Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
934/15.8T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
ADMISSIBILIDADE
CONTRATO DE MÚTUO
Data do Acordão: 03/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – LAMEGO – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 280º E 409º C. CIVIL.
Sumário: I – Da interpretação literal do artº 409º C. Civil resulta de uma forma clara que a estipulação da reserva de propriedade sobre uma coisa só é válida nos contratos de alienação, traduzindo-se na sujeição do efeito translativo destes negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente.
II - Suspendendo ela apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato. Apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga contrato de alienação do mesmo, na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado.

III - No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contra­tos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é o seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.

IV - Assim, a cláusula de reserva de propriedade a favor da Requerente, por­que legalmente impossível, ter-se-á de considerar nula, nos termos do n.º 1 do art.º 280º do C. Civil, o que determina a improcedência dos pedidos de restituição do veículo e cancelamento da inscrição do registo de propriedade sobre o veículo a favor do Réu.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora intentou contra o Réu a presente acção de condenação, peticionando:

- que  seja reconhecida a resolução do contrato celebrado entre as partes,

- a condenação do Réu na restituição do veículo automóvel da marca Ford, modelo Focus 3/5P, com a matricula ...,

- e o reconhecimento do direito ao cancelamento do registo de propriedade de tal veículo, averbado em nome do Réu.

Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese:

- Celebrou com o Réu, no exercício da sua actividade profissional, um contrato de financiamento para aquisição a crédito de um veículo automóvel, tendo aquele assumido a obrigação de pagar 96 prestações mensais.

- O Réu, apesar de a isso instado, não procedeu ao pagamento das prestações acordadas, o que a levou a resolver o contrato e a solicitar a entrega do veículo, tendo já recuperado a referida viatura na sequência do decretamento de procedimento cautelar..

- A reserva de propriedade sobre o veículo esta inscrita a seu favor enquanto a propriedade se encontra inscrita a favor do Réu.

O Réu não contestou.

Veio a ser proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, consequentemente, declaro validamente resolvido o contrato celebrado entre Autora e Réu referente à aquisição do veículo de marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ...

Mais declaro nula e de nenhum efeito a cláusula contratual respeitante à constituição da reserva de propriedade a favor da Autora, constante do contrato acima descrito.

No mais, absolvo o Réu do pedido.

A Autora, inconformada com a decisão interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

...

Não foi apresentada resposta.

1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações da recorrente, cumpre apreciar a seguinte questão:

A cláusula de reserva de propriedade convencionada a favor da Reque­rente é válida?

2. Dos factos

Os factos que se encontram provados são os seguintes:

1 –  A Autora celebrou com o Réu no dia 23/05/2008, o contrato de crédito n.º ..., para financiamento da aquisição por este a M..., L.da, do veículo automóvel Ford Focus, de matrícula ... sendo o total de financiamento e encargos no montante de € 2.208,27, a pagar em 96 prestações mensais fixas, no valor cada uma delas de € 227,55, vencendo-se a 1ª em 23.6.2008.

Nesse contrato Autora e Réu acordaram como garantias do cumprimento do contrato na subscrição de uma livrança em branco e constituição de reserva da propriedade do veículo a favor da financiadora.

2 – A reserva de propriedade sobre o veículo encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Automóvel a favor da Autora com data de 11.6.2008.

 3 –  O Réu não efectuou o pagamento das seguintes prestações a que se encontrava contratualmente obrigado:

N.º da prestação Data de vencimento Valor em dívida

55                   08/01/2013           Eur.: 59,57 € (parte)

56                   08/02/2013           Eur.:227,29 €

57                   08/03/2013           Eur.: 227,29 €

58                   08/04/2013           Eur.: 227,29 €

59                    08/05/2013          Eur.: 227,29 €

60                   08/06/2013           Eur.: 227,29 €

61                   08/07/2013           Eur.: 227,29 €

4 – Em face da mora no pagamento das prestações, a Autora, através da carta registada com aviso de recepção datada de 09.07.2013, que o Réu recebeu, concedeu ao Réu um prazo suplementar de 15 dias úteis para pagamento da dívida, findo os quais a mora se convertia em incumprimento definitivo

5 – Até à presente data o Réu não procedeu ao pagamento das prestações em dívida, nem ao pagamento de nenhuma outra prestação subsequente, nem procedeu à entrega da viatura da Marca FORD, modelo FOCUS 3/5P, matrícula ...

6 – A Autora intentou  em 27.5.2015 Providência Cautelar com vista à apreensão do veículo automóvel que se encontra apensa aos presentes autos e que foi  decretada em 22.6.2015, tendo a viatura sido já recuperada.

3. O direito aplicável

A Requerente pretende com a presente acção o reconhecimento da resolução do contrato de crédito que celebrou com o Réu, a condenação deste a restituir-lhe o veículo adquirido com esse financiamento bem como a ser-lhe reconhecido o direito ao cancelamento da inscrição do direito de propriedade sobre esse bem a favor do Réu.

 Na decisão recorrida, e na parte a que este recurso importa, considerou-se que a cláusula da reserva da propriedade que a Autora fez para si da viatura cuja aquisição financiou ao Réu é nula, improcedendo assim os pedidos de restituição do veículo e de cancelamento  da inscrição da propriedade a favor do Réu.

Não esquecendo a polémica que gira sobre este tema, impõe-se, assim, que se apure da validade da reserva de propriedade a favor da Requerente.

O art.º 409º do C. Civil regula a reserva de propriedade nos termos seguintes:

1 – Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.

Da interpretação literal desta norma geral resulta de uma forma clara que a sua estipulação só é válida nos contratos de alienação, traduzindo-se na sujeição do efeito translativo destes negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente.

Suspendendo ela apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato. Apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga contrato de alienação do mesmo, na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado.

No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contra­tos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é o seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem [1].

Invoca a Requerente, como um dos argumento da validade da estipulação da cláusula de reserva de propriedade a favor da financiadora, o facto da mesma ser admitida na lei que regula o crédito ao consumo.

Ora, a previsão do regime jurídico dos créditos ao consumo – art.º 6º, nº 3, alínea f), do DL 359/91, de 21.9 – reporta-se às situações em que o pagamento do preço ao vendedor é diferido para momento posterior ao da entrega do bem, sendo este o beneficiário da reserva de propriedade clausulada e não aos casos em que a reserva de propriedade é estipulada a favor da financiadora, alheia ao contrato de compra e venda.

Também o art.º 409º do C. Civil não pode ser aplicado, por analogia, a esta situação, uma vez que não é possível equiparar a posição do alienante, proprie­tário de um bem que aliena, a quem é atribuída a possibilidade de convencionar a suspensão dos efeitos translativos do contrato de alienação, com a do mutuante, que não é proprietário desse bem, limitando-se a financiar a sua aquisição.

O direito atribuído pelo art.º 409º do C. Civil, pela sua natureza, só pode ser atribuído a quem é proprietário do bem em causa, não podendo ser concedido a quem não tenha essa qualidade [2].

A liberdade das partes estipularem cláusulas diferentes das legalmente previstas – art.º 405º do C. Civil – tem os limites impostos no art.º 280º do C. Civil, designadamente a impossibilidade jurídica do seu objecto.

Sendo legalmente impossível o objecto da estipulação em análise, a mesma é nula, nos termos do art.º 280º, nº 1, do C. Civil.

E não é defensável pretender-se, neste caso, que, apesar da terminologia utilizada, tal cláusula possa ser interpretada – art.º 236º, nº 1, do C. Civil –, ou convertida – art.º 293º do C. Civil - numa alienação fiduciária em garantia, cuja admissibilidade no nosso sistema jurídico é defendida por alguns.

Assim, a cláusula de reserva de propriedade a favor da Requerente, por­que legalmente impossível, ter-se-á de considerar nula, nos termos do n.º 1 do art.º 280º do C. Civil, o que determina a improcedência dos pedidos de restituição do veículo e cancelamento da inscrição do registo de propriedade sobre o veículo a favor do Réu.

Quanto aos argumentos esgrimidos pela recorrente para defender a validade da cláusula, subscrevemos, além do que acima já se disse, integralmente o que consta do voto de vencido  do Conselheiro Moreira Alves[3], argumentos que não colocam em crise a nulidade da cláusula:

E não se vê que os citados preceitos possam ser interpretados actualísticamente no sentido da douta decisão maioritária, visto que na letra da lei não existe o mínimo de correspondência verbal, no referido sentido, ainda que imperfeitamente expresso (Artº 9º nº 2 do C.C.).

Portanto, não parece justificado lançar-se mão de mecanismos jurídicos como o da “alienação da propriedade em garantia” ou da “transmissão da propriedade em garantia” consagrados no direito brasileiro ou alemão, para justificar a licitude da reserva da propriedade a favor da financeira (que não seja simultaneamente a vendedora), uma vez que tais mecanismos não foram adoptados pelo nosso direito positivo.

Assim, por muito actualistas que sejam tais concepções, a sua aplicação traduzir-se-á na criação de uma nova norma, o que não é função da jurisprudência nem do intérprete.

Seja como for, mesmo a admitir-se que na interpretação do Artº 409º do C.C. caberia a constituição de reserva de propriedade para garantir um critério alheio, tal só significaria que o comprador não adquiriria a propriedade da coisa comprada ao vendedor reservatório enquanto não pagasse o crédito ao terceiro financiador.

Mas não significaria a atribuição ao terceiro da propriedade da coisa, que se manteria na esfera jurídica do vendedor.

Por outro lado, não se vê como a dita propriedade do veículo pudesse ser adquirida pela A. (financeira) por via da cessão ou sub-rogação.

Tais institutos são típicos do direito das obrigações, que não dos direitos reais, e se a dúvida ainda era sustentável face à redacção do Artº 785º do Código de 1867, o novo Código eliminou-a com toda a clareza, restringindo intencionalmente o objecto da cessão aos créditos.

Notar-se-á, ainda, que a aplicação das regras da cessão de créditos a quaisquer outros direitos, consignada no Artº 588º do C.C., não abrange os direitos reais cuja forma de transmissão e constituição é regulada no Livro das Coisas (Artºs 1316º e seg.).

(Confr: A. Varela – Direito das Obrigações em Geral – 2º vol.- 285; Menezes Cordeiro – Direito das Obrigações – 2º vol. – 90, 91, oAlmeida Costa – Direito das Obrigações, 4ª Ed. – 554).

Portanto, por via da cessão de créditos ou sub-rogação transmitem-se direitos de crédito, não se transmitem nem se constituem direitos reais.

Como resulta do Artº 1316º do C.C., o direito real de propriedade apenas se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (entre os quais não se conta a cessão de créditos ou a sub-rogação).

Ora, não consta dos autos a celebração de qualquer contrato por via do qual a A. (financeira) tenha adquirido à vendedora, a propriedade do veículo em questão, nem consta que tenha adquirido essa propriedade por qualquer outra forma idónea para produzir tal aquisição.

Logo, não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo, não podia assumir a titularidade da reserva de propriedade e muito menos reivindicar tal propriedade com a consequente entrega definita do veículo.

Improcede, pois, o recurso.

Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se improcedente o recurso confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                 Jaime Ferreira

[1] Ac. do TRP, de 15.1.07, relatado por Cura Mariano, acessível em www.dgsi.pt, proc. n.º 0651966

[2] Neste sentido, além do acórdão citado, entre outros:

Ac. STJ:

 de 10.7.08, relatado por Santos Bernardino, proc. 08B1480,

 de 7.7.10, relatado por Moreira Alves;

 de 12.7.11, relatado por Garcia Calejo,

Ac. TRL:

 de 12.3.09 e 4.3.10, relatados por Ezaguy Martins,

 de 31.1.09, relatado por Rui Vouga,

 de 7.11.13 e 17.12.15, relatados por Maria Teresa Pardal,

 de 15.12.11, relatado por Luís Espírito Santos,.

Ac. do TRC, de 17.12.14,  relatado por Freitas Neto.

Ac. TRP, de 26.4.10, relatado por Anabela Luna de Carvalho, todos acessíveis em  www.dgsi.pt .

[3] Voto de vencido no acórdão do S. T. J. de 30.9.2014, relatado por Maria Clara Sottomayor, acessível em www.dgsi.pt .