Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9485/16.2T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
DECISÃO POR DESPACHO JUDICIAL
Data do Acordão: 12/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 64.º, N.ºS 1 E 2, DO RGCO
Sumário: I – Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 64.º, n.ºs 1 e 2, do RGCO, não pode o julgador, sem ofensa do contraditório e, portanto, das garantias de defesa do arguido, extrair do silêncio daquele a sua não oposição à decisão por despacho, tendo em devida conta a impugnação dos factos e a apresentação de prova, pretendendo, por esta via, a demonstração de uma realidade incompatível com a prática da contra-ordenação por que foi condenado.

II – Nesse quadro, a preterição da realização da audiência de julgamento – diligência essencial para a descoberta da verdade –, constitui uma nulidade processual enquadrável na al. d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de 10.04.2015 foi o arguido A...., melhor identificado nos autos, condenado, pela prática, a título de negligência, de uma contra-ordenação ao disposto no artigo 49.º, n.º 1, al. d) e 3 do código da Estrada, punida ainda nos nos termos do artigo dos arts 138º e 145º, nº 1, al o) Código da Estrada, na coima de € 30 (trinta euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias.

2. Inconformado o arguido impugnou judicialmente a decisão.

3. Recebido o recurso – que correu sob o n.º 9485/16.2T8CBR na Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal – Juiz 3, por despacho de 7.04.2017 decidiu o tribunal pela sua improcedência, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

4. Não se conformando com o assim decidido recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

“1ª Salvo o devido respeito, a decisão recorrida é manifestamente nula e ilegal, pelo que deve ser revogada.

Senão vejamos.

2ª A decisão recorrida, ao decidir por simples despacho quando o recorrente havia impugnado a matéria de facto constante da acusação e requerido a produção de diversas diligências de prova, incluindo testemunhal, violou o nº 3 do artº 119º e da al. d) do nº 2 do artº 120º, ambos do CPP, pelo que é nula e de nenhum efeito, devendo ser revogada.

3ª Ao interpretar os nºs 1 a 3 do artº 64º do DL nº 433/82, no sentido de permitir a decisão por simples despacho quando o arguido impugnou a matéria de facto e requereu a produção de prova em julgamento, incorre numa interpretação materialmente inconstitucional das normas supra referidas, por violação do direito a um processo equitativo e das garantias de audiência e defesa em matéria criminal e sancionatória, ínsitas nos artºs 20º/4 e 32º da Constituição.

4ª A decisão recorrida não se pronunciou sobre nenhuma das questões de Direito e relativas à matéria de facto que foram oportunamente suscitadas pelo recorrente em sede de impugnação judicial, pelo que violou o disposto no artº 379º/1/c) do CPP e 615º/1/d) do CPC, incorrendo em nulidade de sentença.

5ª A decisão recorrida, ao acolher o teor da acusação, incorre em erro de julgamento dado que os elementos constantes dos autos demonstram que o recorrente não cometeu a infracção que lhe foi assacada.

Nestes termos,

Deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, revogada a decisão recorrida, com as legais consequências.

Assim será cumprido o Direito e feita JUSTIÇA.”

5. O Exmo. Procurador Adjunto respondeu ao recurso, concluindo que tendo sido o arguido notificado, sem a advertência de que o seu silêncio equivaleria a uma não posição, não poderá a ausência de resposta ser interpretada como não oposição a que a causa seja decidida através de simples despacho, especialmente porque quando impugnou a matéria de facto e arrolou duas testemunhas. Assim, ao ter-se proferido decisão por despacho, terá sido praticada uma nulidade processual susceptível de ser enquadrada na al. d) do n.º 2 do art. 120º do C.P.P., o que determinará a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro que designe dia para realização de audiência de julgamento.

6. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

7. Na Relação, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto entendendo embora que se verifica a nulidade da decisão porque se impunha que fosse tomada após a realização da audiência de julgamento, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso por não ter sido arguida tal nulidade no prazo de 5 (cinco) dias após a notificação da sentença pelo que se encontra sanada.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995.

Consequentemente nos presentes autos importa decidir:

- se o silêncio do arguido, na sequência da notificação para o efeito do artigo 64º do RGCO vale como assentimento ou não oposição a que a decisão seja tomada por mero despacho;

- se ocorre nulidade por omissão de pronuncia sobre as questões de Direito e relativas à matéria de facto que foram oportunamente suscitadas pelo recorrente em sede de impugnação judicial;

- se foi efectuada interpretação materialmente inconstitucional das normas dos nºs 1 a 3 do artº 64º do DL nº 433/82.


*

2 - Sinopse processual relevante:

- Por despacho de 17-01-2017, foi determinada a notificação do recorrente e do MP, “nos termos e para os efeitos previstos no art 64º nº 2 in fine do DL 433/82 de 21-10 - cfr fls 28.-após a referida notificação o MP - cfr fls 34 - declarou nada a opor à prolacção de decisão por despacho.

- O arguido nada disse.

- Proferida decisão por despacho judicial, inconformado e tempestivamente o arguido interpôs o recurso agora em apreciação.

- Na sequência da decisão da autoridade administrativa, reagiu o recorrente mediante a impugnação judicial de fls. 11 a 19, na qual pôs em causa a factualidade ali vertida, concretizando os motivos de facto, em razão dos quais, entendia, não lhe poder ser a conduta imputada. Juntou ainda uma foto do portão da garagem e arrolou duas testemunhas - cfr fls 17.

3. Apreciando

Insurge-se o recorrente contra a circunstância de o tribunal a quo ter interpretado o seu silêncio, na sequência da notificação que lhe foi dirigida a fls. 30 dos autos, em cumprimento do despacho exarado a fls. 28, no sentido de assentimento/não oposição a que a decisão fosse proferida mediante despacho, o que, aduz, resultou em prejuízo do seu direito de defesa, tanto mais que decorre da impugnação judicial a essencialidade da audição da prova testemunhal, expressamente arrolada, por impugnação da matéria de facto.

Entende ainda que a decisão incorre numa interpretação materialmente inconstitucional das normas dos nºs 1 a 3 do artº 64º do DL nº 433/82, por violação do direito a um processo equitativo e das garantias de audiência e defesa em matéria criminal e sancionatória, ínsitas nos artºs 20º/4 e 32º da Constituição.

Com tal fundamento, como forma de garantir o exercício do seu direito de defesa, pugna pela revogação da decisão proferida.

É manifesta a precedência de tal questão relativamente às demais colocadas, cuja decisão pode prejudicar o conhecimento das restantes.

Como supra se assinalou na sinopse, realizada a notificação, no caso do arguido, acompanhada de cópia do despacho, veio o Ministério Público, expressamente, manifestar a sua não oposição à decisão por despacho, tendo-se aquele remetido ao silêncio.

Perante o que entendeu o tribunal face à não oposição do recorrente e do Ministério Público decidir por simples despacho, ora em crise.

Vejamos:

Dispõe o artigo 64º do RGCOC - Decisão por despacho judicial:

«1 – O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

2 – O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.

É consensual na doutrina e na jurisprudência ser necessária a conjugação dos factores, inscritos no n.º 2, para que a decisão tenha lugar mediante despacho.

Neste sentido, os Cons. António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral «Consideramos, assim, adquirido que a decisão do recurso da entidade administrativa apenas se pode efectuar através de despacho desde que, para além do juízo nesse sentido formulado pelo julgador e da não oposição do M.º P.º e do arguido, não exista prova cujos respectivos meios de produção apenas tenham a possibilidade de ser contraditados em sede de audiência de julgamento. Significa o exposto que apenas quando o juiz considera adquiridos os factos recolhidos em sede administrativa e que não existem outras provas a produzir é que deverá decidir através de despacho.

(…)

Os casos em que o juiz deverá decidir por despacho terão de ser casos em que a decisão final não dependa da realização de diligências de prova.

Assim, poderá decidir-se por despacho sempre que for de julgar procedente alguma excepção, dilatória … ou peremptória …, ou a questão que é objecto de recurso for apenas de direito ou, quando a questão que é objecto de recurso for de facto, o processo forneça todos os elementos necessários para o seu conhecimento – cf. “Notas ao Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, 3.ª Edição, Almedina, págs. 228/230.

Também António Beça Pereira a propósito entende que «Da conjugação coordenada copulativa e utilizada neste n.º 2, resulta, claramente, que estamos perante dois requisitos cumulativos, a saber: 1.º O juiz considera desnecessária a realização da audiência de julgamento; 2.º O arguido e o Ministério Público não se opõem à decisão do recurso por despacho» - cf. “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, 7.ª Edição, Almedina, pág. 134.

E o mesmo defende Paulo Pinto de Albuquerque: «Para a decisão por despacho são necessárias três condições cumulativas: (1) o juiz considerar desnecessária a audiência de julgamento; (2) o arguido não se opor à decisão por despacho, nem requerer produção de prova e (3) o MP não se opor à decisão por despacho. Faltando uma das condições, o juiz tem de marcar audiência de julgamento …» - cf. “Comentário do Regime Geral das Contra – Ordenações”, Universidade Católica Editora, págs. 265/266.

Importa ainda determinar o valor a atribuir ao silêncio do arguido, atendendo até à circunstância de, na sua impugnação, ter indicado testemunhas.

Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações. Anotações ao Regime Geral”, 5ª edição, Setembro de 2009, Vislis, p. 550, entendem que o juiz não pode decidir por despacho, uma vez que deve entender-se que constitui manifestação implícita de oposição o oferecimento de prova que deva ser produzida em audiência – tese seguida na jurisprudência, entre outros, os Acs. da RP de 25/10/2006 (Pº 643695), de 17/9/2008 (Pº 2397/08) e de 4/2/2009 (Pº 816413), todos disponíveis in www.dgsi.pt e Ac. RL de 4/3/1992, in Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, tomo II, pág. 164.

Já para outros, entre os quais António Beça Pereira, in “Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, em anotação ao mencionado art.º 64º, a oposição exigida pelo n.º 2 do art.º 64.º tem de ser expressa e inequívoca, não podendo ser tida por oposição a circunstância do arguido, na impugnação judicial ter arrolado testemunhas – neste sentido, os Acórdãos da Relação do Porto de 17.10.2001 (Pº 111027), de 24.01.2007 (Pº 615898) e de 09.02.2009 (Pº 846813), bem como Ac. da Relação de Évora de 11/10/2011 (Pº 272/11.5TBLGS), todos disponíveis in www.dgsi.pt»

Revertendo aos autos e perante a similitude da situação, afigura-se-nos optar pela solução do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.01.2008, do qual se extracta:

«Em termos gerais, a “não oposição” pode ser expressa ou meramente tácita. Porém, não decorrendo da citada norma que a não oposição tácita tem o mesmo valor da expressa, essa consequência terá necessariamente de ser comunicada ao acoimado, isto é, se nada disser no prazo concedido, se terá por assente que não se opõe a que a causa seja decidida “através de simples despacho”.

E a necessidade dessa cominação será ainda maior naqueles casos – como o presente -, em que o acoimado, na impugnação judicial, negue os factos e ofereça prova testemunhal. É que, independentemente da relevância da defesa, é normal que o recorrente espere que o juiz apenas decida das questões colocadas na impugnação depois de produzir a prova que ofereceu, ou depois de lhe serem comunicadas as razões porque se considera a prova irrelevante.

Ora, in casu, para além do despacho de fls. … não conter tais razões perante a expressão genérica utilizada (“face à situação concreta dos autos”), o certo é que, atenta a forma como foi efectuada a notificação, não podia o Ex.mo Sr. Juiz a quo concluir pela “não oposição”…

A decisão por despacho nos casos em que não tiver sido validamente obtida a não oposição do MºPº ou do arguido a tal forma de decisão «constitui uma nulidade processual susceptível de ser enquadrada na al. d) do n.º 2 do art. 120º do CPP, pois a imposição legal da obrigatoriedade de realização da audiência, nestes casos, tem como corolário que ele deva considerar-se como essencial para a descoberta da verdade» - vide Simas Santos e Lopes de Sousa, em anotação ao RGCO, pág. 376» - cf. CJ, Ano XXXIII, T. I, 2008, págs. 294/295.

Revertendo aos autos, é notório que não podia o julgador, sem ofensa do contraditório e portanto das garantias de defesa, extrair do silêncio do arguido a sua não oposição à decisão por despacho, atenta a impugnação dos factos e a apresentação de prova, dos quais pretendia extrair uma realidade incompatível com a prática da contra-ordenação por que foi condenado.

Acresce que o despacho proferido não menciona os motivos da irrelevância da prova arrolada, e o despacho que, para o efeito, lhe foi notificado, não afasta a necessidade de uma tomada de posição expressa, no sentido de «oposição» ou de «não oposição» à decisão pela forma preconizada por parte do julgador.

A violação do direito de defesa na preterição da realização da audiência de julgamento – diligência essencial para a descoberta da verdade -, constitui uma nulidade processual, enquadrável na al. d), do n.º 2, do artigo 120º do CPP, no caso atempadamente suscitada - artigos 410.º, nº 3 do CPP e 73.º, n.º 1, al. e) do RGCO, pelo que se impõe revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que designe data para a realização do julgamento.

Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que designe data para realização da audiência de julgamento.

Sem tributação.

Coimbra, 13 de Dezembro de 2017

(Texto processado e integralmente revisto pela signatária – artigo 94.º, n.º 2, do CPP.)

Isabel Valongo (relatora)

Jorge França (adjunto)