Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1533/12.1TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
ACÓRDÃO
TJUE
REENVIO
SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE CIVIL
MÁQUINA INDUSTRIAL
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 4º, NºS 1 E 4 DO DEC.LEI Nº 291/2007, DE 21/08.
Sumário: I – O acidente provocado por um tractor industrial (uma empilhadora), consistente no atropelamento de um peão quando a máquina executava uma manobra de marcha-atrás, no espaço exterior circundante de um armazém, local onde se realizavam operações de carga e de descarga e que é considerado via pública, (tal acidente) deve ser considerado abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por referência à obrigação de segurar prevista no artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007, de 21 de Agosto.

II – O Acórdão do TJUE (proferido em reenvio prejudicial) no caso Vnuk, de 04/09/2014, ao considerar que o artigo 3º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE (respeitante ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) deve ser interpretado no sentido de que o conceito de ‘circulação de veículo’, para efeito dessa obrigação de segurar, abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a respectiva função habitual, vincula os Tribunais de todos os Estados-membros a adoptar uma interpretação idêntica quando sejam confrontados com uma questão jurídica substancialmente semelhante quanto à interpretação dessa mesma Directiva.

III – Para além desta consequência decorrente da decisão do TJUE, a interpretação do Direito nacional deve ter lugar em conformidade com as Directivas, independentemente da respectiva transposição, funcionando como conformidade com as Directivas a interpretação a estas conferida pelo TJUE.

IV – A exclusão do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel de máquinas utilizadas em funções meramente industriais (ou agrícolas), exclusão decorrente do artigo 4º, nº 4 do DL 291/2007, correspondendo essa máquina ao conceito de veículo para o efeito do artigo 1º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE, significa que essa exclusão constante da Lei nacional só subtrai ao sistema de seguro obrigatório automóvel as utilizações daquelas máquinas ‘apenas’ (meramente) ligadas ao próprio uso industrial (ou agrícola), em si mesmo, que não apresentem qualquer margem de sobreposição com utilizações próprias da circulação de viaturas que gerassem a obrigação de segurar no quadro do seguro automóvel.

V – Isso sucede (a sujeição ao regime do seguro automóvel), por juntar a utilização industrial da máquina à circulação do veículo, com o atropelamento de um peão, em local considerado via pública, na sequência de uma manobra de marcha-atrás.

VI – Idêntico raciocínio, desta feita tomando em conta a exclusão do seguro obrigatório de operações de carga e de descarga (artigo 14º, nº 4, alínea c) do DL 291/2007), vale para uma manobra de marcha-atrás, preparatória ou subsequente de uma operação de carga ou descarga, quando esta produz o atropelamento de um peão. Este evento não decorre directamente da operação excepcionada no referido artigo 14º, nº 4, alínea c), mas de um elemento (a circulação de um veículo) que gera a cobertura pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. J… (A. e aqui Apelado) demandou nesta acção declarativa de condenação a seguradora M…, S.A. (1ª R. e Apelante no presente recurso), C…, Lda. (2ª R. aqui Apelada) e A… (3º R. Apelado), invocando ter sido colhido no dia 26/10/2010, no espaço exterior circundante das instalações da 2ª R., por um tractor industrial conduzido e manobrado pelo 3º R. que com essa máquina executava, desatentamente, uma manobra de marcha-atrás. Pertencia esse tractor à 2ª R., para quem o 3º R. trabalhava, sendo que aquela R., por sua vez, transferira os riscos da circulação da máquina para a seguradora 1ª R.[1]. Em função desta situação, no quadro de uma imputação delitual aos 2ª e 3º RR., repercutida na 1ª R. por via da existência do contrato de seguro automóvel, formulou o A., contra todos estes RR., o seguinte pedido:


“[…]

96º
Reclama o A.:
a) De danos não patrimoniais desde a data do acidente até à data de consolidação a 30/04/2011, a importância de €3.000;00;
b) De danos não patrimoniais resultantes das sequelas com que ficou e o irão acompanhar até ao fim dos seus dias, a importância de €3.500;00;
c) De danos emergentes durante o período que esteve sem trabalhar (6 meses) a importância de €17.703,30;
d) Da aquisição de material ortopédico, a importância de €55,20;
e) Das despesas com medicamentos, a importância de €244,44;
f) Das despesas com consultas, a importância de €70,00;
g) Das despesas de deslocação entre a sua residência e o Hospital Universitário de Salamanca, a importância de €407,16;
h) Da importância despendida com o relatório médico, a importância de €150,00.
i) Das viagens realizadas para elaboração do relatório médico, a importância de €120,00;
j) Das viagens realizadas para conferenciar com o seu advogado, a importância de €180,00;
l) Das viagens que se prevê, venha a realizar para audiência de julgamento da presente acção, a importância de €120,00;
m) Dos danos sofridos em bens sua pertença e que levava vestidos, a importância de €80,00;
i) De dano patrimonial futuro (lucros cessantes) atenta a I.T.G.P. de que é portador, a importância de €20.000,00;
97º
O que totaliza a importância de €45.675,34.
[…]
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, serem os RR. condenados a pagar, solidariamente, ao A. a quantia global de €45.675,34, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, bem como, em custas e procuradoria condignas.
[…]”.

            1.1. Contestaram os RR., separadamente, impugnando as circunstâncias do acidente indicadas pelo A. no articulado inicial.

No caso concreto da R. M…, adicionalmente a essa impugnação – e este elemento é central na economia decisória deste recurso –, descarta a seguradora a referenciação do evento infortunístico, enquanto sua fonte de responsabilidade contratual, ao contrato de seguro do ramo automóvel indicado pelo A. na p.i. (a apólice …), negando, pois, a sujeição do acidente a esse contrato, estabelecida que seja a culpa do 3º R.[2].

            1.2. Foi o processo julgado pela Sentença de fls. 545/606 – esta corresponde à decisão objecto do recurso – cujo pronunciamento decisório foi o seguinte:
“[…]
» Julgar a presente acção improcedente no que respeita aos RR. ‘C…, Lda.’ e A… e em consequência absolvê-los dos pedidos contra si deduzidos pelo A. J...
» Julgar a presente acção parcialmente procedente no que respeita à R. ‘M…, S.A’ e em consequência:
- condená-la a pagar ao autor J… a quantia de €6.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia actualizada à presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde a presente decisão e até integral pagamento;
- condená-la a pagar ao A. a quantia de €20.000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, quantia actualizada à presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde a presente decisão e até integral pagamento;
- condená-la a pagar ao A. a quantia de €7.392,00 a título de indemnização pelos demais danos patrimoniais já verificados, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde a citação e até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado pelo A.
[…]”[3].

            1.3. Inconformada recorreu a R. M…, concluindo o seguinte, a rematar a motivação do recurso:
“[…]


II – Fundamentação

2. Caracterizámos sucintamente o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso. Importa agora apreciar a impugnação da 1ª R., sendo que o âmbito objectivo desta se mostra delimitado pelas conclusões transcritas no item antecedente [v., a propósito da referenciação dos fundamentos do recurso às conclusões, os artigos 635º, nº 4 e 639º do Código Processo Civil (CPC)]. Assim, fora das conclusões, só constituem objecto temático de um recurso questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição no recurso sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àquelas (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

Vistas as conclusões, isolamos os seguintes objectos temáticos ao recurso (que separaremos em três alíneas): (a) a questão da qualificação do facto gerador da responsabilidade delitual aqui em causa (acidente envolvendo uma empilhadora) como sujeito a ressarcimento no quadro do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (a Apelante pretende a associação desse evento a um outro seguro de responsabilidade civil geral relativo à laboração da máquina, não ao seguro previsto no Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto) – conclusões 1ª a 11ª; (b) a questão da imputação de responsabilidade exclusiva do acidente ao 3º R., com a repercussão inerente a essa incidência na 1ª R. (defende a Apelante ter existido, com base nos factos provados, concorrência de culpas) – conclusão 12ª a 17ª; (c) finalmente, a questão de uma possível duplicação indemnizatória parcial na quantificação dos danos futuros, por desconsideração de um alegado ressarcimento do A. por acidente de trabalho – conclusões 18ª e 19ª.

2.1. Os factos que a decisão apelada considerou provados – factos que a seguradora Apelante aceita, propondo, tão-somente, uma outra valoração deles –, os factos provados, dizíamos, são os seguintes:
“[…]

            2.2. (a) Como primeiro fundamento do recurso deparamo-nos com a crítica da seguradora Apelante à recondução do evento infortunístico aqui em causa, enquanto facto gerador de responsabilidade civil extracontratual, à cobertura pelo Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel consubstanciado na apólice (apólice de seguro automóvel) ostentando o nº … Refere-se esta apólice – este tipo de seguro obrigatório, no enquadramento que o factor tempo torna aqui operante –, ao regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto[4], estando em causa a obrigação de seguro prevista no artigo 4º, nº 1 deste Diploma: “[t]oda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”. Obrigação esta que, na sua referenciação a tipos de veículos – e introduzimos aqui um dos elementos centrais na economia argumentativa deste recurso –, quanto ao tipo de veículos abrangidos, dizíamos, sofre esta obrigação de segurar algumas excepções, das quais salientamos a seguinte, presente no nº 4 do mesmo artigo 4º: “[a] obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais” (o sublinhado é aqui acrescentado).

            Tratando-se neste caso de uma máquina industrial (uma empilhadora) que a seguradora R./Apelante aceitou segurar no quadro do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel e, paralelamente, como refere a própria (v. a transcrição das conclusões 7ª e 8ª do recurso), num quadro exterior ao seguro obrigatório (através de um outro tipo de seguro de responsabilidade civil), teremos de pressupor que aceitou a seguradora que a máquina em causa estivesse na origem dos dois tipos de situações geradoras da sua responsabilidade: de um acidente recondutível ao quadro de referência do seguro obrigatório automóvel e num quadro de imputação delitual relacionado com aquela máquina que fosse exterior aos pressupostos desse sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Importa aqui resolver esta sobreposição ou concorrência aparente de dois tipos de seguro – foi o que fez a decisão recorrida e é o que fará agora esta Relação –, obviamente, por isso falamos em concorrência aparente, excluindo a sujeição do evento, pelas suas características, à cobertura por um dos contratos, reconduzindo essa cobertura ao outro. Teremos, pois, sempre que reconduzir a situação a um dos contratos (não há aqui espaço para “concursos reais”), não podendo a existência dos dois tipos de seguro servir – e isto vale para qualquer das partes – como uma espécie de “trunfo” alternativo potenciador das vantagens que um ou outro desses contratos apresentasse para qualquer das partes face ao mesmo evento. É com este sentido que utilizamos aqui a imagem do “concurso aparente”, pretendendo dizer que cada um dos seguros, não obstante os elementos circunstanciais comuns, terá necessariamente um campo de incidência diverso, sendo esse campo que aqui importa delimitar. E importa até não esquecer a circunstância de o seguro automóvel ser um seguro obrigatório e corresponder a um modelo de protecção alargada de âmbito muito geral, presente no Direito da União Europeia desde há muito e que a legislação portuguesa tem assimilado continuadamente essa dimensão, concretamente transpondo para o Direito interno as diversas Directivas do seguro automóvel, independentemente do efeito que estas, directa ou indirectamente, tenham na nossa ordem jurídica[5]. Esta – a dimensão do problema que convoca o Direito da União – constitui uma questão com contornos específicos que também será abordada na subsequente exposição.       

            Entretanto, não deixaremos de sublinhar que a decisão apelada equacionou e resolveu correctamente a questão da sujeição deste acidente ao regime do seguro automóvel (ao regime materializado no contrato consubstanciado na apólice de fls. 91/93), enquanto fonte de imputação indemnizatória à seguradora 1ª R. dos danos sofridos pelo A. Cremos mesmo que não cometeria esta Relação omissão de pronúncia alguma se se limitasse a remeter para a fundamentação exarada na Sentença apelada. Tal fundamentação, se fosse tão-somente a adoptada nesta instância, valeria e seria suficiente enquanto abonação jurídica da condenação da seguradora a indemnizar o A. em função do contrato de seguro que celebrara com a 2ª R.

Assim, sem deixar de aderir à fundamentação da Sentença, procuraremos sublinhar aqui, tão-só, alguns elementos não explorados pelo Tribunal a quo e que entendemos serem relevantes, abrindo uma vertente justificativa paralela mas concorrente na decisão.

Correspondem estes elementos aqui trazidos à colação a incidências interpretativas adicionais que cumulativamente corroboram o resultado aí (na primeira instância) alcançado. Aliás, parte da argumentação aqui introduzida assenta, como veremos, num elemento de Direito novo, no sentido de ser posterior à prolação da Sentença apelada. Referimo-nos ao aparecimento de um “precedente” jurisprudencial[6] fixado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em Setembro de 2014 (v. a nota 11, infra e o texto que para ela remete), que entendemos ser relevante para a caracterização do evento gerador dos danos aqui em causa como abrangido pelo sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel.

            2.2.1. (a) Efectivamente, é passível de convocação ao debate a travar em torno da cobertura pelo Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel de um acidente deste tipo (um acidente naquele local, envolvendo aquele tipo de máquina, com a dinâmica que emerge da matéria de facto provada), podem trazer-se a este debate, dizíamos, argumentos estruturados em função da incidência no caso do Direito da União Europeia, referindo-nos nós a tal respeito à incidência de actos jurídicos da União, no sentido do elenco de actos do artigo 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante TFUE)[7], que contêm disposições relevantes para a recondução desta situação à cobertura que deve ser propiciada por um seguro automóvel existente, referido à obrigação de segurar prevista no artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007 (com exclusão do funcionamento da excepção constante do nº 4 do mesmo artigo), sendo que este enquadramento por fontes de Direito da União abrange, em condições que explicitaremos já de seguida, a incidência (o valor, digamo-lo assim) de decisões do Tribunal de Justiça (TJUE) que interpretem, com relevância em subsequentes casos concretos, actos jurídicos da União, nos termos decorrentes da primeira parte do artigo 267º do TFUE[8]. Vale a este respeito a definição de uma eficácia projectiva mais alargada dessas decisões do TJUE, para além da vinculatividade no caso concreto objecto de reenvio prejudicial por parte de um Tribunal de um Estado-membro. Veremos, concretamente, a importância para a presente situação do recente Acórdão do Tribunal de Justiça (3ª Secção), de 04/09/2014, no processo C – 162/13 (reenvio prejudicial por um Tribunal esloveno), que consubstancia o caso Damijan Vnuk contra Zavarovalnica Triglav d.d.[9], sendo que o que qualificámos como projecção geral de uma decisão interpretativa de um acto jurídico da União deve aqui ser entendida nos seguintes termos:
“[…]
[A] sentença do TJUE [a sentença de interpretação num reenvio prejudicial] vincula igualmente os demais tribunais nacionais do Estado-membro em causa e dos vários Estados-membros que sejam confrontados com a mesma questão jurídica. A decisão adquire, por isso, uma eficácia a tender para o efeito erga omnes.
[…]
Os tribunais nacionais dos vários Estados-membros têm o dever de seguir a interpretação adoptada pelo TJUE e de recusar o reenvio sobre a mesma questão[[10]]. […]. Este entendimento decorre da função hermenêutica materialmente constitucional da jurisprudência do TJUE, do princípio da interpretação uniforme do direito da EU, do princípio da cooperação leal entre as autoridades nacionais e comunitárias e da preservação da autoridade e funcionalidade da jurisdição da EU.
[…]”[11].

            Ora, a respeito da relevância para o caso concreto do indicado Acórdão Damijan Vnuk v. Zavarovalnica Triglav – trata esta decisão do TJUE do conceito de «circulação de veículos» para efeito da Directiva que fixa a obrigação de seguro automóvel –, interessa ter presente, antes de transcrevermos a decisão respectiva, os termos em que se colocou o litígio submetido a título prejudicial ao TJUE (e os termos da questão de facto base deste, cuja semelhança com o caso tratado nestes autos nos parece flagrante):
“[…]
Litígio no processo principal e questão prejudicial
19 Resulta da decisão de reenvio que, em 13 de agosto de 2007, durante o acondicionamento de fardos de feno no celeiro de uma quinta, um trator com reboque, ao fazer marcha‑atrás para colocar o reboque nesse celeiro, embateu no escadote em cima do qual se encontrava D. Vnuk, provocando a queda deste. D. Vnuk intentou contra a Zavarovalnica Triglav, a companhia de seguros na qual o proprietário do trator tinha segurado o seu veículo, uma ação destinada ao pagamento da quantia de 15 944,10 euros, a título de indemnização dos danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora.
20 O órgão jurisdicional de primeira instância julgou a ação improcedente. O órgão jurisdicional de recurso negou provimento ao recurso interposto por D. Vnuk daquela decisão, sublinhando que a apólice de seguro automóvel obrigatório cobre o prejuízo resultante da utilização de um trator como meio de transporte, mas não o prejuízo resultante da utilização do trator como máquina ou engenho de tração.
[…]
22 Perante o órgão jurisdicional de reenvio, D. Vnuk alegou que o conceito de «utilização de um veículo na circulação» não pode ser limitado à condução nas vias públicas e que, além disso, no momento em que ocorreu o facto danoso em causa no processo principal, o conjunto formado pelo trator e o respetivo reboque constituía um veículo em circulação no fim do trajeto. A Zavarovalnica Triglav sustenta, em contrapartida, que o processo principal tem por objeto a utilização de um trator, não na sua função de veículo destinado à circulação rodoviária, mas no trabalho numa quinta.
23 O órgão jurisdicional de reenvio observa que a ZOZP não define o conceito de «utilização de veículos», mas que esta lacuna é colmatada pela jurisprudência. O órgão jurisdicional de reenvio afirma, a este respeito, que o objetivo principal do seguro obrigatório nos termos da ZOZP consiste na mutualização do risco e na necessidade de assegurar a proteção dos interesses das pessoas lesadas e dos passageiros no quadro da circulação nas vias públicas. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, de acordo com a jurisprudência eslovena, para apreciar se um dado prejuízo é, ou não, coberto pelo seguro obrigatório, não é determinante saber se esse prejuízo ocorreu na via pública. Contudo, não há cobertura ao abrigo do seguro obrigatório quando o veículo é utilizado como máquina, por exemplo, numa superfície agrícola, uma vez que, nesse caso, não se trata de circulação rodoviária.
24 O órgão jurisdicional de reenvio salienta que as diferentes diretivas relativas à responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – concretamente, a Primeira a Terceira Diretivas, a Quarta Diretiva sobre o seguro automóvel assim como a Diretiva 2005/14 (a seguir, conjuntamente, «diretivas relativas ao seguro obrigatório») – fazem referência à «circulação», à «circulação rodoviária» ou ainda aos «utilizadores das estradas», mas não especificam o que pode ser considerado circulação de veículos e qual o critério decisivo a este respeito. Desta forma, seria possível considerar que o seguro obrigatório apenas cobre os danos causados por um veículo no quadro da circulação rodoviária ou que cobre qualquer prejuízo relacionado, de alguma forma, com a utilização ou o funcionamento de um veículo, independentemente da situação em questão poder ser definida, ou não, como uma situação de circulação.
25 Nestas condições, o Vrhovno sodišče (Tribunal Supremo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Deve o conceito de ‘circulação de veículos’ na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da [Primeira Diretiva] ser interpretado no sentido de que não cobre as circunstâncias do caso concreto, em que o tomador do seguro [do recorrente] embateu numa escada com um trator ao qual estava atrelado um reboque durante uma apanha de fardos de feno numa quinta, dado que não se trata de uma situação de circulação rodoviária?»
[…]” (sublinhados acrescentados).

            A respeito desta questão, formulou o TJUE a seguinte resposta/decisão:
“[…]
[Declarar que]:
O artigo 3º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972[[12]], relativa à aproximação das legislações dos  Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um trator com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, como aconteceu no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
[…]”[13] (sublinhados aqui acrescentados).

            Parece-nos expressivo, como dissemos, o paralelismo da situação resolvida pelo TJUE neste Acórdão Vnuk (referir-nos-emos a este doravante como Acórdão Vnuk) e os termos em que se nos apresenta, por via dos factos provados, o caso concreto ora ajuizado.

            Existem, todavia, incidências particulares desta situação que importará esclarecer como ponto intermédio no percurso que nos conduzirá à projecção aqui de algum tipo de efeito (interpretativo) alcançado através do Acórdão Vnuk.

            2.2.1.1. (a) Como primeira incidência carecida de análise temos a questão do conceito operante de “veículo” no quadro da Directiva interpretada nesse Acórdão (que foi a Directiva 72/166/CEE), conceito que perdurou nas subsequentes Directivas sobre seguro automóvel[14]. Este aspecto é tratado nos pontos 37 a 40 do Acórdão Vnuk (v. nota 15, supra), tendo como referencia inicial a definição constante do artigo 1º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE – “[…] entende-se por [veículo] qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser accionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques ainda que não atrelados”. No plano de referenciação deste conceito geral aos diversos Estados-membros, admite a Directiva, no respectivo artigo 4º, alínea b), a formulação por estes de restrições de aplicação do seguro obrigatório a “[c]ertos tipos de veículos ou a certos veículos que tenham uma chapa especial, incluídos numa lista elaborada por esse Estado e notificada aos outros Estados-membros e à Comissão”.

            Ora, no quadro legal anterior ao DL 291/2007, portanto no âmbito do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, a restrição de aplicação (a excepção nacional) referida às características do veículo, quanto ao conteúdo da obrigação de segurar (que estava aí prevista no artigo 1º, nº 1), tinha assento no nº 2 do mesmo artigo 1º: “[a] obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula”. Neste enquadramento legal a sujeição objectiva (rectius, a não exclusão) do tractor industrial da 2ª R. ao regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, não levantaria qualquer dúvida: nesse enquadramento diríamos que, não funcionando a exclusão do artigo 1º, nº 2 do DL 522/85 relativamente a máquinas industriais (funcionando só para máquinas agrícolas), não existiria ressalva alguma do legislador português, em matéria de seguro obrigatório automóvel, quanto a máquinas desse tipo (industriais)[15].

            A questão da exclusão das máquinas industriais (de um tractor empilhador, como aqui sucede) poderia adquirir algum sentido, numa primeira aproximação, no quadro legal actual, sucessor do DL 522/85. Com efeito, conforme antes indicámos, o artigo 4º, nº 4 do DL 291/2007 exclui da obrigação de seguro veículos utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais (estamos a pressupor como forma adequada de exclusão por um Estado-membro de determinado tipo de veículos a simples formulação de uma excepção no texto da lei nacional[16]). Note-se, todavia, que a Directiva transposta para a ordem interna pelo DL 291/2007 (a Directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Maio de 2005), contém uma relevante salvaguarda, referida à obrigação de segurar, quanto às exclusões nacionais de determinados tipos de veículos, que em Portugal nos remeteria – se não existisse neste caso seguro automóvel, como existe… com a 1ª R. – para a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel. Vale a tal respeito o considerando (8) da Directiva (depois materializado no artigo 1º, nº 3, alínea b)):
“[…]
A alínea b) do artigo 4.o da Directiva 72/166/CEE permite que os Estados-Membros derroguem à regra geral da obrigação de celebração do seguro obrigatório no caso de certos tipos de veículos ou de certos veículos com matrícula especial. Nesse caso, os outros Estados-Membros podem exigir, à entrada do seu território, uma carta verde válida ou seguro de fronteira, a fim de assegurar a indemnização das vítimas de sinistros que possam ser provocados por esses veículos nos respectivos territórios. Contudo, uma vez que a supressão dos controlos nas fronteiras intracomunitárias significa que não é possível garantir que os veículos que atravessem a fronteira estejam cobertos por seguro, a indemnização às vítimas de sinistros provocados no estrangeiro deixam de estar garantidas. Além disso, deverá também garantir-se que sejam devidamente indemnizadas as vítimas de sinistros provocados por esses veículos, não só no estrangeiro, mas também no mesmo Estado-Membro em que o veículo tem o seu estacionamento habitual. Para esse efeito, os Estados-Membros devem tratar as vítimas de sinistros provocados pelos referidos veículos da mesma forma que as vítimas de sinistros provocados por veículos não segurados. Com efeito, tal como previsto na Directiva 84/5/CEE, a indemnização às vítimas de sinistros provocados por veículos não segurados deve ser paga pelo organismo de indemnização do Estado-Membro em que ocorreu o acidente. No caso de pagamento às vítimas de sinistros provocados por veículos abrangidos pela derrogação, o organismo de indemnização terá direito de regresso contra o organismo do Estado-Membro onde o veículo tem o seu estacionamento habitual.
[…]”.

Ora, no caso que nos é presente, existe, como dissemos, um seguro automóvel celebrado com a 1ª R., sendo que desta existência sempre se intuiria a não exclusão daquela máquina industrial. Com efeito, sempre será sintomática da aceitação da cobertura pela seguradora a simples circunstância desta (da 1ª R.) ter efectivamente celebrado com a 2ª R. esse contrato de seguro do ramo automóvel – o contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel decorrente da obrigação estabelecida no artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007 – correspondente à apólice …, contendo a identificação e descrição da máquina em causa no acidente aqui apreciado, sujeitando a mesma à cobertura própria de um seguro automóvel.

Aliás, a combinação do elemento gramatical com o argumento lógico é aqui decisiva. De facto, o emprego, na construção da exclusão do nº 4 do artigo 4º, do advérbio de modo “meramente” – “[…] veículos […] utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais” –, com o significado de “apenas”, reconduz a restrição à obrigação de segurar, com assento no nº 1, “apenas” à função agrícola e industrial, referindo-se à máquina em si no uso que concretamente lhe seja dado, retirando da excepção (subtraindo à facti species negativa desse nº 4) as situações que não sejam recondutíveis “apenas” (rectius, “meramente”) ao próprio uso agrícola ou industrial[17]. Paradigmático de um uso que não é meramente agrícola ou industrial é aquele que se traduz, precisamente, na deslocação (na circulação) da máquina na via pública que pode produzir, como aqui sucedeu, acidentes num circunstancialismo em tudo semelhante ao que ocorreria com um veículo não utilizado em funções agrícolas ou industriais.

Raciocinando com base num exemplo hipotético, aqui apresentado com valor ilustrativo, construindo, enfim, um argumento de identidade de razão, diremos que é inconsistente, de um ponto de vista lógico, assente na comparação de situações em função da sua similitude e consequente necessidade de as tratar de modo igual, excluir a cobertura de um seguro automóvel (de um seguro como tal efectivamente celebrado), relativamente a um acidente, naquela via pública, gerado por uma máquina como a aqui em causa, na execução descuidada de uma manobra de marcha-atrás, e considerar existir essa cobertura se, nas mesmas condições, mas com uma viatura automóvel funcionalmente indiferenciada, alguém, nas mesmas condições do A., fosse colhido numa manobra de marcha-atrás, igualmente executada com falta de cuidado.    

Vale isto pelo entendimento de não estar aqui excluída do seguro automóvel a máquina em concreto interveniente no acidente.

2.2.1.2. (a) É certo que as condições gerais da apólice, nos termos indicados no ponto 9. da matéria de facto, pretendem excluir o que designam por “riscos de laboração”, colocando estes em contraponto a “acidentes de viação” (estariam estes últimos cobertos em exclusivo). Todavia, independente da óbvia ambiguidade terminológica induzida pela concatenação dos dois conceitos – ambiguidade que aqui sempre funcionará contra quem (a seguradora) estipula ambiguamente ou aceita um modelo de aparente sobreposição de coberturas gerador dessa ambiguidade[18] –, independentemente dessa ambiguidade, dizíamos, importará ter presente que a expressão acidentes de viação não pode – nunca pode – ser separada da ideia de “circulação de veículos”, enquanto factor indutor do evento necessariamente abrangido no quadro do sistema de seguro obrigatório, sistema pretendido modelar com um sentido particularmente abrangente do âmbito de cobertura pelas diversas Directivas sobre seguro automóvel.

É assim que não podemos deixar de referir a obrigação legal de segurar (o artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007) e o âmbito material de cobertura previsto no artigo 11º do mesmo Diploma, com o sentido amplo definido pelo já acima referenciado Acórdão Vnuk, quanto ao conceito de “circulação de veículos” no âmbito da Primeira Directiva sobre seguro automóvel. Com efeito, vale aqui o modelo decisório fornecido pelo TJUE, num quadro de absoluta identidade de razão, alicerçando-se com essa mesma base um argumento assente no chamado efeito indirecto das Directivas, na caracterização que deste tipo de efeito é efectuada por Jónatas Machado:
“[…]
Para além do efeito directo de algumas Directivas, há ainda que entrar em linha de conta com o efeito indirecto que todas podem produzir, incluindo as não transpostas ou as incorrectamente transpostas, mesmo nas relações horizontais. Este efeito indirecto resulta do princípio, densificado pelo TJUE, da interpretação do direito nacional no seu conjunto em conformidade com as Directivas, dentro dos limites impostos pelos princípios gerais do Direito. A interpretação das normas nacionais em conformidade com as Directivas é uma realidade dogmaticamente distinta da respectiva aplicabilidade directa. No primeiro caso aplica-se o direito nacional, proscrevendo-se uma interpretação contra legem. No segundo pode ser preterida a aplicação de todas as disposições de direito nacional eventualmente contrárias à Directiva.
[…]” (sublinhado acrescentado)[19].

            Aqui, face aos dados de facto apurados em julgamento (remetemos concretamente para o ponto 14. dos factos constantes do elenco supra), o acidente ocorrido com a máquina empilhadora, objecto de um contrato celebrado no quadro do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, não pode deixar de ser visto como um acidente de viação, ocorrido na circulação daquele veículo e, como tal, abrangido pelo sistema de seguro obrigatório enquadrado pelo DL 291/2007, aqui referenciado, quanto à Apelante, à apólice ...

            2.2.1.3. (a) Ainda a este respeito, observando agora o argumento que a Apelante pretende construir, com base numa outra exclusão da cobertura do seguro automóvel, exclusão referida a “[…] danos causados a terceiros em consequência de operações de carga e descarga” (constante do artigo 14º, nº 4, alínea c) do DL 291/2007), interessa referir que tal exclusão abrange a própria operação, em si mesma (o carregar e o descarregar), não a “circulação” que uma máquina realize in itinere para a operação de carga e descarga (mas que ainda não é a operação de carga ou descarga em si mesma e partilha o tipo de risco próprio da circulação automóvel), quando é essa própria circulação que provoca o acidente. Ou, dizendo as coisas de outra forma, quando essa exacta manobra, se lhe subtraíssemos hipoteticamente o objectivo de ir realizar uma operação de carga ou descarga (ir realizá-la; não estar a realizá-la) não deixaria de configurar um acidente de circulação inquestionavelmente coberto pelo seguro automóvel. E é, com efeito, este o caso que o trecho pertinente dos factos provados configura (remetemos aqui para os pontos 10. a 14. do elenco acima transcrito), parecendo-nos que a finalidade da manobra de marcha-atrás – realizada imprudentemente em local onde circulam outros trabalhadores, clientes, fornecedores e público em geral, tratando-se de via pública (como se diz no ponto 14. dos factos) –, manobra que ainda não é carga ou descarga, mas é circulação na via pública, não afasta a qualificação do acidente como de circulação e, assim, a sua cobertura pela apólice respeitante ao seguro automóvel.

            É esta conclusão de sujeição do evento ao regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que aqui afirmamos, rememorando agora os diversos pontos tratados ao longo deste item 2.2., acrescentando-os à fundamentação da Sentença apelada.  

            2.3. (b) Interessa agora apreciar, como segundo fundamento do recurso acima identificado no item 2., a questão da imputação de responsabilidade do acidente, em exclusivo, ao 3º R., sem alocação de qualquer percentagem de culpa ao A.

            Ora, a este respeito, valorando os factos apurados que expressam a dinâmica do acidente (fundamentalmente os mesmos pontos 10. a 14. acima indicados), observamos uma conduta cautelarmente desvaliosa do 3º R. (pontos 11. e 12. dos factos) e observamos uma conduta do A. (ponto 10.) que, em vista do procedimento que deveria adoptar naquelas circunstâncias, não revela qualquer desvalor de cuidado que supere a perigosidade intrínseca do local em vista do modo como teria de actuar aí. O desvalor comportamental é, assim, referenciável só a quem activamente executa a manobra de marcha-atrás, com uma máquina industrial pesada (sem aviso sonoro, como se indica na própria apólice a fls. 91) e sem advertir a possível existência de obstáculos (aqui uma pessoa) que pudessem estar no sentido dessa marcha-atrás. E a existência desses obstáculos era, nos termos em que o local é descrito, previsível a quem profissionalmente ali actua (uma actuação profissional envolve sempre um índice de exigência superior).

            Vale aqui a causalidade extravagante induzida pelo comportamento descuidado do 3º R., não a simples presença física do A. no local onde sempre teria de estar, em função da tarefa que lhe estava atribuída.

            Corresponde esta apreciação do evento como referenciação da exclusividade da culpa ao 3º R., que o mesmo é dizer, como não atendimento deste fundamento do recurso.

            2.4. (c) Resta-nos o derradeiro fundamento do recurso, referido a uma hipotética duplicação indemnizatória da quantificação realizada na Sentença quanto ao dano futuro (perda percentual de capacidade de trabalho). Resultaria essa alegada duplicação de uma possível indemnização do A. por acidente de trabalho, enquanto forma de cobrir, parcialmente, essa vertente do dano.

            À partida, a respeito desta questão, sempre se dirá que esse elemento não foi, mais do que episodicamente, referido nos autos, não tendo sido carreados para o processo elementos que sustentassem substancialmente essa asserção. E trata-se, como a Apelante refere a incidência, de circunstância modificativa da indemnização a actuar sobre a mesma, depois de constituída na perspectiva aqui tratada (vale quanto a ela, pois, o nº 2 do artigo 342º do Código Civil, com a decisão, na dúvida, contra a 1ª R.).

            De qualquer forma, ponderando a natureza desta indemnização e a forma de cálculo adoptado na Sentença quanto a ela, de cariz tendencialmente equitativo, não cremos que o montante fixado expresse uma duplicação (rectius, uma ampliação exagerada do dano). Todavia, como argumento decisivo no sentido da improcedência deste fundamento do recurso, referimos aqui a indemonstração dos pressupostos da redução visada, enquanto facto cuja prova incumbia à 1ª R.

            Vale o conjunto das antecedentes considerações, que abarcaram todos os fundamentos do recurso, como improcedência da apelação. Resta-nos, depois de sumariado o Acórdão, afirmar esse resultado final.

            2.5. Sumário elaborado pelo relator:
I – O acidente provocado por um tractor industrial (uma empilhadora), consistente no atropelamento de um peão quando a máquina executava uma manobra de marcha-atrás, no espaço exterior circundante de um armazém, local onde se realizavam operações de carga e de descarga e que é considerado via pública, tal acidente, deve ser considerado abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por referência à obrigação de segurar prevista no artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007, de 21 de Agosto;
II – O Acórdão do TJUE (proferido em reenvio prejudicial) no caso Vnuk, de 04/09/2014, ao considerar que o artigo 3º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE (respeitante ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) deve ser interpretado no sentido de que o conceito de ‘circulação de veículo’, para efeito dessa obrigação de segurar, abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a respectiva função habitual, vincula os Tribunais de todos os Estados-membros a adoptar uma interpretação idêntica quando sejam confrontados com uma questão jurídica substancialmente semelhante quanto à interpretação dessa mesma Directiva;
III – Para além desta consequência decorrente da decisão do TJUE, a interpretação do Direito nacional deve ter lugar em conformidade com as Directivas, independentemente da respectiva transposição, funcionando como conformidade com as Directivas a interpretação a estas conferida pelo TJUE;
IV – A exclusão do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel de máquinas utilizadas em funções meramente industriais (ou agrícolas), exclusão decorrente do artigo 4º, nº 4 do DL 291/2007, correspondendo essa máquina ao conceito de veículo para o efeito do artigo 1º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE, significa que essa exclusão constante da Lei nacional, só subtrai ao sistema de seguro obrigatório automóvel as utilizações daquelas máquinas ‘apenas’ (meramente) ligadas ao próprio uso industrial (ou agrícola), em si mesmo, que não apresentem qualquer margem de sobreposição com utilizações próprias da circulação de viaturas que gerassem a obrigação de segurar no quadro do seguro automóvel;
V – Isso sucede (a sujeição ao regime do seguro automóvel), por juntar a utilização industrial da máquina à circulação do veículo, com o atropelamento de um peão, em local considerado via pública, na sequência de uma manobra de marcha-atrás;
VI – Idêntico raciocínio, desta feita tomando em conta a exclusão do seguro obrigatório de operações de carga e de descarga (artigo 14º, nº 4, alínea c) do DL 291/2007), vale para uma manobra de marcha-atrás, preparatória ou subsequente de uma operação de carga ou descarga, quando esta produz o atropelamento de um peão. Este evento não decorre directamente da operação excepcionada no referido artigo 14º, nº 4, alínea c), mas de um elemento (a circulação de um veículo) que gera a cobertura pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.


III – Decisão

            3. Face ao exposto, improcedendo o recurso, confirma-se a Sentença apelada.

            Custas pela Apelante.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 10/03/2015 

(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Luís Falcão de Magalhães)

 

***


[1] Transcreve-se da p.i.:
“[…]



No dia 26 de Outubro de 2010, cerca das 12h00, o A. J…, conduzindo o tractor pesado de mercadorias, matricula …, atrelando o Semi-Reboque, matricula …, deu entrada nas instalações da 2ª Ré, C…, LDA., sitas em …, onde se preparava para fazer uma entrega de palettes de gesso - Doc. 1, que aqui se junta e se considera reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.


O A. estacionou junto ao armazém, desceu do veículo e preparava-se para proceder à abertura das cortinas do semi-reboque.


Enquanto decorria a acção acima descrita, o 3º Réu, A…, circulava, com o tractor industrial (vulgo, empilhador), modelo …, propriedade da 2ª Ré, ao serviço e por conta exclusiva desta.


E, acto contínuo, dirige-se para junto do pesado de mercadorias e, consequentemente, do A. por meio de uma manobra de marcha-atrás.


Acabando por colher o A. com a roda de trás do tractor industrial (vulgo, empilhador), atingindo-o, principalmente, na perna direita.
[…]”.
[2] Escreveu esta R. na respectiva contestação:
“[…]

12º

Atento o exposto, concluiu-se pela ocorrência de um típico acidente de trabalho, sem qualquer intervenção da apólice automóvel, alias como atesta a própria participação elaborada pela Guarda Nacional Republicana que se junta sob o doc. nº . Acresce que,

13º

Em qualquer caso, não funcionaria também, por se encontrar expressamente excluído das garantias do seguro, danos causados a terceiros em consequência de operações de carga e descarga ( artº 5 ponto 4. Alínea c) das Condições Gerais da Apólice que se juntam sob o doc. nº 3 – pag. 14  )e ainda,

14º

Por se encontrarem excluídos os riscos de laboração da maquína segura (nos termos do disposto no artº 94º ponto 10 das Condições Gerais da Apólice – cfr. doc. nº 3 pag.76).

15º

Atento o exposto não deverá a ora ré ser responsabilizada na presente ação, quer por a montante, o contrato de seguro não se aplicar ao caso concreto, quer a jusante tendo em conta a própria culpa do lesado, que nos termos do disposto no artº 570º do Cod. Civil afasta a obrigação de indemnizar. Todavia
[…]”.
[3] Para esta responsabilização indemnizatória da Seguradora, foram centrais as seguintes linhas decisórias de percurso: (a) sujeição (definição) do evento delitual aqui em causa como acidente de viação, para efeitos de aplicação (sujeição) do (ao)regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel; (b) imputação exclusiva da culpa na produção do acidente ao 3º R., com a referenciação da relação comitente – comissário à 2ª R.; (c) quantificação agregada das indemnizações a cargo da Seguradora em €33.892,00.
[4] Substituiu este o Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
[5] Desde já sublinhamos, quanto à aplicabilidade directa das Directivas, que a aparente exclusão destas desse efeito, sugerida pela leitura do artigo 288º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (v. a nota 9, infra), está colocada em causa, em muitos aspectos, desde o Acórdão de 04/12/1974, processo 41/74, caso Van Duyn, Colecção de Acórdãos do TJCE 1974, p. 569 (v. a este respeito, João Mota de Campos, João Luís Mota de Campos, António Pinto Pereira, Manual de Direito Europeu, 7ª ed., Coimbra, 2014, pp. 331/332 e 379/381). 
[6] Esta forma de expressar as coisas – “precedente” – é aqui empregue com um pendor descritivo, não assume qualquer construção jurídica específica quanto ao valor dos Acórdãos do TJUE. Estes valem, obviamente, como precedentes persuasivos e projectam-se, para além do caso concreto, em termos que referiremos adiante neste texto.
[7] Referimo-nos à versão introduzida pelo Tratado de Lisboa (ex artigo 249º). A versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia está disponível em língua portuguesa no “Jornal Oficial da União Europeia” de 30/03/2010, no endereço seguinte:
http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0047:0200:PT:PDF.
Porque a ulterior exposição aludirá à aplicabilidade de um desses actos – de uma Directiva – aqui deixamos transcrito o referido artigo 288º:
Artigo 288º
Para exercerem as competências da União, as instituições adoptam regulamentos, directivas, decisões, recomendações e pareceres.
O regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros.
A directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.
A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários só é obrigatória para estes.
As recomendações e os pareceres não são vinculativos.
[8] Que dispõe:
Artigo 267º
O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas Instituições órgãos ou organismos da União.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[9] O texto do Acórdão está disponível em língua portuguesa em:
http://curia.europa.eu/juris/document/document_print.jsf;jsessionid=9ea7dc30dda4.
Referimo-nos aqui a este, não obstante ser posterior à decisão aqui recorrida. Todavia, porque se trata de uma questão de interpretação jurídica pode (deve) esta Relação considerar algum argumento relevante induzido por essa circunstância. É o que aqui se fará, sendo que a apreciação do Direito pelo Tribunal de recurso, convergente, divergente ou paralela da linha argumentativa usada pelo Tribunal ad quem é desvinculada desta.
[10] Dissemos isto – utilizando o conceito de «acto aclarado» –, disse-o esta mesma formação deste Tribunal nas mesmas posições de relator e 1º Adjunto, no Acórdão de 08/11/2011, proferido no processo nº 1037/10.7TBACB-B.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/4e62593d9bee9df580257950003e5e24.
“[…]
A existência de jurisprudência comunitária uniforme sobre a interpretação de determinada questão de Direito comunitário […], faz cessar (no entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia expresso no Acórdão CILFIT de 1982) a obrigação de envio prejudicial dessa questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
[…]”.
[11] Jónatas E. M. Machado, Direito da União Europeia, Coimbra 2010, pp. 591/592.
[12] Consta deste:
Artigo 3º
1. Cada Estado-membro, sem prejuízo da aplicação do artigo 4º, adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.
[13] Neste Acórdão Damijan Vnuk v. Zavarovalnica d.d. são relevantes os seguintes passos argumentativos:
“[…]
36 De acordo com o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, cada Estado‑Membro, sem prejuízo da aplicação do artigo 4.°, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.
37 O conceito de veículo é definido no artigo 1.°, n.° 1, da referida diretiva, nos termos do qual deve entender‑se por «veículo» na aceção desta diretiva «qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados».
38 Impõe‑se constatar que um trator com reboque se enquadra nessa definição. A este respeito, importa salientar que esta definição é independente da utilização que se faça, ou possa fazer, do veículo em causa. Por conseguinte, o facto de um trator, eventualmente com reboque, poder, em determinadas circunstâncias, ser utilizado como máquina agrícola não afeta a constatação de que um veículo desse tipo se enquadra no conceito de «veículo» que figura no artigo 1.°, n.° 1, da Primeira Diretiva.
39 Contudo, daqui não resulta necessariamente que um trator com reboque se encontra abrangido pela obrigação de seguro de responsabilidade civil prevista no artigo 3.°, n.° 1, da referida diretiva. Com efeito, por um lado, e em conformidade com esta disposição, é necessário que este veículo tenha o seu estacionamento habitual no território de um Estado‑Membro, condição esta que não está em causa no litígio no processo principal. Por outro lado, nos termos do artigo 4.°, alínea b), da mesma diretiva, cada Estado‑Membro pode não aplicar as disposições do artigo 3.° a certos tipos de veículos ou a certos veículos que tenham uma chapa especial, cuja lista é elaborada por esse Estado e notificada aos outros Estados‑Membros e à Comissão.
40 Por conseguinte, um trator com reboque está abrangido pela obrigação prevista no artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva quando tenha o seu estacionamento habitual no território de um Estado‑Membro que não excluiu este tipo de veículo do âmbito de aplicação desta disposição.
41 Quanto à questão de saber se a manobra de um trator no terreiro de uma quinta para colocar o respetivo reboque num celeiro deve, ou não, ser considerada abrangida pelo conceito de «circulação de veículos» previsto nesta disposição, importa sublinhar, desde logo, que este conceito não pode ser deixado à apreciação de cada Estado‑Membro.
42 Com efeito, nem o artigo 1.° da Primeira Diretiva, nem o respetivo artigo 3.°, n.° 1, nem nenhuma outra disposição desta diretiva ou das outras diretivas relativas ao seguro obrigatório remetem para o direito dos Estados‑Membros no que respeita a esse conceito. Ora, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, tendo em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra (v., neste sentido, acórdão Omejc, C‑536/09, EU:C:201:398, n.os 19, 21 e jurisprudência referida).
43 No que respeita, em primeiro lugar, aos termos empregues no artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, decorre do exame comparado das diferentes versões linguísticas desta disposição que a mesma apresenta divergências quanto à situação visada pela obrigação de seguro nela prevista, divergências essas que se encontram, aliás, na própria epígrafe dessa diretiva, nomeadamente, nas versões em línguas inglesa e francesa.
44 Assim, em língua francesa, como em línguas grega, espanhola, italiana, neerlandesa, polaca e portuguesa, o referido artigo 3.°, n.° 1, faz referência à obrigação de segurar a responsabilidade civil que resulta da «circulação» de veículos, dando assim a entender que esta obrigação de seguro se destina apenas aos acidentes causados num contexto de circulação rodoviária, como o sustentam o Governo alemão e a Irlanda.
45 No entanto, as versões em língua inglesa, bem como em línguas búlgara, checa, estónia, letã, maltesa, eslovaca, eslovena e finlandesa, desta mesma disposição remetem para o conceito de «utilização» dos veículos, sem outras precisões, enquanto as versões em línguas dinamarquesa, alemã, lituana, húngara, romena e sueca fazem referência, de forma ainda mais genérica, à obrigação de subscrever um seguro de responsabilidade civil para os veículos e parecem, deste modo, impor a obrigação de segurar a responsabilidade civil resultante da utilização ou do funcionamento de um veículo, independentemente do facto de saber se esta utilização ou este funcionamento ocorrem, ou não, no quadro de uma situação de circulação rodoviária.
46 Segundo jurisprudência constante, uma interpretação puramente literal de uma ou de várias versões linguísticas de um texto plurilingue de direito da União, com exclusão das outras, não deve prevalecer, devendo as normas de direito da União ser interpretadas à luz, nomeadamente, das versões redigidas em todas as línguas (v., neste sentido, acórdãos Jany e o., C‑268/99, EU:C:2001:616, n.° 47 e jurisprudência referida, e Comissão/Espanha, C‑189/11, EU:C:2013:587, n.° 56 e jurisprudência referida). Em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto da União, a disposição em questão deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento (v., neste sentido, acórdãos ZVK, C‑300/05, EU:C:2006:735, n.° 16 e jurisprudência referida; Haasová, C‑22/12, EU:C:2013:692, n.° 48; e Drozdovs, C‑277/12, EU:C:2013:685, n.° 39).
47 Importa, pois, em segundo lugar, ter em conta a sistemática geral e a finalidade da regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório, da qual o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva constitui um elemento.
48 A este respeito, deve sublinhar‑se que nenhuma das diretivas relativas ao seguro obrigatório contém uma definição do que deve entender‑se pelos conceitos de «acidente», de «sinistro», de «circulação» ou ainda de «utilização de veículos», na aceção destas diretivas.
49 Contudo, esses conceitos devem ser entendidos à luz do duplo objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por um veículo automóvel e da liberalização da circulação das pessoas e bens na perspetiva da concretização do mercado interno prosseguido por essas diretivas.
50 Assim, a Primeira Diretiva faz parte de uma série de diretivas que vieram progressivamente precisar as obrigações dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade civil resultante da circulação dos veículos. Ora, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado reiteradamente que os considerandos da Primeira e Segunda Diretivas revelam que elas têm por objetivo assegurar a livre circulação, quer dos veículos com estacionamento habitual no território da União quer das pessoas que neles viajam, também tem declarado reiteradamente que estas visam igualmente garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (v., designadamente, neste sentido, acórdãos Ruiz Bernáldez, C‑129/94, EU:C:1996:143, n.° 13, e Csonka e o., C‑409/11, EU:C:2013:512, n.° 26 e jurisprudência referida).
51 Com efeito, se decorre nomeadamente do quinto a sétimo considerandos da Primeira Diretiva que esta se destinava a liberalizar o sistema de circulação de pessoas e de veículos automóveis entre os Estados‑Membros na perspetiva da criação de um mercado interno, através da abolição da fiscalização da Carta Verde que era efetuada nas fronteiras dos Estados‑Membros, esta prosseguia também já um objetivo de proteção das vítimas (v., neste sentido, acórdão Ruiz Bernáldez, EU:C:1996:143, n.° 18).
52 Acresce que a evolução da regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório evidencia que este objetivo de proteção das vítimas dos acidentes causados por veículos foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União.
53 Tal resulta em especial, antes de mais, dos artigos 1.° a 3.° da Segunda Diretiva. Assim, o seu artigo 1.° impôs que o seguro referido no n.° 1 do artigo 3.° da Primeira Diretiva cubra os danos quer materiais quer corporais. Impôs igualmente a criação, pelos Estados‑Membros, de organismos que tenham por missão reparar os danos causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tenha sido cumprida a obrigação de seguro e fixou os montantes mínimos de garantia. O artigo 2.° da mesma diretiva restringiu o alcance de determinadas cláusulas de exclusão previstas por via legislativa ou contratual no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro causado pela utilização ou pela condução de um veículo segurado por determinadas pessoas. O artigo 3.° da referida diretiva estendeu a garantia do seguro por danos corporais sofridos aos membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa responsável pelo sinistro.
54 Em seguida, através do seu artigo 1.°, a Terceira Diretiva estendeu, nomeadamente, a cobertura do seguro aos danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, e a Quarta Diretiva sobre o seguro automóvel introduziu no seu artigo 3.°, entre outras coisas, um direito de ação direta das pessoas lesadas contra a empresa de seguros que cobre a responsabilidade civil do terceiro.
55 Por último, a Diretiva 2005/14, através dos seus artigos 2.° e 4.° que alteraram, respetivamente, a Segunda e Terceira Diretivas, adaptou, nomeadamente, os montantes mínimos de garantia, previu a sua revisão regular e estendeu o âmbito de intervenção do organismo estabelecido pela Segunda Diretiva, bem como a cobertura do seguro previsto no artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva aos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas. Introduziu, igualmente, uma nova restrição à possibilidade de aplicar determinadas cláusulas de exclusão da cobertura do seguro e proibiu a aplicação de franquias às vítimas de acidentes no que respeita ao seguro referido no n.° 1 do artigo 3.° da Primeira Diretiva.
56 Atendendo a todos estes elementos e, nomeadamente, ao objetivo de proteção prosseguido pela Primeira a Terceira Diretivas, não se pode considerar que o legislador da União tenha pretendido excluir da proteção conferida por estas diretivas as pessoas lesadas por um acidente causado por um veículo quando da sua utilização, desde que esta tenha sido efetuada em conformidade com a função habitual desse mesmo veículo.
[…]”.
[14] As Directivas sobre seguro automóvel são as indicadas nas conclusões do Advogado-Geral no caso Damijan Vnuk v. Zavarovalnica Triglav, partindo da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, directamente convocada no reenvio prejudicial:
“[…]
[A] Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (JO L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244), a Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis (JO L 129, p. 33), a Terceira Diretiva 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de maio de 2000, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis e que altera as Diretivas 73/239/CEE e 88/357/CEE do Conselho (Quarta Diretiva sobre o seguro automóvel) (JO L 181, p. 65), bem como a Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, que altera as Diretivas 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/26/CE relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (JO L 149, p. 14) (a seguir, em conjunto, as «diretivas relativas ao seguro automóvel»). Importa ainda referir a Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 263, p. 11), que codificou oportunamente a matéria, mas que não é aplicável ratione temporis ao processo principal.
[…]”.
Esta mesma referenciação decorre do Preâmbulo do DL 291/2007:
“[…]
A transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel»), constitui ensejo para proceder à actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado nesse seguro, que se justifica desde há muito.
[…]”.
[15] Note-se que este mesmo raciocínio, estando em causa precisamente um tractor industrial sem matrícula munido de uma pá dianteira, foi utilizado, no quadro do DL 522/85, pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 07/02/2013 (João Bernardo), proferido no processo nº 109/06.7TBPRD.P1.S1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/325539bd72f88dcf8:
Sumário:
“[…]
1. Para aferição do conceito de veículo a que se reporta o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º522/85, de 31.12, há que lançar mão da definição constante da Diretiva n.º 72/166/CEE, de 24.4.1972.
2. Assim, um trator industrial, ainda que sem matrícula, deve ser considerado incluído no conceito.
3. Para efeitos de seguro obrigatório, esse veículo deve considerar-se “em circulação” se, no movimento de transporte de lixo que estava a efetuar dentro duma serração, ocupou, com a pá da frente, pelo menos 2 metros, da faixa de rodagem duma estrada municipal.
[…]”.
[16] Quando o texto da Diretiva n.º 72/166/CEE menciona (respectivo artigo 4º, alínea b)) que essa exclusão deve resultar de uma lista elaborada pelo Estado-membro e notificada aos outros Estados-membros e à Comissão, pressupondo, aparentemente pelo menos, um determinado processo com algo mais que a redacção dada ao acto legislativo de transposição por cada Estado-Membro.
[17] Vale aqui, na Lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, na delimitação das situações abrangidas e das excluídas, uma técnica com grande semelhança com o processo de drafting usado na construção (redacção) do próprio contrato de seguro:
A delimitação do universo de eventos que há-de ser abrangido pela cobertura faz-se, no drafting, segundo uma técnica consagrada de regras e excepções em níveis sucessivos: afirmações e negações, seguidas de negações parciais destas, e por vezes ainda de negações parciais destas últimas.
Desta técnica resulta, no primeiro nível, uma definição básica da cobertura de certo conjunto de eventos, chamada definição ou delimitação primária da cobertura; depois um conjunto de exclusões, que especificam subconjuntos desse conjunto que não ficam abrangidos pelo contrato, e que formam a delimitação secundária; e muitas vezes é preciso ainda especificar subconjuntos destes últimos subconjuntos, que voltam a ser declarados como parte do âmbito da cobertura. Tudo isto porque a linguagem comum não fornece instrumentos para delimitar mais economicamente os eventos cobertos; só pela combinação de múltiplas descrições segundo certas relações lógicas se pode chegar a uma delimitação que satisfaça razoavelmente os fins práticos da contratação” (José António Veloso, “Riscos, Transferência de Risco, Transferência de Responsabilidade”, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra, 2007, pp. 317/318).
[18] Remetemos, quanto à ambiguidade no processo de drafting da cobertura de um contrato de seguro – processo organizado pela seguradora – para o Acórdão desta Relação de 19/12/2006, proferido pelo ora relator no processo nº 339/2001.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5196dd312f4e60128025725e0053e29.
“[…]

– A definição da cobertura de um seguro do ramo «vida», enquanto actividade prévia ao contrato de fornecimento de informação sobre a definição de cada garantia e opção, conforme constitui obrigação legal da seguradora, tem de assentar em conceitos cujo conteúdo valha por si, e não em função da conjugação interpretativa com outros conceitos.

II – A presença de uma formulação ambígua numa cláusula contratual geral desta natureza, faz prevalecer, dos possíveis sentidos desta, o que se mostre como mais favorável ao aderente, nos termos do artº 11º, nº 2, do DL nº 446/85, de 25/10 – Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

III – Neste tipo de contratos releva a doutrina da impressão do destinatário, pelo que, na ausência de prova pela seguradora de que a subscrição da cláusula ocorreu na base da vinculação pelo tomador à exacta leitura interpretativa que (ela seguradora) atribui a essa cláusula, e estando a leitura propugnada pelo tomador do seguro razoavelmente expressa na letra dessa cláusula, considera-se que em tal hipótese essa cláusula deve valer com o razoável sentido que o tomador do seguro lhe atribui.
[…]” (note-se que a convocação neste contexto do regime das cláusulas contratuais gerais intui a natureza do contrato de seguro, como aqui sucede, como contrato a favor de terceiro; a teleologia protectiva deste instituto vale para o terceiro que possa vir a ser indemnizado pela seguradora).
[19] Direito da União Europeia, cit., p. 206.