Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/09.6GAAVZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: INSTIGAÇÃO
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALVAIÁZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 26, C. PENAL
Sumário: Nas hipóteses de instigação (cfr. art.º 26º, do C. Penal), do que se trata é da corrupção de um ser humano livre com vista à produção de um resultado jurídico-penalmente proscrito: o instigador consegue transferir, com sucesso, as suas intenções delitivas para o autor do facto, que actua, porém, livremente, nunca deixando de ter, consequentemente, o domínio deste.

A instigação só pode afirmar-se se se verificarem vários requisitos, de natureza objectiva e subjectiva.

Assim, de um ponto de vista objectivo, a conduta do instigador deve determinar ou causar a formação da resolução criminosa no autor e a ulterior realização, por este, do facto.

Isso implica que a actividade do instigador deverá ser de molde a levar o autor a adoptar a decisão de cometer o crime e a (pelo menos) dar início à sua respectiva execução, resultados que por essa razão aparecem como (e podem com legitimidade dizer-se) consequência da actuação do instigador.

Do ponto de vista subjectivo, a instigação há-de ser (duplamente) dolosa, no sentido de que o instigador tem de ser consciente da circunstância de que está a motivar outra pessoa a adoptar uma resolução criminosa e a realizar o correspondente facto, e pretender esta mesma comissão.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:                                                                                    

            No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 67/09.6GAAVZ que corre termos no Tribunal Judicial de Alvaiázere, Secção Única, em 17/11/2011, foi proferida Sentença, cujo DISPOSITIVO é o seguinte:

IX. DECISÃO:

*

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido:

1. Condenar o arguido A... pela prática, como autor imediato, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa de D..., na pena de 200 (duzentos) dias de multa;

2. Condenar o arguido A... pela prática, como autor imediato, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa de E..., na pena de 200 (duzentos) dias de multa;

3. Fazer o cúmulo das penas aplicadas ao arguido A... e condená-lo na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 7 (sete euros), o que perfaz o montante total de € 2.100 (dois mil e cem euros);

4. Condenar o arguido B... pela prática, como autor imediato, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 9 (nove euros), o que perfaz o montante total de € 900 (novecentos euros);

5. Condenar o arguido C... pela prática, como autor-instigador, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 9 (nove euros), o que perfaz o montante total de € 900 (novecentos euros);

6. Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar de Coimbra e condenar o demandado A... no pagamento, a este demandante, do valor de € 147 (cento e quarenta e sete euros), acrescidos de juros de mora desde a notificação do pedido de indemnização civil.

7. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por D... e condenar os demandados A..., B... e C... no pagamento ao demandante da quantia global de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora contados desta decisão.

8. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por E... e condenar o demandado A... no pagamento à demandante da quantia global de € 2.600 (dois mil e seiscentos euros), acrescida de juros de mora contados desta decisão.

9. Condenar cada um dos arguidos nas custas criminais do processo (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 5, e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais), nomeadamente em taxa de justiça que fixo, para cada um, em 3 (três) UC.

10. Condenar o demandado A... nas custas cíveis do processo respeitantes ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospital de Coimbra (artigo 446.º, nos 1 e 2, do Código de Processo Civil).

11. Condenar o demandante D... e os demandados A..., B... e C...D... nas custas cíveis do processo respeitantes ao pedido de indemnização civil deduzido por D..., em função do respectivo decaimento (artigo 446.º, nos 1 e 2, do Código de Processo Civil). 12. Condenar a demandante E... e o demandado A... nas custas cíveis do processo respeitantes ao pedido de indemnização civil deduzido por E..., em função do respectivo decaimento (artigo 446.º, nos 1 e 2, do Código de Processo Civil).”

                                                                        ****

            Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 19/12/2011, o Arguido C..., defendendo a sua revogação e substituição por outra que o absolva, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

            1) A sentença ore em recurso não contém factos donde se possa extrair, com certeza, que as palavras proferidas pelo arguido C... fizeram determinar no arguido B...a ideia – até aí inexistente – deste cometer o crime no assistente D....

            2) Assim, o tribunal a quo não pode atribuir ao arguido C..., tão só, pelo facto deste ter dito a B...“vai lá e dá-lhe com um pau pelos cornos abaixo” a prática, como autor instigador, do crime de ofensa à integridade física por aquele praticado na pessoa do assistente D..., sob pena de violação do disposto nos artigos 26.º e 143.º, ambos do C. Penal.

            3) Contudo, sempre pelas declarações dos assistentes D...e E...e da testemunha G..., prestadas no âmbito do decurso da audiência de discussão e julgamento, não resulta que o arguido tenha acicatado o arguido B..., agindo de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de encorajar B...a molestar a saúde física do assistente D....

            4) Considerando a atitude e a forma de estar e agir do arguido B..., desde o momento que passou junto da residência da testemunha G..., munido de um pau, em direcção à residência dos assistentes, até ao momento da agressão, nada permite concluir que as palavras do arguido C... proferidas junto da casa da testemunha G... terão determinado no B...a vontade de cometer o crime e executá-lo no assistente D....

            5) Assim, o ponto 10. da sentença ora em recurso, incluído na matéria de facto provada, tem que passar para a matéria dos factos não provados.

            6) As lesões dadas por provadas no assistente D..., concretamente:

            - Lesão avermelhada, localizada ao terço médio da região dorsal direita e orientada de cima para baixo e de dentro para fora, com 15cm de cumprimento e 1cm de largura;

            - Múltiplas feridas no 1.º, 3.º e 4.º dedos da mão direita;

            - Ferida na palma da mão esquerda;

            - Ferida no cotovelo direito;

            Considerando as datas e informações constantes do documento do Centro de Saúde de U... do dia 18/3/2009, fls. 226 e fls. 282, têm que ser dadas como não provadas, concretamente a lesão avermelhada nas costas, a ferida nos dedos da mão direita e ferida na palma da mão esquerda, e a ferida no cotovelo direito.

            7) Mas igualmente têm que ser dadas como não provadas porque só são mencionadas no documento do Centro de Saúde de U..., reportadas à data de 19/3/2009 e porque as feridas das mãos e do cotovelo direito não foram tão pouco observadas objectivamente pelo médico legista.

            8) Assim, a douta sentença ora em recurso tem que ser modificada, nos termos do disposto no artigo 432.º, b), do CPP, por referência ao disposto no artigo 412.º, n.º 3, als. a) e b).

            9) O Tribunal a quo, descredibilizando os depoimentos das testemunhas do arguido C..., conforme melhor consta da motivação da decisão de facto da sentença, a fls. 596 a 598, e aceitando como boas as declarações dos assistentes e o depoimento da testemunha G..., os quais são contraditórios e irrazoáveis, e não tendo admitido a deslocação ao local, usou de arbitrariedade na justa ponderação da decisão.

            10) Pois, uma vez dissecadas as declarações dos assistentes e da testemunha G..., têm as mesmas que ser consideradas não merecedoras de credibilidade e, consequentemente, o arguido C... e os restantes absolvidos, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo.  

                                                            ****

            Inconformado, também, com a decisão, dela recorreu, em 21/12/2011, o Arguido A..., defendendo a sua revogação e substituição por outra que o absolva, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

A

A prova produzida, pela acusação em audiência de discussão e que serviu de base à motivação que levou à condenação do recorrente, nomeadamente o depoimento dos assistentes e da testemunha G..., padece de contradições insanáveis, quer entre si, quer conjuntamente.

B

Desde logo, o assistente marido, no seu depoimento, afirma que não conhecia a voz que dizia “cabrão, boi, os teus cornos levantam um carro”, para, posteriormente, alterar a sua versão dos factos e dizer que aquela voz era a do recorrente.

C

É incongruente que os assistentes afirmem que o recorrente agarrou, levantou e atirou, um separador rodoviário, quando afirmam também que, em virtude do peso, são necessárias duas pessoas para agarrar, levantar, e atirar tal barra de ferro.                                                                                   D

É altamente contraditório, entre si, o depoimento dos assistentes quando, estando no local da prática dos factos, o assistente marido, sem quaisquer dúvidas, afirma que levantou a assistente mulher e, por via disso, a assistente mulher terá feito frente ao recorrente, e quando a assistente mulher, também sem quaisquer dúvidas, afirma que o assistente marido não a levantou e que ficou deitada no chão.

E

É também altamente improvável que os factos tenham ocorrido da forma como vêm relatados pelos assistentes, quando estando os assistentes no mesmo local, lado a lado, o assistente marido afirma que lhe bateram com um pau nas costas por uma vez e a assistente mulher declara que viu bater nas costas do assistente marido por três vezes. 

F

Os depoimentos do assistente marido e/ou da testemunha G... . não podem merecer a credibilidade do Tribunal a quo quando o primeiro declara que a segunda acendeu a luz, abriu a porta e que saiu para a rua e quando a segunda afirma que abriu a janela, acendeu a luz e que não saiu à rua.

           G

De igual forma não pode ser credibilizado o depoimento do assistente marido, uma vez que o mesmo, do local onde ocorreu a prática dos factos e onde o mesmo se encontrava, não é visível a casa da testemunha G... ., local onde a mesma se encontrava.

H

De acordo com as declarações do assistente marido, as agressões de que foi alvo terão tido origem, porque o mesmo e a sua cunhada (testemunha H...) ao cruzarem-se de carro, um com o outro, em frente à casa do recorrente terão buzinado.

I

A justificação apresentada para ocorrência dos factos levados a Juízo não é provável de acordo com as regras de experiência comum.

J

É completamente improvável que o buzinar em frente da casa de qualquer pessoa leve a que um qualquer morador saia da sua residência, se desloque a casa daquele que buzinou e o agrida.

K

O Tribunal a quo andou mal ao valorar, da forma como valorou o depoimento da testemunha G... ., na medida em que, na Sentença recorrida, esta testemunha foi credibilizada porque, por ser de noite e não haver barulhos, tratando-se de um meio pequeno e rural, esta testemunha terá ouvido a assistente mulher a gritar.

L

É destituído de lógica que a testemunha G... ., que vive num local silencioso e junto ao local de residência do recorrente e dos assistentes, se tenha levantado apenas porque ouviu vozes, quando a mesma afirma que não ouviu os carros do assistente marido e da testemunha passar em frente à sua casa.

M

É também destituído de qualquer lógica que a testemunha G... ., que refere que até se ouvem os carros a passar em frente à sua residência, no dia da prática dos factos, além de não ter ouvido os carros a passar junto à sua residência, não tenha ouvido os mesmos carros a buzinarem com insistência em frente à casa do recorrente que se situa junto da sua.

N

Existe nova contradição entre o depoimento do assistente marido e o do assistente mulher, quando, estando ambos no mesmo local, o primeiro declara que o recorrente chegou imediatamente após ter estacionado a viatura, e quando a segunda declara que o recorrente demorou entre cinco a dez minutos a chegar.

O

Não é verosímil a versão dos assistentes e da testemunha G... quando afirmam que o recorrente, desde que chegou ao local onde se encontravam os assistentes, até ao momento em que perpetrou, alegadamente, as agressões, ali esteve por meia hora agitado e a tirar e a guardar a navalha no bolso.

P

Não é verosímil que os assistentes, durante o período de cerca de 30 minutos – desde que chegou ao local onde se encontravam os assistentes, até ao momento em que perpetrou, alegadamente, as agressões - não se tenham recolhido para o interior da sua residência, ou sequer contactado as autoridades policiais para tomarem conta do que se encontrava a suceder.

Q

Também não é verosímil que a testemunha G... ., que pode ouvir gritos de aflição por parte da assistente mulher, não se tenha deslocado ao local da prática dos factos ou que não tenha tentado contactar as autoridades.

R

Principalmente quando a mesma testemunha, G... ., refere que o seu marido se encontrava deitado na cama e que não se levantou.

S

Não merece qualquer credibilidade o depoimento da assistente mulher e/ou da testemunha G... ., na medida em que a primeira declara que a segunda, depois de ocorrerem as agressões, no mesmo dia, abeirou-se dela e do assistente marido e a segunda declara que só na noite do dia seguinte teve contactos com os assistentes.

T

É inexplicável que a assistente mulher, numa determinada altura diga que viu o seu marido ser agredido com um pau e, posteriormente, afirme que viu ser agredido mas que não viu qualquer pau.

U

Para a convicção do Tribunal a quo foi decisivo a circunstância dos factos terem ocorrido num meio rural.

V

            Foi com base nesse facto que o tribunal a quo credibilizou o depoimento da testemunha G... ., dado que, no seu entender:

a) Inexistem barulhos à hora e no local da prática dos factos e por esse motivo esta testemunha terá conseguido ouvir a assistente mulher a gritar;

b) Foi o facto de inexistirem barulhos que terá levado a testemunha a ouvir vozes, a levantar-se e a ver o recorrente a passar a correr em frente à sua casa, em direcção à casa dos assistentes.

W

O Tribunal a quo, porém, deveria ter tido em conta que, momentos antes desta testemunha ter visto o recorrente passar a correr em frente à sua residência, a mesma deveria ter ouvido:

a) Os carros da testemunha H...e do assistente marido a passar;

b) As buzinadelas que o assistente marido e a testemunha H...deram um ao outro quando se cruzaram de carro em frente à residência do recorrente.

X

Os documentos clínicos juntos aos autos e valorados pelo Tribunal a quo, não implicam o recorrente na prática dos factos pelos quais foi condenado.

Y

Mal andou o Tribunal a quo ao considerar que a testemunha  … não ofereceu credibilidade.

Z

A justificação utilizada pelo Tribunal a quo é insuficiente.

AA

A testemunha ... declarou ter efectuado folhas Excel que lhe permitiram e permitem ter acesso ao que ele próprio e o recorrente fizeram no dia da alegada prática dos factos, 18.03.2009, o que nos parece suficiente para saber a data em questão.

AB

Não podia o Tribunal a quo deixar de relevar que é do senso comum que uma testemunha ao apresentar-se em Tribunal para ser ouvido em audiência de discussão e julgamento, saiba por que ali está e que tenha presente os dados que necessita.

AC

Olvidou o Tribunal a quo que a testemunha ... sabia ao que ia, pelo que é perfeitamente normal justificar a data da forma como a justificou. Estranho seria que, perante as concretas circunstâncias, a testemunha não soubesse o que ia fazer ou que não soubesse qual o dia em causa.

AD

Além disso, percorrido o depoimento da testemunha ..., resulta de forma clara e inequívoca que a mesma justificou a presença de tal data, não só por ter um mapa de horas em folha de Excel que lhe permitiu saber onde estavam à data e hora da prática dos factos, bem como porque a elas recorreu.

AE

A testemunha ... justificou ainda que tinha tal data presente porque um dia em que os trabalhadores da sua empresa faziam horas extraordinárias era excepção.

AF

Não podia o Tribunal a quo não credibilizar o depoimento da testemunha ..., só porque a mesma tinha presente a data, com precisão e sem motivo aparente, ocorridos mais de dois anos antes de prestar depoimento.

AG

Do depoimento da testemunha ... resulta que o mesmo sabia, em concreto, da data porque o recorrente andava a trabalhar à sua porta, porque naquele dia o recorrente ficou a trabalhar até mais tarde e porque nesse dia comeram um chouriço e uma morcela na sua adega.

AH

Ademais, é perfeitamente normal que a testemunha ... tivesse presente o dia em concreto, porque o recorrente lhe disse que tinha sido acusado de ter batido em alguém pouco tempo depois de todos estarem juntos, acontecimento, atentas as suas particularidades, extraordinário e facilmente memorizável.

AI

Espantosamente o Tribunal a quo descredibiliza o testemunho de ..., na medida em que entende não ser normal que a testemunha não saiba como o recorrente teve notícia da acusação que sobre o mesmo recaía.

AJ

No entanto, a testemunha ... soube explicar da forma que o recorrente tinha tido notícia da acusação e o Tribunal a quo não valoriza este depoimento.

AK

O Tribunal a quo andou mal ao utilizar bitolas diferentes de forma a credibilizar ou descredibilizar os vários depoimentos a seu bel-prazer.

AL

Andou mal o Tribunal a quo ao considerar que não é verosímil, nem razoável, que a testemunha tenha presente a data em causa e não saiba dizer os outros dias em que o recorrente esteve a comer em sua casa.

AM

É perfeitamente normal que a testemunha ... recorde o dia em causa e não outros, dado que esta data, por especial que se tornou, não é facilmente esquecida.

AN

O Tribunal a quo não retirou as devidas ilações do depoimento da testemunha ..., quando o mesmo, ouvido ao abrigo da descoberta da verdade material e após audição de todas as testemunhas de defesa, que colocavam o recorrente e o arguido C...em locais distintos, não consegue colocar o recorrente, bem como os demais arguidos, no local da prática dos factos. 

AO

O Tribunal a quo não toma qualquer posição quanto ao depoimento desta testemunha, nem sequer justifica a falta da entrega do documento, para a qual a testemunha foi devidamente notificada e que poderia precisar a data em concreto do alegado avistamento, se no dia da prática dos factos se noutro qualquer.

AP

Perante as inúmeras contrariedades que vêm de se expor, existe dúvida razoável e fundada que impede a condenação do recorrente, bem como, atenta a sua versão dos factos, a dos demais arguidos.

AQ

O Tribunal a quo deveria ter cumprido o comando legal estipulado no artigo 127º, do CPP.

AR

A prova produzida, analisada de acordo com as regras de experiência e de acordo com a livre convicção do julgador, é insuficiente para concluir pela prática dos factos dados como provados na Sentença recorrida.

AS

A prova produzida em audiência é dúbia, a ponto tal, que permite questionar se a versão apresentada pelos assistentes é verdadeira.

AT

O Tribunal a quo formulou a sua convicção de forma subjectiva, emocional e imotivável e, portanto, arbitrariamente.

Com efeito,

AU

Existem dúvidas que resultam da prova produzida que são inultrapassáveis, as quais aliadas à sua não justificação e levam a crer que os factos imputados ao arguido nem sequer ocorreram ou, pelo menos, criam essa dúvida razoável.

AV

O Tribunal a quo desligou-se totalmente das contradições que resultaram da prova produzida para dar o depoimento dos assistentes, e da testemunha G... ., como bom e válido para o que pretendeu.

AW

A prova produzida em julgamento colide com as regras de experiência e contraria as leis da lógica.

AX

Deveria o Tribunal a quo ter feito observar o princípio in dubio pro reo, absolvendo, pois, o recorrente.

AY

Os raciocínios utilizados pelo Tribunal a quo para concluir como concluiu, postergou infundadamente todas as dúvidas que não foram esclarecidas ao longo da produção da prova.

AZ

Mas a verdade é que, tais contradições são insanáveis, e nessa medida, querendo o Tribunal a quo condenar, como fez, também não poderia trazê-las à motivação da Sentença recorrida.

BA

Não há melhor momento para encarar tal dúvida quando ela se apresente num contexto como o dos autos, em que das declarações de partes interessadas e únicas testemunhas se retiram objectivas contradições que conduzem a dúvidas inultrapassáveis.

BB

Mal andou Tribunal a quo ao não o efectuar os juízos críticos que vêm de se aduzir, tendo proferido, de forma quase inexplicável e infundada, a decisão que ora se impugna e que atenta a factualidade que vem de ser elencada e o argumentário que vem de se aduzir, violou o disposto nos Art.ºs 127º, do CPP, e artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa.

                                                                        ****

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso do arguido C... da ., em 13/2/2012, defendendo a sua improcedência e apresentando as seguintes Conclusões:                                                                                                                                      1. Face aos factos dados como  provados nos pontos 3, 4 e 10 da matéria dada como provada na sentença recorrida, extrai-se que o recorrente acicatou o arguido B... a cometer o crime no assistente D....  

2. Com as palavras proferidas pelo recorrente, este encorajou o arguido B... a agredir o assistente, o que este fez, e desta forma incutiu-lhe a decisão de cometer o crime pelo qual foi condenado.

3. Tal resultou das declarações dos assistentes e da testemunha G... ., tal qual se referiu na sentença recorrida.

4. Face a todos os elementos médicos juntos aos autos, conjugados entre si e articulados com a prova testemunhal produzida, nomeadamente face à ficha de consulta de fls. 519, as alegadas lesões no assistente D...descritas na matéria dada como provada devem continuar a considerar-se provadas.

5. Não foram violadas quaisquer normas legais, mormente as indicadas pelo recorrente.

6. Por conseguinte, o recurso deve ser julgado sem provimento, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

****

            O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso do arguido A...da ., em 13/2/2012, defendendo a sua improcedência e apresentando as seguintes Conclusões:

1. As alegadas contradições invocadas pelo recorrente são despicientes, insignificantes e as mesmas não têm relevância para pôr em causa as declarações prestadas pelos assistentes e pela testemunha G... ..          

            2. Tais declarações, no seu âmago, coincidentes, mostram-se credíveis e, conjugadas com os elementos médicos juntos aos autos, são suficientes para considerar provados os factos que constam de 1. a 4. da matéria dada como provada na sentença.

            3. A justificação apresentada pelo Tribunal a quo para considerar não credíveis os depoimentos das testemunhas de defesa ... e ... é mais do que suficiente, sendo clara e objectiva.

            4. Não tinha o Tribunal a quo que se pronunciar quanto ao depoimento da testemunha ..., pois o mesmo não abalou a prova resultante das declarações prestadas pelos assistentes e a testemunha G... ., sendo irrelevante para a decisão.

            5. Não subsistem dúvidas da prática pelo recorrente dos crimes em que foi condenado, não se aplicando ao caso sub judice o princípio legal estabelecido no artigo 127.º do CPP.

            6. A sentença recorrida não violou quaisquer normas legais, nomeadamente as invocadas pelo recorrente.

            7. Por conseguinte, o recurso deve ser julgado sem provimento, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

****

            Os Assistentes D... e E... responderam aos recursos dos arguidos C... da . e A...da ., em 15/2/2012, defendendo a sua improcedência e, sem apresentar Conclusões, considerando, em resumo, o seguinte:

1. Não há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

            2. Não há erro de julgamento.

            3. Nenhuma censura merece a sentença recorrida, ao nível dos princípios da valoração da prova.

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            Os dois recursos foram, em 20/2/2012, admitidos.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 1/3/2012, emitiu douto parecer no qual acompanhou a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância, pugnando, assim, pela improcedência dos recursos.

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o respectivo direito de resposta.

Colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:

“(…)

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

*

III.1. FACTOS PROVADOS

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

1. No dia 18 de Março de 2009, pelas 21h30, na … , U..., junto à residência dos assistentes, o arguido A...., munido de uma barra de ferro, desferiu uma pancada na perna esquerda de E..., fazendo-a cair.

2. D... tentou socorrer a sua mulher E... e, quando se aproximou, o arguido A.... desferiu-lhe golpes com uma navalha em três dedos da mão direita e na palma da mão esquerda.

3. Entretanto, C..., dirigiu-se a B...dizendo “vai lá e dá-lhe com o pau pelos cornos abaixo!”.

4. Na sequência das palavras de C..., B... ., munido de um pau, desferiu pancadas nas costas de D..., fazendo-o cair.

5. Em consequência do referido em 2. e em 4., o assistente D... sofreu as seguintes lesões:

- Lesão avermelhada, localizada ao terço médio da região dorsal direita e orientada de cima para baixo e de dentro para fora, com 15 cm de cumprimento e 1 cm de largura;

- Múltiplas feridas no 1.º, 3.º e 4.º dedos da mão direita;

- Ferida na palma da mão esquerda;

- Ferida no cotovelo direito;

- Escoriação no joelho esquerdo com 5 cm de diâmetro.

6. Tais lesões determinarão, em condições normais, 15 dias para a cura, sendo 10 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e 15 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional.

7. Em consequência do referido em 1., a assistente E... sofreu tumefacção da face externa do terço inferior da perna esquerda, com 8 cm de altura por 3 cm de largura.

8. Tais lesões determinarão, em condições normais, 12 dias para a cura, sendo 6 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

9. Os arguidos A.... e B...agiram de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de molestarem a saúde física dos assistentes E.... e D....

10. O arguido C..., ao acicatar o arguido B...a agredir o assistente D..., agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de encorajar B...a molestar a saúde física do assistente D....

11. Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

12. O arguido A.... é pedreiro, e aufere € 520 mensais, vive com a mãe, que está reformada, em casa desta e paga € 150 mensais de prestação de alimentos a um filho menor.

13. O arguido B...emigrou para a Suíça, onde exerce a profissão de pintor e vive com colegas; em Portugal reside com a mãe e não tem filhos.

14. O arguido C... é segurança e recebe € 630 mensais, reside em casa própria com a mulher, que está a tirar um curso remunerado de hotelaria, e com um filho maior, que trabalha.

15. O arguido C...é tido como boa pessoa pelos seus amigos.

16. Do certificado de registo criminal do arguido A.... nada consta.

17. O arguido B...foi condenado pela prática, em 5 de Maio de 2010, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5, por sentença transitada em julgado em 9 de Junho de 2010.

18. Do certificado de registo criminal do arguido C... nada consta.

19. Na sequência das lesões referidas em 7., a assistente E... recebeu assistência hospitalar no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Coimbra, EPE.

20. Com a assistência hospitalar referida em 18., o demandante Centro Hospitalar de Coimbra, EPE despendeu € 147 (cento e quarenta a sete euros).

21. O assistente D... nasceu a 10 de Setembro de 1955.

22. A assistente E... nasceu a 12 de Maio de 1958.

23. O assistente D... desempenhava à data dos factos e desempenha actualmente a profissão de guarda prisional.

24. A assistente E... era à data dos factos e é actualmente doméstica e aufere uma pensão de invalidez de € 246,36.

25. O assistente D... curou-se das lesões de referidas em 5. em 17 de Abril de 2009.

26. Em consequência do referido em 2. e em 4., o assistente D... ficou com as seguintes incapacidades:

- Incapacidade temporária geral parcial entre 18 de Março de 2009 e 17 de Abril de 2009;

- Incapacidade temporária para a sua profissão total entre 18 de Março de 2009 e 17 de Abril de 2009;

- Incapacidade permanente geral de 1,5 pontos.

27. Em consequência do referido em 2. e 4., o assistente D... teve dores de grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

28. Em consequência do referido em 2. e 4., o assistente D... teve um dano estético de grau 1 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

29. A assistente E.... curou-se das lesões de referidas em 7. em 18 de Abril de 2009.

30. Em consequência do referido em 1., a assistente E... ficou com as seguintes incapacidades:

- Incapacidade temporária geral parcial entre 18 de Março de 2009 e 18 de Abril de 2009;

- Incapacidade temporária para as actividades domésticas e rurais total entre 18 de Março de 2009 e 18 de Abril de 2009;

- Incapacidade permanente geral de 2 pontos.

31. Em consequência do referido em 1., a assistente E... teve dores de grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

*

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Da audiência de julgamento não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a boa decisão da causa, nomeadamente que:

a) Em consequência do facto 1., a assistente E... sofreu hematoma na cabeça.                                                                                                           b) Em consequência dos factos 2. e 4., o assistente D... ficou com uma incapacidade permanente geral de 2 pontos.

c) A assistente E..., na sequência do facto 1., sofreu um período de doença de 15 dias, com incapacidade total.

d) A assistente E..., na sequência do facto 1., sofreu um período de doença, com incapacidade parcial, de 113 dias.

***

IV. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

*

A convicção do Tribunal acerca dos factos acima descritos e dados como provados fundou-se no conjunto das provas produzidas em audiência, em concreto nas declarações dos arguidos (quanto ao arguido A..., apenas no que respeita à sua situação familiar e económica e à situação do seu filho B... .), dos assistentes, das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, nos elementos clínicos e periciais juntos aos autos, nas certidões de nascimento dos assistentes e no certificado do registo criminal dos arguidos, analisados de forma crítica, à luz de critérios de normalidade e de regras de experiência comum, como se passa a explicitar.

Como resulta da matéria factual dada como provada, o Tribunal atribuiu credibilidade à versão dos factos trazida pelos assistentes em detrimento dos relatos apresentados pelas testemunhas de defesa e pelo arguido C.... Vejamos com maior detalhe.

Os assistentes relataram os acontecimentos da forma dada como provada, concretamente os factos 1. a 4.

Esta versão dos assistentes foi, em parte, confirmada pela testemunha G... ., vizinha dos assistentes, que disse ter visto, no dia e hora dos factos, o arguido A...correr em direcção a casa dos assistentes, seguido do seu filho B..., que ia Tribunal Judicial de U... munido de um pau, e disse ainda ter ouvido o arguido C...dirigir-se ao B... dizendo para ele ir bater com o pau no assistente.

Mais, esta testemunha, que disse residir entre a casa dos assistentes e a do arguido A..., referiu ainda ter ouvido a assistente E...gritar e dizer “vai-te embora A...”.

A forma como a testemunha descreveu os factos a que assistiu e o que ouviu convenceu o Tribunal, designadamente na medida em que referiu que estava já deitada, ouviu um barulho e foi à janela, o que é perfeitamente credível, bem como quando referiu que, atendendo à hora dos factos, por ser de noite e não haver barulhos, tratando-se de um meio pequeno e rural, conseguia ouvir a assistente a gritar, mas não se conseguiu aperceber das palavras concretas que o assistente D... dirigia ao arguido A.....

A circunstância de a testemunha não saber exactamente a distância, em metros, que separa a sua casa da casa do arguido A...e da casa dos assistentes não abala a sua credibilidade nem a relevância do seu testemunho, uma vez que é perfeitamente compreensível que uma senhora com a idade da testemunha e com a sua actividade não saiba dar tal tipo de indicações.

A relevância que o Tribunal deu à versão dos assistentes teve ainda por base os elementos médicos juntos aos autos.

Desde logo a ficha de consulta do Centro de Saúde de U... (fls. 519), enviado aos autos pelo Centro de Saúde, onde se pode ler que, no dia 18 de Março de 2009, pelas 23h35, o assistente D... foi assistido naquele Centro de Saúde e que apresentou, como motivo da deslocação àquela unidade de saúde, o facto de ter sido vítima de agressão. Quanto às concretas lesões observadas no Centro de Saúde, está manuscrito que o assistente apresentava lesões no joelho e noutra parte do corpo, que se supõe serem as mãos, que foi feita desinfecção e colocação de penso.

Estes tratamentos são compatíveis com as declarações dos assistentes e com os depoimentos de G... ., que disse ter ido a casa dos assistentes no dia a seguir aos factos e que o assistente D...tinha ligaduras numa mão e num joelho, e de … , que disseram ter visto o assistente com as mãos ligadas.

Quanto à assistente E..., o Tribunal considerou o relatório completo de episódio de urgência de fls. 538 a 540, referente às 00h57 do dia 19 de Março de 2009, onde se refere, além do mais, que a assistente foi enviada para aquele hospital vinda do Centro de Saúde de U... com cefaleias, náuseas e dor no tornozelo esquerdo e onde se refere que a causa apresentada para as lesões foi agressão.

Mais uma vez, estas lesões, designadamente a do tornozelo, são compatíveis com o relato dos acontecimentos apresentado pelos assistentes, bem como com o depoimento da testemunha G... . quer disse que, na deslocação a casa dos assistentes no dia a seguir aos factos, a assistente E...se queixava de uma perna.

Passando para a versão dos acontecimentos apresentada pela defesa, temos que as testemunhas indicadas pelo arguido A.... disseram que este estaria a comer em casa da família  … no momento dos factos e que o arguido C... e as testemunhas por este arroladas disseram que ele estava a comer tordos com um grupo de amigos na altura dos acontecimentos dados como provados. Vejamos as razões pelas quais o Tribunal não atribuiu credibilidades a estas versões.

Começando pela defesa do arguido A...., importa analisar o depoimento de  … .

Perguntado à testemunha ... pela data dos factos, logo respondeu que sucederam em 18 de Março de 2009. Ora, tendo a testemunha sido ouvida no dia 26 de Setembro de 2011 é sempre de estranhar que, sem mais, tenha presente uma data ocorrida mais de dois anos antes e sem apresentar qualquer justificação para uma memória presente (à excepção de ter referido ter feito “folhas de Excel”, sem contudo as ter consultado no momento do depoimento).

No decurso do seu depoimento, a testemunha disse que o arguido foi seu empregado e que, naquele dia 18, andaram a trabalhar numa obra perto de casa dos seus pais e que, como a obra acabou tarde, pediu à mãe que preparasse um “lanchinho”, pelo que ficou, juntamente com o seu pai e o arguido A..., em casa dos seus pais, em … , até perto da meia-noite.

Mais disse esta testemunha que, entre 3 a 5 semanas depois do lanche, o arguido A...lhe disse que estava a ser acusado de ter agredido os assistentes naquele dia 18 de Março, precisamente na altura em que estavam juntos.

Este relato da testemunha não mereceu qualquer credibilidade do Tribunal.

Desde logo por força da inusual frescura da sua memória a propósito da data dos factos, como acima melhor explicitado.

Por outro lado, por ter referido que, depois de o arguido A...lhe ter dito que o estavam a acusar de ter agredido os assistentes naquele mesmo dia, não ter sequer perguntado ao arguido A...como soube que estava a ser acusado de tais factos e ter dito não saber se este arguido e o assistente D...se davam bem ou mal.

O que seria normal, de acordo com as regras da experiência e o comportamento das pessoas, seria que, caso o arguido A...tivesse estado efectivamente com esta testemunha no momento em que os assistentes lhe imputam os comportamentos dados como provados, pelo menos a testemunha – que diz ter um bom relacionamento com o arguido, inclusivamente que o leva a casa dos seus pais para comer – soubesse como é que o arguido ficou a saber das acusações e se elas se justificam por um mau relacionamento dele com os assistentes.

Quanto a esta versão dos acontecimentos foi também inquirido ..., pai de ....

À semelhança do filho, também o pai sabia, com precisão e sem motivo aparente, a data dos factos, ocorridos mais de 2 anos antes de prestar depoimento em Tribunal.

Perguntado porque razão tinha a data tão presente, respondeu que não a apontou porque não precisou e que não a esqueceu.

Mais uma vez, não é razoável que uma pessoa tenha presente o dia em que aconteceu um facto para si não marcante e ocorrido mais de 2 anos antes de ter de o relatar.

Esta testemunha disse ainda que o arguido A...foi várias vezes “fazer lanchinhos” a sua casa, pelo que não é verosímil nem razoável que a testemunha tenha presente esta data concreta e não saiba dizer os outros dias em que o arguido esteve a comer em sua casa.

 … , mulher da testemunha ... e mãe da testemunha ..., disse que o arguido A...foi lanchar várias vezes a sua casa mas que não sabe em que datas.

Em síntese, esta falta de razoabilidade dos depoimentos das testemunhas  … e ..., aliada à versão dos assistentes – concordante com os relatórios do Centro de Saúde e do Centro Hospitalar de Coimbra – e ao depoimento da testemunha G... . levou o Tribunal a credibilizar a versão dos assistentes e a descredibilizar a versão das testemunhas do arguido A.....

Passando para a defesa de C..., há que dissecar o depoimento das testemunhas ………...

A testemunha  … disse ter estado a comer tordos, no dia 18 de Março de 2009, entre as 19h00 e as 23h00, com o arguido C... e com ... em casa de ..., conhecido como .... Mais disse que era frequente encontrarem-se para comer tordos e que os animais pertenciam ao arguido C....

Perguntado porque razão se recorda com precisão da data, disse que o arguido C...lhe referiu que estava a ser acusado de ter agredido os assistentes naquela data em que estiveram juntos.

... ., conhecido como ..., disse que, no dia 8 de Março de 2009, entre as 19h00 e as 23h30, esteve na sua adega, juntamente com o arguido C..., o ... e o ... a comer tordos.

Perguntado porque razão recorda com precisão a data de uma patuscada passada há mais de 2 anos, disse que aponta na sua agenda os dias em que comem petiscos em sua casa.

Esta explicação apresentada pela testemunha oferece muito pouco credibilidade, não só pela própria explicação em si mas também pelo facto de a testemunha não ter conseguido dizer com precisão quantas vezes foram realizadas patuscadas em sua casa no mês de Fevereiro de 2009, tendo referido que em Março, aquela tinha sido a única patuscada, nem ter conseguido dizer quando costumava inscrever na sua agenda a realização das patuscadas, se antes de elas ocorrerem se depois.

A testemunha ... confirmou que costuma ir a uma petisqueira com o arguido C..., mas disse não conseguir precisar as datas.

Perguntado quem costuma estar nas petisqueiras disse que, além do ..., dono da adega, o … . também está lá sempre.

Esta testemunha disse que a caça acaba em Fevereiro e que, por isso, Março é o mês em que se fazem mais petisqueiras, recordando-se que, em 2009, esteve presente em, pelo menos, duas petisqueiras em casa do ... (testemunha ... .).

O arguido C... decidiu falar em declarações finais e disse que, no dia dos factos, esteve na tal patuscada dos tordos, pelo que negou a prática dos factos.

Perguntado se falou com o assistente a questionar a razão pela qual lhe tinha imputado as agressões, disse não o ter feito, apesar de se conhecerem, não tendo apresentado qualquer justificação para não o ter feito.

De acordo com as regras da experiência e da vida em sociedade, se uma pessoa é confrontada com uma agressão que não praticou e que lhe é imputada por uma pessoa sua conhecida, pelo menos dirige-se a essa pessoa ou a alguém que lhe seja próxima tentando perceber a razão de ser da imputação, sendo completamente irrazoável uma absoluta inércia depois de tal situação.

A falta de credibilidade da testemunha ... ., aliada ao facto de a testemunha ... conhecer a data da patuscada por referência à data que lhe foi indicada pelo arguido C..., ao desconhecimento da data das patuscadas invocado pela testemunha ... e às declarações pouco razoáveis do arguido C... a propósito desta matéria, por contraposição à versão dos assistentes – concordante com os relatórios do Centro de Saúde e do Centro Hospitalar de Coimbra – e ao depoimento da testemunha G... . levou o Tribunal a credibilizar a versão dos assistentes e a descredibilizar a versão trazida pelo arguido C....

Os factos 5. a 8. foram dados como provados com base nos relatórios de fls. 6 a 13, sendo que a correspondência entre a conduta dos arguidos A...e B...descrita em 2. e 4. e as lesões descritas em 5., é identificável de acordo com as regras da experiência e do normal acontecer, ou seja, os danos descritos em 2. correspondem às lesões nos dedos e na mão e os danos descritos em 4. correspondem às restantes lesões, compatíveis com a pancada e a queda.

Os factos provados relativos ao elemento intelectual e volitivo do dolo (factos 9. A 11.) resultaram do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não directamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum, mais concretamente o Tribunal teve em consideração a forma como os arguidos actuaram. O conhecimento da proibição foi dado como provado por ser de conhecimento geral de qualquer pessoa integrada na sociedade.

Os factos 12. a 14. foram dados como provados com base nas declarações dos arguidos A.... e C..., que se afiguraram credíveis.

O facto 15. foi dado como provado com base no depoimento de ..., ... . e ....

Os factos 16. a 18. foram dados como provados por força dos certificados de registo criminal juntos aos autos.

Os factos 19. e 20. foram dados como provados como base nos documentos de fls. 274 e 538 a 540.

Os factos 21. e 22. foram dados como provados como base nos documentos de fls. 500 a 503.

Os factos 23. e 24. foram dados como provados como base nas declarações dos assistentes e nos documento de fls. 377 e 380.

Os factos 25. a 28. foram dados como provados como base no documento de fls. 467 a 470.

Os factos 29. a 31. foram dados como provados como base no documento de fls. 471 a 474.

Os factos que o Tribunal deu como não provado resultaram da ausência de prova ou da prova de factos conflituantes. Vejamos.

O facto a) foi dado como não provado por ausência de prova, na medida em que em nenhuma das observações e dos exames a que a assistente foi sujeita foi relatado qualquer hematoma na cabeça.

Os factos respeitantes às consequências para os assistentes provenientes das agressões (factos b) a d)) foram dados como não provados por terem sido dados como provados os factos 25. a 31.

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V. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

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Os arguidos vêm acusados da prática de crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

Dispõe o artigo 143º, nº 1 do Código Penal que, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

O tipo objectivo fica preenchido quando o agente provoca ofensas no corpo ou ofensas na saúde do ofendido, independentemente da dor ou sofrimento causado (como decorre no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 1991, publicado no DR, I de 8 de Fevereiro 1992).

A lesão na saúde é “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a” (Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 207).

A lesão do corpo consiste no mau trato através do qual a vítima é “prejudicada no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante. (…) Integram o elemento típico aquelas actuações que envolvem uma diminuição da substância corporal, como a perda de órgãos, membros, ou pele (…), lesões da substância corporal, como nódoas negras, feridas ou inchaços, alterações físicas, como o corte de cabelo à escovinha (…) ou a pintura de determinadas partes do corpo (…), a perturbação de funções físicas através, por exemplo da difusão de um ruído lesivo para a audição (…)” (Paula Ribeiro de Faria, ob.cit., p.205-206).

Por lesão na saúde entende-se “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-se.” (Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., p. 207).

No tocante ao tipo subjectivo de ilícito, o crime em causa pressupõe uma actuação com dolo, em qualquer das suas modalidades.

Feito este enquadramento, importa analisar os concretos factos dados como provados em relação a cada um dos arguidos.

- a) Arguido A...

Decorre dos factos 1. e 7. que o arguido A.... bateu com uma barra de ferro na perna esquerda de E...., fazendo-a cair e provocando-lhe tumefacção da face externa do terço inferior da perna esquerda, com 8 cm de altura por 3 cm de largura.

Mais decorre dos factos 2. e 5. que o arguido A.... golpeou com uma navalha três dedos da mão direita e a palma da mão esquerda de D..., tendo lhe provocado múltiplas feridas no 1.º, 3.º e 4.º dedos da mão direita e ferida na palma da mão esquerda;

Também estão provadas as consequências de tais lesões para a saúde de E...e D... (factos 6. e 8.)

Assim, verificam-se os elementos do tipo objectivo deste ilícito criminal.

O tipo subjectivo também está preenchido, na modalidade de dolo directo, conforme decorre dos factos 9. e 11.

Assim, verificando-se todos os elementos deste ilícito típico, deverá o arguido A... ser condenado pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples.

- b) Arguido B...

Resulta dos factos 4. e 5. que o arguido B... ., munido de um pau, desferiu pancadas nas costas de D..., fazendo-o cair e tendo-lhe provocado lesão avermelhada, localizada ao terço médio da região dorsal direita e orientada de cima para baixo e de dentro para fora, com 15 cm de cumprimento e 1 cm de largura, ferida no cotovelo direito e escoriação no joelho esquerdo com 5 cm de diâmetro.

Também estão provadas as consequências de tais lesões para a saúde de D... (facto 6.)

Assim, verificam-se os elementos do tipo objectivo deste ilícito criminal.

O tipo subjectivo também está preenchido, na modalidade de dolo directo, conforme decorre dos factos 9. e 11.

Assim, verificando-se todos os elementos deste ilícito típico, deverá o arguido B... ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.

- c) Arguido C...

De acordo com os factos 3. e 4., o arguido C... dirigiu-se a B...dizendo “vai lá e dá-lhe com o pau pelos cornos abaixo!” e, na sequência destas palavras, B... ., munido de um pau, desferiu pancadas nas costas de D..., fazendo-o cair e tendo-lhe provocado lesão avermelhada, localizada ao terço médio da região dorsal direita e orientada de cima para baixo e de dentro para fora, com 15 cm de cumprimento e 1 cm de largura, ferida no cotovelo direito e escoriação no joelho esquerdo com 5 cm de diâmetro, com as lesões para a sua saúde descritas no facto 6.

Importa analisar com um pouco mais de detalhe esta forma de autoria criminosa.

Conforme resultou da audiência de julgamento, o Tribunal alterou a qualificação jurídica da imputação do crime de ofensa à integridade física efectuada a este arguido de uma situação de cumplicidade para autoria, na modalidade de instigação.

É autor de um crime quem, por qualquer forma, contribuir para o facto, bastando uma vontade causal entre a conduta e o facto descrito na norma. Quem executa a acção que causalmente produz o resultado. Não é apenas quem causa o facto ou quem executa a acção típica, mas quem domina a execução da acção.

O autor tem o domínio do facto, tem nas mãos o decurso do acontecimento típico abarcado pelo dolo, tem o poder de deixar correr ou de interromper a realização da acção típica.

A autoria assume diversas modalidades.

A mais frequente é a autoria imediata ou directa (como sucede em relação aos arguido A.... e B... .).

Nesta modalidade, o autor é aquele que realiza o tipo de ilícito directamente, isto é, por si próprio, com o domínio da acção, detém o domínio do facto (artigo 26º, 1ª parte, do Código Penal)

A autoria também pode ser mediata, sendo autor mediato aquele que executa o facto utilizando outrem como instrumento, aquele que utiliza, para cometer facto próprio, mãos alheias.

Nestas situações é o autor mediato quem tem o domínio do acontecimento (artigo 26º, 2ª parte, do Código Penal).

Outra forma frequente de autoria é a co-autoria, designando-se por co-autor aquele que, dividindo as tarefas, realiza uma parte necessária da execução do plano conjunto (Pactum Scelleris).

Na co-autoria existe uma decisão conjunta, ainda que tácita, e uma execução conjunta do acordo, que pode ser prévio ou contemporâneo à execução do facto (artigo 26º, 3ª parte Código Penal).

Por último, há que referir o instigador, que se limita a incentivar ou a aconselhar alguém a decidir-se pela prática de uma acção ilícita, mas que é determinante para a decisão de outrem de praticar o ilícito, sendo que a sua punição pressupõe que exista execução ou começo de execução (artigo 26.º, última parte, do Código Penal)

O instigador-autor surge como verdadeiro senhor, dono, dominador, se não do ilícito típico como tal, ao menos seguramente da decisão do instigado de o cometer (sobre a questão da instigação, pode ver-se Figueiredo Dias, in La instigación como autoria. Un requiem por la ‘participación’ como categoria de la dogmática juridico-penal portuguesa?”, Homenage al Profesor Dr. Gonzalo Rodríguez Mourullo, Thomso/Civitas, 2005, p. 352.)

Por outro lado, na cumplicidade o agente actua no interesse alheio, sendo o cúmplice aquele a quem falta o domínio do facto, aquele cuja intervenção, a não ter tido lugar, não evitaria o crime, antes faria com que, eventualmente, fosse cometido em condições de tempo e modo diferentes (artigo 27.º do Código Penal).

Para uma exaustiva distinção entre a cumplicidade e a autoria por instigação pode ver-se, na jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Fevereiro de 2006, proferido no processo n.º 0412956 e disponível em www.dgsi.pt.

Como decorre dos factos provados e acima sumariamente transcritos, o arguido C... determinou o arguido B...a bater com o pau que trazia no assistente D... e B...acabou por fazê-lo, provocando-lhe as mencionadas lesões.

Assim, estão preenchidos todos os elementos do tipo objectivo de ofensa à integridade física na modalidade de autoria por instigação.

O tipo subjectivo também está preenchido, na modalidade de dolo directo e relativamente a esta concreta forma de autoria, conforme decorre do facto 10.

Assim, verificando-se todos os elementos deste ilícito típico, deverá o arguido C... ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.

***

VI. DA ESCOLHA E MEDIDA CONCRETA DA PENA

*

Feito o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos, importa agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar quanto ao crime de ofensa à integridade física simples.

De acordo com o disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal, a culpa não constitui apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se igualmente no seu limite máximo, o que significa que, não só não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo.

Na determinação da medida concreta da pena há que ponderar os critérios estabelecido no artigo 71º do Código Penal.

Nos termos do seu n.º 1, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Para efectuar essa mesma operação, o Tribunal terá de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (nº 2 do mesmo normativo).

Assim, a pena aplicável, terá como limite superior o ponto óptimo de protecção de bens jurídicos e como limite inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a função tutelar que lhe está inerente.

Já a culpa surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva.

Dentro desses limites caberá à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, atendendo-se às necessidades de socialização do agente.

Concretizando, atento o disposto no artigo 71.º do Código Penal, dentro da moldura penal abstracta cumpre determinar a medida concreta da pena em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção geral e especial e as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

- a) Arguido A...

Importa considerar o seguinte:

- A ilicitude é elevada, uma vez que o arguido voluntariamente e sem razão aparente se dirigiu a casa dos assistentes e lhes bateu provocando-lhes lesões.

- O dolo é directo (factos 9. e 11.).

- Quanto às condições pessoais e situação económica, importa considerar o facto12.

- No que respeita à conduta do arguido anterior e posterior ao facto, é de referir que do seu certificado de registo criminal nada consta.

Em termos de prevenção geral, as exigências são medianas, uma vez que os crimes de ofensa à integridade física simples e privilegiada, apesar de terem uma grande representatividade no dia-a-dia dos Tribunais, não causam muito alarme social (a título de exemplo, em Portugal, no ano de 2009, no total de 95.081 processos penais findos por sentença nos tribunais de 1.ª instância, 10.367 reportaram-se a crimes de ofensa à integridade física simples ou privilegiada, de acordo com as estatísticas oficiais da justiça, disponíveis em http://www.siej.dgpj.mj.pt).

Quanto à prevenção especial, as exigências são medianas, atendendo, por um lado, a que o arguido não tem nenhum crime inscrito no seu certificado de registo criminal e, por outro, às concretas lesões provocadas aos assistentes.

O crime de ofensa à integridade física simples é punível com pena de prisão de um mês até três anos ou com pena de multa de 10 a 360 dias (artigos 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 143.º, n.º 1, do Código Penal).

Assim, a este crime são aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade.

No caso presente, tendo em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal, bem como as considerações expendidas a propósito das exigência de prevenção geral e especial que se fazem sentir, o tribunal opta pela aplicação de uma pena de multa, pois entende que realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Assim, ponderadas todas as circunstâncias acima referidas, com particular intensidade as consequências da conduta do arguido, o tribunal julga adequado e ajustado aplicar ao arguido a pena de 200 (duzentos) dias de multa por cada um dos crimes por este praticados.

Os dois crimes praticados pelo arguido estão numa relação de concurso efectivo, pelo que importa fazer o cúmulo jurídico das respectivas penas.

De acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, a moldura do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas aos vários crimes.

Assim, a moldura abstracta do concurso tem como limite mínimo 200 (duzentos) dias de multa e como limite máximo 400 (quatrocentos) dias de multa.

Dentro desta moldura abstracta, considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido demonstrada pelos factos dados como provados, o Tribunal decide aplicar a pena única de 300 (trezentos) dias de multa.

O artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal determina que a cada dia de multa corresponda uma quantia situada entre € 5 e € 500, que o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.

Em todo o caso, o montante diário da multa deve ser doseado para que a sanção obrigue o condenado a reflectir sobre a sua conduta e represente para ele um real sacrifício, sob pena de se estar a desacreditar esta pena e a própria justiça (sobre esta aspecto pode ver-se, na jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Novembro de 2008, proferido no âmbito do processo n.º 329/06.4TAMLD.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Assim, tendo em conta o facto 12., o Tribunal decide fixar o quantitativo diário em € 7 (sete euros).

- b) Arguido B...

Importa considerar o seguinte:

- A ilicitude é elevada, uma vez que o arguido voluntariamente e sem razão aparente se dirigiu a casa dos assistentes e bateu no assistente D..., provocando-lhe lesões.

- O dolo é directo (factos 9. e 11.).

- Quanto às condições pessoais e situação económica, importa considerar o facto13.

- No que respeita à conduta do arguido anterior e posterior ao facto, é de referir que do seu certificado de registo criminal consta a prática de um crime cujo bem protegido em nada se assemelha com o protegido pelo crime de ofensa à integridade física.

Em termos de prevenção geral, as exigências são medianas, pelos motivos expostos a propósito da determinação da medida da pena em relação ao arguido A.....

Quanto à prevenção especial, as exigências são diminutas, atendendo ao certificado de registo criminal do arguido, que tem inscrita a prática de um crime diverso do crime aqui em apreciação e ao facto de o arguido ter sido instigado pelo seu tio C....

O crime de ofensa à integridade física simples é punível com pena de prisão de um mês até três anos ou com pena de multa de 10 a 360 dias (artigos 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 143.º, n.º 1, do Código Penal).

Assim, a este crime são aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade.

No caso presente, tendo em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal, bem como as considerações expendidas a propósito das exigência de prevenção geral e especial que se fazem sentir, o tribunal opta pela aplicação de uma pena de multa, pois entende que realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Assim, ponderadas todas as circunstâncias acima referidas, o tribunal julga adequado e ajustado aplicar ao arguido a pena de 100 (cem) dias de multa.

O artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal determina que a cada dia de multa corresponda uma quantia situada entre € 5 e € 500, que o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.

Em todo o caso, o montante diário da multa deve ser doseado para que a sanção obrigue o condenado a reflectir sobre a sua conduta e represente para ele um real sacrifício, sob pena de se estar a desacreditar esta pena e a própria justiça (sobre esta aspecto pode ver-se, na jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Novembro de 2008, proferido no âmbito do processo n.º 329/06.4TAMLD.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Uma vez que o arguido nasceu a 10 de Julho de 1990, tinha menos de 21 anos à data da prática dos factos (18 de Março de 2009), pelo que se lhe aplica o regime especial para jovens, previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, designadamente o artigo 9.º, n.º 1, que dispõe que, quando o Tribunal entenda aplicar uma pena de multa a um jovem que tenha idade inferior a 21 anos no momento da prática dos factos, deve, tanto quanto possível, procurar afectar unicamente o património do jovem.

Quanto aos rendimentos deste arguido, o Tribunal apurou que emigrou para a Suíça e que, em tal país, reside juntamente com colegas de trabalho.

Assim, decorre das regras da experiência e do normal acontecer que este arguido aufere, pelo menos, € 500 mensais, não lhe sendo conhecidos quaisquer encargos.

Assim, face aos rendimentos do arguido, o Tribunal decide fixar o quantitativo diário em € 9 (nove euros).

- c) Arguido C...

Importa considerar o seguinte:

- A ilicitude é elevada, uma vez que o arguido voluntariamente e sem razão aparente se dirigiu a casa dos assistentes e instigou o seu sobrinho B...a bater no assistente D..., o que veio a suceder e provocou lesões ao assistente.

- O dolo é directo (factos 10. e 11.).

- Quanto às condições pessoais e situação económica, importa considerar o facto 14.

- No que respeita à conduta do arguido anterior e posterior ao facto, é de referir que do seu certificado de registo criminal nada consta.

Em termos de prevenção geral, as exigências são medianas, pelos motivos expostos a propósito da determinação da medida da pena em relação ao arguido A.....

Quanto à prevenção especial, as exigências são diminutas, atendendo ao certificado de registo criminal do arguido e ao facto de o arguido não ter desferido ele próprio qualquer pancada no assistente, tendo-se limitado a instigar o seu sobrinho.

O crime de ofensa à integridade física simples é punível com pena de prisão de um mês até três anos ou com pena de multa de 10 a 360 dias (artigos 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 143.º, n.º 1, do Código Penal).

Assim, a este crime são aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade.

No caso presente, tendo em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal, bem como as considerações expendidas a propósito das exigência de prevenção geral e especial que se fazem sentir, o tribunal opta pela aplicação de uma pena de multa, pois entende que realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Assim, ponderadas todas as circunstâncias acima referidas, o tribunal julga adequado e ajustado aplicar ao arguido a pena de 100 (cem) dias de multa.

O artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal determina que a cada dia de multa corresponda uma quantia situada entre € 5 e € 500, que o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.

Em todo o caso, o montante diário da multa deve ser doseado para que a sanção obrigue o condenado a reflectir sobre a sua conduta e represente para ele um real sacrifício, sob pena de se estar a desacreditar esta pena e a própria justiça (sobre esta aspecto pode ver-se, na jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Novembro de 2008, proferido no âmbito do processo n.º 329/06.4TAMLD.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Assim, face aos rendimentos do arguido, o Tribunal decide fixar o quantitativo diário em € 9 (nove euros).

***

VII. PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELO CENTRO HOSPITALAR DE COIMBRA

*

O Centro Hospitalar de Coimbra deduziu pedido de indemnização civil com base no Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, que “estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados” (artigo 1.º).

Ora, nos termos do disposto no artigo 5.º de tal diploma, “incumbe ao credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde (…).”

Ou seja, o credor tem apenas o ónus de alegar e provar o facto gerador da responsabilidade – designadamente que o tratamento foi devido a uma ofensa à integridade física – e a prestação de cuidados de saúde.

Nesta medida, este normativo prevê uma inversão do ónus da prova, ou seja, não é o autor/demandante cível que tem de provar todos os elementos da responsabilidade civil para obter a procedência do seu pedido, bastando-lhe provar o facto e a dívida, mas já competirá ao réu/demandado cível, caso pretenda eximir-se ao pagamento, fazer a prova da culpa do assistido e da ausência de culpa sua (ou repartição de culpas) para evitar a procedência do pedido.

Esta matéria tem sido objecto de intensa actividade jurisprudencial, sendo maioritária a jurisprudência que defende esta inversão do ónus da prova (neste sentido pode ver-se, designadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2002, proferido no processo n.º 03A1973 e de 1 de Abril de 2008, proferido no processo n.º 08A743, disponíveis em www.dgsi.pt e Acórdão de 30 de Setembro de 2003, proferido no processo n.º 1973/03 e publicado na CJ, ano XI-2003, tomo III, p. 68; os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Fevereiro de 2004, proferido no processo n.º 0336633, de 6 de Fevereiro de 2003, proferido no processo n.º 0330124, de 29 de Abril de 2003, proferido no processo n.º 0321563, de 13 de Fevereiro de 2003, proferido no processo n.º 0330145 e de 25 de Março de 2003, proferido no processo n.º 0320576, todos disponíveis em www.dgsi.pt; os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Maio de 2010, proferido no processo n.º 3355/08.5TBFUN.L1-1 e de 20 de Outubro de 2009, proferido no processo n.º 228.06-7, disponíveis em www.dgsi.pt, e o de 26 de Dezembro de 2006, proferido no processo n.º 7441/2006, publicado na CJ, ano XXXI-2006, tomo IV, p. 111; os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Setembro de 2010, proferido no processo n.º 932/05.0TBTMR.C1, de 7 de Junho de 2005, proferido no processo n.º1591/05 e o de 15 de Julho de 2008, proferido no processo n.º 2553/05.8TBPMS.C1, disponíveis em www.dgsi.pt; e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19 de Março de 2009, proferido no processo n.º 3016/08-3, disponível em www.dgsi.pt. Em sentido contrário, pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Abril de 2003, proferido no processo n.º 03A3696, disponível em www.dgsi.pt).

Ora, decorre da factualidade dada como provada a existência de uma ofensa à integridade física de E... provocada pelo arguido/demandado A..., bem como que foram prestados cuidados de saúde à assistente, pelo Centro Hospitalar de Coimbra, que originaram uma despesa determinada – factos 1., 7. a 9., 11., 19. e 20..

Por outro lado, o arguido/demandado não logrou provar que a culpa das lesões da assistente não era sua, como lhe competia para se eximir de responsabilidade.

Nesta medida, verificam-se os requisitos de que a lei faz depender a responsabilidade do arguido/demandado pelos encargos com as despesas hospitalares, pelo que o pedido do demandante não pode deixar de ser procedente.

Importa agora apreciar a questão dos juros.

Nos termos do disposto no artigo 804.º do Código Civil, a mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, devendo considerar-se em mora o devedor que não efectuou a prestação, ainda possível, no tempo devido.

O momento da constituição da mora está previsto no artigo 805.º do Código Civil.

Em regra, o devedor só fica constituído em mora depois de interpelado para pagar (n.º 1). Porém, há situações em que o legislador dispensou esta interpelação para que se constituísse a mora (n.º 2), designadamente quando a obrigação tenha prazo certo (al. a)).                                                                                                                   Importa ainda salientar que a obrigação de reparar os danos causados pela mora, quando estão em causa obrigações pecuniárias, se reconduz ao pagamento de juros (artigo 806.º, n.º 1, do Código Civil), com a taxa prevista no artigo 559.º do Código Civil.

Na situação objecto dos presentes autos, não resultou provado que o arguido/demandado tenha recebido a factura do Centro Hospitalar de Coimbra junta com o pedido de indemnização civil, nem tão pouco o demandante o alegou.

Assim, os juros de mora devidos contar-se-ão apenas desde a notificação ao arguido/demandado do pedido de indemnização civil formulado pelo demandante, conforme estatui o artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil (sobre questão conexa com esta pode verse o Acórdão Uniformizador designado como Jurisprudência n°4 /2002, publicado, no DR I de 27 de Junho).

***

VIII. PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELOS ASSISTENTES

*

Como ficou referido no relatório, os assistentes D... e E... deduziram pedido de indemnização civil contra A..., B... e C... alegando, em síntese, que, por força da conduta dos arguidos tiveram dores e ficaram com incapacidades permanentes, peticionando, D..., a quantia de € 10.000 e E.... € 7.500.

Conforme resulta do artigo 129.º do Código Penal, o pedido de indemnização regese pelas normas do direito civil, pelo que a responsabilidade civil por factos ilícitos tem de ser apurada por referência aos artigos 483.º a 498.º do Código Civil.

Assim, com base em tais normativos, a responsabilidade civil por factos ilícitos pode definir-se como a obrigação de indemnizar que aquele que violar ilicitamente, com dolo ou mero culpa, o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, tem de prestar ao lesado, pelos danos resultantes da violação.

E são pressupostos da responsabilidade civil extracontratual o facto voluntário ilícito, a culpa lato sensu do seu autor, a afectação prejudicial da esfera jurídica de outrem e o nexo de causalidade adequada entre a última e o primeiro.

Feita esta breve introdução, importa agora percorrer os mencionados pressupostos por referência aos factos acima dados por provados.

- a) Facto voluntário

A lei exige, antes de mais, que o facto seja voluntário, ou seja, dominável ou controlável pela vontade humana, ainda que não necessariamente querido.

Quanto ao demandante D..., dos factos provados, designadamente dos factos 2. a 6. e 9 a 11, resulta que os demandados quiseram ofender o seu corpo e que o fizeram voluntariamente.

No que respeita à demandante E...., decorre dos factos 1. 7. a 9. e 11. que o demandado A.... quis ofender o seu corpo e que, voluntariamente, o fez.

- b) Facto ilícito

É também pressuposto desta modalidade de responsabilidade civil que o facto seja ilícito, isto é, que a conduta do agente seja susceptível de reprovação no plano geral e abstracto da lei, antes da culpa, que se reporta já a um concreto comportamento.

O direito à integridade física está constitucionalmente previsto, no artigo 25.º, n.º 1, da Constituição, e está igualmente previsto no artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que as violações deste direito são ilícitas face à ordem jurídica portuguesa.

- c) Culpa

Por outro lado, a responsabilidade do demandado implica que sobre ele se faça um juízo de culpa ou de imputação do facto ao lesante, sendo certo que a culpa lato sensu abrange as vertentes do dolo e da culpa stricto sensu, traduzindo-se a primeira na intenção de realizar o comportamento ilícito que o agente do comportamento configurou e a segunda na mera intenção de querer a causa do facto ilícito.

No caso dos autos, conforme melhor resulta dos factos 9. a 11., os demandados actuaram com dolo.

- d) Dano

O quarto pressuposto da responsabilidade civil por factos ilícitos é o dano, ou seja, a existência de prejuízos reparáveis, entre os quais se demarcam os patrimoniais e os não patrimoniais.

No que concerne aos danos patrimoniais, distingue-se entre o dano emergente e o lucro cessante.

O primeiro como diminuição efectiva do património e o segundo como o seu não aumento em razão da frustração de um ganho. Não releva para a referida classificação o momento em que o prejuízo ocorre, porque o dano emergente é susceptível de se configurar como futuro e o lucro cessante é configurável como actual, certo que o último pressupõe ser o lesado, ao tempo da lesão, titular de uma situação jurídica que, a manter-se, lhe daria direito a determinado ganho.

Já os danos não patrimoniais incidem sobre bens que não fazem parte do património do lesado; apenas podem ser compensados, mais do que indemnizados.

A gravidade de tais danos não patrimoniais deve medir-se à luz de padrões objectivos e não subjectivos e o seu montante indemnizatório deve ser calculado, haja dolo ou mera culpa, segundo critérios de equidade, atendendo, além do mais, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, e deve ser proporcional à gravidade dos danos, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida (sobre esta matéria pode ver-se, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume I, 4º edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Lda, 1987, p.473 e ss.).

Importa analisar separadamente os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por cada um dos demandantes.

A. Demandante D...

i) Danos patrimoniais – dano biológico

Em termos de danos patrimoniais, e tendo em conta que o demandante não alegou quaisquer perdas de remuneração consequentes das agressões, importa considerar que o demandante, por força das agressões, ficou com uma incapacidade permanente geral de 1,5 pontos (facto 26.).

Esta incapacidade pode ser enquadrada no denominado dano biológico, conceito mais utilizado no âmbito dos acidentes de viação, mas que tem cabimento em qualquer situação de incapacidade permanente geral.

O dano biológico integra-se na categoria do dano à saúde, diferente da tradicional noção de dano moral. Em termos legislativos, foi aflorado na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, em cujo preâmbulo se diz que, "ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial, o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica".

Este dano assume uma componente de dano patrimonial e de dano não patrimonial.

Enquanto dano patrimonial, abrange não só o dano emergente, como perda patrimonial, como o lucro frustrado, ou cessante, e justifica-se pelo facto de, “mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua actividade profissional concreta – poder verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Abril de 2011, proferido no processo 843/07 e disponível em www.dgsi.pt).

Como dano não patrimonial pode encontrar-se nas dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestigio ou de reputação e que atingem bens como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, o bom nome, que não integram o património do lesado.

“Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso como decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos...) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.

E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.

Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa - ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se- á num dano moral.

(…)

Ou seja: pelo menos nos casos em que a não previsível e imediata diminuição de rendimentos profissionais, potencialmente associada às sequelas das lesões, ocorre por o lesado ainda não exercer uma actividade profissional ou exercer, no momento, actividade concreta que não é substancialmente afectada pelas sequelas físicas ou psíquicas que restringem as suas capacidades pessoais, é indiscutível que o lesado vê diminuída a amplitude de escolha, o leque das actividades laborais que pode perspectivar exercer ainda no futuro, ficando necessariamente condicionado e

«acantonado» no exercício de actividades menos exigentes - o que naturalmente limita de forma relevante as suas potencialidades no mercado do trabalho (facto particularmente atendível numa organização económica que crescentemente apela à precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador).

(…)

Em suma: pelo menos para quem não está irremediavelmente afastado do ciclo laboral, a perda relevante de capacidades funcionais - embora não imediatamente reflectida nos rendimentos salariais auferidos na profissão exercida - constitui uma verdadeira «capitis deminutio» do lesado num mercado laboral em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, constituindo, deste modo, fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar como verdadeiros danos patrimoniais" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Abril de 2011, acima citado)

Ainda quanto à ressarcibilidade do dano biológico e à sua componente patrimonial e não patrimonial, pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 2011 (proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1 e também disponível em www.dgsi.pt), particularmente na parte em que se refere que " é autonomizável, devendo ser contabilizado, um prejuízo futuro de componente mista patrimonial e não patrimonial enquadrado como dano biológico, e que contemple, para além do resto, a maior penosidade e esforço no exercício da actividade diária corrente e profissional, por parte do recorrente, bem como o condicionamento a que ficou sujeito, para efeitos de valorização do seu estatuto no emprego, condicionamento que o penalizará, ainda, se quiser, ou vier a ser obrigado, a encontrar outra actividade profissional".

Regressando à situação dos autos, temos, desde logo, que o demandante era e é guarda prisional e tinha 53 anos à data da agressão.

Mais, não há dúvidas que uma incapacidade permanente geral de 1,5 pontos terá consequências danosas no seu futuro, directas ou indirectas, visto que, para além de tornar mais difícil e penosa a sua vida diária normal, quer profissional, quer extraprofissional, no aspecto estritamente laboral obrigá-lo-á a um esforço maior para obter o mesmo rendimento e, muito provavelmente, reduzirá a possibilidade de vir a obter ocupação mais bem remunerada.

ii) Danos não patrimoniais

O demandante também alegou ter sofrido danos não patrimoniais.

Decorre dos factos 27. e 28., que, com a conduta dos arguidos demandados, o assistente/demandante teve dores de grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente e teve um dano estético de grau 1 numa escala de 7 graus de gravidade crescente;

Todos estes danos assumem gravidade merecedora da tutela do direito.

B. Demandante E....

i) Danos patrimoniais – dano biológico

Em termos de danos patrimoniais, e tendo em conta que a demandante não alegou quaisquer perdas de remuneração consequentes das agressões, importa considerar que a demandante, por força das agressões, ficou com uma incapacidade permanente geral de 2 pontos (facto 30.).

Esta incapacidade pode ser enquadrada no denominado dano biológico.

Dando por reproduzidas as considerações acima expendidas a propósito desta modalidade de dano e regressando à situação dos autos, temos, desde logo, que a demandante era e é doméstica e tinha 51 anos à data da agressão.

Mais, não há dúvidas que uma incapacidade permanente geral de 2 pontos terá consequências danosas no seu futuro, directas ou indirectas, visto que, para além de tornar mais difícil e penosa a sua vida diária normal, muito provavelmente, reduzirá a possibilidade de vir a obter ocupação mais bem remunerada.

ii) Danos não patrimoniais

A demandante também alegou ter sofrido danos não patrimoniais.

Decorre do facto 31., que, com a conduta do arguido demandado A...., a assistente/demandante teve dores de grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

Todos estes danos assumem gravidade merecedora da tutela do direito.

-e) Nexo de causalidade adequada

Finalmente, a existência de responsabilidade civil e consequente obrigação de indemnizar depende de que entre o facto ilícito ou antijurídico e o prejuízo ocorra um nexo de causalidade adequada.

Assim, a obrigação de indemnizar abrange apenas os danos que, tendo resultado da lesão, dela teriam resultado em termos de um juízo de probabilidade ex post ou um juízo de probabilidade póstuma realizada ex-ante.

De acordo com a teoria da causalidade adequada, determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar.

Decorre dos factos 26. a 31. que todos os danos sofridos pelos demandantes e acima referenciados são o resultado da conduta dos arguidos/demandados.

Assim, também se verifica este requisito, pelo que deverão os arguidos/demandados indemnizar os assistentes/demandantes.

- f) Indemnização

O legislador erigiu a reconstituição natural como princípio geral em matéria de obrigação de indemnização.

Ou seja, o lesante deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562.º do Código Civil).

Caso a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente o dano ou seja excessivamente onerosa para o devedor, então a indemnização deverá ser fixada em dinheiro (artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil).

Como critérios para a fixação do valor indemnizatório, o legislador apontou, primeiro, a medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente e a que teria se não houvesse danos (artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil).

Não sendo possível averiguar o montante exacto dos danos, o critério do julgador será a equidade.

Regressando à situação dos autos, conforme resultou da análise dos danos sofridos pelos demandantes, importa fixar a indemnização devida pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais.

- A. Demandante D...

i) Danos patrimoniais – dano biológico

Quanto ao dano biológico, não sendo possível, por um lado, reconstituir a situação que existiria caso não tivesse ocorrido a agressão e, por outro, não sendo possível averiguar o montante exacto de tal dano, o valor da indemnização devida terá de ser fixado em dinheiro, em função da equidade.

Importa considerar, quanto a esta matéria, que o demandante era e é guarda prisional, tinha 53 anos à data da agressão, e ficou com sequelas da agressão, concretamente com uma incapacidade permanente geral de 1,5 pontos.

Face à profissão que desempenhava e desempenha, pese embora o Tribunal não tenha apurado o concreto montante auferido pelo demandante, certo é que recebe, pelo menos, € 500 mensais.

Quanto à situação económica dos demandados, importa atender aos factos dados como provados, concretamente, quanto ao demandado A.... provou-se que é pedreiro e aufere € 520 mensais, vive com a mãe, que está reformada, em casa desta e paga € 150 mensais de prestação de alimentos a um filho menor; quanto ao demandado B... ., provou-se que emigrou para a Suíça, onde exerce a profissão de pintor e vive com colegas, devendo ser tidos também em conta os considerandos efectuados a propósito da determinação do quantitativo diário da pena de multa; no que concerne ao demandado C..., o Tribunal deu como provado que é segurança e recebe € 630 mensais, reside em casa própria com a mulher, que está a tirar um curso remunerado de hotelaria, e com um filho maior, que trabalha.

Em ordem a determinar o valor da indemnização devida pelo dano biológico, importa fazer uma breve alusão à jurisprudência (estando os acórdãos a seguir mencionados disponíveis em www.dgsi.pt).

No caso de um homem de 22 anos que, na sequência de um acidente sofreu lesões numa perna e num ombro, nos três meses subsequentes ao acidente sofreu dores que a perícia médica quantificou em grau 5 numa escala de 7 de gravidade crescente, neste período foi operado por duas vezes e sujeito a fisioterapia, sendo que as dores se mantiveram no grau inicial e sofreu sequelas que o impediram definitivamente de exercer a sua anterior profissão de militar contratado, com repercussões ao nível familiar e social que lhe provocaram desilusão, frustração e desgosto, para além de terficado com um quadro de cicatrizes no corpo que o afectam psicologicamente com consequências ao nível do dano estético – grau 4 numa escala crescente de 7 – e de ter ficado «afectado de uma IPG de 18 pontos, o Tribunal da Relação de Coimbra atribui o montante de € 45.000,00 a título de indemnização por dano biológico (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 1 de Fevereiro de 2011, processo 1/09).

Numa situação de um homem, com 38 anos à data do acidente e uma perspectiva de vida activa de cerca de 32, que ficou com uma incapacidade geral permanente de 40%, que auferia como salário líquido € 971,55 mensais pela sua actividade de vendedor e, nas declarações fiscais de 2002, 2003 e 2004, declarou, pelo exercício da actividade de perito judicial, rendimentos no valor de, respectivamente, € 1 665,66, € 2 094,55, e € 1 927,12, o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu uma indemnização a título de dano biológico de € 40 000 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 2011, proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1).

Para um jovem engenheiro de profissão, nascido em 20 de Dezembro de1977 e que, em virtude de acidente de viação ocorrido no dia 26 de Junho de 2005, ficou a padecer de incapacidade permanente geral de 10%, com limitação da mobilidade do braço esquerdo (elevação até 90%), dificuldade em permanecer muito tempo de pé e em subir e descer escadas, o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu, como indemnização pelo dano biológico, o montante de € 45.000 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Abril de 2011, proferido no processo 843/07)

No caso de um homem que, em consequência de acidente ficou com dor ao nível da perna esquerda, com alguma dificuldade em subir e descer escadas, e dor ao nível do joelho direito, com episódios frequentes de bloqueio, sequelas de dismorfía da vertente anterior da rótula e do côndilo femoral medial, em resultado de fractura cominutiva e subcondral, respectivamente, e fissuração do rebordo articular livre do corno posterior do menisco medial, que lhe determinaram uma incapacidade permanente geral (IPG) de 15%, acrescida de 5% a título de dano futuro, sendo, à data do sinistro, o autor era funcionário da sociedade "Trecar - Tecidos e Revestimentos, SA", auferindo um salário mensal líquido de cerca de EUR 510,00, o Supremo Tribunal de Justiça fixou uma indemnização, pelo dano biológico, em € 31.500 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio 2011, proferido no processo 7449/05).

Para a determinação do valor concreto da indemnização pelo dano biológico, o Tribunal tem ainda como indicador o valor obtido através da aplicação das fórmulas previstas na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, pois, apesar de não respeitarem directamente à situação de incapacidade por força de uma agressão – mas antes por acidente de viação – não há qualquer razão de fundo que obste a que sejam utilizadas como meros indicadores.

Face a todo o exposto, o Tribunal julga equilibrado, justo e equitativo arbitrar ao demandante, pelo dano biológico sofrido, o montante de € 1.500 (mil e quinhentos euros).

ii) Danos não patrimoniais

Quanto a este tipo de danos, o valor da indemnização é fixado em dinheiro, em função da equidade, devendo o Tribunal ter em conta as lesões concretas sofridas pelo demandante, a sua situação económica e a situação económica do lesante e o grau de culpa (artigos 494.º, ex vi do artigo 496.º, n.º 3, e 566.º, nos 1 e 3, do Código Civil).

No que respeita às lesões concretas sofridas pelo demandante, temos que este sofreu dores de grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente e teve um dano estético de grau 1 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

Quanto à situação económica do demandante, provou-se que era e é guarda prisional e recebe, pelo menos, € 500 mensais.

Quanto à situação económica dos demandados, importa atender aos factos dados como provados, concretamente, quanto ao demandado A.... provou-se que é pedreiro e aufere € 520 mensais, vive com a mãe, que está reformada, em casa desta e paga € 150 mensais de prestação de alimentos a um filho menor; quanto ao demandado B... ., provou-se que emigrou para a Suíça, onde exerce a profissão de pintor e vive com colegas, devendo ser tidos também em conta os considerandos efectuados a propósito da determinação do quantitativo diário da pena de multa; no que concerne ao demandado C..., o Tribunal deu como provado que é segurança e recebe € 630 mensais, reside em casa própria com a mulher, que está a tirar um curso remunerado de hotelaria, e com um filho maior, que trabalha.

No que respeita ao grau de culpa, resulta dos factos provados que os demandados agiram com dolo.

Em ordem a determinar o valor da indemnização devida pelos danos nãopatrimoniais, importa fazer uma breve alusão à jurisprudência (estando os acórdãos a seguir mencionados disponíveis em www.dgsi.pt).

No caso de uma mulher jovem, que em consequência de acidente de viação sofreu abalo psicológico, angústia e ansiedade, intervenção cirúrgica, dores, inclusive nas mandíbulas, ainda subsistentes ao mastigar alimentos duros, arrepios e sensação de insegurança, e que ficou com cicatrizes no lábio e no queixo inferiores, o que lhe altera a fisionomia e a desfeia, o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu, com referência ao ano de 2000, uma indemnização no valor de € 10 000,00 (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.11.2005, processo 05B3436).

Relativamente a uma jovem de 16 anos de idade que em consequência de acidente de viação sofreu fractura da tíbia direita, tendo sido sujeita a três intervenções cirúrgicas, antes das quais ficava muito ansiosa e após as quais sentiu dores, fez fisioterapia tendo tido dores nos primeiros tratamentos, esteve sem poder andar duas semanas, necessitando durante 3 meses de auxílio de terceiras pessoas para se levantar, tratar da sua higiene, vestir-se, alimentar-se e deslocar-se, sente dores na perna direita quando faz esforços ou há mudanças de tempo, ficou com 4 cicatrizes, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu a indemnização, por danos não patrimoniais, reportada a 2002, no valor de € 12 500,00 (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.5.2005, processo 05A1386).

A uma jovem de 21 anos de idade, que sofreu várias fracturas no braço esquerdo e no pavimento da órbita do olho esquerdo, que foi submetida a duas intervenções cirúrgicas, tratamento clínicos e fisioterapia durante um ano, ficou a padecer de perda de força no braço esquerdo, tolhimento de movimentos e desnível acentuado no pulso facilmente visível, diminuição das faculdades na vista esquerda, cicatriz de 5 cm de extensão no rosto (sub-pálpebra esquerda) que se torna mais evidente com o suor e muito vermelha mercê de alterações emocionais, o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu uma indemnização, por danos não patrimoniais, reportada a 2004, no valor de € 19 951,92 (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2004, processo 04B3295).

A uma mulher de 24 anos, para a qual resultaram cicatrizes várias, no sobrolho esquerdo, no rosto, na zona ilíaca, na coxa e no joelho direitos, muitas dores, resultantes dos ferimentos e das três intervenções cirúrgicas a que teve de se sujeitar, tendo ficado com uma cicatriz com a extensão de 22 cm de comprimento, na coxa direita, o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu uma indemnização, reportada a 1999, no valor de € 19 951,92 (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de15.01.2004, processo 03B3926).

Relativamente a um acidente ocorrido em 1998, do qual foi vítima um jovem com 18 anos de idade, que sofreu fractura – luxação da anca direita, esteve internado cerca de um mês, foi submetido a diversas intervenções cirúrgicas, podendo a qualquer momento ter necessidade de substituição ou extracção de prótese e ficou definitivamente com dor e claudicação na marcha e incapacidade para permanecer de pé por períodos prolongados, o Supremo Tribunal de Justiça aceitou como adequada uma indemnização no valor de Esc. 5 000 000$00 (€ 24 939,89), reportada a 2003 (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2004, processo 04B2446).

Relativamente a um acidente ocorrido em 1999 de que foi vítima um homem com 26 anos de idade, sofreu forte contusão da grelha costal esquerda, com escoriações e fractura exposta, cominutiva da rótula direita, que foi transportado de urgência para o hospital, foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, ficou afectado na sua mobilidade (esteve imobilizado, foi forçado a andar com o auxílio de canadianas, deixou de poder correr e de andar depressa, tem a marcha dificultada pela dor constante no joelho esquerdo), passou a ter menos força na perna direita do que na esquerda, tem dores que se agravam com alterações climatéricas, viu-se privado de participar em actividades, nomeadamente desportivas, que lhe davam prazer, receia pelo seu futuro e teve sequelas físicas relevantes na perna direita (atrofia muscular, joelho inchado), o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu a indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 20 000,00 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.9.2008, processo 07B2469).

No caso de um homem, vítima de acidente de viação cuja culpa exclusiva foi atribuída ao outro interveniente no sinistro, que, desde a data do acidente jamais deixou de ter dores na bacia, dores que o incomodam e obrigam a tomar medicação para tolerar essas dores, tem, por via dessa lesão na bacia, dificuldades em arranjar posição para dormir, o que lhe afecta negativamente o sono, o descanso e o lazer, no momento do acidente passou por enorme pânico e teve medo de morrer, e, nos meses que se lhe seguiram, sofreu dores intensas, angústias, temores e medos, tem atribuída uma I.P.G. de 2% e um quantum doloris de grau 4, na escala de 0 a 7, o Tribunal da Relação de Guimarães fixou, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o montante de € 10.000 (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Maio de 2010, proferido no processo8181/08).

Mais uma vez, para a determinação do valor concreto da indemnização devida pelas dores e pelo dano estético, o Tribunal tem ainda como indicador o valor obtido através da aplicação das fórmulas previstas na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, pois, apesar de não respeitarem directamente à situação de incapacidade por força de uma agressão – mas antes por acidente de viação – não há qualquer razão de fundo que obste a que sejam utilizadas como meros indicadores.

Tendo em conta os concretos danos não patrimoniais em causa, a culpa dos demandados e as situações económicas apuradas, o Tribunal julga equilibrado, justo e equitativo arbitrar ao demandante o montante de € 1.000 (mil euros), a título de danos não patrimoniais.

B. Demandante E....

i) Danos patrimoniais – dano biológico

Retomando as considerações acima expendidas a propósito desta matéria em relação ao demandante D..., incluindo a referência à Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, importará apenas fazer análise dos factos concretos respeitantes a esta demandante.

A demandante tinha 51 anos à data da agressão e era à data dos factos é actualmente doméstica e aufere uma pensão de invalidez de € 246,36.

Em consequência da agressão que lhe foi dirigida pelo demandado A...., a demandante ficou a sofrer de uma incapacidade permanente geral de 2 pontos.

Quanto à situação económica do demandado, provou-se que A.... é pedreiro, e aufere € 520 mensais, vive com a mãe, que está reformada, em casa desta e paga € 150 mensais de prestação de alimentos a um filho menor.

Face a todo o exposto, o Tribunal julga equilibrado, justo e equitativo arbitrar à demandante, pelo dano biológico sofrido, o montante de € 1.800 (mil e oitocentos euros).

ii) Danos não patrimoniais

Quanto a este tipo de danos, dando por reproduzidas a exposição efectuada a propósito dos danos sofridos por D..., incluindo a referência à Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, importa proceder à análise da situação concreta da demandante E....

No que respeita às lesões concretas sofridas pela demandante, temos que esta sofreu dores de grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

Quanto à situação económica da demandante, provou-se que era à data dos factos é actualmente doméstica e aufere uma pensão de invalidez de € 246,36.

No que respeita à situação económica do demandado, provou-se que A.... é pedreiro, e aufere € 520 mensais, vive com a mãe, que está reformada, em casa desta e paga € 150 mensais de prestação de alimentos a um filho menor.

No que respeita ao grau de culpa, resulta dos factos provados que o demandado agiu com dolo.

Tendo em conta os concretos danos não patrimoniais em causa, a culpa do demandado e as situações económicas apuradas, o Tribunal julga equilibrado, justo e equitativo arbitrar à demandante o montante de € 800 (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais.

- C. Juros

Os montantes acima arbitrados a título de dano biológico e de danos não patrimoniais vencerão juros contados da notificação desta decisão, nos termos referidos no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência identificado como Jurisprudência n.º 4/2002 (publicado no DR I de 27 de Junho de 2002).”

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III. Apreciação dos Recursos:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da ., “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes: 

1) Saber se deve haver alteração da matéria de facto (comum aos dois recursos).

2) Saber se há violação do princípio in dubio pro reo (comum aos dois recursos).

3) Saber se o arguido C... . deve ser punido como autor-instigador.                                                                               ****

1) Da impugnação de facto:

Impõe-se deixar claro, para que fique clarificada a abordagem à questão suscitada no recurso, qual o tipo de impugnação trazido aos autos.                                                                    Os recorrentes pretendem invocar vícios previstos no artigo 410º, do CPP, assim impugnando a matéria de facto dada como provada, ou pretendem reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP?                                                    Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.                                                                                                                                                                                    ****                                                              Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:                 a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;                                     b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;          c) Erro notório na apreciação da prova.                                                             Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da ., Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas . e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.                                 A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.                                                               A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.                                                                                              Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas . e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).         Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da ., Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).                                                                                                        Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas . e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).                          Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

            O erro de julgamento, por seu turno, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.                                  Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.                                                    Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.                                                                                          E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.:             «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:                                                                                                                                         a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;               b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;                               c)-As provas que devem ser renovadas».                                                                             A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.                                                                                            Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:       “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

                                                           ****

Ora, no caso em apreço, os recorrentes colocam as suas pretensões no âmbito do disposto no artigo 412.º, do CPP, pois fundamentam-nas em elementos exteriores ao próprio teor da sentença, principalmente nas declarações dos assistentes e nos depoimentos de testemunhas.

Ora, pretendendo os recorrentes impugnar a matéria de facto nos termos acabados de mencionar, têm de respeitar as regras previstas na lei, ou seja, hão-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).                   A especificação dos “concretos pontos de factosó se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.                                                                                                                             Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.                                                                                                              Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).

Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.

Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.                                                                                          Acresce que a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova.                                                            Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.                                                                                                                     Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt,  onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas:                        - Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante;                                                                            - Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou                                                                                                         - Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas.                                                                              Mas tal não basta.                                                                                                                  Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.                                                                                                                         Este é o cerne do dever de especificação.                                                                            O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135.                                                                                              Tudo o que vem de ser exposto significa, pois, que as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Antes de avançarmos para a análise concreta do caso, importa, ainda, sublinhar que, no domínio da Lei n.º 59/98, de 25-08, impunha o artigo 412.º, n.º 4, do CPP, que as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 se fizessem por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.                                                                                          E como decorria da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após a identificação, no recurso, dos suportes técnicos de gravação, haveria que proceder à transcrição do que fosse relevante – não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que se mostrassem previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que se lhe impunha a referida norma do artigo 412.º, n.º 4.                                      A transcrição era um acto posterior que incumbia, não ao recorrente, mas ao tribunal efectuar (cfr. Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003, de 16-01-2003, in DR, I série-A, de 30-01-2003), nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, destinando-se a permitir (rectius, a facilitar) então ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada.    A Lei n.º 48/2007, de 29-08, mudou radicalmente o regime de impugnação da matéria de facto e, entre outras alterações, afastou a transcrição da prova, no caso regra de utilização da gravação magnetofónica ou audiovisual (artigo 364.º, n.º 1, do CPP).                                                                                                                                                      A prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso, uma vez cumpridas todas as formalidades previstas no artigo 412.º, n.º s 3 e 4, proceder ao controlo dessa prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (artigo 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4).

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Aqui chegados, analisemos, para já, a impugnação de facto apresentada pelo recorrente C... ..

Conforme resulta das Conclusões que apresenta (e só essas interessam), estão colocados em crise os factos provados nºs. 5 e 10.

A fim de seguirmos a estrutura do recurso apresentado, comecemos pelo facto provado n.º 10, em relação ao qual estão em causa as declarações dos assistentes e o depoimento da testemunha G... ..

Em primeiro lugar, quanto à hora da agressão, considera que esta “terá ocorrido entre as 22h e as 22.15h e não às 21.30h), com base no seguinte: a) declarações do assistente D... (gravação das 12:01h às 13:01h, dia 26/9/2011 – 01:45mts a 02:00mts, 28:42mts a 28.54mts, 43:21mts a 44:33mts); b) declarações da assistente E.... (gravação das 13:01h às 13:45h, dia 26/9/2011 – 02:40mts a 02:54mts); c) depoimento da testemunha G... . (gravação das 13:45:58h às 14:15h:41 dia 26/9/2011 – 02:42mts a 02:53mts).

Em segundo lugar, quanto ao concreto local onde o arguido C... esteve durante o desenrolar dos acontecimentos, entende que “permaneceu junto à casa de habitação da testemunha G... «lá baixo» que fica a distância não apurada da casa dos assistentes «lá cima» e profere as palavras para o B... muito antes do assistente D...ser agredido pelo arguido B...”, com base no seguinte: a) declarações do assistente D... (gravação das 12:06:15h às 13:01:48h, dia 26/9/2011 – 10:39mts a 12:50mts, 21:57mts a 23.54mts, 25:00mts a 26:08mts, 27:59mts a 28:40mts, 36:54mts a 37:19mts, 46:12mts a 46:45mts); b) declarações da assistente E.... (gravação das 13:01:48h às 13:45:48h, dia 26/9/2011 – 13:24mts a 13:53mts); c) depoimento da testemunha G... . (gravação das 13:45:59h às 14:15h:41 dia 26/9/2011 – 03:30mts a 06:56mts, 15:11mts a 16:41mts, 20:46mts a 21:04mts).

Em terceiro lugar, no que diz respeito ao comportamento do arguido B... desde o momento que passou na casa da testemunha G... com o arguido A...até ter concretizado a agressão, salienta o seguinte: a) depoimento da testemunha G... . (gravação das 13:45:59h às 14:15h:41 dia 26/9/2011 – 03:30mts a 06:56mts, 18:05mts a 18:21mts, 23:35mts a 23:54mts); b) declarações do assistente D... (gravação das 12:06:16h às 13:01:48h, dia 26/9/2011 – 32:29mts a 33:53mts, 42:17mts a 42.54mts, 50:10mts a 51:00mts).

Em quarto lugar, no que tange ao tempo que o arguido B... andou entre a casa dos assistentes e a casa da vizinha G..., dá relevo ao seguinte: a) depoimento da testemunha G... . (gravação das 13:45:48h às 14:15h:41 dia 26/9/2011 – 26:30mts a 27:25mts).

Das citadas passagens da gravação, indica o recorrente algo que imponha a desejada alteração da matéria de facto?

A resposta decorre da própria Motivação, cujo teor, após a descrição das citadas passagens da gravação, é o seguinte:

Ou seja, do conjunto das declarações dos assistentes e da testemunha G..., não resulta que o arguido C... . tenha acicatado o arguido B... a agredir o assistente, agindo de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de encorajar o arguido B... a molestar a saúde física do assistente D..., já que pela assumida atitude e postura do arguido B..., desde o momento em que passa junto da casa da testemunha G..., munido com um pau na mão, em direcção à residência dos assistentes, até ao momento da agressão do assistente, nada permite concluir que as palavras do C... é que terão originado no B... a vontade deste cometer o crime no assistente D....

Nem dos depoimentos destes se apura o tempo que decorreu entre as palavras proferidas pelo C... e a acção desenvolvida pelo B..., já que o C... estava «lá abaixo», junto à casa da G..., e a agressão decorreu “lá acima”, junto à residência dos assistentes, casas que distam uma da outra 50 a 60 metros, ou mais metros, dado que não se apurou a distância, em virtude do Tribunal a quo ter indeferido o pedido de deslocação ao local.

Ao que sempre o ponto 10. Dos factos provados da sentença tem que passar para a matéria de facto provada.”       

Como se constata, o recorrente limita-se a apresentar a sua apreciação da prova.

Já sabemos que, de acordo com o disposto no art.º 412.º n.º 3 al. b), a matéria de facto impugnada só pode proceder, quando o recorrente, tendo por base o raciocínio lógico e racional feito pelo tribunal na decisão recorrida, indica provas que imponham decisão diversa da recorrida.

Como todos sabem, não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração.                                                                                                                                  Como consequência da palavra “imponham”, o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, ou seja, perante duas teses, uma do tribunal e outra dele próprio, sempre aquela prevaleceria uma vez que só poderia ceder se se revelasse errada. Termos assim que, no recurso da matéria de facto, não basta ao recorrente demonstrar que a tese que apresenta também é possível, tem também que demonstrar que a tese do tribunal está errada.                                                                                                                                                         O que não acontece no caso “sub judice”, como veremos a seguir.

Justifica-se afirmar, neste momento, que a sentença em crise é muito clara quanto ao modo como foi formada a convicção do Tribunal, designadamente no que diz respeito à credibilidade dada aos assistentes e à testemunha G... . e à falta de credibilidade atribuída às testemunhas apresentadas pelo arguido C... ..  

Nenhum sentido faz falar em “arbitrariedade na justa ponderação da decisão” (n.º 9 das conclusões).   

Quanto a isso, não há muito a dizer a não ser que, atendendo ao princípio da livre apreciação da prova, há que deixar bem claro que apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento.                                                                                                                            Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum.

No caso em apreço, a decisão recorrida oferece um raciocínio linear, lógico e perceptível, nomeadamente quanto à medida e extensão da credibilidade que mereceram (ou não) os intervenientes no julgamento, em conjugação com todos os outros elementos de prova.

Estamos, até, perante uma exaustiva motivação da decisão de facto, da qual resulta que o Tribunal a quo, como lhe competia, centrou a sua atenção no essencial (palavras e agressões) e não deu especial importância a certas contradições existentes nas declarações dos assistentes e no depoimento da testemunha G..., sempre inevitáveis num julgamento, para mais, relacionado com actos violentos que ocorrem durante um curto período (não será feita análise concreta às apontadas no recurso, a fls. 656 verso/662, na medida em que surgem elencadas de um modo vago, sem uma indicação expressa quanto aos factos impugnados, não sendo mais do que uma análise subjectiva do recorrente sobre a prova).

Estranho seria que não houvesse contradições…

Relembre-se que só está, agora, em causa, o facto provado n.º 10.

Assim sendo, é inócuo estar a aproveitar as gravações, no que tange à hora da agressão, matéria atinente ao facto provado n.º 1, sendo certo que este não está elencado nas conclusões.

Da mesma forma, é irrelevante estar a retirar algo das gravações para saber qual a exacta posição do arguido C... durante o desenrolar dos acontecimentos, assim como o seu comportamento, em toda a sua extensão.

Para o caso, o que interessa são as palavras proferidas pelo referido arguido, até porque o facto provado n.º 3 não foi impugnado, não sendo importante saber o sítio exacto em que se encontrava C... . nem apreender toda a sua movimentação.

Ora, os assistentes e a testemunha G... . convergem quanto ao que foi dito pelo arguido C... . (expressão constante do facto provado n.º 3).

Evidentemente, não sendo posta em crise tal afirmação, não é possível deixar de considerar que, no contexto de violência existente na altura, a mesma visou acicatar B...a agredir o assistente.

Logo, o facto provado n.º 10 não deve ser alterado.

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Avancemos para o outro facto em causa neste recurso (n.º 5 dos factos provados).

Quanto a esta matéria, é defendido que as lesões dadas como provadas devem ser consideradas como não provadas, na medida em que, em síntese, “há lesões que não foram efectivamente vistas na perícia”.

Conforme consta da motivação da decisão de facto, atrás transcrita, o tribunal deu relevo aos elementos médicos constantes dos autos, designadamente ao documento de fls. 519 (ficha de consulta do Centro de Saúde de U...) e aos relatórios de fls. 6 e 13.

Ora, se bem que o documento de fls. 519 não descreva, em pormenor, todas as lesões, não é menos verdade que o documento de fls. 6 a 9, datado de 20/3/2009, concretiza as que interessam para os autos.

Estando em causa factos ocorridos em 18/3/2009, nada havendo que possa introduzir outros factores causais das lesões ali descritas, bem andou o Tribunal em estabelecer a respectiva ligação.

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            Avancemos, agora, para a impugnação de facto trazida aos autos pelo arguido A.....

            Este considera que estão incorrectamente julgados os pontos 1 a 4 dos factos dados como provados, deixando expresso, no início da motivação, queo presente recurso é interposto nos termos da alínea a), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, na medida em que o ora recorrente entende que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento é insuficiente para a decisão da matéria de facto provada”, acrescentando, também, queo recorrente/arguido, atendendo ao teor das declarações prestadas pelos assistentes e ao depoimento da testemunha G... ., entende ainda que o Tribunal a quo deveria ter concluído pela sua absolvição, bem como a dos demais arguidos, com base no princípio in dubio pro reo, o que, desde já, se invoca para os devisos e legais efeitos, nomeadamente os dos previstos no artigo 410.º, do CPP”, e, ainda, queo recorrente, considerando que o presente recurso é interposto por erro de julgamento por insuficiência de prova e/ou por incorrecta valoração desta, procederá a uma análise global da prova produzida, de acordo com a sequência em que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento”.

Quanto a isto, remetemos para as nossas anteriores considerações de ordem genérica quanto aos dois tipos de impugnação da matéria de facto.

Portanto, e de acordo com aquilo que já para trás ficou mencionado, há que analisar a pretensão deste recorrente, em sede de erro de julgamento.

Tal como em relação ao recurso do arguido C... ., também o presente vai no sentido de que “as declarações dos assistentes e testemunhas ouvidas em audiência de discussão e julgamento analisadas per si e, por seu turno, conjuntamente, colidem entre si de tal forma que não permitem concluir pela veracidade da prática dos factos dados como provados”.

Também este arguido parece esquecer o princípio da livre apreciação da prova.

Tentando evitar cair em redundância, acrescentemos algo mais sobre tal princípio.

O artigo 127.º, do CPP, dispõe que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Prova livre não significa prova arbitrária ou caprichosa, antes quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos. Se o tribunal decidisse como lhe apetecesse não apreciaria livremente as provas, antes estaria a desprezá-las…

Ora, não se extrai que o tribunal tenha procedido a um julgamento arbitrário da prova produzida. E a valoração por este feita não tem que coincidir com aquela que o recorrente pretende ver operada.

A livre apreciação da prova significa, em resumo, que esta deve ser feita de acordo com a convicção íntima do juiz. Aliás, já Chiovenda o afirmava, citando o imperador Adriano, conforme pode ler-se no Digesto 3, 2, De testibus, 22, 5…

 À valoração do tribunal preside um juízo atípico, porque fundando-se nas regras da experiência, isto é em critérios generalizadores e tipificados, índices corrigíveis, critérios definidores de conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas sempre tendo presente a individualidade histórica do caso concreto, tal como ela foi adquirida representativamente no processo, pelas alegações, respostas, inquirições e outros meios de prova disponibilizados[1].

E se é certo que o princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido como uma apreciação judicial arbitrária - ou, na expressiva fórmula de Paolotonini “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé[2] -, e que a livre convicção do juiz não pode ser meramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável[3], certo é, também, que a “verdade material que se busca em processo penal, não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um conhecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata do conhecimento de acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal -, se revelam particularmente fiáveis».[4]

E assim, como ensina o insigne Professor, “a convicção judicial será suficientemente objectivável e motivável quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, na “convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e contra toda a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse».

Consabidamente, a verdade que o direito encerra é a «processualmente demonstrada por recurso às provas carreadas para os autos, sujeita a todos os limites que, por definição, tem o espírito humano na tentativa de conhecer e compreender o real. O conhecimento da verdade (correspondente ao “pedaço de vida” acontecido) «na maioria das situações pressuporia uma impossível incursão na mente humana, empreitada essa, de patente que é, não necessita de ser sublinhada».[5]

Ora, tendo isto bem presente, a verdade é que o recorrente não indica quaisquer elementos objectivos que possibilitem colocar em causa a opção do Tribunal recorrido, para lá da sua própria apreciação da prova (baseada em valorações de contradições que não foram consideradas importantes pelo Tribunal a quo), capazes de impor uma alteração da matéria de facto.

Certamente que não é a visão parcial do arguido, em sede de valoração da prova, que irá determinar o que quer que seja.

 Há que enfatizar que, em quase todas as audiências de julgamentos, assistimos a contradições.

Tal é normal e nada tem de estranho, já que a capacidade de percepção dos factos varia de pessoa para pessoa, nomeadamente quando há tensão provocada por violência. A idiossincrasia explica o que acaba de ser afirmado.

Não percamos tempo com esta evidência.

O que é importante é separar o trigo do joio, tendo por objectivo compreender o que, no essencial, aconteceu.

Logo, salvo o devido respeito, apenas como mero exercício de retórica pode ser entendida a afirmação de que “o Tribunal a quo formulou a sua convicção de forma subjectiva, emocional e imotivável” e de que “a sentença recorrida não justifica as contradições que resultaram da prova produzida”.

Mal seria que um tribunal tivesse que explicar o motivo pelo qual não deu especial valor a todas as contradições ouvidas em audiência de julgamento. Seria uma tarefa semelhante à teia de Penélope, o que não se compadece com a capacidade de resposta que, cada vez mais, é exigida aos Tribunais.

Face ao exposto, desnecessário é estar, portanto, a analisar, em concreto, as contradições apresentadas pelo recorrente, até porque todas elas visam, em resumo, fundamentar a aplicação do princípio in dubio pro reo que irá merecer, a seguir, análise autónoma.

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2) Da violação do princípio in dubio pro reo:

E não se argumente que deve alteração da matéria de facto, em obediência ao princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP. 

Há que deixar, desde já, bem claro que não assiste qualquer razão aos recorrentes, a menos que o citado princípio seja interpretado de uma forma incorrecta.

Não estamos perante qualquer violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos. O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.                                                                        Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”.                        Ora, o alegado processo não pode ser uma válvula de escape para um “buraco negro”, devendo assentar em G...rces bem precisos e fundamentados.

Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997.                                                                         Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto.

A fundamentação de facto acima transcrita é consistente e racional.

O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.

O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.                                                                                                                                               É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.                                                                                                                                              A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.   

No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo (a dúvida reside apenas nos recorrentes e não no Tribunal).

A fundamentação do Tribunal a quo é cristalina.                                                  A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.                                                                                                                       Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido.                                                  O que, como se viu, não sucede com a análise feita pelos recorrentes, sem qualquer conteúdo probatório susceptível de pôr em causa os meios de prova e análise critica em que repousa a decisão impugnada que não seja a sua própria aproximação aos factos.

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            3) Do autor instigador:                                                                                                       A instigação consiste essencialmente em determinar, directa e dolosamente, outrem à realização de um facto ilícito.

O instigador faz surgir noutra pessoa a ideia – anteriormente inexistente – da prática de um crime, mas é esta pessoa quem decide cometê-lo e, em última instância, o pratica.                     A punição do instigador depende claramente, no nosso ordenamento jurídico, da prática (ou, ao menos, do início da execução) do facto por uma outra pessoa, pelo que, embora formalmente o artigo 26.º do Código Penal a inclua entre as modalidades de autoria, parece que a instigação não deixa de ser uma forma dependente, acessória de um facto que é levado a cabo por outra pessoa – que é o seu verdadeiro autor imediato ou mediato –, facto esse, portanto, que se definirá pelo que faz essa outra pessoa e, bem assim, pelas suas características (cfr., a propósito, Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, vol. II, s. d., pp. 410 e ss.; ID., Ilicitamente comparticipando – o âmbito de aplicação do artigo 28.º do Código Penal, in «Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia», vol. III, nota 12, p. 603).                           A instigação aproxima-se da autoria mediata na medida em que em ambos os casos o resultado típico é alcançado mediante a motivação de uma pessoa (diversa da do instigador ou da do autor mediato) para a sua respectiva consecução.

No entanto, nas hipóteses de autoria mediata verifica-se, como salienta sugestivamente alguma doutrina, uma degradação de um ser humano à categoria de mero meio material (e, por isso mesmo, não livre) para a realização de determinados fins delitivos (e por isso se pode e deve afirmar que o autor mediato mantém, durante o decurso da execução do facto, o domínio sobre o desenrolar dos acontecimentos através do senhorio que exerce sobre a vontade do agente imediato), enquanto que nas hipóteses de instigação do que se trata é da corrupção de um ser humano livre com vista à produção de um resultado jurídico-penalmente proscrito: o instigador consegue transferir, com sucesso, as suas intenções delitivas para o autor do facto, que actua, porém, livremente, nunca deixando de ter, consequentemente, o domínio deste.

A instigação só pode afirmar-se se se verificarem vários requisitos, de natureza objectiva e subjectiva.

Assim, de um ponto de vista objectivo, a conduta do instigador deve determinar ou causar a formação da resolução criminosa no autor e a ulterior realização, por este, do facto.

Isso implica que a actividade do instigador deverá ser de molde a levar o autor a adoptar a decisão de cometer o crime e a (pelo menos) dar início à sua respectiva execução, resultados que por essa razão aparecem como (e podem com legitimidade dizer-se) consequência da actuação do instigador.

Do ponto de vista subjectivo, a instigação há-de ser (duplamente) dolosa, no sentido de que o instigador tem de ser consciente da circunstância de que está a motivar outra pessoa a adoptar uma resolução criminosa e a realizar o correspondente facto, e pretender esta mesma comissão.                                                                                                                                          No caso dos autos, o arguido C... ., ao proferir a expressão constante do n.º 3 dos factos provados, não poderá deixar de considerar-se como instigador.

Ao agir nos moldes descritos, o arguido pretendia, claramente, que B... ., até aí, na prática, à margem dos acontecimentos, praticasse os factos em causa, resultado este que constituía, precisamente, o seu objectivo – de outro modo, mal se compreenderia o uso de uma expressão que incita à prática de agressão física.

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IV – DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a respectiva taxa de justiça em quatro UC.


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            (elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

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José Eduardo Martins (Relator)
Maria José Nogueira


[1] - cfr. Prof. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967/1968, n.º 4 - Os Princípios de Processo Penal.
[2] La Prova Penale, pág. 9 e segs.
[3] “A liberdade de apreciação da prova não pode estar mais longe das meras conjecturas e das impressões sensitivas injustificáveis e não objectiváveis” - Paulo Saragoça da Mata, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade de Direito de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, pág. 231.
[4] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, secção de textos da FDUC, 1988-9, págs. 140.
[5] Paulo Saragoça da Mata, ob. cit., pág. 251.