Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
157/10.2GBSVV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
NATUREZA JURÍDICA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
SENTENÇA CONDENATÓRIA
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA (JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÁGUEDA - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 44.º DO CP
Sumário: O regime de permanência na habitação, sendo uma pena autónoma, com natureza de pena de substituição - e não um específico regime de execução da pena -, só pode ser aplicada na sentença condenatória ou na decisão proferida, em Tribunal Superior, por via de recurso daquela interposto.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
            1.         O arguido A... foi julgado e condenado como autor material de um crime de recepção, previsto e punido (de futuro, p. p.) pelo art. 231º nº 2 do Código Penal (de futuro, CP), na pena de 4 meses de prisão efectiva.
            Recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, questionando erro na apreciação da prova e a integração jurídica dos factos.
            O recurso foi julgado integralmente improcedente.
            Inconformado, recorreu ainda para o Supremo Tribunal de Justiça, mas o recurso não foi admitido.
            Notificado, e invocando que «a decisão condenatória ainda não transitou em julgado», o arguido veio então requerer que a pena de 4 meses de prisão em que fora condenado «seja executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controle à distância.».
            Apreciando o requerimento, a 1ª instância indeferiu-o.

            2.         Inconformado, recorre o arguido de tal decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1- O arguido antes do transito em julgado da sentença condenatória, requereu que a pena de prisão aplicada nos presentes autos, fosse executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos de controlo à distância, nos termos do art. 44 do CP.
2- O despacho recorrido indeferiu tal pretensão com a seguinte fundamentação : “Por se entender que o regime de permanência na habitação previsto no art. 44 do Código Penal, não constitui um mero regime de cumprimento da pena de prisão que possa ser aplicado posteriormente, por via incidental, na fase de execução da pena privativa da liberdade, mas tão só na sentença condenatória pelo tribunal de julgamento, devendo ser ponderado no momento da prolação da decisão condenatória, o que foi feito no caso concreto e afastado”.
3- Para perfilhar este entendimento, a decisão do tribunal também refere que o regime de permanência na habitação previsto no art. 44 do CP, “tem a natureza de uma pena de substituição da pena de prisão”.
4- Ora, o recorrente discorda que o regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica, seja uma pena de substituição da pena de prisão, em sentido próprio ou impróprio”, pois o que a experiência comum nos diz é que o regime de permanência na habitação com fiscalização eletrônica, trata-se de um regime tão ou mais penoso para o condenado, do que o cumprimento de pena em estabelecimento prisional.
5- Daí que, salvo melhor opinião, dada tal equiparação e efeitos para o condenado, entre o cumprimento de pena em estabelecimento prisional e em regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica, não se pode enquadrar tal regime como pena de substituição, mas sim como um especifico regime de execução da pena.
6- De facto, como se pode dizer que o regime previsto no art. 44 do CP, consagra uma pena de substituição da pena de prisão em estabelecimento prisional, se em tal regime a liberdade ambulatória do condenado, está não raras vezes, mais cerceada do que se a pena fosse cumprida na prisão?
7- O que a experiência nos diz, é que os condenados quando cumprem pena na habitação, e as habitações sejam exíguas( o que acontece em muitos casos), tal cumprimento da pena é mesmo muito mais gravoso e penoso para o arguido, do que se estivesse na prisão.
8- Quantas vezes os serviços de reinserção social, são confrontados pelos condenados, que lhes dizem que não aguentam mais estar fechados nas suas exíguas casas, e que preferem ir para a prisão, onde afinal têm uma maior amplitude de movimentos?
9- Deste modo, pelos fundamentos expostos, baseados nas regras da experiência comum, e com base em depoimento dos serviços de reinserção social, entende o recorrente, que não pode ser enquadrada como pena de substituição, o regime do art. 44 do CP, pois tal regime é susceptível de na prática, ser tão ou mais gravoso para o condenado.
10- Se a doutrina e a Jurisprudência enquadrarem tal pena como pena de substituição, estará a permitir que o objetivo de qualquer pena de substituição, qual seja, um regime mais favorável para o condenado, seja claramente violado, estando-se de facto a penalizar mais o condenado, do que a beneficiá-lo, pois tal forma de cumprimento da pena poderá efectivamente ser tão ou mais penosa para o mesmo.
11- Daí, que perfilhando-se que não se trata de pena de substituição, mas de regime especifico de mera execução da pena de prisão, caberá deixar um ónus ao condenado, no sentido deste requerer e consentir a aplicação deste regime, para depois se aferir se estão cumpridos os requisitos legais.
12- Por outro lado, entende-se que a prisão por dias livres e o regime de semi-detenção, tratar-se-ão de penas de substituição, pois tais regimes( art. 45 e 46 do CP) consagram de facto, um regime de cumprimento de pena mais favorável para o condenado, pois permitem que este mantenha a sua atividade laboral, que não deixe de estar integrado profissionalmente.
13- Ao invés o regime de permanência na habitação com fiscalização eletrónica, ao ter como legislação aplicável a lei 122/99 de 20 de Agosto, trata-se de um regime muito mais severo. De facto, tal lei estabelece requisitos muito apertados ,que apenas permite saídas muito excepcionais, e a maior parte das vezes só no caso do condenado necessitar de apoio médico, aliás em semelhança neste aspecto, ao cumprimento de pena em estabelecimento prisional.
14- Por outro lado, em tal regime os contactos telefónicos são tão ou mais restritivos do que se tivesse na prisão, podendo apenas por via de regra, ligar ao seu advogado e aos serviços de reinserção social.
15- O condenado, se cumprir pena em sua casa com fiscalização eletrónica, poderá muito provavelmente perder o seu emprego, sendo que os tribunais já decidiram que “ o despedimento de trabalhador que esteja preso preventivamente, nem sequer viola o princípio da presunção de inocência”.
16- Nestes termos, se é constitucional o despedimento de trabalhador preso preventivamente, por maioria de razão, também será possível se for condenado a pena de prisão efetiva.
17- O que prova igualmente que ao cumprimento da pena de prisão nos termos do art. 44 do CP, é aplicável a Lei 122/99 de 20 de Agosto( que regula a vigilância eletrónica no art. 201 do CPP), é o facto dos tribunais de primeira instância, fazendo referência a tal lei, quando o condenado está em casa a cumprir a pena, nunca determinam a continuação da atividade laboral que o condenado exercia, bem como indeferem o exercício de actividade profissional, quando no decurso da execução da pena, o condenado requer tal exercício profissional, juntando prova de entidade empregadora que lhe dá emprego imediato.
18- Efetivamente não se pode considerar como pena de substituição o regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica, pois como se demonstrou poderá tal regime ser efectivamente tão ou mais gravoso e penoso para o condenado, do que a pena de prisão em estabelecimento prisional, e também pelo facto de tal regime ser muito mais gravoso do que as outras penas de substituição previstas na lei, ao impedir a manutenção e ocupação profissional do condenado, fazendo com que o mesmo perca o emprego ou fique impossibilitado de o obter aquando do cumprimento de pena.
19- Nestes termos, o tribunal deveria deferir o requerido pelo condenado, ou então
aferir se estariam cumpridos todos os requisitos legais previstos no art. 44
n°1 do CP, e se existiam condições para a execução da pena através de
meios eletrónicos, nomeadamente, verificando se o condenado tinha telefone
e se as pessoas que viviam consigo também dariam o consentimento.

20- Por outro lado sendo o regime previsto no art. 44 do CP, um regime de execução da pena de prisão e aplicando-se a lei 122/99 de 20 de Agosto, poderia o condenado requerer a vigilância eletrónica em qualquer fase do processo.
21- Ora, o condenado requereu a aplicação deste regime com vigilância eletrónica, antes do transito em julgado da sentença condenatória, pois requereu nesse sentido, no prazo que dispunha para pedido de reforma, ou aclaração do acórdão da relação, daí que o requerido foi feito de forma tempestiva, nos termos do art. 3 n° 1 da Lei 122/99 de 20 de Agosto.
22- Assim como poderia ter requerido a execução da pena de prisão através de tal regime legal, quando se entrasse na fase de execução da pena, que só se inicia, aquando da emissão de mandados de detenção e condução ao estabelecimento prisional, precisamente por o regime do art. 44 do CP, se tratar de regime de execução de pena de prisão, e não pena de substituição.
23- Deste modo o despacho recorrido, violou os arts. 44n°1 do CP e os arts. 2 n°s 1, 2, e 4, e art. 3 n°1, todos da Lei 122/99 de 20 de Agosto, aqui aplicável.
24- De forma subsidiária e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá, que se se quiser equiparar o regime de permanência na habitação com fiscalização eletrónica previsto no art. 44 do CP, ao regime de prisão por dias livres e de semi-detenção, qualificando-o com a natureza de pena de substituição, sempre se dirá, que existe doutrina que aceitou quanto ao regime de semi-detenção, a aplicação deste regime em momento posterior á sentença condenatória.
25- Efetivamente a nossa doutrina, já aceitou, e nas palavras de Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, “ com todo o rigor”, o consentimento do condenado para aplicação do regime de semi-detenção, depois da condenação, por exemplo, quando manifestada em alegação de recurso( Vide neste sentido, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid iuris editora, em anotação ao art. 47 do Código penal, citando o BMJ 341/237, 350/398).
26- Deste modo, através de um argumento de identidade de razão, seguindo o entendimento da decisão recorrida, ao equiparar-se e identificar-se o regime do art. 44 do CP como pena de substituição, nada impede, antes supere, que se possa permitir ao condenado, em obediência à doutrina referida, que o mesmo requeira e dê o seu consentimento á execução da pena de prisão no termos do art. 44 do CP, em momento posterior à decisão condenatória.
27- E como o requerido pelo condenado foi em momento em que a sentença condenatória ainda não tinha transitado em julgado, poderia o tribunal em despacho posterior admitir o cumprimento da pena nos termos do art. 44 n.º 1 do CP.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, dever-se-á revogar o despacho recorrido, substituindo-o por despacho que determine a realização das diligências necessárias, a fim de se aferir a possibilidade da execução da pena de prisão nos termos do art. 44º n.º 1 do CP.

3.         O Ministério Público (de futuro, Mº Pº) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, sem apresentar conclusões.
A M.mª Juíza sustentou o decidido.
Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no mesmo sentido, por adesão à argumentação expendida em 1ª instância.
Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal (de futuro, CPP), o arguido nada disse.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4.         OS FACTOS
Transcreve-se o teor da decisão recorrida:
« A... foi condenado nos presentes autos, por sentença datada de 14.07.2011, na pena de 4 meses de prisão efectiva, tendo sido ponderada, na aludida sentença, a substituição por multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da pena de prisão, prisão por dias livres, regime de semidetenção ou de permanência na habitação, nela se tendo concluído que nenhuma das referidas penas substitutivas realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Da sentença condenatória interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo o recurso sido julgado improcedente, e interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo o mesmo sido admitido.
Veio então o condenado A... requerer que a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do requerido, nos termos da promoção de fls. 246 a 247, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Cumpre apreciar e decidir. Nos termos do disposto no art.º 44.º, do Código Penal, se o condenado consentir, podem ser executados em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, sempre que o tribunal concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano e o remanescente não superior a um ano da pena de prisão efectiva que exceder o tempo de privação da liberdade a que o arguido esteve sujeito, podendo o limite máximo previsto ser elevado para dois anos quando se verifiquem, à data da condenação, circunstâncias de natureza pessoal ou familiar do condenado que desaconselham a privação da liberdade em estabelecimento prisional.
O citado dispositivo legal foi instituído no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, em vigor desde 15.09.2007.
Como comummente vem sendo afirmado, quer na jurisprudência quer na doutrina, trata-se de uma nova pena de substituição de pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano e, ainda, ao remanescente não superior a um ano de prisão efectiva que exceder o tempo de privação da liberdade a que o arguido esteve sujeito em regime de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação e, excepcionalmente, a pena ou remanescente não superior a dois anos, quando se verifiquem circunstâncias de natureza pessoal ou familiar do condenado que desaconselhem a privação da liberdade em estabelecimento prisional, sendo disso exemplo as elencadas nas alíneas ali constantes.
Com efeito, a obrigação de permanência na habitação será, pelo menos, uma pena de substituição em sentido impróprio, no mesmo sentido em que se consideram como penas de substituição a prisão por dias livres e o regime de semidetenção (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, em anotação aos artigos 44.º e 45.º).
Ora, tendo o regime de permanência na habitação, previsto art.º 44.º, do Código Penal, a natureza de uma pena de substituição da pena de prisão, e não de um específico regime de execução da pena, o momento para decidir sobre a sua aplicação é o da prolação da decisão condenatória, tal como sucede com a prisão por dias livres e o regime de semi-detenção, devendo estar reunidos, nesse momento, os respectivos pressupostos. Na verdade, o momento em que a aplicação das penas de substituição deve ser decidida é o da decisão condenatória, enquanto momento da escolha, determinação e aplicação da pena correspondente ao facto.
Veja-se, neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação do Porto de 19.05.2010, os acórdãos da Relação de Coimbra de 11.11.2009, 23.05.2012 e 27.06.2012, os acórdãos da Relação de Lisboa de 30.06.2010 e 01.09.2011 e o acórdão da Relação de Évora de 10.12.2009, in www.dgsi.pt.
No caso dos presentes autos, a sentença condenatória foi proferida já na vigência da referida Lei n.º 59/2007, de 04.09, pelo que inexiste qualquer questão de sucessão de leis no tempo que imponha a reapreciação da modalidade da pena aplicada.
Destarte, por se entender que o regime de permanência na habitação previsto no art.º 44.º, do Código Penal, não constitui um mero regime de cumprimento da pena de prisão que possa ser aplicado posteriormente, por via incidental, na fase de execução da pena privativa da liberdade, mas tão só na sentença condenatória pelo tribunal de julgamento, devendo ser ponderado no momento da prolação da decisão condenatória, o que, aliás, foi feito no caso concreto e afastado, julga-se legalmente inadmissível o requerimento formulado, pelo que vai o mesmo indeferido.».

            5.         O MÉRITO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[1]]

            QUESTÕES A RESOLVER:
  • Se a pena de prisão em regime de permanência na habitação é uma pena substitutiva ou um específico regime de execução da pena

5.1.      DA NATUREZA DA PRISÃO EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
            Pode considerar-se pacífico que a prisão em regime de permanência na habitação assume natureza de “pena substitutiva”.
            Ao que sabemos, apenas o arguido sustenta que a prisão em regime de permanência na habitação constitui um “específico regime de execução da pena de prisão”. [[2]]
            Toda a doutrina [[3]] e jurisprudência [[4]] que conhecemos consideram a natureza de “pena substitutiva” para a prisão em regime de permanência na habitação.
            Não obstante, e porque nem sempre a razão está do lado das “maiorias”, cumpre escalpelizar os argumentos do Recorrente.
            Em abono da sua tese, o que o Recorrente invoca de substancial é “(...) o que a experiência comum nos diz, é que o regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica, trata-se de um regime tão ou mais penoso para o condenado, do que o cumprimento de pena em estabelecimento prisional”.
            Em primeiro lugar, há que dizer não ser concebível que se pretenda discutir a natureza jurídica duma pena com argumentos de “experiência comum” ou de a pena ser mais ou menos penosa para os condenados!
            Em termos dessa “experiência comum”, o que poderemos dizer é que, no que toca aos tribunais, a experiência diz o contrário, como resulta da análise dos inúmeros recursos de arguidos clamando por uma pena de prisão em regime de permanência na habitação, em detrimento de uma pena de prisão em estabelecimento prisional.
            Desconhece-se um único caso de arguido da situação inversa!
            Também não colhe o argumento de que o regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica é muitas vezes um regime tão ou mais penoso para o condenado do que o cumprimento de pena em estabelecimento prisional.
            Mas, para quem assim o considerar, bastará lembrar que o regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica está dependente do consentimento do condenado!
            Quanto à maior ou menor penosidade, o que se pode dizer é que é ontologicamente inerente, faz parte da própria natureza de uma qualquer pena, na sua vertente de reprovação do acto praticado, que ela comporte uma carga negativa para o condenado!
            Ainda que de elaboração doutrinal, a natureza das penas é aquela que lhe é conferida pelo legislador, pelo que em nada sai beliscada com “os depoimentos dos serviços de reinserção social” sobre o que lhes dizem os condenados!
            Incorre ainda em erro o Recorrente quando considera que “o objectivo de qualquer pena de substituição” é o de prover a “um regime mais favorável para o condenado”.
            Nunca a doutrina ou a jurisprudência assim o consideraram e, principalmente, nunca foi esse o objectivo estipulado pelo legislador.
            Como refere Figueiredo Dias, «(...) são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação». [[5]]
            E, mesmo assim, é o legislador quem determina os pressupostos de aplicação de cada uma das penas substitutivas que entendeu consagrar.
            Por fim, se o regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica é tão ou mais penoso para o condenado como o cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional, como compreender que o arguido clame agora por ele? Será que considera que a sentença foi demasiado benévola ao condená-lo em prisão em estabelecimento prisional?

            Visto isto, cumpre aduzir alguns argumentos jurídicos, no sentido de que o “regime de permanência na habitação” é uma pena substitutiva, e não uma forma de execução da pena de prisão.
            Como se sabe, um dos elementos a ter em conta na interpretação da lei é o elemento histórico, pois que, «(...) sendo a norma produto de uma evolução histórica de certo regime jurídico (...)», será necessário tentar «(...) compreender o que pretendeu o legislador com a fórmula ou com a alteração legislativa introduzida.» [[6]]
            A versão actual [[7]] do art. 44º do CP foi introduzida pela Lei nº 59/2007, de 04.09.
            Ora, na procura do pensamento, vontade e objectivos do legislador, refere-se expressamente na exposição de motivos (ponto 5.) da Proposta de Lei nº 98/X [[8]], que deu origem à Lei nº 59/2007: «No Título III, que versa sobre as consequências jurídicas do crime, para tornar as sanções mais eficazes e promover a reintegração social dos condenados, prevêem-se novas penas substitutivas da pena de prisão e alarga-se o âmbito de aplicação das já existentes. Assim, a prisão passa a poder ser executada em regime de permanência na habitação quando não exceder um ano e, em casos excepcionais (gravidez, idade, doença, deficiência, menor a cargo ou familiar ao cuidado), dois anos. A proibição de exercício de profissão, função ou actividade poderá substituir penas de prisão até três anos. O trabalho a favor da comunidade pode substituir doravante penas de prisão até dois anos e não apenas até um ano. Os restantes institutos – substituição por pena de multa, prisão por dias livres e regime de semidetenção - passam a referir-se a penas de prisão até um ano.». (sublinhado nosso)
            Colhe-se clara e expressamente deste texto, ter sido intenção do legislador (o elemento teleológico) atribuir natureza de pena substitutiva ao regime de permanência na habitação.
            Quanto ao elemento sistemático, o “regime de permanência na habitação” integra o art. 44º, inserido no Livro I (Parte Geral), Título III (Das consequências jurídicas do facto), Capítulo II (Penas), Secção I (Penas de prisão e multa).
            Aí, logo após a previsão da duração e contagem dos prazos de prisão (art. 41º), segue-se o art. 42º, que definindo os objectivos pretendidos para a pena de prisão (nº 1), mais refere que a execução da pena de prisão é regulada em legislação própria.
            No art. 43º prevêem-se os casos e condições de substituição da pena de prisão, passando-se então ao regime de permanência na habitação (art. 44º), prisão por dias livres (art. 45º) e regime de detenção (art. 46º) para, então, se passar à previsão da pena de multa.
            Esta sistemática é reveladora de que se pretendeu conferir autonomia ao regime de permanência na habitação, dedicando-lhe um preceito próprio onde, circunstanciadamente, se definem os pressupostos e requisitos, quer da sua aplicação, quer da sua revogação.
            E é exactamente essa autonomia, que invalida a consideração de que se possa tratar apenas de uma forma ou regime de execução da prisão.
            Em coerência, no Livro X do Código de Processo Penal, respeitante às execuções, depois das disposições gerais, temos o Titulo dedicado à execução da pena de prisão, que se apresenta subdividido em Capítulo I (da prisão, arts. 477º a 483º), Capítulo II (da liberdade condicional, arts. 484º a 486º) e Capítulo III (da execução da prisão por dias livres e em regime de semidetenção ou de permanência a habitação, arts. 487º e 488º).
            Em termos literais, e para quem pretenda ver na expressão “(...) podem ser executados (...)”, contida no nº 1 do art. 44º,  argumento para se tratar de um específico regime de execução da prisão, pode então dizer-se que não faria sentido a sua inserção nessa Secção, pois ficaria subsumida no art. 42º (execução da pena de prisão), e seria regulada em lei especial.

            Tratando-se de uma pena autónoma, com natureza de pena substitutiva, o momento de se ponderar sobre a sua aplicação é o da escolha e medida da pena, ou seja, aquando da sentença condenatória ou no recurso que vier a conhecer dessa mesma sentença.
            Na sentença condenatória ponderou-se expressamente a possibilidade do regime de permanência na habitação e conclui-se pela não aplicação por não se mostrarem reunidos os respectivos pressupostos.
A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: art. 673º do Código de Processo Civil (anterior redacção, vigente à época, mas que corresponde integralmente ao actual art. 621º), ex vi do art. 4º do CPP.
No seu recurso dessa sentença, o ora Recorrente não questionou esse segmento da sentença, o que sempre inviabilizaria a posterior invocação, uma vez que, tratando-se de questão autónoma [cf. art. 403º nº 2 al. f) e nº 3 do CPP] e não tendo sido suscitada, há que considerar que nessa parte a sentença transitou em julgado: art. 403º nº 2 al. f) do CPP. [[9]]
Como referem Simas Santos e Leal-Henriques, citando um acórdão do STJ, «O princípio processual actualmente aceite é o da cindibilidade do recurso, aliás acolhido no nº 1 do art.° 403.° do CPP em vigor desde 1-1-88, e reafirmado nos seus art. 410.°, nº 1 e 412.°, nº 2, princípio esse que funcionará sempre que a parte recorrida possa ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.
Por esse princípio poderá o recorrente limitar a sua reacção a uma decisão judicial, contanto que observe a regra da autonomia da parte que pretende submeter à censura do tribunal, como acontece nos casos exemplificativamente enumerados no nº 2 do art.° 403.°.
O recorrente pode limitar o recurso só à matéria de facto ou só à matéria de direito já que elas se apresentam com perfeita e recíproca independência.
Se o recurso envolver simultaneamente matéria de facto e de direito, a autonomia mantém-se, já que cada uma dessas facetas supõe uma decisão própria insusceptível de fundir-se numa só. (Ac. do STJ de 89.11.15, Proc. o n.º 40323, AJ 3.)». [[10]]

            Concluindo, o regime de permanência na habitação é uma pena autónoma, com natureza de pena substitutiva e que, por isso, só pode ser aplicada na sentença condenatória ou no recurso que vier a conhecer dessa mesma sentença.

            III.       DECISÃO
6.         Pelo que fica exposto, na improcedência do recurso, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em manter integralmente a decisão recorrida.
Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
            Coimbra, 10 de Dezembro de 2012
                                                                      

 (Relatora, Isabel Silva)

 (Adjunta, Alcina Ribeiro)

      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».
      [[2]] Significativo disso ser, quiçá, que ao longo das suas alegações de recurso, em ponto algum o arguido invoque Autor ou decisão judicial que tivesse acolhido a tese que propugna.
      [[3]] Para além dos Autores já referidos na decisão recorrida, veja-se Maria João Antunes, “Consequências Jurídicas do Crime”, Lições Direito Penal III, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra 2007-2008, pág. 16/17.
      [[4]] Confira-se, para além dos já citados na decisão recorrida, acórdão da Relação do Porto, de 06.06.2012 (processo 31/11.5PEPRT.P1).
      [[5]] Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, pág. 331.
      [[6]] Sobre os elementos a ter em conta na interpretação da lei, veja-se João Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, págs. 181 a 185, respeitando a citação feita à pág. 184.
      [[7]] Na versão anterior, era o seguinte o teor do art. 44.º - “Substituição da pena curta de prisão”: 1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º
2 - Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49.º
            [[8]] Que pode ser consultada em http://www.dgpj.mj.pt/sections/politica-legislativa/anexos/legislacao-avulsa/revisao-do-codigo-penal/downloadFile/attachedFile_f0/Proposta_de_Lei_98-X-2.pdf?nocache=1205856345.98.
[[9]] Neste sentido, acórdãos da Relação do Porto, de 21.11.2012 (processo 178/11.8GAMUR.P2) e de 07.03.2012 (processo 403/10.2GAVLC-A.P1).
[[10]] In “Recursos Penais, Rei dos Livros, 8ª edição, 2011, pág. 90.