Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/14.9TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
TERRAÇO
PARAPEITO
Data do Acordão: 11/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - MANGUALDE - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1360, 1362 CC
Sumário: 1. Considerando o cariz restritivo e excecional das restrições do artº 1360º do CC, ele tem de ser interpretado restritivamente, no sentido de que apenas as aberturas ou obras que revistam as suas estritas caraterísticas, comum ou legalmente exigíveis, podem acarretar a exigência do interstício de 1,5 metros.

2. Provado que num terraço apenas foi colocada uma cintura de 35 cm de altura, tal não pode ser considerado um parapeito para o efeito do nº2 do aludido preceito, e, assim, não pode aquele terraço fundamentar a constituição de uma servidão de vistas, nos termos e com os efeitos previstos no artº 1362º, assistindo pois ao proprietário vizinho o direito de construir na sua extrema.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

V (…) e marido L (…) intentaram contra J (…) e mulher M (…), ação declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum.

Pediram a condenação dos réus a:

a) reconhecerem que o prédio urbano que identificam,  lhes pertence em propriedade plena e exclusiva;

b) reconhecerem que sobre o prédio urbano, que identificam, propriedade dos réus, se encontra constituída por usucapião uma servidão de vistas, ar e luz, a favor do prédio dos autores referido em a), tendo por objeto o terraço de cobertura situado ao nível do seu primeiro andar.

c) demolirem imediatamente, na parte edificada à altura superior ao terraço do prédio dos autores, a parede que edificaram no limite poente do seu prédio referido em b);

d) demolirem imediatamente, na parte edificada que não deixou o espaço mínimo de 1,50 metros em relação ao terraço existente no prédio dos autores, que edificaram no limite sul do seu prédio e em toda a sua extensão;

e) não levantarem paredes, não realizarem qualquer construção e não colocarem qualquer objeto no seu prédio referido em b) a distância inferior a 1,50 metros do terraço do prédio dos autores mencionado em a), que se situe a altura superior.

Alegaram:

São donos e legítimos possuidores do prédio urbano  que identificam.

Os réus são proprietários do prédio urbano  que identificam.

Tais prédios são  confinantes entre si, tendo por referência o limite nascente do prédio dos autores e o limite poente do prédio dos réus.

Na zona de confinância com o prédio dos réus, o prédio do qual são proprietários dispõe, ao nível da cobertura do primeiro andar, de um terraço edificado em placa de cimento, com cerca de 5mx5m, que serve de cobertura, naquele espaço, da habitação, sendo o acesso a tal terraço efetuado através de uma escadaria em betão com início no pátio do prédio dos autores e términus no limite poente do terraço, tendo os autores construído, na zona de confinância com o prédio dos réus, um parapeito de vedação em tijolos e cimento com altura de 35 centímetros, suportado por três pilares em betão com 95 centímetros de altura.

O referido terraço foi edificado no ano de 1976, mantendo-se inalterado desde aquela data, sendo o mesmo servido por parapeito de altura inferior a 1,5 metros e que há mais de 30 anos os autores, por si e por quem os antecedeu utilizam o terraço, para o qual acedem através da mencionada escadaria, ali secando a roupa, fazendo visitas de recreio, tomando sol, ar e luz, visualizando a paisagem circundante, nomeadamente o prédio dos réus, sem qualquer oposição, designadamente dos réus, de forma pacífica, pública, ininterrupta e no convencimento de exercerem um direito próprio, razão pela qual, ainda que construído em violação da lei, se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de vistas, ar e luz tendo por objeto o referido terraço.

O prédio dos réus, na zona de confinância com o seu prédio, era constituído apenas por um piso (rés-do-chão) e que no mês de Agosto de 2013 os réus iniciaram a realização de obras no seu prédio, edificando um novo piso ao nível do primeiro andar, tendo edificado no limite poente do seu prédio, em toda a sua extensão, uma parede dupla em tijolo e cimento, com placa de isolamento no seu interior, a qual foi edificada imediatamente após o términus do prédio dos autores, sem deixar qualquer espaço entre os prédios dos autores e dos réus, mais tendo edificado no limite sul do seu prédio, em toda a sua extensão, uma parede dupla em tijolo e cimento, com placas de isolamento no seu interior, a qual tem início a nascente, no caminho, e términus a poente, à distância de 20 centímetros do prédio dos autores.

As referidas paredes edificadas pelos réus têm a altura de dois metros medidos a contar do terraço dos autores, encontrando-se a altura superior ao terraço do prédio dos autores, impedindo/dificultando a normal utilização da servidão de vistas que se encontra constituída a favor do prédio dos autores.

Os réus apresentaram contestação.

Disseram que no prédio que os autores afirmam ser de sua propriedade inexiste qualquer terraço, mas antes uma cobertura, sem que a mesma tenha as dimensões mencionadas pelos autores e sem que o acesso à mesma seja efetuado nos termos e pelo modo por eles indicados, sendo que os autores não o utilizam do modo como descrevem.

Afirmam os réus que tratando-se de uma cobertura não é possível a constituição de qualquer servidão de vistas, podendo os réus construir no seu prédio até à sua estrema, e que a construção que os réus efetuaram no seu prédio em nada prejudica o direito de propriedade de que os autores se arrogam.

Concluem  pela improcedência da ação e a sua absolvição dos pedidos contra eles formulados.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

1 - declaro que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito ao (...) , lugar de (...) , União de Freguesias de (...) e (...) , concelho de Mangualde, inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo 480 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mangualde sob o n.º805, condenando os réus a reconhecer tal facto;

2 - Absolvo os réus dos restantes pedidos contra eles formulados.

Custas pelos autores e pelos réus na proporção do respectivo decaimento, fixando-se a responsabilidade dos autores em ¾ dos réus em ¼ - art.527.º, n.ºs1 e 2 do Código de Processo Civil».

3.

Inconformados recorreram os autores.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Os réus contra alegaram, pugnado pelo indeferimento do recurso, ou, caso assim se não entenda, requerendo a ampliação do recurso, atento o preceituado no artº 636º do CPC, concluindo nos termos seguintes:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

Do recurso dos autores:

1ª – Procedência da ação.

Do recurso dos réus.

2ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

3ª – Improcedência da ação.

5.

São os seguintes os factos apurados na 1ª instância:

a) Os autores são proprietários e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano composto de casa de habitação de rés-dochão e 1.º andar, sito ao (...) , lugar de (...) , União de Freguesias de (...) e (...) , concelho de Mangualde, com a superfície coberta de 95 m2, pátio com 78 m2 e alpendre com 117m2, inscrito na matriz sob o artigo 480 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mangualde sob o n.º805;

b) Os réus são proprietários e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano composto por casa de habitação com dois pisos, sito no lugar do (...) , lugar de (...) , União de Freguesias de (...) e (...) , concelho de Mangualde, com a superfície coberta de 64,40 m2 e área descoberta de 13,75 m2, inscrito na matriz sob o artigo 49 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mangualde sob o n.º1234;

c) Os prédios urbanos referidos em a) e b) confinam entre si, tendo por referência o limite nascente do prédio referido em a) e o limite poente do prédio aludido em b);

d) O prédio urbano referido em a) dispõe, ao nível da cobertura do primeiro andar e na zona de confinância com o prédio urbano mencionado em b), de um terraço edificado em placa de cimento, com uma dimensão de 4,85m por 4,65m, que serve, naquele espaço, de cobertura da habitação;

e) O acesso ao terraço referido em d) é efectuado através de uma escadaria em betão que tem início no pátio do prédio mencionado em a) e termo no limite poente do terraço;

f) No limite nascente do terraço referido em d), na zona de confinância com o prédio mencionado em b) e em toda a sua extensão, os autores construíram um muro de vedação em tijolos e cimento com altura de 35 centímetros, suportado por três pilares em betão com 95 centímetros de altura e dimensão de 10cm por 15 cm;

g) O terraço referido em d) foi edificado no ano de 1976, mantendo-se inalterado desde a data da sua construção;

h) Os autores, há mais de trinta anos, utilizam o terraço referido em d), acedendo ao mesmo através da escadaria aludida em e);

i) Ali secando roupa, fazendo visitas de recreio, tomando sol, ar e luz;

j) E visualizando a paisagem circundante, incluindo o prédio referido em b);

k) Os autores actuaram do modo referido em h) a j) sem qualquer oposição, designadamente dos réus;

l) À vista de toda a gente

m) De forma ininterrupta;

n) E na convicção de exercerem um direito próprio;

o) No decurso do mês de Agosto de 2013 os réus iniciaram a realização de obras no prédio urbano referido em b);

p) Edificando um novo piso ao nível do primeiro andar;

q) No qual, no limite poente do prédio e em toda a sua extensão, edificaram uma parede dupla em tijolo e cimento, com placa de isolamento no seu interior;

r) A parede referida em p) foi construída imediatamente após o termo do prédio urbano mencionado em a), não deixando qualquer espaço entre os prédios urbanos referidos em a) e b);

s) E no piso referido em p) os autores, no limite sul do prédio e em toda a sua extensão, edificaram uma parede dupla em tijolo e cimento, com placas de isolamento no seu interior;

t) A parede referida em s) tem início a nascente do caminho e termo a poente, à distância de 20 centímetros do prédio urbano mencionado em a);

u) As paredes referidas em q) e s) têm uma altura de 1,60 metros medidos a partir do início do terraço referido em d).

Não se provaram os seguintes factos:

1 - Os autores efectuaram reparações no terraço referido em d) após a data da sua construção;

2 - O terraço referido em d) tem uma dimensão de 5mx5m;

3 - As paredes referidas em q) e s) têm uma altura de 2 metros medidos a partir do início do terraço referido em d).

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

A Srª Juíza decidiu com base no seguinte discurso argumentativo:

«Dispõe o art.1362.º, n.º1 do Código Civil que “a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião”, adiantando o n.º2 que “constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras”.

Já o art.1360.º, n.º1 do Código Civil preceitua que “o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio”, adiantando o n.º2 que “igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela” e o n.º3 que “se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a restrição imposta ao proprietário”.

Resulta dos autos que ao nível do primeiro andar do prédio de que são proprietários, os autores, na zona de confinância com o prédio dos réus, edificaram um terraço em placa de cimento, com uma dimensão de 4,85m por 4,65m, que serve, naquele espaço, de cobertura da habitação, sendo que tal construção foi erigida no ano de 1976 e que há mais de trinta anos os autores utilizam o referido terraço, acedendo ao mesmo através de uma escadaria em betão que tem início no pátio do prédio dos autores, ali secando roupa, fazendo visitas de recreio, tomando sol, ar e luz e visualizando a paisagem circundante, incluindo o prédio dos réus.

Mais resultou apurado que os autores actuaram do modo descrito sem qualquer oposição, designadamente dos réus, à vista de toda a gente e de forma ininterrupta e na convicção de exercerem um direito próprio (v. als. d), e) e g) a n) dos factos provados).

Perante tal factualidade parecem estar, numa primeira análise, preenchidos os requisitos tendentes à aquisição pelos autores, por usucapião, de uma servidão de vistas ar e luz.

Todavia, assim não sucede.

2.5. Com efeito, o que se visa proteger com os aludidos normativos não são as vistas, mas, sim, o devassamento traduzido na possível ocupação do prédio vizinho, bastando que no parapeito de uma janela ou de um terraço a pessoa se debruçasse numa atitude natural ou estendesse um braço, para que houvesse violação da propriedade alheia (cfr., neste sentido, Pires de Lima in RLJ, Ano 99, pág.240).

A este propósito afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 1972, pág.193) “é dupla a finalidade desta limitação. Por um lado, pretende-se evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos. Por outro lado, quer-se impedir que ele seja facilmente devassado com o arremesso de objectos”. Mais referem tais professores que “não pode dizer-se que a simples existência de um terraço ou eirado, a um nível superior ao do prédio vizinho afecte mais gravemente este do que a simples contiguidade à superfície. Praticamente, a devassa é a mesma. Tanto vale estar no terraço como no solo, para poder ver o que se passa no terreno vizinho”. Mas já não assim, se o terraço for dotado de parapeito, porque, então, as pessoas podem debruçar-se sobre ele, de forma a ocupar parcialmente o prédio vizinho e a arremessar com mais facilidade objectos para dentro dele. A devassa começa a tomar aspectos mais graves. O parapeito proporciona às pessoas condições de segurança para se aproximarem do extremo do terraço e para se debruçarem sobre ele (in obra cit., pág.196).

O simples facto de a restrição do n.º1 do art.1360.º se aplicar, tão-somente, aos terraços providos de parapeito de altura inferior a metro e meio significa que não foram as vistas o alvo a proibir. Se, na realidade, o legislador as quisesse impedir de todo, teria fixado a altura em um metro e oitenta, como fez para as aberturas previstas nos artigos 1363.º e 1364.º.

Quis-se, com certeza, dificultá-las; mas, acima de tudo, visou-se poupar os habitantes do prédio vizinho da situação, nada agradável, de ver a sua propriedade ocupada, ainda que de forma incipiente, ou servir de vazadouro de lixo (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2009, proferido no âmbito do processo n.º6/04.0TBVNO.C1, disponível in www.dgsi.pt.).

Como se refere em tal aresto “nem toda a parede ou suporte (com menos de metro e meio de altura, entenda-se) permite ou facilita a devassa. Se for tão baixa que impeça as pessoas de obterem o apoio necessário para se debruçarem, não funciona a restrição do preceito em análise”.

Dito de outro modo, só a existência de um parapeito justifica a proibição de construir a menos de 1,5 metros do terreno contíguo, sendo que “não pode considerar-se como tal uma parede divisória de alguns centímetros ou mesmo decímetros de altura. Ele deve ter as dimensões suficientes para que possa servir de apoio à pessoa, para que esta possa debruçarse, apoiando-se nele, sobre o terreno do vizinho” (cfr., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela in obra cit., pág.196).

Assim, a restrição é afastada se o muro que veda o terraço tiver uma altura tão pequena que praticamente impeça a normal frequência do respectivo espaço, tal como sucederia se este não fosse provido de qualquer muro.

Parapeito, como o próprio vocábulo indica, é algo que serve para deter o peito.

Sobre esta matéria refere-se no supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2009, proferido no âmbito do processo n.º6/04.0TBVNO.C1, disponível in www.dgsi.pt., que aqui seguimos, que “uma parede ou construção idêntica que não atinja, em altura, mais do que o meio da perna, como é o caso figurado nos autos, não é um parapeito, pois que lhe falta virtualidade para dar segurança às pessoas contra o perigo de quedas, para além de não permitir que quem quer que seja nela se debruce com a finalidade de devassar terreno vizinho (…) uma parede com 30 centímetros de altura não constitui parapeito para efeitos da restrição”. Numa situação destas, ninguém permanecerá no terraço, junto da parede, mais do que o tempo necessário à eventual realização de algum trabalho.

Espaço de vivência dos habitantes da casa não será, com toda a certeza.

Tal significa que não é possível a constituição de servidão de vistas por usucapião, nos termos do n.º1 do art.1362.º do Código Civil, por faltar o elemento decisivo para a caracterização da obra em infracção à lei: a existência de um parapeito.

No caso em apreço temos que na zona de confinância com o prédio dos réus, e em toda a extensão, no terraço referido em d) dos factos provados existe um muro em tijolo em cimento com altura de 35cm suportado por 3 pilares com 95cm e dimensão de 10cm por 15 cm (v. al. f) dos factos provados).

Ora, tal muro, com a altura de 35cm não constitui um parapeito, pois que não serve para deter o peito, faltando-lhe a virtualidade para servir de resguardo e dar segurança às pessoas contra o perigo de quedas, para além de não permitir que quem quer que seja nele se debruce com a finalidade de devassar terreno vizinho, nem tal finalidade têm os pilares que apenas suportam tal muro.

Inexistindo parapeito em sentido técnico-jurídico, não podiam os autores, por si ou por qualquer outra pessoa, debruçar-se sobre ele para devassar o prédio dos réus.

Havendo um obstáculo de apenas trinta e cinco centímetros de altura, a situação é exactamente a mesma que se nada houvesse; será possível olhar para o prédio vizinho a partir do terraço, assim como nele receber luz e ar, mas está completamente afastada a hipótese de constituição de servidão de vistas.

Nessa medida, forçosa é a conclusão de que não se mostra constituída qualquer servidão de vistas, ar e luz a onerar o prédio urbano …dos réus, a favor do prédio urbano …dos autores, sendo que, por isso, não podem os autores ter exercido qualquer direito, fosse qual fosse a sua convicção a tal respeito, pois que não é a convicção que determina o direito, mas a existência deste que pode desencadear a convicção (cfr., neste sentido, o supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2009, proferido no âmbito do processo n.º6/04.0TBVNO.C1, disponível in www.dgsi.pt.).

2.6.

...Não estando constituída a servidão de vistas alegada pelos autores é lícito aos réus levantarem edifício ou construção no seu prédio sem qualquer restrição, pois que nos termos do preceituado no art.1305.º do Código Civil “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.»

6.1.2.

Como é consabido, as restrições impostas pelo artº 1360º do CC à construção do proprietário no seu próprio prédio, por reporte e em confronto com o prédio do vizinho, pretende operar o justo equilíbrio entre os direitos em presença e contribuir para a desejada paz social.

No entanto, considerando a natureza excecional de tal normativo - pois que ele constitui, para o dono do prédio onde as abertura,  portas, janelas, ou outras obras: varandas ou terraços, são efetuadas, uma oneração/restrição ao seu direito de propriedade e à fruição e frutificação do mesmo o mais amplamente possível -,   impõe-se um interpretação restritiva de tal preceito e do que com ele está relacionado, no que para o caso interessa: a constituição de uma servidão de vistas – artº 1362º - cfr. Ac RC de 03.03.2015, p. 335/13.2TBAGN.C1.

Tal interpretação consubstancia-se nas seguintes conclusões:

-Apenas podem implicar a constituição de uma servidão de vistas a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes em contravenção com o disposto na lei, vg. o plasmado no artº 1360º.

-E de entre as aberturas ou itens tipificados - janelas, portas, varandas, terraços, eirados – apenas podem ser atendíveis as que como tal puderem ser inequivocamente consideradas, atentas designadamente as suas típicas caraterísticas que sejam conditio sine qua non, ou, ao menos, comummente necessárias, da sua normal função, e respeitem os requisitos legalmente fixados.

Na verdade:

«As aberturas situadas na parede exterior de um edifício que deitem directamente para o imóvel contíguo e alheio, podem permitir a constituição de uma servidão de vistas, se tiverem as características previstas no art. 1362º…» - Ac. do STJ de 01.04.2008, p. 07A3114

Esta problemática tem-se colocado, prototipicamente, na definição do que deve ser considerado «janela» para o efeito dos preceitos citados, ou seja, a constituição de servidão de vistas.

Ora é comumente aceite que só estamos perante uma janela, por reporte, vg, a uma fresta, não só atenta diferenciação nas suas dimensões, como, outrossim, considerando as suas caraterísticas que sejam consecutíveis da sua normal função.

Assim, as frestas são aberturas estreitas, cuja única função é permitir a entrada de ar e luz.

Já as janelas são:

 «aberturas mais amplas, através das quais pode projectar-se a parte superior do corpo humano, e que dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.» - Ac. do STJ de  26.02.2004, p. 03B3498  in dgsi.pt.

Ou seja, as janelas:

« devem, em princípio, permitir …a projecção da parte superior do corpo humano e ser dotadas de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se para descansar, conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas…» - Ac. do STJ de 01.04.2008, p. 07A3114.

Nesta conformidade:

«O objecto do direito real de servidão de vistas, susceptível de ser adquirido por usucapião, é a existência da janela em condições de por ela se poder ver e de devassar o prédio vizinho, independentemente da concretização dessa usufruição, consubstanciando-se o corpus da posse na existência daquela janela em infracção do disposto no artigo 1360º, nº 1, do Código Civil» - Ac. do STJ de  s. 15.05.2008, p. 08B1368.

Pois que:

« Só este conceito de janela se adequa à dupla finalidade da restrição estabelecida no nº. 1 do artº. 1360º do CC: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos, e impedir a sua fácil devassa com o arremesso de objectos.» Ac. do STJ de  26.02.2004 cit.

Entendendo-se que:

«a possibilidade de projecção da parte superior de um corpo humano pela abertura, que permita a uma pessoa apoiar-se e debruçar-se, por forma a desfrutar das vistas sobre o prédio vizinho, tem sido um dos factores usados para classificar uma abertura como janela» - Ac. da RP de 17.10.2013, p. 43/10.6TBMUR.P1.

Temos assim que:

«as aberturas só poderão ser qualificadas de janelas se permitirem que um utilizador comum possa apoiar-se e debruçar-se sobre o seu parapeito, ou sobre a superfície que lhe corresponda, se este não existir, e com tal acção possa devassar o prédio vizinho.

«Se a possibilidade desta devassa não existir, a abertura não pode ser qualificada como janela.» - AC. da RC de  21.05.2013, p. 472/09.8TBMGL.C1; e, ainda, entre outros,  ac. da RP de 19.12.2007, p. 0720991 de que o presente relator também o foi.

(sublinhados nossos)

Ora se assim é para a janela, por igualdade de razão ou, até por maioria de razão – argumento a fortiori – se deve entender que é para o caso dos terraços.

Efetivamente, sendo o terraço um espaço mais amplo e, assim e em termos de normalidade,  mais perigoso do que a janela, a consecução da finalidade que a lei quer evitar com a restrição, qual seja a devassa do prédio vizinho, quer visual, quer por arremesso de objetos, apenas ou essencial e determinantemente, se verifica se o terraço estiver provido de um parapeito que conceda estabilidade e segurança e propicie a fruição do mesmo nos termos que a lei não tutela, mas antes  condiciona, através da exigência do interstício de 1,5 metros relativamente aquele prédio.

Assim se concluindo que a existência de parapeito no terraço é condição/requisito substancial, essencial contida na previsão legal - tatbestand -  do nº2 do artº 360º nº2 do CC, sem o qual não pode concluir-se  que um concreto terraço sem tal elemento essencial tenha a virtualidade de subsumir-se na mesmo e, assim, poder integrar-se na previsão do artº 1362º no sentido de acarretar uma servidão de vistas.

Certo é que algum grau de aleatoriedade e incerteza pode existir quando se pretende concluir pela existência de um parapeito, ou seja, até que altura, a partir de 1,5 m para baixo, se pode dizer que estamos perante um parapeito, seja constituído por parede, seja, por algum elemento  material transversal isolado.

Aqui, como em muitos casos vale, na aplicação do direito, a razoabilidade, o bom senso e a medida normal das coisas.

Destarte, considerando o próprio étimo, composição complexa (para – peito), o significado  da palavra e a altura  média de uma pessoa (homem e mulher)  de cerca de 1,70 m, um parapeito nunca poderá ter, por razões de comodidade, e, principalmente, segurança, uma altura inferior a 90, ou, condescendendo, no limite, e no mínimo, 80cm.

Temos assim, que o murete de 35cm existente no terraço em causa não pode considerar-se um parapeito para o efeito que nos ocupa, pois que ele não tem virtualidade para desempenhar  minimamente os fitos legalmente perspetivados para tal elemento: conceder segurança e comodidade propiciadoras de um uso mais intenso  - vg. por maior numero de pessoas - incluindo  jovens e crianças - e temporalmente mais prolongado.

Fatores  estes que definem precisamente a fronteira entre o que a lei admite:  uso menos intenso e menos prolongado decorrente da inexistência de parapeito,  e o que a lei já não tolera: um uso mais intenso e mais prolongado oriundo da sua existência.

No caso vertente a finalidade da construção do murete e a sua função normal terá sido e, objetivamente, é certamente, evitar que os produtos colocados no  terraço, máxime os agrícolas como batatas, feijão, milho, etc., vg. para debulho ou secagem, não transbordassem e caíssem do mesmo.

Pois que se o murete se destinasse a parapeito, certamente que a sua altura atingiria ao menos os ditos 80 cm, o que não era difícil nem oneroso de edificar: bastavam mais duas filas de tijolo.

Ora como é pacificamente aceite, a existência de aberturas, ou obras – vg. e no que ao caso interessa, terraço – que não respeitem os requisitos do artº 1360º e que, assim «não permitem a referida projecção das pessoas sobre o prédio vizinho, apenas permitindo a entrada de ar e luz, pode levar à constituição de uma servidão predial, mas não de servidão de vistas impeditiva de o proprietário do prédio vizinho levantar construção que tape aquelas aberturas.» - Ac. do STJ de 01.04.2008, p. 07A3114.

Ou, por outras palavras, mas com a mesma conclusão:

 «A edificação e manutenção dessas aberturas irregulares, sem as características indicadas nos arts. 1363º e 1364º do CC, excedem o conteúdo do direito de propriedade e sujeitam o proprietário vizinho a um encargo a que este se pode opor, exigindo que as aberturas sejam afeiçoadas às condições …impostas na lei. Se o proprietário vizinho não se insurgir contra o abuso cometido, a posse das utilidades daí resultantes pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, embora não de uma servidão de vistas...

 E uma vez constituída essa servidão predial, o dono do prédio dominante adquire o direito de manter essas aberturas em condições irregulares, cessando o direito de o proprietário vizinho exigir a sua harmonização com a lei, mas este não perde o direito de construir até à linha divisória, mesmo que tape as aberturas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, no espaço de metro e meio, só é estabelecida em relação à servidão de vistas regulada no art. 1362º.» - Ac. da RC de 03.03.2015, p. 335/13.2TBAGN.C1.

Tais considerações são, mutatis mutandis, aqui aplicáveis, como se viu.

Ademais, importa ter presente que, tal como mencionado na sentença, o bem tutelado com a servidão de vistas, não são, ou, diremos nós, não são tanto, as «vistas».

Mas antes, ou essencialmente,  o devassamento material, a ventilação, a  exposição solar e a própria existência da obra feita  no prédio dominante, já que a servidão de vistas apenas impede a edificação no prédio serviente, ie., em frente da obra do prédio dominante, na  sua extensão ou área – artº 1362º nº2, in fine e Ac. da RP de 27.10.2011, p. 91/05.8TBVMS.P2.

Ora no caso vertente não foram alegados factos nem resulta dos autos que a parede construída junto ao terraço dos autores afete intoleravelmente a fruição destes benefícios.

Mais.

O recuo da parede em 1,5 m retiraria grande parte da utilidade económica do espaço pertencente aos réus, dada a relativa exiguidade do mesmo – tanto quanto se alcança dos documentos juntos - o que, mesmo que o direito que os dos autores se arrogam, existisse, sempre se poderia chamar à colação as figuras da colisão de direitos e/ou do abuso do seu exercício, sendo certo, inclusive, que os autores, ao que parece devido até à sua avançada idade, já quase não fazem uso do terraço.

Improcede o recurso.

E por decorrência desta improcedência ficando prejudicada a apreciação do recurso ampliado dos réus.

6.

Sumariando.

I - Considerando o cariz restritivo e excecional das restrições do artº 1360º do CC, ele tem de ser interpretado restritivamente, no sentido de que apenas as aberturas ou obras que revistam as suas estritas caraterísticas, comum ou legalmente exigíveis, podem acarretar a exigência do interstício de 1,5 metros.

II - Destarte, provado que num terraço apenas foi colocada uma cintura de 35 cm de altura, tal não pode ser considerado um parapeito para o efeito do nº2 do aludido preceito, e, assim, não pode aquele terraço fundamentar a constituição de uma servidão de vistas, nos termos e com os efeitos previstos no artº 1362º, assistindo pois ao proprietário vizinho o direito de construir na  sua extrema.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelos recorrentes.

Coimbra, 2015.11.17.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos