Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
393/10.1TBVNO-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: INSOLVÊNCIA
HOMOLOGAÇÃO
DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE CREDORES
CRÉDITO FISCAL
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 196º E 199º DO CPPT
Sumário: I – Nos processos de insolvência a relação criada é entre massa insolvente e credores, cujos interesses e regulação são acolhidos nesse processo e em que é princípio geral o da igualdade dos credores do insolvente.

II – O estado intervém aqui num plano distinto, como credor em concurso com os demais credores do insolvente/contribuinte.

III – Da auto-regulação no plano da insolvência não estão excluídos os créditos fiscais, consentindo-se na eliminação dos privilégios creditórios.

IV – Donde poder o plano afectar esses créditos, e essa afectação ser vinculativa para todos os credores.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            I- RELATÓRIO

            I.1- A sociedade anónima «A...», foi declarada insolvente por sentença datada de 31.3.10, transitada em julgado em 11.5.10.

            O administrador judicial nomeado elaborou uma proposta de plano de insolvência, a qual foi discutida e aprovada com modificações, em assembleia de credores para tanto realizada no dia 22.10.10, votando desfavoravelmente, entre outros, o MºPº.

            Nos termos desse plano, encontra-se previsto quanto à dívida à Fazenda Nacional:

            “Pagamento do capital em dívida em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas (ao abrigo da Lei 3-B/2010 de 28 de Abril, vulgo Lei do Orçamento do Estado), com perdão de juros vencidos e pagamento de 2,5% de juros vincendos, demais condições conforme legislação específica para este credor”.

            Datada de 22.12.10, foi proferida sentença a homologar o plano de insolvência apresentado.

            I.2- Desta decisão apelou o MºPº em representação da Fazenda Nacional.

            Alegando, concluiu nestes termos:

            […]

I.3- Contra-alegou a sociedade insolvente, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Nada havendo a obstar à apreciação do objecto do recurso, e dispensados os vistos, cumpre decidir.

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II - FUNDAMENTOS

II.1- A factualidade relevante para a decisão ficou acima relatada.

II.2- Da leitura das conclusões vê-se que o recurso está centrado numa única questão: a de saber se não devia ter sido homologada a deliberação da assembleia de credores que aprovou um plano de insolvência no qual se prevê, em relação aos créditos tributários, pagamento faseado, perdão de juros vencidos e redução da taxa dos juros vincendos, por violação das regras contidas nos arts.30º/2 e 36º/2 e 3 da Lei Geral Tributária (LGT), e nos arts.196º e 199º do Código de Processo e Procedimento Tributário (CPPT).

Argumenta o MºPº recorrente, esgrimindo com aqueles preceitos, que perante tais créditos o plano não se mostra conforme as apontadas normas, as quais consagram os princípios da indisponibilidade dos créditos tributários e da proibição da moratória, bem como o seu regime de regularização de pagamento em prestações.

A LGT (DL 398/98 de 17.12), regula, além do mais, a relação jurídica tributária, como tal considerada a estabelecida entre a administração tributária, agindo como tal, e a pessoa singular e colectiva e outras entidades a elas legalmente equiparadas (art.1º/1 e 2).

Estabelece o art.30º/2 que “o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.

Dispõe o nº2 do art.36º que “Os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes”, estabelecendo o nº3 seguinte que “A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei”.

Tais imperativos legais têm o seu campo de aplicação restrito à relação tributária entre Estado/Contribuinte, e aí se esgotam. Encontram o seu fundamento no princípio da legalidade da administração tributária.

Ora, estamos perante um processo de insolvência, a que é aplicável o regime jurídico contido no C.I.R.E. (DL 53/04, de 18.3, alterado e republicado pelo DL 200/04, de 18.8).

De acordo com o art.1º, tal processo tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente, a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência.

Como bem assinala a recorrida, no lugar da relação Estado/Contribuinte, surge no processo de insolvência a relação massa insolvente/credores, cujos interesses e regulação são acolhidos nesse processo, e em que é geral o princípio da igualdade dos credores do insolvente. O Estado intervém aqui num plano distinto, como credor em concurso com os demais credores de um insolvente/contribuinte. Daí que não faria sentido que, na sua vertente de Administração Fiscal e como que estendendo os seus poderes tributários, o Estado pusesse em causa esse princípio, bloqueando o plano maioritariamente aprovado, com a invocação de normas da LGT e do CPPT que têm o seu campo de aplicação na relação tributária.

A primazia da satisfação dos credores, como objectivo último de todo o processo de insolvência, exige o sacrifício de terceiros. Assim, o plano de insolvência, com a finalidade de recuperar a empresa e dependente quase exclusivamente da vontade dos credores, pode influir com direitos de terceiros independentemente do seu consentimento – desde que a lei o autorize expressamente (art.192º/2); pode sujeitar um credor a um tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores sem necessidade do seu consentimento expresso (art.194º/2), e pode afectar os créditos do Estado, das instituições da Segurança Social e de outras entidades públicas, sujeitos a regimes especiais (art.196º/2).[1]

O plano de insolvência vem regulado nos arts.192º a 222º, estriba-se no princípio da liberdade de estipulação do conteúdo (arts.195º e 196º), acolhendo o art.194º o princípio da igualdade de tratamento dos credores, trave basilar e estruturante na regulação do plano.[2]

No plano da regra da liberdade de conteúdo que permite a composição do plano pelo modo que pareça mais ajustado à satisfação dos interesses dos credores, o art.196º/1-a) veio consignar, entre outras providências relativas ao passivo do devedor, “o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna»”.

Por sua vez, dispõe o art.197º-a) que “na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência, os direitos decorrentes de garantias reais e privilégios creditórios não são afectados pelo plano”. Retira-se deste preceito que tais direitos existentes podem ser atingidos, desde que a afectação conste do plano.

Em torno deste preceito, sentenciou-se no Ac.STJ de 13.1.09: “… a expressão na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implica que pode haver regulação diversa contendendo com os créditos previstos nas als.a) e b), o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o plano de insolvência. Só assim não será, se houve expressa adopção de um regime diferente”.[3]

Assim, da auto-regulação no plano da insolvência não estão excluídos os créditos fiscais, consentindo-se na eliminação dos privilégios creditórios. Donde, poder o plano afectar esses créditos, e essa afectação ser vinculativa para todos os credores.[4]

Conforme se escreveu no infra referido aresto do STJ de 4.6.09, “inexiste violação do princípio da legalidade (…) não ocorre aqui qualquer derrogação das normas fiscais imperativas, pela vontade das partes ou dos credores, mas antes um regime especial estabelecido pela própria lei, plasmado pelo CIRE (…), estando mesmo prevista, no art.196º do citado diploma legal, a possibilidade de o plano contemplar o perdão ou redução dos créditos sobre a massa insolvente, sendo certo que para a aprovação de tal plano, não se exige unanimidade, mas o quórum a que se refere o art.212º do CIRE.

Não ocorre qualquer violação do princípio da igualdade, posto que a interpretação de tal princípio não pode deixar de assentar no entendimento de que, como bem se proclamou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº231/94, «a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica», tendo o legislador, em matéria de insolvência, tomado as opções aí referidas, sempre tendo no horizonte o tratamento igualitário de todos os credores do devedor …”.

            Revertendo à situação dos autos, o plano de insolvência que contemplou o perdão de juros vencidos e a redução da taxa devida pelos juros vincendos de créditos do Estado, foi aprovado pela maioria dos credores, como lhes competia e ao abrigo de um regime especial operado pela lei da insolvência (art.196º/1-a)). Embora sem o consentimento do MºPº, enquanto representante da Fazenda Nacional, esse plano podia ser homologado, como foi, passando a vincular todos os credores.

            Em suma, como se refere a terminar no citado Ac. STJ de 13.1.09, “não existe violação do princípio da legalidade fiscal, dada a natureza peculiar do processo de insolvência, porque a lei prevê a possibilidade dos créditos do Estado serem despojados de privilégios, mesmo sem a sua aquiescência…”.

            Dito isto, improcedem todas as conclusões da alegação do recorrente, mantendo-se a decisão recorrida.

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            III - DECISÃO

            Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Sem custas.

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Regina Rosa (Relatora)
Jorge Arcanjo
Jaime Carlos Ferreira

[1]   Cfr. Catarina Serra, «O novo regime português da insolvência», 4ª ed., pág.126-129
[2]   Cfr. L. Carvalho Fernandes e J. Labareda, «C.I.R.E. anotado», Vol.II, pág.46 
[3]   processo nº08A3763 in www.stj.pt. No mesmo sentido, o Ac.STJ de 4.6.09, CJstj II/09-91, e o Ac.STJ de 2.3.10, processo nº4554/08.5TBLRA-F.C1.S1, no referido sítio.
[4]   Cfr. Acs da R.P. de 26.5.08, 31.1.08 e 6.11.08, proc. nºs 0852239, 0736250 e 0834073, respectivamente, consultáveis no mesmo sítio.