Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8566/17.0T9LSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: VIOLAÇÃO DE SEGREDO DE ESTADO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 03/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 316.º DO CP; ART. 68.º DO CPP
Sumário: I – O tipo de crime previsto no art. 316.º do CP tutela os bens jurídicos da independência, da segurança e da integridade nacionais, pertencentes ao Estado Português.

II – Consequentemente, a ANAC (Autoridade Nacional da Aviação Civil) - cujos estatutos não prevêem qualquer actividade de fiscalização do regime do segredo do Estado – não detém legitimidade para se constituir assistente em processo que tem por objecto factos relativos ao referido ilícito penal.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

No processo nº 272/17.1JACBR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Instrução Criminal de Leiria - Juiz 1, proveniente da Procuradoria da República da Comarca de Leiria – Departamento de Investigação e Acção Penal de Leiria – 1ª Secção, a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), pessoa colectiva nº (...) , com sede na Rua (...) , requereu a sua admissão nos autos como assistente e a abertura da instrução.

Em 10-07-2018 (fls. 259 dos presentes autos de recurso em separado), o Mmo. Juiz de instrução proferiu o seguinte despacho:

“Vem a ANAC requerer constituir-se assistente. Inexiste oposição. O crime objecto de inquérito e que a requerente pretende ver accionado é o crime de violação de segredo de Estado (art. 316 do C.P.). Ora, para além de não mostrar no seu requerimento um interesse direto objectivo (a não ser fins genéricos e difusos), o certo é que a norma do art. 68 n.º 1 não abrange o requerido. Na verdade, e em face do bem jurídico tutelado, não se vislumbra como a ANAC seja titular do interesse em causa, o que importa a não admissão como assistente.


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O requerimento de abertura de instrução é realizado, primeiro, por quem não tem legitimidade (cfr. art. 287 n.º 1 b) do C.P.P.), e em segundo lugar, caso a tivesse, não está de acordo com o n.º 2 da referida norma uma vez que não descreve circunstâncias de tempo, nem descreve factos atinentes ao dolo (art. 14 do C.P.), não podendo na instrução ser suprido tal facto, cfr. arts. 303 e 309 do C.P.P., decorrência do acusatório como constitucionalmente estatuído.

Rejeita-se pois o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal, n.º 3 do art. 287 do C.P.P..

Taxa de justiça em duas unidades de conta, cfr. art. 8º e tabela III.

Notifique. d.s.


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Inconformada com a decisão, recorreu a Autoridade Nacional da Aviação Civil, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

“A. O crime imputado à Denunciada é o crime de violação de Segredo de Estado, p. e p. pelo art.º 316º do Código Penal.

B. Com vista a aferir a legitimidade do “ofendido” para se constituir assistente em processo penal, deverá ter-se em consideração o crime específico que se encontre em causa e as características do caso concreto.

C. O bem jurídico protegido pela criminalização estabelecida no referido art.º 316º do Código Penal é a segurança, a unidade e a integridade do Estado Português.

D. Pelo que o titular do direito protegido é o próprio Estado Português.

E. Acresce que a Ofendida é uma entidade reguladora, ou seja, é uma pessoa coletiva de direito público “com atribuições em matéria de regulação da atividade económica, de defesa dos serviços de interesse geral, de proteção dos direitos e interesses dos consumidores e de promoção e defesa da concorrência dos setores privado, público, cooperativo e social.” (cfr. art.º 3º, n.º 3, alínea f) da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto e art.º 3º, n.º 1 da Lei-Quadro das Entidades Reguladoras), fazendo, por isso, parte do Estado.

F. Considerando que: (i) o documento que está em causa nos autos foi produzido pela Ofendida, (ii) que a informação constante do documento é informação sensível da Ofendida e (iii) quem procedeu à sua classificação foi a Ofendida, a mesma é a única titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

G. A Ofendida é a titular do direito de queixa, devendo ser admitida a sua constituição como assistente.

H. O requerimento de abertura de instrução não foi admitido por, além da suposta ilegitimidade, não estar de acordo com o n.º 2 do artigo 287.º do C.P.P..

I. Nos termos do citado artigo 287º, n.º 2 do C.P.P. o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a quaisquer formalidades e apenas deve conter as razões de facto e de direito de discordância, in casu, com a não acusação.

J. A Ofendida justificou porque discordava do despacho de arquivamento do inquérito, quanto ao entendimento de que os documentos classificados de reservados nos termos do ponto 3.2.4 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 8 de setembro de 1988 não estariam abrangidos pelo conceito de Segredo de Estado.

K. Quanto às circunstâncias de tempo foi expressamente indicado que a Denunciada procedeu à junção do documento classificado de reservado ao processo n.º 1278/17.6BELRA que corre termos no Tribunal Administrativo de Leiria – Unidade Orgânica 1, constando dos autos certidão do mesmo.

L. Quanto aos factos atinentes ao dolo consta do requerimento que a Denunciada obteve a credenciação até aos graus de Secret EU e Secreto para poder ter acesso a matéria classificada e que a mesma assinou um documento, sob compromisso de honra, de cumprimento das obrigações a que tal credenciação obrigava, mas mesmo assim tomou a decisão de juntar o documento classificado de reservado aos referidos autos, tornando-o acessível a terceiros.

Nestes termos, e nos mais que V/ Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em conformidade, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que admita a constituição de assistente da ora Recorrente e o requerimento de abertura de instrução por si apresentado, seguindo-se os demais termos do processo.”


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando em síntese que a recorrente, segundo os seus estatutos, é apenas uma autoridade nacional em matéria de aviação civil, a qual exerce unicamente funções de regulação, fiscalização e supervisão do sector da aviação civil e supervisionar e regulamentar as actividades desenvolvidas neste sector. Não tem poderes para fiscalizar o regime de segredo de Estado, cuja competência pertence à Assembleia da República ou uma entidade fiscalizadora, cuja criação e estatuto são aprovados por lei daquela A.R.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, aderiu à argumentação da resposta do Ministério Público, realçando que o titular dos interesses que o art. 316º do Cod. Penal quis proteger, com a respectiva incriminação, é o Estado Português, e não a recorrente Autoridade Nacional da Aviação Civil, cujos estatutos não prevêem qualquer actividade de fiscalização do regime do segredo do Estado.

Entendeu também que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente Autoridade Nacional da Aviação Civil, não apresenta uma acusação alternativa à omitida pelo Ministério Público, sendo que a sua rejeição pelo Tribunal a quo ficou a dever-se a deficiências, que são da exclusiva responsabilidade da recorrente, e que não podem ser objecto de aperfeiçoamento, face à Jurisprudência uniformizada pelo Acórdão do STJ n° 7/2005, de 12 de Maio, in DR, I-A, de 4 de Novembro de 2005. E concluiu pela improcedência do recurso.


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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal e a recorrente respondeu concluindo em síntese que:

 “Nos termos do n.º 1 do art.º 4 do Estatutos da Autoridade Nacional da Aviação Civil, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 40/2015, de 16 de Março, compete à Recorrente “regular e fiscalizar o setor da aviação civil e supervisionar e regulamentar as atividades desenvolvidas neste setor, excluindo-se do seu âmbito de atuação as atividades desenvolvidas no setor da aviação militar”.

Especificando o n.º 3, alínea c) do mesmo artigo que compete à Recorrente “Estabelecer e implementar o sistema de segurança do Estado nos termos do anexo 19 à Convenção sobre Aviação Civil Internacional”.

Acresce que, nos termos do art.º 19° do mesmo diploma legal o Presidente do Conselho de Administração da Recorrente é a Autoridade Nacional da Segurança da Aviação Civil, detendo, por esse efeito, poderes de autoridade.

De onde se terá, necessariamente, de concluir que a Recorrente exerce funções em que acautela a segurança nacional.

É exactamente por força do exercício dessas funções que lhe é reconhecida a possibilidade de classificar documentos nos termos Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 8 de setembro de 1988.

Destarte, sempre que esteja em causa a revelação de um documento e/ou informação, passível de colocar em causa algum dos bem jurídicos tutelados pela incriminação do art. 316º do Código Penal, como seja a independência, a segurança, e a integridade nacionais, qualquer das entidades a que estejam acometidas as funções de acautelar por esses bens jurídicos, se poderá constituir assistente nos termos do art. 68º do Código de Processo Penal.

Nem outro poderia ser o entendimento, uma vez que apenas as entidades que classificam os documentos é que conhecem o seu teor; até por força do próprio regime do segredo de Estado - apenas conhecem os documentos quem tem de os conhecer (need to know basis).

Não existe qualquer forma de gestão centralizada de toda a documentação classificada do Estado Português, competindo a cada serviço responsável pela classificação acautelar pela sua inviolabilidade. Nem poderia existir tal gestão, sob pena de se criar mais um possível risco de divulgação da informação.

Como poderão, então, essas entidades, a que a lei reconhece capacidade para classificar os documentos nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 8 de setembro de 1988, acautelar pelo segredo dos mesmos, se depois lhes vêem vedada a possibilidade de acompanhar e contribuir para o competente processo criminal com base numa mera interpretação formal e limitadora da atribuição de “actividade de fiscalização do regime de segredo de Estado”?

Entendeu ainda o Exmo. Senhor Procurador que o requerimento de abertura de instrução não cumpre com o art. 287º do Código de Processo Penal , quanto a esse facto, já a Recorrente teve a oportunidade de se pronunciar alargadamente nas suas alegações de recurso para as quais remete.

Nestes termos, e nos mais que V/ Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em conformidade, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que admita a constituição de assistente da ora Recorrente e o requerimento de abertura de instrução por si apresentado, seguindo-se os ulteriores termos do processo.”


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são as de saber se estão ou não verificados os pressupostos legais habilitantes da sua intervenção nos autos como assistente assim como se o RAI obedece aos requisitos legais para a sua admissão.


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            Com relevo para a questão proposta colhem-se dos autos os seguintes elementos:

            i) No inquérito nº 8566/17.0T9LSB  são (foram) investigados factos susceptíveis de, eventualmente, preencherem o tipo do crime de Violação de Degredo de Estado, p. e p. pelo art.º 316.º, do Código Penal.

            ii) No despacho de arquivamento entendeu o MP que o documento em questão - classificado como “reservado”, - “não é classificado como segredo de Estado, nos termos legais, por não preencher os requisitos materiais ( conteúdo) e formais ( classificação qua tale por quem de direito) exigidos para tanto.” …  “Na verdade, a apontada classificação como “reservado”  não se confunde com a classificação como “segredo de Estado”, como decorre aliás do artigo 1º, nº 5, da Lei Orgânica nº 2/2014 de 6/Agosto”.

iii) No requerimento de abertura de instrução a recorrente discorda do entendimento do  MP de que a denunciada não cometeu o referido crime ao juntar o documento no processo 1278/17.6BELRA que move contra si, no Tribunal Administrativo de Leiria, por considerar que “não é classificado como documento de Estado.”. Para tanto descreve a contratação da denunciada, indica o período em que exerceu as funções, a competência do Gabinete de Facilitação e Segurança da Aviação Civil, e alega que para o desempenho das referidas funções a denunciada teve de ser credenciada para ter acesso a matéria classificada até aos graus de Secret EU e Secreto. Mais indica que do documento em causa, intitulado de Planeamento das acções de Controlo qualidade para 2017 - FALSEC, constam as auditorias, inspecções, testes de segurança, investigações e inquéritos a serem desenvolvidas nas infraestruturas aeroportuárias nacionais durante o ano de 2017, indicando locais, equipas envolvidas, áreas a inspeccionar e o objectivo pretendido.


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Dos pressupostos legais habilitantes da constituição de assistente:

O assistente é o sujeito processual que intervém no processo penal como colaborador do Ministério Público na promoção da aplicação da lei ao caso concreto, por ter a qualidade de ofendido ou especiais relações com este ou pela natureza do próprio crime (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª Edição Revista e Actualizada, 2000, Editorial Verbo, pág. 333).

Conforme se assinala no acórdão desta Relação de Coimbra, de 14 de Novembro de 2018, relator Des. Vasques Osório, o assistente, enquanto sujeito processual, é uma figura particular do processo penal português que desde sempre se encontra relacionado com a figura do lesado e com a figura do ofendido.  O C. Processo Penal em vigor não define o conceito de assistente limitando-se [como o seu antecessor e o Decreto nº 35007, de 13 de Outubro de 1945] à indicação da sua posição e competências processuais.”

Assim, de acordo com o artigo 68.º nº 1 al. a) do CPP, podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesse(s) que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.”

Com efeito, dispõe o art. 68º do C. Processo Penal, na parte em que agora releva:

1 – Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:

a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;

b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;

c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;

d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;

e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.

(…).

E dispõe o art. 69º do mesmo diploma:

1 – Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

2 – Compete em especial aos assistentes:

a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;

b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;

c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.”

Constata-se pois que o legislador português adoptou um conceito estrito de ofendido, limitando-o ao titular do interesse directo, imediata e predominantemente protegido pela incriminação, desde que maior de 16 anos.

Augusto Silva Dias, defende uma concepção alargada de ofendido (Jornadas de Direito Processual e Direitos Fundamentais, A tutela do ofendido e a posição do assistente, 2004, Almedina, pág. 55 e ss.) que é actualmente minoritária na jurisprudência e na doutrina.

Prevê ainda a lei que qualquer cidadão relativamente a certos crimes, possa ter a qualidade de assistente - acção penal popular.

E também prevê, em muito ampliando o campo de intervenção particular no processo penal, que leis avulsas confiram a determinadas pessoas e entidades o direito de se constituírem assistentes relativamente a certos crimes … - acórdão supra citado.

2. Revertendo aos autos.

Considerando o conceito estrito de ofendido adoptado no art. 68º, nº 1, a) do C. Processo Penal, a recorrente ANAC não tem, manifestamente, tal qualidade.

No inquérito é (foi) investigada pelo Ministério Público a prática de um crime de violação de segredo de Estado.

O art.º 316.º, nº1, do Código Penal dispõe: “Quem, pondo em perigo interesses fundamentais do Estado Português, transmitir, tornar acessível a pessoa não autorizada ou tornar público, no todo ou em parte, e independentemente da forma de acesso, informação facto ou documento, plano ou objecto classificado como segredo de Estado que devem, em nome daqueles interesses, manter-se secretos é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

         Por sua vez, dispõe o n.º 6 do referido art.º 316.º: “Consideram-se interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afectos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”

      É assim manifesto que o art. 316° do Cod. Penal, tutela bens jurídicos da independência, da segurança, e da integridade nacionais, pertencentes ao Estado Português.

Consequentemente é o Estado Português o titular dos interesses que o referido art. 316º do Cod. Penal quis proteger com a respectiva incriminação e não a recorrente Autoridade Nacional da Aviação Civil, cujos estatutos não prevêem qualquer actividade de fiscalização do regime do segredo do Estado.

Ao contrário do que afirma, a recorrente Autoridade Nacional da Aviação Civil, é apenas uma autoridade nacional em matéria de aviação civil, que unicamente exerce funções de regulação, de fiscalização, e de supervisão do sector da aviação civil, bem como funções de supervisão e de regulamentação das actividades desenvolvidas neste sector. Para além destas, não tem a ANAC qualquer competência para fiscalizar o regime de segredo de Estado.

De acordo com o Regime do Segredo de Estado, a classificação como segredo de Estado (…) é da competência do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, dos Vice-Primeiros-Ministros e dos Ministros. 

   E segundo o mesmo Regime, “Sem prejuízo dos poderes de fiscalização pela Assembleia da República nos termos constitucionais, a fiscalização do regime do segredo de Estado é assegurada por uma entidade fiscalizadora, cuja criação e estatuto são aprovados por lei da Assembleia da República.”

E como anota o MP no seu parecer, “foi o Gabinete Nacional de Segurança, na dependência da Presidência do Conselho de Ministros, que credenciou a arguida (…), para ter acesso a matérias classificadas.”

Em suma, dos estatutos da Autoridade Nacional da Aviação Civil não consta que seja esta a entidade fiscalizadora do regime do segredo de Estado, pelo que não tem tal competência, que pertence à Assembleia da República e à Autoridade Nacional de Segurança.

De notar que nos termos do n.º 1 do art.º 4 do Estatutos da Autoridade Nacional da Aviação Civil, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 40/2015, de 16 de Março, compete à Recorrente “regular e fiscalizar o setor da aviação civil e supervisionar e regulamentar as atividades desenvolvidas neste setor, excluindo-se do seu âmbito de atuação as atividades desenvolvidas no setor da aviação militar”.

Além de que o n.º 3, alínea b) do mesmo artigo se refere à gestão da segurança operacional nos termos do anexo 19 à Convenção sobre Aviação Civil Internacional, em aplicação desde Novembro de 2013, reforçando o papel dos Estados nesta matéria.

     Acresce que o crime em investigação não integra as categorias e /ou tipos de crime previstos na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal: crimes contra a paz (arts. 10º a 18º da Lei nº 31/2004, de 22 de Julho), crimes contra a humanidade (arts. 8º e 9º da Lei nº 31/2004, de 22 de Julho), crime de tráfico de influência (art. 335º do C. Penal), crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário (art. 368º do C. Penal), crime de denegação de justiça e prevaricação (art. 369º do C. Penal), crime de corrupção (arts. 373º e 374 do C. Penal), crime de peculato (art. 375º do C. Penal), crime de participação económica em negócio (art. 377º do C. Penal), crime de abuso de poder (art. 382º do C. Penal), crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção (art. 36º do Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro) e crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado (art. 37º do Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro).      

O que desde logo afasta a possibilidade de, através da «acção penal popular», prevista na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal, a recorrente obter a necessária legitimidade para se constituir assistente nos autos.

Por outro lado, não existe norma avulsa habilitante que confira à recorrente a faculdade de requerer a sua constituição como assistente nos autos.

Não será também pelo alargamento do conceito de ofendido, ao arrepio e contrariamente ao fixado na alínea a) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal que a recorrente logrará obter a pretendida legitimidade para requerer a sua constituição nos autos como assistente.

O que impõe a conclusão de que a ANAC não tem legitimidade para se constituir como assistente nos presentes autos e consequentemente, não tem legitimidade para requerer a instrução, pelo que não merece censura o despacho recorrido.

Prejudicada fica assim a questão da inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução - n.º 3 do art. 287º, do C.P.P.    


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS.



Coimbra, 13 de Março de 2019

(Texto processado e integralmente revisto pela relatora)

Isabel Valongo (relatora)



Elisa Sales (adjunta)