Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
367/10.2TBMGL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
FIADOR
CRÉDITO
CONDIÇÃO
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
MANGUALDE - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.227, 634, 638, 779, 780, 817 CC, 50, 91, 181 CIRE
Sumário: 1.- Se a obrigação dos fiadores é acessória da que recai sobre os mutuários afiançados e estes têm vindo a pagar ao credor as prestações acordadas nos respectivos prazos, este não pode antecipar a cobrança da garantia apesar da insolvência dos primeiros.

2.- Na insolvência, para as situações que não estão ainda definitivamente assentes, tanto aquelas de obrigações efectivamente subordinadas a uma condição suspensiva (art.91º, nº1, do Código da Insolvência), como aquelas impropriamente designadas como tal, de obrigações ainda não exigíveis (art.50º do mesmo código), a solução do legislador foi a de acautelar o pagamento pela norma do art.181º desta lei.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            A Caixa A (...), SA, credora na insolvência de J (…) e M (…) interpõe recurso do despacho que julgou improcedente a sua impugnação da classificação do seu crédito feita pelo Exmo. Senhor Administrador da Insolvência, que o considerou sob condição, pelo facto de só ser exigível quando os principais devedores deixarem de liquidar à Apelante o valor em dívida.

            A recorrente apresenta as seguintes conclusões:

            1ª - Os insolventes J (…) e M (…) constituíram-se solidariamente fiadores e principais pagadores por tudo o quanto viesse a ser devido à ora Recorrente, em virtude dos contratos outorgados e supra referidos;

            2ª - Os insolventes são fiadores solidários e principais pagadores tendo, nesta medida, renunciado ao benefício da excussão prévia – artigo 640º, alínea a) do Código Civil;

            3ª - Renunciando ao benefício da excussão, os fiadores não podem opor ao credor os meios de defesa previstos nos artigos 637º, 638º e 639º, do C. Civil.

            4ª - De acordo com a doutrina do Professor Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 3ª Edição, pág. 632, em nota de rodapé refere que “o fiador equipara-se, do ponto de vista do credor, a um verdadeiro devedor solidário; só que, não o sendo realmente, poderá depois exigir do afiançado, se cumpre a obrigação, a totalidade do que pagou.”

            5ª - Também o Professor Romano Martinez, in Direito das Obrigações, 2ª Edição, pág. 291, refere que “o fiador, ao lado do devedor, apresenta-se como principal pagador; ou seja, o fiador e o devedor tornam-se responsáveis solidários pelo pagamento da dívida. Deste modo, o credor pode exigir a totalidade da dívida ao fiador ou ao devedor.”

            6ª - Consta do contrato de empréstimo que “A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de ...: Insolvência de qualquer dos devedores...”

            7ª - A qualificação da fiança prestada pelos insolventes como solidária e assumindo-se como principais pagadores, não tem tradução legal, nomeadamente, nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 50º do CIRE.

            8ª - De acordo com o disposto no artigo 91º do CIRE, “A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.”

            9ª - O crédito da recorrente não está subordinado a qualquer condição suspensiva, como supra se verifica pela ausência de enquadramento legal das alínea b) e c) do nº 2 do art.50º do CIRE, pelo que, tem-se como exigível a partir da declaração de insolvência.

            10ª - Face à renúncia/afastamento voluntário do benefício da excussão prévia, pode a credora, aqui Apelante, exigir a totalidade da dívida aos insolventes.

            11ª - Isto porque a norma do artigo 640º do Código Civil (norma substantiva) prevalece face à norma do artigo 835º do Código de Processo Civil (norma meramente processual/instrumental).

            12ª - Ora, com o devido respeito, e face a tudo o supra exposto, mal andou o Tribunal a quo ao assim decidir, pois que, os insolventes renunciaram ao benefício da excussão prévia, equiparando-se, por essa via, a verdadeiros devedores solidários.

            13ªº - Se assim não se entendesse, deixaria de fazer qualquer sentido o instituto da renúncia do benefício da excussão prévia.

            14ª- Violou, nomeadamente, o Tribunal a quo as normas constantes dos artigos 640º do Código Civil, 50º e 91º do CIRE.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            A questão a resolver é a de saber como qualificar o crédito do banco recorrente sobre os fiadores insolventes, sendo certo que os mutuários afiançados não estão em incumprimento.

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            Provam-se os seguintes factos:

            No exercício da sua actividade creditícia, a Caixa A ( ...) celebrou a 12.3.2007 e 2.12.2008 com B (…) e mulher contratos designados de mútuo com hipoteca e fiança.

            Estes mutuários têm vindo a pagar as prestações acordadas nos respectivos prazos.

            Os fiadores J (…) e M (…)foram declarados insolventes.

            Os insolventes declararam nos referidos contratos “que se responsabilizam solidariamente como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à Caixa credora em consequência do empréstimo titulado.”

            Nas cláusulas 13ª e 14ª dos documentos complementares às escrituras públicas subscritas, intituladas “Incumprimento/Exigibilidade antecipada”, ficou escrito:

            “Um. A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente:”

            (…)

            “e) Insolvência de qualquer dos devedores, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias do crédito.”


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            O despacho judicial em crise é do seguinte teor:

            “A fls. 6 e 7 veio a credora Caixa A ( ...) , SA veio impugnar a lista de credores reconhecidos pelo Sr. Administrador de Insolvência alegando que considera que o crédito por si reclamado reveste a natureza de crédito comum e não de crédito sob

condição conforme foi classificado pelo Administrador de Insolvência uma vez que os insolventes se constituíram solidariamente fiadores e principais pagadores.

            Notificado de tal impugnação veio o Administrador de Insolvência responder que a classificação do crédito da reclamante deverá manter-se como crédito sob condição à C.G.D. porquanto os insolventes são fiadores de contratos de terceiros, logo pese embora a declaração de insolvência determine que devem ser reclamados todos os créditos, a verdade é que este crédito não é neste momento exigível aos mesmos porque os principais devedores não estão em incumprimento com o credor, assim a condição é porque o crédito só lhes será exigível quando os principais devedores deixarem de liquidar à C.G.D..

            Cumpre decidir.

            Compulsados os autos verificamos que do teor do doc. junto a fls. 107 a 112 resulta que os mutuários (terceiros relativamente a estes autos) do contrato de mutuo celebrado com a reclamante se encontram a cumprir tal contrato, não havendo prestações em dívida referentes ao mesmo.

            Ora, em nosso entender, a responsabilidade dos aqui insolventes e fiadores nesse mesmo contrato de mútuo só poderia ser acionada se tal contrato não fosse cumprido, ou seja, se os mutuários entrassem em incumprimento, o que não resulta dos autos.

            Como bem refere o Administrador de Insolvência, o crédito reclamado pela C.G. Depósitos, SA, não é neste momento exigível aos insolventes porque os principais devedores não estão em incumprimento com a reclamante.

            Assim sendo, o crédito reclamado pela C.G. Depósitos, SA é considerado crédito sob condição, sendo que essa classificação advém do facto que o crédito só lhes poderá ser exigível quando os principais devedores deixarem de liquidar à C.G.Depósitos, SA o valor em dívida.

            Pelo exposto, julga-se improcedente a impugnação apresentada pela reclamante, determinando-se que o crédito por ela reclamado deve ser classificado como crédito sob condição.”


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            Resolvendo a questão:

            Não é questionado que os insolventes são fiadores dos mutuários.

            Também é aceite que os mutuários têm vindo a pagar à recorrente as prestações acordadas nos respectivos prazos.

            Os fiadores garantem a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigados perante o credor (art.627º, nº1, do Código Civil).

            São duas as características que definem a fiança:

            A acessoriedade: a obrigação dos fiadores é acessória da que recai sobre o principal devedor (o nº2 da norma referida; ver P. Lima, A. Varela, Código Civil Anotado, volume I, 2ª edição, página 613);

            E a subsidiariedade expressa no art.638º do Código Civil.

            A acessoriedade, como o mais essencial dos traços caracterizadores da fiança, consiste no facto desta ficar subordinada a acompanhar a obrigação afiançada. A obrigação que o fiador assume é a do devedor e não uma obrigação própria e autónoma da deste.

            A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (art.634º do Código Civil).

            É certo que neste caso os fiadores declararam nos contratos “que se responsabilizam solidariamente como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à Caixa credora em consequência do empréstimo titulado.”

            A expressão tem o significado de renúncia ao benefício da excussão prévia (o referido art.638º da lei em análise) mas não o de afastar a característica da acessoriedade.

            A obrigação principal, de que a fiança é garantia especial, é a da restituição do dinheiro emprestado pelo banco credor, com juros, nos prazos acordados (art.1142º do Código Civil).

            “No mútuo oneroso o prazo presume-se estipulado a favor de ambas as partes…” (art.1147º do mesmo código).

            Neste caso, os mutuários têm vindo a pagar à recorrente as prestações acordadas nos respectivos prazos. Não há incumprimento contratual.

            Ora, se o credor não pode, antes do próximo vencimento, exigir o cumprimento da obrigação (prestação) do devedor – arts.779º a 781º do Código Civil – por força da referida acessoriedade, também não o pode fazer contra o fiador.

            Qualquer processo executivo (e o processo de insolvência é um processo de execução universal) pressupõe o direito do credor já violado (art.817º do Código Civil; Lopes Cardoso, Manual da acção executiva, INCM, 1987, página 199).

           

            É certo que, não havendo incumprimento contratual, a posição do credor ficou alterada com a insolvência dos fiadores.

            Também é certo que nos contratos em análise ficou subscrito, nas cláusulas 13ª e 14ª (idênticas) dos documentos complementares às escrituras públicas, intituladas “Incumprimento/Exigibilidade antecipada”, o seguinte:

            “Um. A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente:”

            (…)

            “e) Insolvência de qualquer dos devedores, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias do crédito.”

            Não nos parece, porém, que as partes tenham querido dizer mais do que a lei prevê nos artigos 780º e 633º, nº2 e 3, do Código Civil. E, neste caso, o credor pode accionar o disposto nesta última norma, pedindo ao devedor outra garantia idónea.

            Mesmo que o sentido das cláusulas fosse o vencimento da dívida por força da insolvência do fiador (claramente excessivo e desproporcionado), este vencimento não é automático. É o que resulta da expressão “poderá considerar”.

            Sendo assim, cabia à Caixa ponderar o efeito da insolvência dos fiadores nos contratos (estes têm ainda a garantia das hipotecas e outros fiadores) e comunicar aos mutuários o resultado da sua ponderação, dando-lhes a possibilidade de reagirem em conformidade.

            Ora, o que se sabe é que tais contratos continuam a ser cumpridos normalmente.

            (Com interesse dogmático, ver G. Telles, Direito das Obrigações, 4ª edição, Coimbra Editora, páginas 179 a 202.)

            Com este enquadramento jurídico, como qualificar o crédito da Caixa, reconhecido no processo da insolvência dos fiadores, sobre estes?

            Para as situações que não estão ainda definitivamente assentes, tanto aquelas de obrigações efectivamente subordinadas a uma condição suspensiva (art.91º, nº1, do Código da Insolvência), como aquelas impropriamente designadas como tal, de obrigações ainda não exigíveis (art.50º do mesmo código), a solução do legislador foi a de acautelar o pagamento pela norma do art.181º desta lei.

            (Ver C. Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris, 2009, páginas 236, 366 e 597.) 

           

            O crédito da Caixa decorrente da garantia está sujeito a oportuna conferência da sua extinção, substituição ou exigibilidade.

            O referido crédito não é neste momento exigível e não pode ser pago.

            Por isso, a solução encontrada pela decisão recorrida está correcta.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente.


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 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura

 Luís Filipe Dias Cravo