainda algemada, não sabendo quem a desalgemou.

VS…, já mencionado, que era empregado da XX..., confirmou ter sido ele quem ligou para o filho do patrão (arguido), pois encontrava-se a dormir dentro de um camião, a pedido do arguido, dada a vaga de assaltos de que estava a ser vítima a XX.... Ouviu barulhos, e por isso comunicou ao filho do patrão, que terá comunicado às autoridades (facto 3, 1ª parte)

O buraco que estava nas obras era por causa da colocação de um pilar (facto 99), sendo certo que o muro havia sido alteado por causa dos assaltos (factos 97 e 98)

Passado algum tempo ouviu o patrão gritar pelo seu nome e logo 2 tiros de seguida. Depois mais dois tiros. Passado algum tempo veio ao buraco do muro, tendo então visto passar o patrão e o GNR a agarrar o rapaz (vítima), o primeiro do lado direito e o segundo do lado esquerdo deste. O patrão levava a arma na mão direita (facto 63) e segurava o rapaz com a mão esquerda. Ouvia a respiração arfante do rapaz, que ia muito mal, tendo também ouvido o GNR a queixar-se de que tinha sangue num braço, e a pedir-lhe para chamar uma ambulância. Na altura a vítima não dizia nada e seguia curvada e algemada e o GNR levava uma lanterna com o braço esquerdo levantado (facto 44). Também esteve lá uma carrinha conduzida pelo sobrinho do arguido, JB..., a qual iluminou o local.

PP…, também agente da GNR, confirmou as circunstâncias em que para o local se dirigiu referindo que quando chegaram perto dele o arguido dizia que tinha sido sem intenção que disparara. Foi a testemunha que deteve o arguido, tendo-lhe a arma sido entregue pelo seu camarada Monteiro, mas não recordando se estava aberta ou fechada. Não se recorda se a vítima estava ainda algemada.

Este depoimento não deixa também de ser curioso, pela falta de memória também demonstrada no que respeita ao facto de a arma estar ou não aberta, facto que seria importante para determinar que o basculamento do cartucho deflagrado ocorrera perto do local onde se encontrava o cadáver (pois foi aí que o mesmo foi encontrado)

Destes depoimentos resulta também a prova dos factos 69 e 70.

PS…, agente da GNR que inicialmente seguiu com o colega DB... e com o arguido, confirmou ter ficado junto a um portão.

Ouviu tiros, e por isso ligou para o colega DB... a perguntar o que se passava, ao que o mesmo respondeu que o arguido tinha acertado num indivíduo e que ainda tinha acertado nele. E efectivamente, mais tarde viu o DB... a sangrar do braço.

JB..., sobrinho do arguido, disse ter-se dirigido ao local numa viatura e ter visto o patrão, um GNR e um terceiro indivíduo, este meio arrastado, apoiado pelos outros dois, um de cada lado. O GNR trazia uma lanterna, com o braço levantado (facto 44). Viu também o VS..., perto da abertura do muro. Confirmou que de certeza o arguido conhecia a vítima, pois trabalhara lá na XX... (factos 71 e 72).

Os factos 71 e 72, bem como o facto 73, foram confirmados também pela testemunha NZ..., irmão da vítima, qu foi casado com uma filha do arguido, o qual não teve dúvidas em afirmar que a vítima era bem conhecida pelo arguido, tendo ido a festas de convívio quando ele estava casado com a filha, além de que o irmão trabalhara cerca de um ano na XX..., na sua dependência, já há bastantes anos. Desta forma ficam justificados também os factos 115, 116, 117  e 134.

Que os factos foram comentados na região resulta das regras da experiência e dos depoimentos atrás referidos. (facto 118)

Quanto aos factos 79 a 88, não teve o Tribunal de Júri quaisquer dúvidas de que a actuação do arguido é, toda ela, livre voluntária e consciente, o que resulta evidenciado ante a concreta actuação e ante os incontornáveis dados objectivos que resultam dos autos e da discussão da causa.

É fora de dúvida que se encontra apurado que:

     - O arguido, que já fora caçador, muniu-se da arma e de uma quantidade não apurada de cartuxos (pelo menos 5) em sua casa, antes de se dirigir para o local dos factos;

     - Aí, não acatou a intimação de agentes da GNR para que a abandonasse e para que a não disparasse;

     - Acompanhou um agente da GNR munido da arma, em busca de eventuais assaltantes, para o local onde era mais provável que o(s) mesmo(s) se encontrasse(m) (perto da abertura do muro, onde se encontrava a testemunha VS…, que dera o alerta de assalto por ter ouvido barulhos);

     - Disparou por quatro vezes a arma, antes do tiro fatal, tendo-a recarregado após os disparos anteriores;

     - Voltou a recarregar a arma com pelo menos um cartucho na câmara correspondente ao cano inferior, antes do tiro fatal;

     - A vítima encontrava-se algemada, com as mãos atrás das costas, deixando descoberta a zona das axilas;

     - A zona atingida foi a axila direita;

     - O tiro fatal entrou na axila direita e saiu pela zona peitoral;

     - Com direccionamento ligeiramente de trás para a frente e de baixo para cima;

     - E a uma distância muito curta, não superior a 50cm, evidenciada pela pequena auréola (de 2cm de diâmetro) da entrada da chumbada, sabendo-se que, em arma caçadeira, a chumbada vai abrindo à medida que o alvo se afasta do topo do cano da arma;

     - Para disparar a arma pelo cano inferior é preciso premir o 1º gatilho (gatilho anterior);

     - Para premir esse gatilho é necessário exercer sobre o mesmo uma pressão de quase 3Kgs (2,95Kgs);

     - A arma estava em boas condições de funcionamento, não sendo possível que disparasse se sujeita a pancada ou a queda.

     - Não existia qualquer confronto que pudesse determinar um disparo acidental, pois a vítima já se encontrava algemada e na presença de militar da GNR;

Ora estes dados, verdadeiramente incontornáveis, porque apurados sem margem para dúvidas, permitem, atentas as regras da experiência, a ilacção da qual se infere, sem margem para qualquer dúvida razoável, que o arguido quis matar a vítima. De outro modo, em circunstâncias de não haver terceiros presentes, ou, como a que neste caso se verificou, em que o agente da GNR nem “reparou” sequer no facto de a vítima ter sido atingida, ver-nos-íamos na inevitabilidade de que só a confissão do arguido pudesse levar à prova do facto, “o que implicaria, na generalidade dos casos, a impossibilidade material de prova dos elementos subjectivos de todo e qualquer crime” (Acórdão da Relação de Coimbra, nos autos, fls. 671). 

Para tanto, apontou a arma (caçadeira, de chumbada, que dilacera todos os órgãos à sua passagem – no caso, e desde logo, o pulmão direito) a uma zona onde se encontram órgãos vitais, numa posição que necessariamente teria de ser quase perpendicular à zona atingida do corpo da vítima, com o cano ligeiramente inclinado para cima (a direcção do tiro é evidenciada pela chumbada e sangue da vítima que impactaram no muro em posição superior).

Ora, para tanto, o arguido teria de empunhar a arma, ou com ambas as mãos, por forma a permitir aquele ângulo de tiro, ou, apenas com uma das mãos. Mas neste último caso, e porque o centro de gravidade da arma se situa à frente dos gatilhos, atento o maior peso dos canos (depoimento da testemunha NV..., inspector da PJ), o arguido teria de fazer um esforço para colocar a arma na posição já referida, o que ainda mais evidenciaria a intenção de atingir aquela zona do corpo da vítima.

Estas constatações, de modo algum foram abaladas pela opinião de HH..., pretenso “perito” indicado pelo arguido (como é óbvio não poderia nestes autos ser considerado nessa qualidade, além de se tratar de ex-agente da PJ não mais conhecedor do que outro qualquer agente), que sustentou a tese do disparo acidental, e ausência de intenção de matar, com base na suposição de que havendo intenção o arguido procuraria atingir a cabeça ou o coração da vítima, e dispararia de frente. Em face do que fica dito, tal opinião não pode ser colhida, pois um tiro de caçadeira é igualmente letal se desferido no tórax, a curta distância. E se o disparo fosse frontal, seguramente não deixaria de atingir, de forma muito mais grave, o agente da GNR ali presente mesmo ao lado (encostado) da vítima.

Não teve assim o Tribunal de Júri quaisquer dúvidas em considerar que o arguido quis matar JL..., nas circunstâncias referidas nos factos em análise.

Os factos apurados, sobretudo as palavras dirigidas pelo agente da GNR ao arguido, e a resposta deste, após o tiro fatal (“Acertaste-me” – “Isso não há-de ser grande coisa”), revelam também que o arguido estava concentrado em matar a vítima e que agiu em conformidade, pois sabendo que o corpo da vítima se encontrava de permeio entre ele e o agente, configurou que seria impossível, ou muito pouco provável, se disparasse daquela forma (atingindo a vítima de lado, e de trás para a frente) que o agente da GNR pudesse ser atingido. E na verdade, só o foi no braço e axila pelo facto de trazer o braço levantado a segurar uma lanterna, para iluminar o caminho.

Desta forma se justifica a prova dos factos 89 (que representou alteração não substancial, comunicada ao arguido) e 90.

A prova dos factos 91 a 93 resultou dos documentos inseridos no envelope de fls. 11, das regras da experiência, e da presente fundamentação no seu conjunto, com as explanações dela constantes.

Que a vítima era toxicodependente, resultou à saciedade dos depoimentos das próprias testemunhas dos demandantes (FF...,  NZ... e RR... – estes, irmãos da vítima) (facto 104).

No que respeita aos factos 105, 106 e 110, relevaram os depoimentos das testemunhas RC..., Presidente …, BW..., (que é filho do arguido e explicitou que os veículos em que o pai se desloca pertencem às empresas de que é administrador, mas não accionista, sendo alguns deles de luxo.- facto 114), SF…, LG…, DR... e RB… da XX....

Todas estas testemunhas depuseram por forma a pôr em evidência o carácter altruísta marcante do arguido, referindo que tem sido um homem de trabalho toda a vida, e goza do respeito e amizade de toda a gente, em vários locais. Trata-se também, segundo estas testemunhas, de pessoa serena e tranquila e conciliadora nos conflitos de outras pessoas. Ajuda frequentemente associações, principalmente as de Bombeiros Voluntários. E até pessoas com carências económicas.

Quanto aos factos provados do pedido de indemnização civil, os mesmos resultam do conjunto da prova já mencionada (como também sucede no caso dos factos 124 a 128) e dos depoimentos das testemunhas FF... (amigo de NZ…, irmão da vítima), o próprio NZ... (irmão da vítima) e RR... (irmã da vítima).

Estas testemunhas relataram as relações inter-familiares que existiram entre as famílias da vítima e do arguido, pelo facto de uma filha deste ter sido casada com NZ..., irmão do arguido referindo ainda que a vítima vivia com os pais, sendo um amparo para estes.

Certo é que estas testemunhas enfatizaram relações de especial carinho entre a vítima e os pais, o facto de a vítima os ajudar com trabalho e com dinheiro, declarando que o mesmo trabalhava regularmente como carpinteiro (antes de, ultimamente estar desempregado), contribuindo para as despesas da casa de forma regular.

Todavia, estas testemunhas, atenta a amizade ou relações de parentesco com os demandantes ou com o filho NZ..., depuseram de forma visivelmente interessada, pouco isenta e pouco consentânea com a realidade objectiva, associada à toxicodependência, que o tribunal não podia descurar.

Ademais, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido, JJ..., ST..., IM… e CT..., foram demolidores no que a tais factos respeita.

JJ..., encarregado de armazém da XX... e que bem conhecia a vítima e o irmão desta, relatou que a vítima chegou a furtar ouro da própria casa do irmão, recusando-se depois a entregá-lo, e só o fazendo depois de o pai o pressionar nesse sentido. Segundo esta testemunha, não existia harmonia entre a vítima, o irmão e os pais, sendo que a vítima nunca acompanhava os pais e até vivia num anexo próximo (mas separado) da casa destes, anexo este que a testemunha ajudou a construir, e sendo certo que quando lá esteve raramente via a vítima.

ST…, que esteve casada com outro irmão de JL... , de nome C... durante 20 anos, referiu que o JL... andava muito degradado, estando há anos muito magro por causa da droga. O JL... vivia num anexo, próximo da casa dos pais, mas sem qualquer comunicação com esta, sendo certo que a mãe o expulsou de casa. Uma vez o JL... vendeu uma mota do pai.

IM…, que conhece bem os demandantes por serem seus clientes de fruta, mencionou o facto de a demandante por vezes não lhe pagar, queixando-se de que o filho (JL...) lhe furtara o dinheiro. Na verdade o JL... furtava para a droga, sendo que até louça furtava. A mãe até disse algumas vezes à testemunha que só passava alguns dias de alívio quando o filho ia para a desintoxicação.

CT..., dono de uma estação de serviço com lavagens, referiu que a vítima chegou a assaltar o seu estabelecimento, tendo-a mesmo apanhado a escalar um muro de vedação do mesmo, juntamente com outro indivíduo, conhecido por “Tascas”.

Perante este “quadro”, e atento o facto de a vítima ser toxicodependente, não podia o Tribunal de Júri deixar de considerar não provados os factos atinentes aos alegados danos patrimoniais.

Desta forma se encontra justificada a prova dos factos 122, 131 e 135.

Quanto ao mais, mesmo considerando que a vítima era, de certo modo, um “peso” para os pais, não podia o Tribunal, tendo em conta as regras da experiência, deixar de considerar provada a profunda tristeza e desgosto que para os pais representa a perda de um filho, para mais nas circunstâncias ocorridas, sendo certo que o funeral seguramente custou uma quantia (facto 132).

Quanto aos factos não provados, ou não foi feita qualquer prova sobre os mesmos (caso dos identificados em vii, viii, xiii, xiv. xv, xvi, xvii, xix, xxi, xxix, xxxii, xxxiv, xxxviii, xli, xlii, xliii, xliv, xlvii e xlix), ou resultaram provados factos divergentes ou contrários (restantes factos), sendo certo que, ao longo da motivação já foram explanadas, em relação à grande maioria dos mesmos, as razões da sua consideração como não provados.

No que respeita ao segmento indicado em iv, na verdade é descabido que fosse devido à urgência da situação que os militares da GNR não tivessem conseguido demover o arguido de levar a arma, quando essa urgência impunha o contrário, e sendo certo que não está em causa “demover”, mas sim ordenar.

Quanto ao segmento viii, é óbvio que se JL... caminhava, não estava quieto, não foi feita prova de que estivesse calado e a expressão “cabisbaixo” tem um sentido mais psicológico do que físico, aqui de todo não apurado. De igual modo não foi feita qualquer prova de que o arguido, ao juntar-se à vítima e ao agente da GNR, não tenha proferido palavra alguma (segmento viii). E o mesmo se diga relativamente ao segmento xii (pelo menos gemer, seria normal que a vítima o fizesse) No que concerne ao segmento xi, a “não prova” resulta da constatação de que, se o arguido tivesse passado a arma para a mão direita, tal implicava que antes a não tivesse nessa mão, o que contraria o que, a tal respeito, foi dado como provado.

Relativamente ao facto xix, resultou dos depoimentos de VS...e FS...que à data dos factos o alarme ainda se não encontrava instalado. E não foi efectuada qualquer prova relativamente ao facto xxvi.

Quanto aos factos não provados do pedido civil, alguns deles necessitariam de prova documental (idade dos demandantes, montante auferido de reforma, não recebimento da segurança social e custo do funeral) e quanto aos restantes já o Tribunal de Júri atrás se pronunciou.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação ( cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques).[3]
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [4], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente AB... as  questões a decidir são as seguintes:

- se o Tribunal a quo violou o disposto no art.163.º, n.º 2 do C.P.P. ao ter ficado não provado que o sangue da vítima, para além de vestígios de morfina apresentava os de codeína, como pericialmente demonstrado, o que deve conduzir à anulação do julgamento;

- se o Tribunal a quo ao fazer uso da “informação de serviço” da PJ, a folhas 23/27, do  Relato de “diligência externa” da PJ, a folhas 199/205, do croquis anexo a esta, do Relato de “diligência externa” da PJ, a folhas 199/202 e do Relato de “diligência externa”, a folhas 490/491, pelo menos porque não tomados em conta na audiência, violou o disposto no art.355º, n.º 1 do CPP e 32º, n.º 5, segunda parte, da CRP, o que deve, também, conduzir à anulação do julgamento;

- se o julgamento é nulo porquanto, em incidentes relevantes, foram decididas questões apenas pelo colectivo, que deveriam ter sido decididas pelo Júri;    

- se o acórdão recorrido padece dos vícios a que alude o art.410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do C.P.P.;

- se o Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria que consta dos pontos nºs 21, 27, 52, 53, 54, 55, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88 e 89 dos factos dados como provados no acórdão recorrido, pois que deviam ter sido considerados não provados e ao considerar não provada a matéria que consta do ponto n.º XVIII do mesmo acórdão;

- se o Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto ao não dar como assente que “ A) O arguido referiu várias vezes aos militares da G.N.R. que o disparo que vitimou JL... e acertou no militar da G.N.R. DB... não foi intencional; B) o arguido pediu ao sobrinho (ver empregado) para chamar uma ambulância; C) Nunca passou pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previu u morte como consequência da sua conduta e não se conformou com o desfecho.”;

- se o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo;

- se, a não se entender assim, deverá a conduta do arguido integrar a prática de um crime de homicídio privilegiado, a que deverá acrescer a prática de um crime de detenção de arma proibida, e ser condenado em pena de prisão inferior a 5 anos, suspensa na sua execução; e  

- se deve ser substancialmente diminuído o montante dos danos não patrimoniais sofridos pelos pais da vítima o qual , para cada um destes, não deve ultrapassar os dez mil euros.

Passemos ao conhecimento da primeira questão.

O recorrente AB... sustenta que o Tribunal a quo violou o disposto no art.163.º, n.º 2 do C.P.P. ao ter ficado não provado que o sangue da vítima, para além de vestígios de morfina, apresentava os de codeína, como pericialmente demonstrado, o que deve conduzir à anulação do julgamento

A resposta a esta questão remete-nos de imediato para o art.374.º do Código de Processo Penal que manda estruturar a sentença penal em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo.

De acordo com o n.º 2, deste preceito processual penal, ao relatório segue-se a fundamentação, «…que consta da enumeração dos factos provados e não provados , bem como de uma exposição , tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal .». 
Para saber quais os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença importa atender ao disposto no art.368.º, n.º2 do Código de Processo Penal.
Na sequência deste preceito, a jurisprudência, nomeadamente do STJ, vem seguindo o entendimento, que sufragamos, de que a obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados se refere aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou alegados na contestação.[5] 
Relativamente aos factos não provados, com interesse para a decisão, embora não sendo de exigir a minúcia que preside à enumeração dos factos provados, tem de ficar claro que o Tribunal os apreciou.
Se foram alegados pela acusação ou pela defesa, factos relevantes para a decisão da causa e não estiverem incluídos nos factos provados, nem nos não provados, a sentença será nula, nos termos  da al.a), n.º1, art.379.º, do C.P.P..
Quanto à apreciação da prova, o art. 127.º do Código de Processo Penal , dispõe que “salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
Uma das excepções a esta regra, da livre apreciação da prova, respeita ao valor probatório da prova pericial.
A este respeito, o art.163.º do Código de Processo Penal estatui que « o juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.» ( n.º1) e que « sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.». 

Em face do regime perfilhado no art.163.º do Código de Processo Penal, se o julgador divergir do parecer dos peritos e não fundamentar a divergência, existe falta de fundamentação.

Se a falta de fundamentação da divergência do parecer dos peritos ocorrer na sentença, existirá então nulidade da sentença, nos termos do art.379.º, n.º1, al. a), do Código de Processo Penal. 
A declaração de nulidade da sentença determina a devolução do processo ao Tribunal que a emitiu, a fim de a suprir; não determina a anulação do julgamento.

Posto isto, importa decidir se, no caso concreto, o julgador deu como não provado que o sangue da vítima apresentava vestígios de codeína e se, deste modo, divergiu do parecer do perito, não tendo fundamentado a divergência.

Das conclusões do Relatório de Patologia Forense do INML consta, designadamente, o seguinte: « 6. Os exames toxicológicos efectuados ao sangue revelaram a presença de morfina ( cento e quarenta e sete nanogramas por milímetro – 147 ng/ml) e codeína ( inferior a vinte e cinco nanogramas por milímetro - < 25 ng/ml ), tendo sido negativos para álcool e outros produtos pesquisados ( ver relatório).» - folhas 834 a 839.   

O arguido AB... vem acusado da prática, em concurso real, de um crime de homicídio qualificado e de um crime de detenção de arma proibida, por haver causado, voluntariamente, a morte de JL..., com um tiro de espingarda, numa altura em que este caminhava, já algemado, com um elemento da GNR, reproduzindo-se na acusação as lesões causadas à vítima, que constam do citado Relatório de Patologia Forense.

Na acusação do Ministério Público, deduzida de folhas 948 a 959, não vemos qualquer referência a que, na perícia forense, que incidiu sobre a vítima, esta apresentava vestígios de codeína - ou de qualquer outra substância.

O arguido defendeu-se da acusação do Ministério Público nos termos da contestação junta de folhas 1211 a 1214, onde, além do mais, refere no art.20., que a vítima JL... “… era, de longa data, toxicodependente, sendo certo que nos termos de provas periciais levadas a cabo no âmbito dos autos, por organismos oficiais, lhe foi detectado no sangue recolhido para análise, já diversas horas após os acontecimentos, a existência de vestígios de morfina.”.

Nas razões apresentadas pelo demandado AB... para contestar o pedido de indemnização contra si formulado, nada se diz sobre ter sido detectado à vítima, em exame ao sangue, produtos estupefacientes, nomeadamente, morfina ou codeína.   

Na matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido, na parte relativa a factos alegados na contestação, o Tribunal de Júri, consignou que “ A vítima era toxicodependente de longa data.” ( ponto n.º 104) e que “ Nas análises ao sangue recolhido da vítima foi detectada a existência de vestígios de morfina.” ( ponto n.º 105).

O Tribunal deu, assim, como provada, nos pontos n.ºs 104 e 105, a matéria que o arguido entendera por bem alegar no art.20 da contestação.

A matéria deste ponto n.º 105, que corresponde a parte do art.20 da contestação da acusação, é  na realidade, uma conclusão, pois o facto concreto, que constava da conclusão 6 do Relatório de Patologia Forense do INML, é que os exames toxicológicos efectuados ao sangue revelaram a presença de cento e quarenta e sete nanogramas por milímetro de morfina.

Independentemente da consideração, que aqui fazemos, de que à matéria de facto devem ser levados factos concretos e não conclusões, é seguro que na matéria de facto dada como não provada no acórdão recorrido, não consta que “o sangue da vítima, apresentava vestígios de codeína”.

Não constando esta matéria dos factos dados como não provados, não se pode concluir que o Tribunal deu como não provado “que o sangue da vítima, apresentava vestígios de codeína”.

Consequentemente, não tem razão de ser a afirmação do recorrente de que o Tribunal de Júri divergiu do parecer do perito e não fundamentou a divergência.

Aliás, devendo apenas levar-se à matéria provada ou não provada, os factos, e não as conclusões, o que estaria em causa na enumeração seria se os exames toxicológicos efectuados ao sangue revelaram a presença (…) de  codeína em valor  inferior a vinte e cinco nanogramas por milímetro - < 25 ng/ml  ,  e não a conclusão de “que o sangue da vítima, apresentava vestígios de codeína”.

Mesmo o facto que consta da conclusão 6 do relatório pericial apenas teria de ser integrado na matéria de facto se ele fosse relevante para os efeitos da caracterização do crime, suas circunstâncias e consequências.

Já vimos que o próprio arguido, nas contestações à acusação e ao pedido cível por si apresentadas, não deu relevância à circunstância da vítima apresentar vestígios de codeína, quando foi objecto de perícia forense.

Apenas deu relevância, na contestação da acusação, à existência de morfina no sangue da vítima – certamente porque considerou que o valor da morfina detectada no sangue da vítima tinha algum significado – e fê-lo apenas a propósito da vítima ser toxicodependente à longa data.

O valor dos vestígios de codeína apresentados no sangue pela vítima ( inferior a < 25 ng/ml), mencionados na perícia forense, era efectivamente mínimo.

Apenas para dar uma ideia do seu significado, e pese embora a Portaria n.º 1006/98, de 30 de Novembro, já tenha sido revogada - pela Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Agosto, que entrou em vigor no dia 15 de Agosto de 2007 - , referimos aqui que ela estatuía no seu art.32.º, que “ São considerados influenciados por estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, para efeitos do disposto no art.147.º, alínea j), do Código da Estrada, os examinandos que no exame toxicológico pelo instituto de medicina legal apresentem concentrações de valor igual ou superior a qualquer dos constantes no quadro n.º 2 do anexo V.”  e, nesse quadro, fixavam-se como concentrações mínimas definidoras de positividade, no caso do grupo de opiáceos ( onde se inclui a morfina e a codeína ), 300 ng/ml na urina e 100 ng/ml no sangue.

Nem nas conclusões da motivação, nem na motivação do recurso, se demonstra que a presença no sangue da vítima de valor inferior a < 25 ng/ml de codeína, era relevante para efeitos da decisão penal, quer mesmo para efeitos da decisão do pedido cível, nem o Tribunal da Relação reconhece que da enumeração, entre os factos provados, da conclusão aduzida pelo recorrente ou do respectivo facto constante da perícia, seria de esperar uma modificação da decisão recorrida.      

Em suma, não tendo o Tribunal a quo violado o disposto no art.163.º, n.º 2 do C.P.P., improcede esta questão.  

            Passemos agora ao conhecimento da segunda questão.

O arguido AB... sustenta que o Tribunal a quo, ao fazer uso da “informação de serviço” da PJ, a folhas 27/30; do Relato de “diligência externa” da PJ, a folhas 199/205 e croquis anexo a este; do Relato de “diligência externa” da PJ a folhas 199/202; e do Relato de “diligência externa”, a folhas 490/491, violou o disposto nos artigos 355º, n.º 1 do CPP e 32º, n.º 5, segunda parte, da CRP, pelo menos porque não foram tomados em conta na audiência.

Aqueles “meios de prova”, assim chamados na motivação de facto do acórdão recorrido, não passam de meros papéis, sem qualquer conteúdo probatório.

A sua enumeração na motivação de facto, deve conduzir, no entender do recorrente, à anulação do julgamento.

Vejamos.

O art.32.º, n.º5 da Constituição da República Portuguesa, que o recorrente defende ter sido violado, estatui que « O processo criminal tem natureza acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.».

O conteúdo essencial do princípio do contraditório está em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência de julgamento, nem nenhuma decisão deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e a valorar.[6]     

Para os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do contraditório, relativamente aos destinatários significa: “(a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes ( da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo ( cfr. Acs TC n.ºs 54/87 e 154/87); (d) proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respectivos fundamentos ( AcTC n.º 173/92).[7].   

Um afloramento do princípio constitucional do contraditório encontra-se no art. 355.º do Código de Processo Penal.

De acordo com este preceito, «1. Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. 2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes.».

As provas que devem ser produzidas ou examinadas em audiência, para poderem valer, designadamente na formação da convicção do tribunal, podem ser provas reais, “cuja junção ao processo é impossível, sendo então substituídas pelos autos de exame e pelas perícias. São estes autos que então são objecto de apreciação em audiência”.[8]

O Cons. Maia Gonçalves, e a jurisprudência, vêm defendendo que do art.355.º do C.P.P., resulta que é permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.[9]

Estando a prova documental nos autos, está sempre garantido aos diversos sujeitos processuais o exercício do contraditório.

Pela mesma razão, “…os meios de obtenção de prova, isto é, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas podem ser invocados na fundamentação da sentença mesmo que não tenham sido examinados na audiência.”[10].

Como resulta da epigrafe do art.355.º do C.P.P., a sanção pela violação das regras do contraditório na produção de prova em julgamento é que a prova não vale para o efeito de formação da convicção do tribunal e, consequentemente, não pode a mesma fundamentar a matéria de facto da sentença. 

A propósito das provas e tendo em vista a salvaguarda dos meios de prova, importa consignar que o artigo 249.º, do Código de Processo Penal, atribui aos órgãos de polícia criminal competência para praticarem actos cautelares necessários e urgentes, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para procederem à investigação criminal.

De acordo com este artigo 249.º do C.P.P, « 1- Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:
a) Proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no n.º 2 do artigo 171.º e no artigo 173.º, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares;
b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;
c) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à conservação ou manutenção dos objectos apreendidos.».

Entre os meios de obtenção de prova que os órgãos de polícia criminal poderão realizar, para assegurar os meios de prova, destacam-se, entre outros, os exames das pessoas, dos lugares e das coisas, por meio dos quais se inspeccionam “…os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, ás pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.» (art.171.º, n.º 1 do C.P.P.).

«A finalidade do exame é fixar documentalmente ou permitir a observação directa pelo tribunal de factos relevantes em matéria probatória[11].

Caso sejam necessários especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos para a interpretação dos vestígios recolhidos através dos exames, os mesmos deverão ser sujeitos a perícia, ficando esta subtraída à livre convicção do julgador; caso contrário, os exames serão objecto de livre valoração, por força dos princípios gerais.    

Os órgãos de polícia criminal que procederem a diligências que integram o capítulo “das medidas cautelares e de polícia” « elaboram um relatório onde mencionam, de forma resumida, as investigações levadas a cabo, os resultados das mesmas, a descrição dos factos apurados e as provas recolhidas» (art.253.º, n.º 1, do C.P.P.) e remetem-no ao Ministério Público ou ao Juiz de Instrução, conforme os casos ( n.º 2), permitindo-se assim a fiscalização das medidas realizadas pelos órgãos de polícia criminal.

Compulsando os presentes autos, constata-se que de folhas 24 a 30, consta uma informação do Inspector da PJ, NV..., ao Coordenador de Piquete, comunicando-lhe, no essencial, que pelas 3h15m, foi dado conhecimento ao serviço de Prevenção, pelo Piquete da PJ, da ocorrência de um homicídio, e que tendo chegado ao local do aparecimento do cadáver pelas 4h45m e sido posto ao corrente sobre o que se teria passado por um militar ferido e pelo Sargento , passou a observar o local e a vítima que lá se encontrava prostrada, indicando quais os objectos e vestígios detectados e apreensões realizadas, designadamente, de cartuchos deflagrados, chaves de fendas e bidons, referindo ter realizado a este respeito uma reportagem fotográfica.

A folhas 199/204, consta um Relato de “diligência externa” da PJ, elaborado pelo inspector NV..., que consiste essencialmente numa reportagem fotográfica, realizada no dia 19 de Outubro de 2009, ao local dos factos, com indicação e narração de vestígios aí encontrados, e em face destes, do eventual percurso da vítima na noite dos factos. Inclui a folhas 205, um “croquis”, do “Local da ocorrência dos factos”, com indicação de localização de vestígios e medições entre eles.       

A folhas 490/491, consta um outro Relato de “diligência externa”, elaborado pelo inspector NV..., que consiste numa reportagem fotográfica ao veículo de matricula …, para constatar a possibilidade do mesmo comportar, na bagageira, todos os bidons apreendidos nos autos.   

Na acusação deduzida contra o arguido AB..., constante de folhas 948 a 961,   o Ministério Público indica como prova, « “Por documentos” - todos os dos autos, nomeadamente: i) Documento de fls.12; ii) Autos de apreensão ( cfr. fls. 10, 13, 59,63, 85); iii) Licença e livrete constante de fls. 11; iv) relatório fotográfico de fls. 15 a 22, 91 a 98, 194 a 196; v) Reportagens fotográficas de fls. 32 e ss., 61 e ss. 64; vi) Informação de Serviço da Polícia Judiciária de fls. 24 a 30; vii) Autos de exame directo 8 cfr. fls. 60, 876, 878); viii) C.R.C. de arguido ( cfr. fls. 106); ix) Relatório de Diligência externa de fls. 199 a 204 e 490 a 491; xi) Informação da PSP ( que se protesta juntar).».

Na motivação da matéria de facto do acórdão recorrido, o Tribunal a quo consignou que fundamenta os factos dados como provados nos pontos n.º 19 – “O arguido havia municiado a referida arma com dois cartuchos de calibre 12, da marca “SPECIAL COMPETITION” e “PULVICHUMBO”, carregados com bagos de chumbo n.º 7 1/2, de plástico de cor vermelho, em boas condições de utilização, deflagráveis à primeira percussão.” –  e 26 – “O arguido empunhava a espingarda caçadeira acima referida, municiada com dois cartuchos.” -, “quanto às características dos cartuchos encontrados no local”, na informação de serviço da PJ de folhas 27/30, no auto de apreensão de fls. 31, fotos de fls.41/43 e 46, bem como do Relato de Diligência Externa da PJ de fls. 199/205, incluindo o croquis anexo a este, (elementos que adiante serão analisados com mais pormenor), e a perícia de fls.863/872 (em especial fls. 866).

A propósito da generalidade dos factos respeitantes ao elemento subjectivo do crime e em reforço da primeira parte do ponto n.º 57 – “A chumbada proveniente do disparo atravessou o corpo de JL..., nos termos acima referidos e atingiu a zona da axila e do braço esquerdo do militar DB....” -, o Tribunal a quo consignou, na motivação da matéria de facto provada, que teve em consideração que no local do impacto foi detectada uma grande projecção de vestígios biológicos (sangue), tudo conforme consta do Relato de Diligência Externa da PJ (com fotos) de fls.199/202, confirmado pelo seu autor (inspector NV…), de cuja análise resultou a prova de que tais vestígios biológicos pertenciam à vítima JL....

Na motivação dos pontos n.ºs 1 – “No dia 16 de Outubro de 2009, cerca das 2 h 10 m, JL... preparava-se para se introduzir nas instalações dos Armazéns “XX..., S.A.”, sita na IC2 (antiga Estrada Nacional n.º 1), em ..., WWW..., através de uma abertura na parede do armazém.” – e 2 – “Actuava com o objectivo de subtrair e fazer seus todos os objectos de valor que encontrasse, nomeadamente gasóleo que se encontrava no depósito de combustível de veículos pesados aí estacionados, contra vontade de legítima proprietária.” – dos factos provados, na parte relativa à ponderação sobre a actuação sozinha, da vítima, no furto de combustível, o Tribunal a quo consignou que “ os bidons podiam ser todos transportados naquele veículo como se alcança de fls. 195” e que “ De resto a possibilidade de o veículo comportar todos os bidons decorre também do Relato de Diligência Externa” de fls. 490/491.”   

Consta ainda da motivação, para prova da matéria de facto do ponto n.º 20 – “O arguido ainda transportava consigo, pelo menos, 3 cartuchos de características similares aos acima referidos.” - que “ Todos os vestígios mencionados foram devidamente classificados pelo inspector NV…, a fls. 205, tendo o mesmo elaborado, a partir dos mesmos, o croquis aí anexo, de onde resulta a localização dos vestígios e, com base nesta localização, o itinerário percorrido pelo agente da GNR DB... e pelo arguido, bem como destes já com a vítima JL... , e que foi devidamente explicado pelo seu autor (NV...) no seu depoimento.”. Aquando da análise do depoimento da testemunha NV... o Tribunal a quo volta a mencionar na fundamentação da matéria de facto, a forma circunstanciada e rigorosa como elaborou os documentos, com base nos vestígios recolhidos.

Do ora exposto resulta que o chamado “Relato de diligência externa” da PJ, constante de folhas 199/205 incluindo o croquis anexo a este e o “Relato de diligência externa” da PJ constante de folhas 490/491, que o Tribunal de Júri teve em consideração na fundamentação da matéria de facto dada como provada, acabada de citar, foram indicados como prova documental, pelo Ministério Público, com a acusação deduzida contra o arguido.

O “Relato de diligência externa” da PJ, constante de folhas 199/205, não é propriamente um “relato”, pois configura um “exame ao local dos factos” realizado por um órgão de polícia criminal, documentado em fotografias.

O croqui de folhas 205 contém dados objectivos relativos ao local dos factos, em face dos vestígios descritos e fotografados, no exame ao local constante de folhas 199 a 204.

O “Relato de diligência externa” da PJ, constante de folhas 199/205 – traduzindo-se num “exame ao local”, alicerçado em fotografias - , bem o como o “Relato de diligência externa”, de folhas 490/491 – traduzindo-se numa reportagem fotográfica ao veículo de matricula …, para verificar a possibilidade do mesmo comportar, na bagageira, todos os bidons apreendidos nos autos -, constituem meio de prova documental, sobre o qual foi dada toda a possibilidade ao arguido de discussão em audiência de julgamento, pois como tal era indicada na acusação do Ministério Público.

E, segundo consta da fundamentação da matéria de facto do douto acórdão recorrido, a prova documentada nos autos, que resulta dos exames àquele local e ao veículo, foi mesmo objecto de discussão na audiência de julgamento.

Decidimos, assim, que a valoração pelo Tribunal a quo dos “Relato de diligência externa” de folhas 199/205 e de folhas 490/491, não violou o disposto nos artigos 355.º, n.º1 do C.P.P. e 32.º, n.º 5 da C.R.P..

Relativamente à “ Informação de Serviço”, constante de folhas 24 a 30, o Ministério Público incluiu-a, também, na acusação deduzida contra o arguido, nos meios de prova documental, pelo que dispôs da possibilidade de discutir o seu conteúdo.

O Tribunal a quo apenas teve em consideração a “Informação de Serviço” constante de folhas 24 a 30, para dar como provados os pontos n.ºs 19 e 26, quanto às características dos cartuchos encontrados no local, que menciona terem sido apreendidos ao longo do caminho lateral ao armazém.

Apesar do Ministério Público ter indicado na acusação a “Informação de Serviço”, constante de folhas 24 a 30, como prova documental o que possibilitou ao arguido o contraditório, cremos que a menção a esta informação, relativamente às características dos cartuchos encontrados no local , não devia ser indicada na fundamentação da matéria de facto para dar como provados os pontos n.ºs 19 e 26, pois a informação não é um meio de prova, nem de obtenção de prova, relativamente às características dos cartuchos encontrados no local, mas uma comunicação de um inspector da PJ ao Coordenador de Piquete dando conhecimento das diligências que realizou.

De acordo com o disposto no art.355.º do C.P.P., esta “Informação de Serviço” não pode, nem deve valer, para o efeito de formação da convicção do tribunal e, consequentemente, não pode a mesma fundamentar a matéria de facto dada como provada nos pontos n.ºs 19 e 26. Esta é a única sanção.   

Acontece que o Tribunal de Júri não fundou a sua convicção, para dar como provados os  factos que constam dos citados pontos n.ºs 19 e 26, apenas na “Informação de Serviço”, constante de folhas 27 a 30.

Para o efeito, teve em consideração ainda o depoimento da testemunha NV... - que  havia elaborado a dita informação -, que se pronunciou, na audiência de julgamento, sobre os cartuchos que encontrou e apreendeu no local e teve ainda em consideração o auto de apreensão de fls. 31, as fotos de fls.41/43 e 46, o Relato de Diligência Externa da PJ de fls. 199/205, incluindo o croquis anexo a este e a perícia de fls.863/872 (em especial fls. 866).

Esta prova documental, pericial e testemunhal, suporta os factos dados como provados nos pontos n.ºs 19 e 26 do acórdão recorrido.

Deste modo, apesar de se considerar que não deve ser valorada a “Informação de Serviço”, constante de folhas 27 a 30, para efeito de formação da convicção do tribunal, mantêm-se entre a matéria dada como provada, os pontos n.ºs 19 e 26 do acórdão recorrido. 

A terceira questão a conhecer é se o julgamento é nulo porquanto, em incidentes relevantes, foram decididas questões apenas pelo Colectivo, que deveriam ter sido decididas pelo Júri.    

Os incidentes tidos como relevantes, pelo recorrente, para a nulidade do julgamento, são três despachos, que constam das actas da audiência de julgamento. 

Da acta da audiência de julgamento, do dia 28 de Setembro de 2010, resulta que na sequência de requerimento do Ex.mo Advogado do assistente/demandante para “ junção de documentos”, o Ex.mo Juiz Presidente proferiu um despacho, admitindo a requerida junção, com condenação do assistente em ½ UC, dada a intempestividade da junção. – cfr. folhas 1451 a 1461.    

Da acta audiência de julgamento, do dia 4 de Outubro de 2010, consta que, na sequência de requerimento do Ministério Público para inquirição do filho do arguido, após deliberação, foi pelo Ex.mo Juiz Presidente proferido despacho, consignando que “o Tribunal colectivo considera ser de deferir o requerido, sem prejuízo de que possa haver nova inquirição do defensor sobre a detenção de novos factos a que a testemunha deponha.” – cfr. folhas 1492 a 1500.  

Por fim, resulta da acta da audiência de julgamento, do dia 30 de Novembro de 2010, que, na sequência de requerimento do arguido, para produção de prova pericial sobre os factos que materializam a alteração não substancial comunicada, após deliberação dos membros do Tribunal Colectivo, o Ex.mo Juiz Presidente proferiu despacho em que “indefere-se a produção da prova ora requerida.”. 

Alicerçado num douto parecer do Prof. José de Faria Costa, alega o recorrente para este  efeito e em síntese, o seguinte: do art.3.º, n.º2 do DL n.º 387-A/87, resulta que o júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção e dos artigos 368.º e 369.º do CPP resulta, que o júri, que substitui a adição de juízes e jurados, detém um poder decisório em matéria de direito muito amplo, fundamentado na sua intervenção na decisão das questões sobre a culpabilidade e sobre a determinação da sanção.

A decisão sobre a culpa e sobre a sanção determina de facto et de iure, a intervenção em questões materiais que com estas sejam conexas. Não podendo fazer-se uma aplicação analógica da norma contida no n.º 2 do artigo 369.º do CPP (determinação da sanção) ao artigo 368.º (questão da culpabilidade), do mesmo código deverá sempre fazer-se uma aplicação analógica do princípio ínsito naquela norma relativo à sanção para as questões da culpabilidade. O que implica que as decisões sobre os requerimentos feitos em sede de Audiência de Julgamento relativos à admissibilidade de meios de prova suplementares ou diversos daqueles previamente indicados, constituem uma questão material conexa com a decisão sobre a culpabilidade, porque podem ser fundamentais à formação de uma convicção por parte dos membros do júri indispensáveis, portanto, para a boa decisão da causa.

Qualquer uma das três questões - junção de documento, interrogatório de testemunha sobre matéria para que não tinha sido arrolada, e produção de prova suplementar tem consequências em matéria dos factos em análise, logo fundamentais para a decisão sobre a culpabilidade, pelo que era ao Júri que competia tomar decisões quando a elas.

Não tendo sido o Júri a decidir, mas o Juiz Presidente, por duas vezes e uma terceira o Tribunal Colectivo, o Júri foi usurpado da sua competência decisória, sendo inexistentes os actos proferidos, pelo que não pode verificar-se o caso julgado e deve a relação voltar a restabelecer-se com o início de um novo Julgamento em que o júri seja chamado a intervir em todas as questões materiais conexas tanto com a culpabilidade como com a determinação da sanção.

Vejamos.

O art.207.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, na actual redacção, que lhe advém da Revisão de 1997, estabelece que « O júri, nos casos e com a composição que a lei fixar, intervém no julgamento dos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada, designadamente quando a acusação ou a defesa o requeiram.».

Sobre a composição do Tribunal do Júri, a Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, estatui no seu art.140.º que « 1. O tribunal do júri é constituído pelo presidente do tribunal colectivo, que preside, pelos restantes juízes e por jurados. 2. A lei regula o número, recrutamento e selecção dos jurados.».

A Lei n.º 52/2008, acentua que, na composição do Tribunal do Júri, existem juízes do tribunal colectivo e jurados.

Quanto à competência do Tribunal do Júri, acrescenta o art.141.º da mesma Lei n.º 52/2008, que « 1. Compete ao tribunal de júri julgar os processos a que se refere o artigo 13.º do Código de Processo Penal, salvo se tiverem por objecto crimes de terrorismo ou se referirem a criminalidade altamente organizada. 2.  A intervenção do júri no julgamento é definida pela lei de processo.».  

O art.13.º, do Código de Processo Penal, enuncia os processos que o Tribunal do Júri tem competência para julgar e estabelece quem tem legitimidade para requerer a sua intervenção, que é irretractável.

Particular interesse para a decisão da presente questão tem o DL n.º 387-A/87, de 29 de Dezembro, que regula o regime do Júri, designadamente, a sua composição e competência.

No seu art.1.º, estabelece que « O tribunal do júri é composto pelos três juízes que constituem o tribunal colectivo e por quatro jurados efectivos e quatro suplentes» ( n.º1)  e que « O tribunal é presidido pelo presidente do tribunal colectivo.» (n.º2).

O art.2.º, DL n.º 387-A/87, com a epigrafe “Competência do tribunal do júri”, estatui no seu n.º 3, que « O júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção.».

As questões da culpabilidade e da determinação da sanção, a que alude o n.º 3 do art.2.º do DL n.º 387-A/87, remetem-nos para o Livro VI ( Do julgamento), Titulo III ( Da sentença), do Código de Processo Penal, e mais especificamente para art.368.º com a epigrafe “ Questão da culpabilidade” e para o art.369.º com a epigrafe “ Questão da determinação da sanção.”.
O art. 368.º estabelece o seguinte:
« 1. O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.
   2. Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificadamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa, e bem assim os que resultarem da discussão da causa relevantes para as questões de saber:
a) se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) se o arguido praticou o crime ou nele participou;
c) se o arguido actuou com culpa;
d) se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.».

  3. Em seguida, o presidente enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número anterior

Por sua vez o art.369.º, do Código de Processo Penal, sobre a questão da determinação da sanção, estabelece o seguinte:

« 1. Se, das deliberações e votações  realizadas nos termos do artigo anterior, resultar que ao arguido deve ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, o presidente lê ou manda ler toda a documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social.

   2. Em seguida, o presidente pergunta se o tribunal considera necessária produção de prova suplementar para determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar. Se a resposta for negativa, ou após a produção da prova nos termos do artigo 371.º, o tribunal delibera e vota sobre a espécie e a medida da sanção a aplicar. 

  3. (…).».

O Código de Processo Penal ao desdobrar em duas, a fase decisória do processo, deixando para a primeira delas a decisão sobre a culpabilidade, e para a segunda, a determinação da pena, consagrou um sistema mitigado de “ cesure”.[12]

O sistema permite evitar a intromissão desnecessária na vida privada do arguido, antes de estar determinada a sua culpabilidade e aumenta a imparcialidade do julgamento, face ao risco de interferência da personalidade do arguido na determinação da culpabilidade.

Se os elementos de prova recolhidos durante a audiência de julgamento forem insuficientes para a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, e o tribunal considerar  necessária a produção de prova suplementar, nos termos do art.369.º, n.º 2 do C.P.P., deverá determinar essa prova, porém , como escreve o Cons. Laborinho Lúcio, estar-lhe-á “ sempre vedada a possibilidade de estender o objecto da segunda fase da audiência à matéria própria da primeira fase”.[13]

Apesar de ainda poder ser reaberta a audiência ( art.371.º do C.P.P.), a “cisão” , integra-se já na fase processual da “sentença” ( Titulo III, do Livro VI, do C.P.P.).

A produção de prova suplementar determinada pelo Júri, já na fase processual da “sentença”, acaba por ser pouco usual dado que o art.348.º, n.º5 do C.P.P., permite aos “juízes” e aos “jurados” formularem à testemunha, a qualquer momento, as perguntas que entenderem necessárias para a boa decisão da causa e, por força da aplicação do art.128.º, n.º2, para que remete o art.348.º, n.º1, do C.P.P., podem inquirir a testemunha sobre factos relativos à personalidade e ao carácter do arguido, bem como sobre as condições pessoais e conduta anterior dele. 

Estando em causa, nos despachos atrás mencionados, a produção de prova requerida durante a audiência de julgamento, importa fazer uma consideração ao disposto no art.340.º, n.º1, do Código de Processo Penal, uma vez que esta norma está implícita naquelas decisões.

O art.340.º, n.º1, do Código de Processo Penal, num afloramento do princípio da investigação, também designado de princípio da verdade material, estatui que «O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

Resulta dos preceitos processuais penais citados que a lei estabelece uma distribuição de competência entre o Tribunal colectivo, o Tribunal do Júri e o Presidente do Tribunal na fase da audiência e na fase da sentença.

Assim, na fase da sentença, e atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 3, do DL n.º 387-A/87 e 368.º e 369.º do Código de Processo Penal, é da competência do Tribunal do Júri, conhecer e decidir das questões da culpabilidade e da determinação da sanção. 

As questões prévias ou incidentais, a que se alude no próprio art.368.º, n.º 1 do C.P.P., porque não se integram propriamente nas questões da culpabilidade e da determinação da sanção, não compete ao Tribunal do Júri, conhecer delas.

Também o recorrente está de acordo em que “decisões de expediente, questões prévias ou incidentais – não pertencem à esfera de intervenção do júri.”.

Então a quem pertence a competência para essas decisões?

Atribuindo o art.368.º, n.º 1 do C.P.P., a competência para a decisão das questões prévias ou incidentais, não ao Presidente do Tribunal, mas ao Tribunal, então é aos Juízes do Tribunal Colectivo, que compõem o Tribunal de Júri, que compete decidir este tipo de questões.

Por força do art. 2.º, n.º 3, do DL n.º 387-A/87, o Tribunal de Júri, composto por três Juízes, que constituem o Tribunal Colectivo e por quatro Jurados, apenas decide e já na fase da sentença, as questões da culpabilidade e da determinação da sanção.

Atribuindo o art.340.º , n.º1 do C.P.P., a competência para decidir da admissibilidade da prova que aí é requerida, ao Tribunal, então serão os três Juízes, que constituem o Tribunal Colectivo, que terão aquela competência.

Já competência para ordenar oficiosamente a produção de prova, durante a audiência de julgamento, é não só do Tribunal Colectivo, nos termos do o art.340.º , n.º1 do C.P.P., mas também, do Juiz Presidente, por força do disposto no art.323.º, n.º1, alíneas a) e b), do mesmo Código. 

Pronunciando-se sobre esta problemática também o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, sustenta que “ Os jurados decidem apenas sobre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção. Os jurados não decidem sobre quaisquer questões prévias ou incidentais, mesmo atinentes à admissão ou rejeição da prova, nem durante a audiência de julgamento, nem na deliberação.”[14]

O recorrente argumenta que atribuir-se ao Júri a decisão sobre a admissibilidade de provas em audiência de julgamento, não acarretaria o risco de admissão de provas proibidas ou legalmente inadmissíveis, pelo facto do número de Jurados ser maior que o número de Juízes, porquanto a presidência do Júri pertence ao presidente do Tribunal Colectivo e competindo a esse zelar pela correcta aplicação da lei, logo o impediria, “ tornando tal decisão imediatamente inválida”.

Salvo o devido respeito, para o Presidente do Tribunal do Júri poder tornar imediatamente inválida um decisão do Tribunal do Júri sobre admissibilidade de prova, era preciso que tivesse poderes superiores ao do Tribunal,  que o próprio integra. Para além do art.14.º, n.º1,  do DL n.º 387-A/87, estabelecer que os jurados “não estão sujeitos a ordens ou instruções”, a lei não concede ao Presidente do Tribunal do Júri poderes de anulação de decisões do Tribunal do Júri. Só em sede de recurso poderia essa decisão ser declarada inválida.

Perante o exposto, não cremos que estivesse na letra ou no espírito da lei, que as regras de competência sobre a admissibilidade de provas requeridas em audiência, em julgamento com intervenção do Tribunal do Júri, fossem determinadas por uma aplicação analógica, não do art.369.º, n.º2 do C.P.P., mas do “ princípio ínsito naquela norma relativo à sanção para as questões da culpabilidade.”. 

Das actas de audiência de julgamento dos dias 4 de Outubro de 2010 e 30 de Novembro de 2010, resulta , expressamente, que os despachos em causa  foram proferidos pelo Ex.mo Juiz Presidente após deliberação dos juízes do Tribunal Colectivo.

Considerando que a admissibilidade da prova requerida durante a audiência de julgamento é da competência dos juízes do Tribunal Colectivo que compõem o Tribunal do Júri, cremos que nenhuma ilegalidade foi então cometida. 

Da acta da audiência de julgamento, do dia 28 de Setembro de 2010, apenas resulta que o Ex.mo Juiz Presidente proferiu um despacho admitindo a junção de um documento. Nada se dizendo sobre a existência de deliberação.

Se atendermos, porém, ao despacho de 30 de Novembro de 2010, a folhas 1585, onde o Ex.mo Juiz Presidente, sem mencionar a existência de deliberação, declarou que “ Entende o Colectivo de Juízes togados que a decisão sobre a admissibilidade da prova lhe competia inteiramente e por isso se limitou a fazer uso da sua competência.”, é bem provável que também o despacho em causa , proferido a   28 de Setembro de 2010, tenha sido precedido de deliberação dos Juízes do Tribunal Colectivo, que compõem o Tribunal do Júri.

O recorrente admite, alias, que as questões em causa relativas à prova foram decididas “apenas pelo colectivo” e efectivamente tudo aponta para que assim foi.

De todo o modo, a entender-se que o documento foi admitido nos autos, durante a audiência de julgamento, apenas por decisão do Ex.mo Juiz Presidente, sem deliberação do Juízes do Tribunal Colectivo, a consequência jurídica da violação da lei, não é a inexistência jurídica do despacho, ou qualquer nulidade, mas uma mera irregularidade, que deve ser arguida nos termos gerais do art.123.º do Código de Processo Penal. [15]

Tendo a irregularidade sido praticada em audiência de julgamento, teria de ser arguida pelos interessados no próprio acto. Não o tendo sido, a mesma encontra-se há muito sanada.

Não se verificando a invocada nulidade de julgamento, improcede esta questão.

A questão a conhecer, de seguida, é se o acórdão recorrido padece dos vícios a que alude o art.410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do C.P.P..

O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal estatui que, « Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
     a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
     b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou 
     c) O erro notório na apreciação da prova.».
Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
São vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento, como bem exprime a Prof. Maria João Antunes. [16]
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º2 do art. 410.º do C.P.P., quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação ( e a medida desta) ou a absolvição ( existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa),  admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.[17]
No presente caso, o Tribunal recorrido apreciou os factos constantes da acusação e da contestação.
Os factos provados permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento e do  texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum , não se vislumbram factos que ficaram por apurar para, com a segurança necessária, proferir-se uma decisão justa. Assim, não temos por verificado este vicio.
Em termos sintéticos, diremos, agora, que o vício da contradição existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa.
Duas proposições contraditórias não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas.
Como referem os Cons. Simas Santos e Leal Henriques, existe “… contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados”.[18]

O vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, elencado na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., não se verifica quando o resultado a que o juiz chegou na sentença advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados. 
Resulta da decisão recorrida que o arguido foi condenado em face dos factos dados como provados no acórdão recorrido.
Entre a factualidade dada como provada e a decisão condenatória não existe qualquer contradição, e menos ainda insanável. E do texto da fundamentação da matéria de facto da decisão recorrida, não vislumbramos qualquer colisão racional entre a prova produzida em julgamento e examinada no acórdão e o que foi dado como provado e não provado.
Consequentemente, não se reconhece a existência do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, a que alude a al.b), n.º2 do art.410.º do C.P.P..
O erro notório na apreciação da prova, a que alude a al.c), n.º2 do art.410.º do C.P.P., tem lugar, no dizer dos mesmos Juízes Conselheiros, “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando  determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo )  contido no texto da decisão recorrida”. [19]
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). 
O erro notório na apreciação da prova, que tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento.
Analisando o texto da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto, e mais concretamente ainda o exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, não vemos que este ao decidir a matéria de facto, quer provada, quer não provada, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova. 
Não se tem, pois, por verificado também este vício.

Importa agora decidir se o Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria que consta dos pontos nºs 21, 27, 52, 53, 54, 55, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88 e 89 dos factos dados como provados no acórdão recorrido, pois que deviam ter sido considerados não provados e julgou ainda, erradamente, ao considerar não provada a matéria que consta do ponto n.º XVIII do mesmo acórdão.
O art. 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

  « a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;

     b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
     c) As provas que devam ser renovadas

E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação
O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).

No presente caso, o recorrente indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e que considera incorrectamente julgados e, ainda, minimamente, as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida, bem como as concretas passagens, em que se fundamenta a impugnação com base na prova produzida oralmente na audiência, por referência ao consignado na acta.

Deste modo, o Tribunal da Relação considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, que o recorrente impugna, ao abrigo do disposto nos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4 e  431.º, al. b), do C.P.P..
No âmbito de impugnação da matéria de facto, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse.
É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal.

As normas da experiência, a que alude o art. 127.º do Código de Processo Penal, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.»[20]

Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”. [21]

O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal. È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.

O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.

Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos  e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. [22]

Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.

Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.

Nesta parte importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).

A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova”.[23]

Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 , “ a inferência na decisão não é mais do que ilação , conclusão ou dedução , assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.”.[24]

Em suma, o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
No presente caso o Tribunal da Relação procedeu à audição das passagens indicadas e dela resulta que os segmentos transcritos na motivação do recurso pelo arguido, correspondem ao que foi declarado pelos intervenientes na audiência de julgamento, salvo num ou noutro pormenor. 

O recorrente AB... defende que foi erradamente julgada a matéria que consta do ponto n.º 21 dos factos dados como provados no acórdão recorrido, pois resulta do depoimento da testemunha PP..., cuja passagem gravada transcreve, que quando o arguido chegou ao local ainda não se encontrava nenhuma patrulha da G.N.R..

Assim, a factualidade que deveria ter sido dado como provada, por correspondente à realidade, é que “Quando o arguido chegou ao local ainda não se encontrava nenhuma patrulha da G.N.R.. Após, chegou ao local a patrulha da G.N.R, de WWW... composta por dois elementos devidamente uniformizados.”.

Vejamos.

O Tribunal a quo fundamentou os factos dados como provados no ponto n.º 21 – “Quando o arguido chegou ao local acima referido, já aí se encontravam quatro militares da G.N.R., devidamente uniformizados, que se preparavam para abordar o armazém e tentar a detenção do autor do furto que estava a decorrer, que suspeitavam ainda se encontrar no seu interior” –, no depoimento da testemunha DB…, juntamente com o depoimento da testemunha PP....

Mencionou-se na fundamentação da matéria de facto que a testemunha DB...terá declarado, em audiência de julgamento, que ao deslocar-se com o colega D...para a XX... “… já encontrou, à chegada, a patrulha do Posto da GNR de WWW..., acompanhada de um senhor que agora sabe ser o arguido ( não o conhecia então)”.  Mais se declara ali, que a testemunha LM... “confirmou o relato inicial de DB...”.  

Sendo pacífico, em face de depoimento dos militares da GNR, que ao alegado assalto que decorreria no armazém, acorreram duas patrulhas da GNR, uma do Posto de WWW..., constituída pelos militares PP...e LM… e outra do Posto da KX..., constituída pelos militares DB... e D..., resulta da própria fundamentação do acórdão que não se encontrariam naquela local 4 militares da GNR quando chegou o arguido, pois os que constituíam a patrulha da KX... já lá encontraram o arguido.

Será através do depoimento dos elementos da GNR que constituíam a patrulha de WWW... que se poderá esclarecer se o arguido chegou antes ou após esta patrulha.

A testemunha PP...declarou: “Chegamos lá e já se encontrava o arguido na parte da frente da empresa.” ( e não …”da parte de dentro da empresa”, como consta do segmento transcrito na motivação).

Porém, a testemunha LM...já declarou: “Chegámos ao local, chegou juntamente connosco o proprietário do armazém”. Logo depois, chegou a patrulha da KX....

Considerando que a testemunha LM...voltou a reforçar o facto da sua patrulha ter chegado “em simultâneo” ao local com o arguido, descrevendo com mais pormenor essa parte, do que a testemunha PP..., entendemos que é esta versão que deve considerar-se provada ( aliás é a que a própria testemunha  PP...narra no “Auto de Notícia” que dá início ao processo criminal.

Assim, nos termos do art.431.º, al.b), do C.P.P., procede-se à modificação da matéria de facto constante do ponto n.º 21 dos factos dados como provados na decisão recorrida, que passará a ter a seguinte redacção:

« O arguido chegou ao local acima referido em simultâneo com a chegada da patrulha da GNR de WWW..., composta por dois militares devidamente uniformizados e logo depois chegou uma patrulha da GNR, de WWW...,  composta por outros dois militares devidamente uniformizados, tendo-se os militares preparado para abordar o armazém e tentar a detenção do autor do furto que estaria a decorrer, que suspeitavam ainda se encontrar no seu interior”.

No que atina ao ponto n.º 27 da matéria de facto dada como provada – “Os militares da G.N.R. DB...e PP... alertaram o arguido para não levar a arma de fogo acima referida consigo, mas não o conseguiram demover” -,  o recorrente sustenta que da prova testemunhal carreada aos autos não resulta que houve qualquer ordem, expressão ou gesto no sentido de o arguido não poder levar a arma consigo, como se pode inferir dos depoimentos prestados pelas testemunhas DB...e  PP....

A factualidade que deverá ser dada como provada deverá ser a seguinte: “o militar da G.N.R. DB...aconselhou o arguido para pôr a arma em segurança e não a disparar. O militar PP... aconselhou, uma vez, o arguido a guardar a arma.”.

Da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido, resulta que o Tribunal a quo tomou em consideração, para dar como provado o ponto n.º 27, os depoimentos das testemunhas DB... e PP.... Faz ainda menção à testemunha LM...como tendo conhecimento destes factos.

Da análise do depoimento da testemunha DB... resulta que este declarou que quando ele mais a testemunha D...vão a começar a descer um caminho de terra batida, o arguido chamou-os e disse-lhes que ia consigo. Nessa altura reparou que ele tinha uma caçadeira na mão e “adverti para pôr a arma em segurança e não fazer uso da mesma”; que não era preciso andar aos tiros. O arguido disse “não se preocupem”, com tom normal e ainda voltou a falar outra vez com o arguido dizendo “para pôr a arma em segurança.”.

A testemunha PP...declarou, a este propósito, que quando viu que o arguido trazia uma caçadeira, ele e o colega, avisaram o arguido “ para pousar a arma”, tendo o arguido respondido para não se preocuparem que não iria fazer uso dela. Acrescentou ainda que “Foi-lhe dada uma ordem para pousar a arma.”. O arguido não cumpriu a ordem, mas nada fez contra ele porque “achei prioritária” a situação que os levara ao local, que era o decurso de um furto, estando um empregado do arguido dentro do armazém.

 O colega do arguido, a testemunha LM…, declarou, por sua vez, que ao ver que o arguido trazia uma espingarda caçadeira na mão, o advertiu para não utilizar a arma e que ele e a testemunha PP...), lhe disseram para não levar a arma, para a arrumar ali. O arguido respondeu para não se preocuparem que não ia a usar a arma. Mais tarde a testemunha DB... disse que tinha dito ao arguido, no caminho, para não usar a arma.

Do exposto resulta que apenas a testemunha PP...alertou o arguido para não levar a arma de fogo acima referida consigo, mas não o conseguiu demover. A testemunha DB...apenas avisou o arguido para pôr a arma em segurança e não fazer uso dela.

 Assim, nos termos do art.431.º, al.b), do C.P.P., modificamos a matéria de facto constante do ponto n.º 27 dos factos dados como provados na decisão recorrida, que passa a ter a seguinte redacção:

« O militar da G.N.R. PP... disse ao arguido para não levar a arma de fogo acima referida consigo, mas não o conseguiu demover e o militar da G.N.R. DB...avisou o arguido para pôr a arma em segurança e não fazer uso dela.»

O recorrente defende, seguidamente, que a matéria de fato considerada assente no acórdão recorrido relativa à intenção da matar - constante dos pontos n.ºs 51. a 55. e posteriormente os pontos n.ºs 79. a 89. da matéria de facto dada comprovada - não tem suporte na prova que o Tribunal recorrido reputou determinante para a formação da sua convicção.

Existe apenas uma testemunha presencial dos factos - o militar DB... -, que não conseguiu descrever ao Tribunal a forma como o recorrente carregava a arma imediatamente antes do disparo letal, por falta de visibilidade - era de noite, não existia iluminação e a visibilidade estava substancialmente diminuída o que, aliás, resultou provado no acórdão em discussão. Das declarações prestadas, flui a convicção da testemunha de que o disparo foi acidental, acentuando que, se assim não fosse, o recorrente poderia tê-lo vitimado gravemente ou mesmo fatalmente.

A forma como o Tribunal a quo entende que o arguido carregava a arma e a disparou (pontos 52 a 54), conjugada com os factos não provados nos pontos ix – “O arguido empunhasse a espingarda com ambas as duas mãos” e x – “Antes já estivesse com o dedo no gatilho - e com as regras da experiencia comum, não é, nem pode ser, sustento para dar por provada a intenção de matar , considerando-se a factualidade provada nos autos : a arma pesa cerca de 3,20 quilogramas; é necessária uma força de 2,95 quilogramas para accionar o gatilho; o recorrente empunhava a arma com uma só mão; antes do disparo não tinha o dedo no gatilho; a direcção do disparo foi da direita para a esquerda, ligeiramente de baixo para cima e com ligeira inclinação de lado para a frente, quase tangencial; o arguido sabia manejar bem a arma.

O que deles resulta é que o recorrente, quando se preparava para auxiliar o militar DB... a conduzir o detido, colocou acidentalmente o dedo no gatilho, o que provocou o disparo letal. O recorrente bem sabe ser inviável disparar um tiro certeiro com uma só mão se a arma se encontrar apoiada à cintura - como o acórdão em crise dá provado - já que, com a força de disparo, a arma recua com força, sendo impossível direccionar o seu tiro.

Tal conclusão resulta, de resto, das regras experiência comum e foi corroborado pelas declarações prestadas pelo perito AG..., quando refere que, quando o disparo é intencional, porque há um apontar da arma, a trajectória do projéctil é de cima para baixo, ao contrário do sucedido nos presentes autos.

Neste sentido, tende o Relatório de Patologia Forense constante de fls. 834/839 no qual se remata que “Medico-legalmente e só pela autópsia, não é possível efectuar o diagnóstico diferencial seguro entre a natureza homicida ou acidental do disparo”,

Existe uma declaração de voto de vencida expressada pela jurada MC... que considera que se tratou de disparo acidental e manifesta a opinião de que os pontos 79 a 84 e 87 deveriam ser considerados não provados.

Em conclusão, o ponto 52. dos factos provados foi incorrectamente julgado devendo ser dado como não provado.

No que concerne ao ponto 53. a ser dado como provado deve sê-lo com o seguinte teor: “Estava com a arma municiada, em posição de fogo (rápido) e, acidentalmente colocou o dedo no gatilho”.

Relativamente ao ponto n.º 54 deve ser dado como provada a seguinte factualidade: “Acidentalmente accionou o gatilho, correspondendo ao cano inferior da referida espingarda.”

Atentas as alterações aludidas, os pontos 55,79 a 89 deviam ter sido dados como não provados.

Em consequência directa das alterações a introduzir e da análise dos meios de prova convocados, emerge a incorrecção de julgamento no que respeita ao ponto xviii ( por  lapso nas conclusões refere-se xiii, quando se queria dizer xviii, como se vê da motivação A6.1.1.4) dos factos não provados, o qual deverá ser dada como provado.

Vejamos.

A propósito da forma como o arguido trazia a espingarda caçadeira, quando se aproximou da vítima JL..., a testemunha DB... declarou que o arguido se apresentou vindo de frente para eles, mas não lhe viu a arma. Nessa altura não apontou para o arguido a lanterna, que trazia na mão esquerda, tendo pensado “ que ele vinha a ajudar a levar o arguido”.  Não viu como é que o arguido disparou a arma, tendo sido surpreendido pelo disparo de um tiro, vindo do seu lado direito. Só depois de ter aparecido no caminho uma viatura com as luzes ligadas, mostrando que a vítima estava ferida, é que pediu ao arguido que lhe desse a arma, o que ele fez.

Portanto, sobre a forma como o arguido trazia a espingarda caçadeira imediatamente antes do tiro dado pelo arguido, a testemunha DB... nada esclareceu.

Sobre a voluntariedade do disparo, a testemunha DB... refere que pensa “ que ele não terá dado o disparo de propósito” para o atingir a si. Já se o arguido quis atingir ou não a vítima JL..., a testemunha já não é tão peremptória, afirmando ora que não faz ideia de qual terá sido a ideia do arguido ao atingir a vítima, não sabendo dizer “ se foi de propósito ou não foi de propósito.”, ora dizendo que pensa que “ o disparo em si” não terá sido de propósito, “mas não lhe sei dizer isso.”.

Considerando que o militar da GNR DB... se encontrava no local para proteger o património do arguido, o que para esse efeito até fizeram parte do caminho juntos, e que o disparo efectuado pelo arguido a pequena distância, apenas o atingiu com alguns bagos de chumbo nas faces anteriores e internas do membro superior esquerda e na palma da mão esquerda, que lhe determinaram um período de doença de 10 dias, sendo 8 com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional, é razoável que tivesse concluído que o arguido não terá dado o disparo de propósito para o atingir a si. 

Do depoimento desta testemunha não resulta, porém, minimamente provado que o Tribunal a quo decidiu erradamente a matéria de facto agora em apreciação, designadamente, quanto à forma como foi disparada a arma e quanto à vontade e o propósito com que o arguido atingiu com um tiro o JL....

A afirmação do recorrente, de que quando se preparava para auxiliar o militar DB... a conduzir o detido, colocou acidentalmente o dedo no gatilho, provocando o disparo letal, e que bem sabe ser inviável disparar um tiro certeiro com uma só mão se a arma se encontrar apoiada à cintura - como o acórdão em crise dá provado - já que com a força de disparo a arma recua com força, sendo impossível direccionar o seu tiro, merece algumas considerações.

O recorrente não especifica, por referência ao consignado na acta, onde é que em audiência de julgamento, declarou que se preparava para auxiliar o militar DB... a conduzir o detido, quando colocou acidentalmente o dedo no gatilho, ocorrendo deste modo o disparo, nem que bem sabe ser inviável disparar um tiro certeiro com uma só mão, se a arma se encontrar apoiada à cintura.

Nem o Tribunal da Relação vislumbrou essas declarações, que o recorrente devia ter especificado, se as proferiu. 

O Tribunal a quo também não deu como provado que o tiro foi disparado com uma só mão.

O que disse, na fundamentação da matéria de facto, é que o disparo teve de ser dado com a arma empunhada à altura da cintura, mas não tinha de ser dada tendo a arma empunhada com ambas as mãos, pois também apenas com uma delas poderia ter efectuado o disparo.

E daí, ter dado como não provado no ponto ix) que “ o arguido empunhasse a espingarda com ambas as mãos”, como constava da acusação.

A afirmação de que era impossível direccionar o seu tiro, sendo o disparo feito com uma mão estando a arma empunhada à altura da cintura, também merece forte objecção, resultante de ter sido como provado, no ponto n.º 60 do acórdão recorrido – e sem impugnação –, que o disparo foi efectuado a uma distância não superior a 50 cm da zona do tórax de JL.... Ou seja, o disparo foi dado praticamente com o cano da espingarda caçadeira encostado ao corpo do arguido, pelo que é manifesto que não era impossível direccionar o seu tiro.

A afirmação do Inspector da PJ aposentado, AG..., arrolado como perito pelo arguido, de que o tiro dado pelo arguido não foi intencional, pois quando o tiro é intencional há um apontar da arma e a trajectória é de cima para baixo e quem quer matar uma pessoa procura a cabeça ou a zona do coração.

Antes do mais, não existe nenhum regra científica ou de experiência comum, de que só os tiros disparados de cima para baixo resultam de conduta intencional. E tendo o disparo sido dado a menos de 50 cm do corpo da vítima mortal, também não existe particular dificuldade em apontar e atingir este, seja com um tiro dado de cima para baixo, seja de baixo para cima.

Quanto ao local atingido pelo arguido, resulta bem claro da autópsia e do ponto n.º 56 dos factos dados como provados, que a vítima foi atingida na cabeça, no pescoço e no tórax,  causando nesta última parte do corpo, designadamente, perfuração dos pulmões e fracturas de costelas, deixando ainda um orifício de saída de bagos de chumbo de 12 cm.  

A vítima seguia agarrada, do seu lado esquerdo, pelo militar da GNR, sendo que a este não se tornou visível a arma transportada pelo arguido.

Estando este militar do lado esquerdo, não vemos ser improvável que o arguido ao aproximar-se do lado direito da vítima e próximo dele, tenha levantado a arma à altura da cintura, ou já aí a trazendo, tenha disparado voluntariamente um tiro no hemitórax direito da vítima, com a intenção de a matar.

No Relatório de patologia forense de folhas 834 a 839, os peritos médicos concluíram que “ Médico-legalmente e só pela autópsia, não é possível o diagnóstico diferencial seguro entre a natureza homicida ou acidental das lesões.” .

O arguido veio juntar entretanto um “ parecer médico-legal”, elaborado a seu pedido, onde duas médicas do INML vêm sustentar que “ todas as características do quadro lesional são muito mais consentâneas com uma natureza acidental do disparo do que com uma situação de disparo intencional”, perspectiva que sai reforçada pelas declarações constantes do processo relativamente à forma como o evento terá decorrido e aos momentos subsequentes.

Para este efeito menciona-se no parecer, designadamente, a orientação e trajecto do disparo, tido como quase tangencial e “ que só por mero caso acabou por provocar a morte”.  Acresce que segundo algumas declarações o arguido estava simultaneamente a segurar a vítima, com uma mão, e a espingarda com a outra, aquando do disparo, o que facilitaria o acidente. Segundo diversas declarações prestadas no processo e particularmente pelo agente da GNR que seguia com o arguido e a vítima, esta continuou a caminhar após o disparo, pelo que é de bom senso considerar que se tivesse existido um disparo intencional, o agente da GNR se teria imediatamente apercebido e não continuaria a caminhar, referindo ainda este, a folhas 894 dos autos, relatório da PJ, que na sua opinião se tratou de um acidente porque não o viu apontar a espingarda intencionalmente para o individuo, nem proferir ameaças ou perguntas inquisitórias.

Vejamos.         

Antes do mais diremos que cabe ao Tribunal, e não aos médicos, valorar os depoimentos das testemunhas e em face deles, conjuntamente ou não com outros meios de prova, decidir sobre a intenção ou não de matar.

Ainda assim diremos que a folhas 894 dos autos, no relatório da PJ, é reproduzido, em súmula, o depoimento da testemunha DB..., prestado no inquérito e que as declarações prestadas em inquérito pelas testemunhas apenas poderão ser valoradas se forem lidas em audiência de julgamento, nos termos do art.356.º, do C.P.P..

No caso em apreciação, não foi lido em audiência de julgamento o depoimento prestado pela testemunha DB..., durante o inquérito, e o arguido opôs-se mesmo, expressamente, à pretensão do Ministério Público da leitura do depoimento daquela testemunha “quanto à concreta actuação do arguido no momento da aproximação entre os três.” Assim, é proibida a valoração do que a testemunha terá dito no inquérito.

Aliás, pressupostos para a conclusão do parecer, como é exemplo, o estar o arguido a segurar a vítima com uma mão, aquando do disparo, não se provaram.

Sobre as características do quadro lesional elas estão bem descritas no Relatório de patologia forense de folhas 834 a 839 e o Tribunal da Relação não vislumbra nenhum motivo para divergir das conclusões dos senhores peritos médicos quando concluem que médico-legalmente e só pela autópsia, não é possível o diagnóstico diferencial seguro entre a natureza homicida ou acidental das lesões.

A intenção de matar, correspondendo a um estado de espírito inapreensível sensorialmente, salvo quando o homicida o declare expressamente, há-de resultar de factos objectivos que a indiciem.

O recorrente alega que da forma como o Tribunal a quo entende que o arguido carregava a arma e a disparou, mencionados nos pontos 52 a 54, conjugada com os factos não provados nos pontos ix – “O arguido empunhasse a espingarda com ambas as duas mãos” e x – “Antes já estivesse com o dedo no gatilho - e com as regras da experiencia comum, não é, nem pode ser, sustento para dar por provada a intenção de matar.

Salvo o devido respeito, a intenção de matar foi dada como provada, não só com base na forma como o disparo foi efectuado, constante dos pontos n.ºs 51 a 55 dos factos dados como provados, em que o Tribunal do Júri deu particular relevo ao depoimento da testemunha NV... , a PJ, mas essencialmente, em face da longa fundamentação expressa relativamente aos pontos n.ºs 78 a 88.

Nessa fundamentação realçam-se, entre outras, as circunstâncias do arguido se ter munido de uma arma caçadeira, que sabia manejar, e de uma quantidade não apurada de cartuxos (pelo menos 5) em sua casa, antes de se dirigir para o local dos factos; aí, não acatou a intimação de agentes da GNR para que a abandonasse e para que a não disparasse; acompanhou um agente da GNR munido da arma, em busca de eventuais assaltantes, para o local onde era mais provável que o(s) mesmo(s) se encontrasse(m) ; disparou por quatro vezes a arma, antes do tiro fatal, tendo-a recarregado após os disparos anteriores; voltou a recarregar a arma com pelo menos um cartucho na câmara correspondente ao cano inferior, antes do tiro fatal; a vítima encontrava-se algemada, com as mãos atrás das costas, deixando descoberta a zona das axilas; para disparar a arma pelo cano inferior é preciso premir o 1º gatilho (gatilho anterior) e é necessário exercer sobre o mesmo uma pressão de quase 3Kgs (2,95Kgs); a arma estava em boas condições de funcionamento, não sendo possível que disparasse se sujeita a pancada ou a queda; não existia qualquer confronto que pudesse determinar um disparo acidental, pois a vítima já se encontrava algemada e na presença de militar da GNR; apontou a arma (caçadeira, de chumbada, que dilacera todos os órgãos à sua passagem – no caso, e desde logo, o pulmão direito) a uma zona onde se encontram órgãos vitais, numa posição que necessariamente teria de ser quase perpendicular à zona atingida do corpo da vítima, com o cano ligeiramente inclinado para cima (a direcção do tiro é evidenciada pela chumbada e sangue da vítima que impactaram no muro em posição superior); para tanto, o arguido teria de empunhar a arma, ou com ambas as mãos, por forma a permitir aquele ângulo de tiro, ou, apenas com uma das mãos  mas neste último caso, e porque o centro de gravidade da arma se situa à frente dos gatilhos, atento o maior peso dos canos (depoimento da testemunha NV..., inspector da PJ), o arguido teria de fazer um esforço para colocar a arma na posição já referida, o que ainda mais evidenciaria a intenção de atingir aquela zona do corpo da vítima; o disparo foi a uma distância muito curta, não superior a 50 cm, evidenciada pela pequena auréola (de 2cm de diâmetro) da entrada da chumbada, sabendo-se que, em arma caçadeira, a chumbada vai abrindo à medida que o alvo se afasta do topo do cano da arma;  o tiro fatal entrou na axila direita e saiu pela zona peitoral, com direccionamento ligeiramente de trás para a frente e de baixo para cima; as palavras dirigidas pelo agente da GNR ao arguido, e a resposta deste, após o tiro fatal (“Acertaste-me” – “Isso não há-de ser grande coisa”), revelam também que o arguido estava concentrado em matar a vítima e que agiu em conformidade, pois sabendo que o corpo da vítima se encontrava de permeio entre ele e o agente, configurou que seria impossível, ou muito pouco provável, se disparasse daquela forma (atingindo a vítima de lado, e de trás para a frente) que o agente da GNR pudesse ser atingido, e na verdade, só o foi no braço e axila pelo facto de trazer o braço levantado a segurar uma lanterna, para iluminar o caminho.

O Tribunal da Relação para além de não vislumbrar, na fundamentação do acórdão recorrido, a violação de regras da experiência comum na valoração das provas examinadas, não pode deixar de notar que a testemunha DB... declarou que  o arguido, após o disparo fatal que atingiu a vítima de um modo muito violento, não disse de imediato que tinha disparado a arma sem querer ou por querer.

Um cidadão médio que tivesse disparado a sua arma caçadeira contra outro cidadão, acidentalmente, não deixaria de imediatamente anunciar que tinha disparado acidentalmente e, com visível atrapalhação, logo explicar o que acontecera.

Tal não aconteceu, e dada a distância a que a arma foi disparada contra a vítima, não podia deixar de conhecer as previsíveis consequências do seu acto exercido contra quem estava detido e algemado, por fortes suspeitas de furto ou tentativa de furto nos armazéns da “XX..., SA.”.

O Tribunal da Relação tem como perfeitamente admissível a versão dada como provada pelo Tribunal do Júri – com um voto de vencido –, adquirida na base da imediação e da oralidade e na livre apreciação da prova, uma vez que tem suporte na prova que o Tribunal recorrido reputou determinante para a formação da sua convicção.

Assim , não vemos motivo legal para alterar a matéria de facto relativa aos pontos n.ºs 52, 53, 54 e 55 e 79 a 89 da matéria de facto dada como provada, que assim se mantém.

Consequentemente, não se considera incorrectamente julgada a matéria dada como não provada, que consta do ponto xviii – “ nunca passou pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previsse a morte como consequência da sua conduta e não se tenha conformado com o desfecho.” -, mantendo-se essa  matéria entre a factualidade não provada.   

A questão seguinte a decidir é se o Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto ao não dar como assente que “ A) O arguido referiu várias vezes aos militares da G.N.R. que o disparo que vitimou JL... e acertou no militar da G.N.R. DB... não foi intencional; B) o arguido pediu ao sobrinho (ver empregado) para chamar uma ambulância; C) Nunca passou pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previu a morte como consequência da sua conduta e não se conformou com o desfecho.”.

Estes factos foram ignorados ou apenas indicados na parte da fundamentação referente aos factos considerados não provados e emergem das declarações prestadas pelas testemunhas LM..., PP... e JB..., pelo que devem passar a constar dos factos provados.

Vejamos.

Resulta da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido que a testemunha LM…, quando chegou ao local onde estavam o arguido e a vítima JL..., estando esta ainda viva, o arguido dizia que tinha sido um acidente. E, da mesma fundamentação, consta que a testemunha PP..., quando chegou perto do arguido este dizia que tinha sido sem intenção que disparara.

E, efectivamente, é na fundamentação da matéria de facto que se deve mencionar esta factualidade, como é a ali que deve constar, como consta, que após disparar a espingarda caçadeira, atingindo o JL... , o arguido não disse à testemunha DB... se tinha disparado sem querer ou por querer, nem lhe deu qualquer justificação para o disparo.

A conduta que o arguido teve nos segundos imediatos ao disparo era, objectivamente, mais importante do que a assumida posteriormente, já com mais tempo de reflexão sobre as consequências penais da sua conduta. E note-se que, dos segmentos transcritos na motivação, continuamos a não ver descrito pelo arguido, às duas testemunhas da GNR, o modo como se teria produzido o acidente.

Seria irrelevante incluir entre os factos provados, que o arguido disse às testemunhas LM… e PP...o acima exposto, bem como o que o arguido não disse à testemunha DB... aquando do disparo com a espingarda caçadeira, quando consta da matéria de facto provada que o arguido agiu deliberada , livre e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao JL..., com recurso a arma de fogo.

O que ora se disse é aplicável ao chamamento da ambulância pelo arguido.

A testemunha JB... declarou que ao passar num veículo pela vítima, pelo GNR e pelo arguido, seu patrão, este disse-lhe para chamar uma ambulância.

Importa, porém referir, que a testemunha DB... declarou também, como consta da fundamentação da sentença, que logo que se sentiu atingido pelo disparo da caçadeira do arguido, chamou pela rádio uma ambulância, para si própria.

Nestas circunstâncias, não teria qualquer relevância para a decisão da causa incluir na matéria de facto provada que o arguido, depois da testemunha DB... ter chamado uma ambulância para si, também pediu a um seu empregado e sobrinho, que passou depois num veículo automóvel, para chamar uma ambulância.  

Mantendo-se nos factos dados como não provados a matéria do ponto xviii – como o Tribunal a quo decidiu e já dissemos ser de manter –, é racional não poder incluir entre os factos provados que “Nunca passou pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previu a morte como consequência da sua conduta e não se conformou com o desfecho.”.

Improcede, assim, esta questão.

A questão seguinte é se o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo.

O princípio in dubio pro reo, que o recorrente alega ter sido violado pelo Tribunal a quo, estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido. Ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

Decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido .- Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ) .

Se na fundamentação da sentença/acórdão oferecida pelo Tribunal, este não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.

No presente caso, da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da matéria de facto, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido dos factos dados como provados.  

O que resulta daquela é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pelo arguido/recorrente AB... dos factos dados como provados.

Está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do princípio in dubio pro reo e, consequentemente, tem-se como fixada a matéria de facto nos termos que constam do douto acórdão recorrido, excepto quanto aos pontos n.º s 21 e 27 dos factos provados, em que se procedeu às supra mencionadas modificações.

A questão a abordar de seguida é se deverá a conduta do arguido AB... integrar a prática de um crime de homicídio privilegiado, a que deverá acrescer a prática de um crime de detenção de arma proibida, e ser condenado em pena de prisão inferior a 5 anos, suspensa na sua execução.

O recorrente sustenta, a propósito da eventual consideração da prática de um crime de homicídio privilegiado, que não aceita que se lhe assaque a vontade de matar. Mas, a não se entender assim, quando muito, deverá ser condenado pela prática de crime de homicídio privilegiado.

Vejamos.

O art.133.º do Código Penal, consagra o crime de homicídio privilegiado, nos seguintes termos:

« Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos».

A compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero ou o motivo de relevante valor social ou moral privilegiam o homicídio quando diminuam sensivelmente a culpa do agente.

Seguindo aqui a lição do Prof. Figueiredo Dias sobre, os elementos privilegiadores deste tipo penal, a « compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível.».

A diminuição sensível da culpa não pode, porém, ficar a dever-se a uma imputabilidade diminuída, ou a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.

Este elemento tem algum paralelo com a chamada provocação suficiente, isto é, aquela que “atingiu uma intensidade tal que, face a ela era razoavelmente de esperar que o provocado reagisse através de uma agressão”.

O requisito da “compreensibilidade” da emoção representa uma exigência adicional relativamente ao puro critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito.

A compaixão é um “ estado de afecto ligado à solidariedade ou à comparticipação no sofrimento d outra pessoa ”, e no desespero, “ estará em causa não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, quanto sobretudo estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta.”. [25]

Cremos que a diferença entre o motivo de relevante valor moral e o motivo de relevante valor  social, como elementos privilegiadores do homicídio está em que o valor moral se refere a interesses particulares, enquanto que o valor social é atinente a interesses da sociedade , da colectividade.

Resulta dos factos dados como provados, que o arguido AB... é administrador da empresa “Armazéns XX..., SA”, e que desde data anterior a 16 de Outubro de 2009, esta empresa tem sido alvo de sucessivos assaltos, ocorridos durante a noite, sobretudo na parte de armazém.

Acontece que na noite de 16 de Outubro de 2009, um militar da G.N.R. DB..., perseguiu e conseguiu deter, junto ao dito armazém, JL..., por suspeita de aí se encontrar para subtrair bens daquela empresa.

Quando o JL... caminhava algemado e agarrado no braço esquerdo pelo militar da GNR, sem oferecer resistência e meio curvado, surgiu o arguido de frente para estes e, após ter perguntado ao militar da GNR se sabia quem era o indivíduo, aproximou-se do JL... e com a arma a empunhada à altura da cintura deu-lhe, voluntariamente, um tiro, que foi causa directa e necessária da morte do JL....

Para além de não constar dos factos provados nada que indicie que o arguido estava possuído de uma “emoção violenta”, limitando-se a perguntar ao militar da GNR se conhecia o individuo detido, importa notar que um homem médio, “ fiel ao direito, sabendo que a pessoa responsável por um eventual assalto ao armazém uma de empresa de que é administrador, estava já detida e era levada pela autoridade policial sem oferecer resistência, não deixaria de se libertar do estado emocional violento que porventura se tivesse desencadeado nele.

Não vemos na atitude da vítima ou de terceiro, constante dos factos provados, qualquer acto que pudesse gerar no arguido uma compreensível emoção violenta, condicionante da sua capacidade de determinação, nomeadamente uma situação de provocação, e que tenha agido quando se encontrava dominado por essa emoção.

Não foi também referenciado, nos factos provados, um qualquer estado de afecto, integrador dos elementos privilegiadores compaixão ou desespero, que pudesse diminuir sensivelmente a culpa do arguido quando deu um tiro ao JL....

Motivos para o homicídio, de relevante valor social ou moral, também não se encontram enunciados nos factos dados como provados. O que não é de surpreender, uma vez que o arguido sustentou que não quis tirar a vida ao JL..., facto que o Tribunal de Júri deu como não provado no ponto xviii do acórdão recorrido.

A modificação da matéria de facto, efectuada pelo Tribunal da Relação, ao abrigo do art.431.º, al.b), do C.P.P., aos pontos n.ºs 21 e 27 da factualidade dada como provada, não alteraram de modo relevante as circunstâncias em que decorreu o homicídio, nada acrescentam de relevante ao nível do tipo de ilicitude ou da culpa.

Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo ao afastar a subsunção dos factos dados como provados ao crime de homicídio privilegiado a que alude o art.133.º do Código Penal e condenar o arguido pelo tipo fundamental de homicídio, p. e p. pelo art.131.º, do mesmo Código.

O crime de homicídio, p. e p. pelo art.131.º, do Código Penal, agravado pelo n.º 3 do art.86.º da Lei n.º 5/2006, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 17/2009, é punível com prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses. E o crime de detenção de arma proibida é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias.

As penas aplicadas ao arguido, quer pela prática do crime de homicídio, quer pela prática de um crime de detenção de arma proibida, encontram-se adequadamente fundamentadas no acórdão recorrido, sendo proporcionais à culpa e às razões de prevenção geral e especial, como bem se evidencia no acórdão recorrido, pelo que a pretensão do recorrente de condenação em pena de montante inferior a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, não pode ter provimento.

Improcede, por estas razões, nesta parte, o recurso.  

Por fim, passemos a conhecer da questão indemnizatória.

Os demandantes peticionaram uma indemnização de € 60.000,00 pelos danos não patrimoniais próprios, correspondente a € 30.000,00 para cada um dos demandantes.

O Tribunal a quo fixou essa indemnização em € 25.000,00 para cada um dos demandantes.

O recorrente AB... defende que deve ser substancialmente diminuída a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelos pais da vítima, que não deve ultrapassar os dez mil euros, alega para o efeito, e no essencial, que não ficou provada qualquer especial relação afectiva entre pais e filho, sendo relevante a circunstância dos pais não saberem a idade do filho e esconderem a existência de um outro filho para além dos referidos no requerimento com o intuito de encarecer o montante do pretenso sofrimento dos pais. 

Vejamos.
Os danos são os prejuízos sofridos pelo lesado, e quando atingem bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro, são qualificados como de natureza não patrimonial.
Para a fixação da indemnização, por danos não patrimoniais, rege o disposto no art.496.º do Código Civil, que no seu n.º 3, 1ª parte, estatui que o montante da indemnização deve ser fixado por critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias referidas no art.494.º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
A indemnização dos danos não patrimoniais, prevista no art.496.º do Código Civil, reveste uma natureza acentuadamente mista; por um lado, visa a compensação de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado , a conduta do agente.[26]  
Na formação do juízo de equidade, devem ter-se em conta também as regras da boa prudência, a justa medida das coisas, a criteriosa ponderação das realidades da vida, como se devem ter em atenção as soluções jurisprudenciais para casos semelhantes.[27] 

A obrigação de reparação só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão ( art.563.º do Código Civil ).
No caso em apreciação, o Tribunal da Relação desconhece se, como alega o recorrente, os pais dos demandantes não sabiam a idade do filho ou esconderam a existência de um outro filho.
O que está dado como provado, com interesse para a decisão desta questão, é que a vítima, JL..., tinha 42 anos de idade, à data do falecimento.
Era toxicodependente de longa data, estando desempregado há vários anos, sobrevivendo do que a mãe lhe dava. Vivia num anexo, junto à casa dos pais, e a sua morte causou “ profunda tristeza nos demandantes”.
A situação particularmente dolorosa e fulminante da vida do JL..., não pode ter deixado de causar aos demandantes uma grande dor. 
O grau de culpabilidade do demandado é elevado, uma vez que tirou a vida, voluntariamente, ao JL... e fê-lo numa situação em que este pela surpresa e por se encontrar algemado, não o poderia razoavelmente esperar.
A situação económica dos demandantes é modesta, como resulta dos pontos n..ºs 130, 131 e 134,  e a situação económica do demandado é boa, muito acima da média, como se depreende dos pontos n.ºs 106, 107 e 115 dos factos provados.

Em termos abstractos, o acórdão do STJ, de 13-10-2010, dá-nos notícia que a jurisprudência desse Tribunal, em situações de crime negligente e em relação à morte de um filho, fixa o valor da indemnização por danos próprios, num patamar de valor de, pelo menos, € 20.000,00”- sendo que no caso manteve a indemnização de € 30000,00 ao marido por morte da mulher, já idosa, em homicídio voluntário, [28]
Considerando estas e as demais circunstâncias em que decorreu a morte do filho dos demandantes e os valores que a jurisprudência mais recente vem fixando, o Tribunal da Relação não vê qualquer razão para alterar o montante fixado nesta parte pelo Tribunal recorrido.

Deste modo, consideramos que a indemnização de € 25.000,00 atribuída a cada um dos demandantes, para os compensar da dor e tristeza com a morte violenta do filho, voluntariamente causada pelo arguido/demandado, é equitativa e, consequentemente, mantemos a mesma.     

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AB... apenas na parte em que se alterou a matéria de facto dos pontos n.ºs 21 e 27 dos factos dados como provados e se excluiu da fundamentação da matéria de facto a “informação de serviço” de folhas 24 a 30, nos termos atrás definidos e, no mais, negar provimento ao recurso e manter o douto acórdão recorrido.

             Custas pelo recorrente, fixando em 8 Ucs a taxa de justiça.

                                                                         *

Orlando Gonçalves (Relator)

Alice Santos


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3] “Recursos em Processo Penal”, 6.ª edição, 2007, pág. 103.
[4]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[5] cfr. , entre outros, os acórdãos do STJ, de 3 de Abril de 1991( C.J., ano XVI, 2º, pág. 19), de 28 de Setembro de 1994 ( C.J.,ASTJ, ano II , 3º, pág. 206 ) , de 15 de Janeiro de 1997 ( C.J.,ASTJ, ano V, 1º, pág. 181), e de 7 de Outubro de 1998, ( C.J.,ASTJ, ano VI, 3º, pág. 183).
[6] Ac. TC., n.º 87/99, in www.tribunalconstitucional.pt
[7] “Constituição da República Portuguesa anotada”, Vol. I, Coimbra Editira,  2007, pág. 523.
[8] Prof. Geramano Marques da Silva , "Curso de Processo Penal", Vol. III, ed. 2000, pág. 252.
[9] “Código de Processo Penal anotado”, Almedina 17.ª edição, pág.803 e , entre outros, os acórdãos do STJ de 10-7-1996 ( CJ., ASTJ, ano IV, tomo 2, pág. 229) e de 23-2-2005 ( CJ n.º 181, pág. 210 ).
[10] Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código de Processo Penal", Unv. Católica Editora, 2007, pág.s 873 e 874.  

[11]   Prof. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", Vol. II, edição 1993, pág. 164.
[12] Cfr. Prof. Figueiredo Dias , “ Direito Processual Penal”, 1974, Coimbra Editora, pág. 278 e segs.    
[13] “Jornadas de Direito Processual Penal”, do CEJ,  Almedina, 1988, pág. 50.

[14] "Comentário do Código de Processo Penal", Unv. Católica Editora, 2007 , pág. 71.  

 

[15] Neste sentido, se pronuncia o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código de Processo Penal", Unv. Católica Editora, 2007, pág. 73. 

[16]  CFR.  “RPCC”, Janeiro-Março de 1994, pág. 121.
[17]  Cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 7/04/2010 ( proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado” ,   2ª ed., 2.º Vol. pág. 737 a 739.
[18] Cfr. obra citada, 2.º Vol., pág. 739.
[19] - Cfr. obra citada, 2.º Vol.,  pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).

[20] Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 300. 

[21] Cfr., “Direito Processual Penal”, 1º Vol. ,  Coimbra  Ed. , 1974, páginas 203 a 205.

[22] Cfr. “Direito Processual Penal”, 1º Vol. ,  Coimbra  Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .

[23]  cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289. 

[24] cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV,  1.º, pág. 51.

[25] In Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág.47 a 53.
[26] cfr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8.ª edição, Almedina , pág. 611 e seguintes e acórdão do STJ, de 26 de Junho de 1991, in BMJ, n.º 408.º, pág. 538.
[27] cfr. acórdãos do STJ, de 25 de Junho de 2002 ( C.J., ASTJ, ano X, tomo 2.º, pág. 128) e de 4 de Novembro de 2004 ( C.J., n.º 179, pág. 223).

[28]  Proc. n.º 58/08.4JAGRD.C1.S1, 3.ª Secção, in www,dgsi.pt