Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2154/19.3T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACÇÕES DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
INTERESSE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ART.º 30.º. N.º 2, DO CPC, ART.º 10.º. NºS 1 E 2, A), DO CPC
Sumário: I - O interesse processual pode definir-se como o interesse da parte activa em obter a tutela jurisdicional e constitui um pressuposto processual respeitante a ambas as partes – dada correlatividade dos respectivos interesses, necessariamente contrapostos – e é aferido, objectiva e exclusivamente - como qualquer outro pressuposto processual - perante o objecto definido pelo autor, pela posição daquelas mesmas partes, no momento da propositura da acção, pela utilidade da concessão da tutela jurisdicional;

II - Na acção de simples apreciação negativa o interesse processual preenche-se se o demandado invocar a titularidade de um direito contra o autor ou alegar a existência de um facto, que é negado por esta parte, não sendo, por isso, admissível uma acção proposta com o fito de declarar a inexistência de um facto se o demandado jamais alegou contra o autor a existência dele;

III - Por força dos limites subjectivos do caso julgado, a concessão da tutela judicial não tem qualquer utilidade se se visa, com essa tutela, produzir efeitos, não na situação jurídica dos demandados, mas na de terceiros.

Decisão Texto Integral:
Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Mário Rodrigues da Silva
Cristina Neves

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

AA propôs, no Juízo Local Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., contra H..., Lda., e BB, acção declarativa de simples apreciação negativa, com processo comum, pedindo a condenação da primeira a reconhecer que nunca exerceu de facto a gerência da sociedade e se ordene o cancelamento do acto de registo pelo qual se inscreveu o seu nome como gerente daquela sociedade.

Fundamentou estas pretensões no facto de a pedido do réu BB, seu cônjuge, figurar como gerente de direito da sociedade, não tendo, porém, jamais exercido as funções de gerente, limitando-se a assinar documentos que lhe eram presentes para assinatura, confiando na gestão levado a cabo pelo réu BB.

O réu BB, editalmente citado, não contestou. O Ministério Público, citado em representação daquele, também não contestou.

O administrador da insolvência da ré, citado, também não contestou.

Na audiência prévia, a autora desistiu do pedido de cancelamento do registo, desistência que foi, acto contínuo, homologada. Na mesma audiência, facultou-se à autora o exercício do contraditório no tocante à possível ocorrência de exceção dilatória centrada na falta de interesse em agir.

O Senhor Juiz de Direito, depois de notar – sob a epígrafe questões prévias - designadamente, que a autora não enuncia, na sua p.i., um qualquer estado de dúvida quanto à propalada administração de facto, não censura às contrapartes um qualquer comportamento ou actuação tendente a pôr em crise a realidade tal como é por si perspectivada, que não se divisa utilidade ou benefício que  possa retirar da presente acção que possa justificar a demanda dos Réus, que na audiência prévia radica a acção na possibilidade de contrapor a constatação judicial de inexistência de administração de facto a terceiro que venha a actuar contra o seu património, o que é, em si mesmo, claramente revelador da falta de interesse em agir contra os Réus, que a autora se equivoca profundamente no valor e utilidade que poderia retirar da decisão a ser proferida nos presentes autos, a qual nunca poderia assumir força de caso julgado em face de terceiro não interveniente nos presentes autos, o que se afirma ainda com mais intensidade na hipótese de tal credor se traduzir na Administração Tributária numa eventual acção de reversão tributária, que aquela não mantém, para tal efeito, uma qualquer indefinição ou incerteza quanto a uma determinada realidade factual ou jurídica, não há, no demais, qualquer conflitualidade ou oposição mantida pelas contrapartes e não se divisa, por último, qualquer benefício que a mesma possa retirar de tal pedido, concluiu que não se divisa interesse em agir titulado pela autora que justifique o prosseguimento dos autos em tal vertente, constatando-se – pois que, no nosso entender, é de pressuposto processual concernente à instância que tratamos – a ocorrência de excepção dilatória inominada, conheceu da excepção dilatória da falta de interesse em agir em face do pedido materializado pela autora e, em consequência, absolveu os réus da instância pendente.

É esta decisão que a autora impugna no recurso – no qual pede a sua revogação e substituição por outra que a declare parte legítima e julgue a acção procedente – tendo condensado – exemplarmente - a sua alegação nestas conclusões:

1 - O mero exercício da gerência de direito de uma sociedade atribui legitimidade activa ao respectivo gerente para intentar acção de simples apreciação negativa, em que pretender ver reconhecido judicialmente que nunca exerceu de facto a gerência daquela.

2 - O benefício da A. na presente ação é de conhecimento comum, na medida em que, com a prolação da decisão peticionada, fica a mesma munida de prova da referida não gerência de facto, podendo dela se servir para eventuais acções atentatórias do bom nome, imagem, património e registo criminal, da mesma (como execuções fiscais por reversão e, eventualmente, em pedidos de qualificação de insolvência dolosa e culposa da sociedade em causa que possa afectar a recorrente).

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos interessantes para a decisão do recurso, maxime os relativos à tutela jurídica enunciada pela autora e ao conteúdo da decisão impugnada, são os que o relatório, em síntese apertada, documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º n.ºs 2, 1.ª parte, e 3 a 5, do CPC)

Maneira que, considerando os parâmetros, assim delimitados, da competência decisória desta Relação, a questão concreta controversa que é colocada à sua atenção é só uma: a de saber se no caso se encontra ou não preenchido o pressuposto processual em que o interesse processual se resolve.

É certo que, no recurso, a autora pede que seja declarada parte legítima. Simplesmente uma leitura, ainda que meramente oblíqua da decisão impugnada mostra que não se deteve sequer – como deveria - na apreciação do pressuposto processual representado pela legitimidade processual ou ad causam de qualquer das partes – nem, aliás de qualquer outro pressuposto processual - limitando-se de modo puramente implícito a pressupô-la, tendo centrado toda a sua retórica argumentativa na falta do pressuposto processual do interesse processual, que tratou sob a designação de questões prévias.

O interesse processual, seja qual a natureza que, em definitivo, lhe deve ser assinalado, em nada se confunde com a legitimidade processual ou ad causam – embora a pressuponha. A análise do interesse processual apenas se justifica se as partes na acção forem, de harmonia com o respectivo critério específico de aferição, partes legítimas, pelo que, metodologicamente, a apreciação da legitimidade das partes deva preceder a análise do interesse processual[1]. A legitimidade processual visa assegurar que estão em juízo as partes que têm interesse em obter a tutela jurisdicional, evitando que estejam em juízo estranhos ao objecto da acção (art.º 30.º. n.º 1, do CPC); o interesse processual, visa assegurar a utilidade da tutela jurisdicional e, portanto, a obviar que entre as partes legítimas existam acções inúteis, pelo que pressupõe que as partes são legítimas, limitando-se a avaliar se a tutela jurisdicional pedida tem alguma vantagem para o autor e, correlativamente, uma qualquer desvantagem para o réu (art.º 30.º, n.º 2, do CPC).  Entendimento diverso, conduziria ao absurdo de se reconhecer que o interesse processual se encontra preenchido numa acção em que as partes são ilegítimas.

Além do julgamento expresso, há o julgamento implícito: a decisão não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos. Quando o juiz procede à aferição do preenchimento do pressuposto processual do interesse processual deve presumir-se que, ao ponderar se este pressuposto processual se encontra ou não assegurado considerou que as partes – ambas, dada a correspectividade dos respetivos interesses que caracteriza o interesse processual - eram dotadas de legitimidade ad causam. Pouco importa que o juiz se não tenha pronunciado expressamente sobre este último pressuposto processual relativo às partes: desde que considerou que falta o interesse processual, há-de partir-se do pressuposto de que antes se certificou da legitimidade processual das partes.

Nestas condições, a sentença impugnada – que foi terminante em considerar que o pressuposto processual do interesse processual não se encontrava preenchido - deve ser entendida no sentido de que considerou que as partes, ambas, eram legítimas.

Vistas as coisas assim, parece certo que a sentença apelada considerou a autora parte legitima, pelo que não há que discutir no recurso essa questão, mas somente a de saber se, como assevera a sentença impugnada, o pressuposto processual do interesse processual, não se encontra preenchido. Dito doutro modo: dado que se deve entender que a sentença impugnada, ainda que de modo puramente implícito, considerou a apelante parte legítima, esta nenhum interesse – processual - tem em pedir que esta Relação declare essa legitimidade.

A autora pede na acção contra H..., Lda., e BB a condenação da primeira – e só desta - a reconhecer que – apesar de ter sido nomeada gerente da primeira - nunca exerceu de facto essa gerência.

Em vista do enunciado deste pedido, a decisão impugnada discorreu longamente sobre o conceito de administrador de facto e sobre os requisitos da administração de facto. Mas não parece que justifique, no nosso caso, uma larga indagação ou exposição sobre aquele conceito. É que sendo a autora, indiscutivelmente, gerente de direito, qualquer acto ou actividade de administração ou gestão societária que, eventualmente, tenha levado sempre seria uma actividade de administração ou gestão também ela de direito e não meramente fáctica.

De forma deliberadamente simplificadora, por administrador de facto entende-se a pessoa que age, directa ou indirectamente, de forma autónoma – não subordinada - como administrador de direito – mas sem possuir essa qualidade funcional[2]. Portanto, face a este enunciado, para que, com um grau razoável de segurança, se possa dizer que se está perante um administrador de facto, é indispensável a verificação de uma pluralidade de requisitos.

Desde logo, o exercício positivo, real e efectivo, de funções de gestão similares ou equiparáveis às dos administradores de direito[3]. Depois, não é suficiente um qualquer exercício de funções idênticas às que, estatutariamente, cabem aos administradores formalmente instituídos: é exigível que esse exercício revista um grau determinado de intensidade, qualitativo e quantitativo. Não basta, pois, para que haja administração de facto, a mera actividade de supervisão ou de controlo, devendo reclamar-se que aquela actividade traduza em actos típicos de gestão empresarial e de alta direcção[4]. O que traz implicada a autonomia decisória, característica dos administradores de iure, ou dito de outro modo, a ausência de subordinação do administrador de facto. Do ponto de vista quantitativo - embora isto não seja incontroverso – não parece ser de exigir uma actividade continuada ou reiterada de administração, sendo suficiente a prática de actos que, pelo seu significado ou relevo económicos, sejam decisivos para a condução dos negócios sociais e para os destinos da sociedade.

Por último, reclama-se que a actuação do administrador de facto seja conhecida e consentida dos sócios e dos administradores de direito da sociedade.

O conceito de administrador de facto – e abstraindo do seu carácter poliédrico[5] – exige, decerto, a prova do exercício, sem uma qualquer qualidade jurídica legitimadora, de uma real e autêntica actividade de administração, o desempenho de funções de gestão e de condução dos negócios sociais, igual àquela que está estatutariamente atribuída aos administradores de direito. E como, mesmo nesse caso, a sociedade comercial continua a dispor de administradores de direito é indispensável a prova de que os actos de gestão aparentemente da autoria destes, devem afinal, imputar-se, materialmente, a um terceiro, por não terem sido praticados, de forma autónoma e livre, mas num contexto de subordinação ou de infra ordenação, em acatamento da autoridade fáctica desse terceiro – o administrador de facto.

Simplesmente, quando a autora na formulação do seu pedido se refere à administração ou gerência de facto não tem seguramente em vista o caso em que alguém exerce materialmente uma actividade de administração, gestão e condução dos negócios societários sem dispor da indispensável qualidade jurídico-societária – v.g. de gerente – correspondente. Dado que a autora é, de iure, gerente da sociedade comercial, com a expressão apontada a apelante quer somente significar que a sua gerência é meramente nominal ou não é efectiva, que aquela qualidade é meramente formal e que, materialmente, jamais exerceu quaisquer funções que, estatutária e caracteristicamente, se inscrevem nos deveres e competências dos gerentes de uma sociedade comercial.

Não temos, assim, que nos preocupar com o recorte preciso do conceito de administrador e de administração de facto. A única questão que deve concitar a nossa atenção é – como se disse já - apenas a de saber se a apelante tem ou não interesse processual. O que vincula ao exame deste conceito e da sua natureza e à determinação do parâmetro da sua aferição e, por último, da consequência jurídica da sua falta.

3.2. Interesse processual, natureza, parâmetro da sua aferição e consequência jurídica da sua falta.

O interesse processual – também denominado interesse em agir – pode definir-se como o interesse da parte activa em obter a tutela jurisdicional (art.º 30.º. n.º 2, do CPC)[6]; a esse interesse da parte activa corresponde o interesse, de sentido inverso, da parte passiva: o interesse em impedir a concessão dessa tutela. O interesse na obtenção da tutela jurisdicional, i.e., a utilidade decorrente da procedência da acção é, assim, necessariamente correlativo do interesse do demandado[7] na não concessão dessa mesma tutela, pelo que quando o autor não tem qualquer interesse em demandar, porque da concessão da tutela jurisdicional requerida não lhe advém qualquer benefício, o demandado também nenhum interesse tem em contradizer, dado que a sua situação jurídica em nada é afectada pela concessão ao autor da tutela jurisdicional requerida.

A exigência de que a parte seja portadora de um interesse processual ou o condicionamento do exercício do direito de acção à utilidade da obtenção de tutela jurisdicional justifica-se por razões de economia e de paz jurídica: o interesse processual visa evitar o dispêndio inútil de actividade jurisdicional – por definição escassa – e os custos e incómodos para o demandado com a apreciação de acções inúteis.

O interesse processual – de harmonia com a orientação que se julga preferível – é um pressuposto processual[8] respeitante a ambas as partes – dada a correlatividade dos respectivos interesses, necessariamente contrapostos – e é aferido, objectiva e exclusivamente - como qualquer outro pressuposto processual - perante o objecto definido pelo autor, pela posição daquelas mesmas partes, no momento da propositura da acção, pela utilidade da concessão da tutela jurisdicional. A falta de interesse processual, i.e., a falta de interesse em exercer o direito de acção, resolve-se numa excepção dilatória – inominada - oficiosamente cognoscível que, à semelhança da generalidade das excepções dilatórias, implica a absolvição do réu da instância (artºs 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, e), do CPC).

Considerada a partir do ângulo da tipologia das acções, estamos, no caso, face a uma acção de simples apreciação negativa que tem por objecto este facto juridicamente relevante: a declaração de que a autora jamais exerceu efectivamente o cargo de gerente em que está investida (art.º 10.º. nºs 1 e 2, a), do CPC).

As acções de simples apreciação – que são aquelas em que se pede a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto – não têm por objecto ou não têm por finalidade fazer valer um direito subjectivo – dado que não há um direito à declaração – pelo que a utilidade da tutela, como parâmetro de aferição do interesse processual, tem de referir-se, necessária e exclusivamente, à própria declaração da existência ou inexistência daquele direito ou deste facto, pelo que aquele interesse se encontra preenchido – mas só se encontra preenchido – quando o autor tenha um interesse atendível naquela declaração (art.º 10.º, n.º 3, a), do CPC).

Se a acção for de apreciação positiva exige-se, para que o interesse processual se mostre preenchido, que o direito esteja mergulhado numa situação de incerteza objectiva, que se encontre numa situação de dúvida objectiva, i.e., de falta de certo grau de certeza – incerteza ou dúvida que, regra geral, resulta de uma atitude do demandado: a negação, por este, desse mesmo direito. Direito que deve existir e ser objecto de controversão entre as partes no momento da propositura da acção: a acção de simples apreciação positiva não é admissível, justamente por falta de interesse processual, se o direito e sua controversão não forem actuais: um eventual direito futuro ou uma eventual controversão no futuro desse direito são inidóneas para preencher aquele interesse. Na acção de simples apreciação negativa, o interesse processual preenche-se se o demandado invocar a titularidade de um direito contra o auto ou alegar a existência de um facto, que é negado por esta parte. Por isso que não é admissível uma acção na qual se peça a declaração de que o demandado não possui qualquer direito contra o demandante, se o réu nunca alegou qualquer direito contra o autor. Como também não é admissível uma acção proposta com o fito de declarar a inexistência de um facto se o demandado jamais alegou contra o autor a existência dele.

Este pecúlio de considerações habilita, com suficiência, a resolver o caso objecto da impugnação.

3.3. Concretização.

Considerando o objecto do processo – tal como é definido pela causa petendi e pelo pedido da autora – e que actualmente se limita, por força da desistência da autora do pedido de cancelamento do registo da sua nomeação como gerente, ao pedido de declaração de que nunca exerceu a gerência,  julga-se seguro que a apelante nenhum interesse tem em demandar – e, correspondentemente, os réus nenhum interesse têm em contradizer – dado que aquela não tem qualquer interesse na obtenção da tutela jurisdicional que enunciou, uma vez que não extrai desse tutela qualquer vantagem e, correspondentemente, os demandados nenhum interesse têm em contradizer, visto que não têm nenhum interesse na não atribuição daquela tutela, já que a sua concessão não lhes importa qualquer desvantagem.

Isto é evidente no tocante ao réu, pessoa singular, BB, dado que a autora nem sequer formulou contra ele o pedido de declaração de que jamais exerceu efectivamente a gerência da sociedade H..., Lda., pedido que foi deduzido apenas contra esta.

Em qualquer caso, da alegação da autora, ela mesma, não resulta, desde logo, que qualquer dos demandados tenha, de forma expressa, ou simplesmente de modo tácito ou implícito, alegado contra a apelante a existência do facto cuja inexistência aquele pede que se declare, que tenham, por qualquer daqueles modos, assacado à autora o exercício efectivo da gerência que esta nega, ou sequer qualquer incerteza, por mínima que seja, sobre a existência desse mesmo facto.

Ora, desde que para o preenchimento do interesse processual se exige, na acção de simples apreciação negativa – tipo de acção em que justamente, segundo a opinião dominante o problema do interesse processual se coloca de modo mais intenso, falando-se mesmo em interesse em agir qualificado[9] - uma objectiva e actual contestação ou controvérsia acerca da inexistência de um direito ou de um facto, geradora de um estado de incerteza, a que o demandante pretende por cobro, e de que resulte um prejuízo concreto e imediato, idóneo ou adequado a prejudicar os interesses do autor, segue-se como corolário que não pode ser recusado que, na espécie do recurso, a recorrente nenhum interesse tem em demandar os réus, dado que não extrai da procedência da acção vantagem alguma. Realmente, não tendo sido sequer alegado pela autora quaisquer factos ou actos da autoria dos demandados incompatíveis com a inexistência do facto que a recorrente pretende ver declarado – a gerência meramente nominal ou de direito da sociedade comercial – não há, objectivamente, qualquer estado de incerteza ou de dúvida, e só uma situação jurídica desta índole seria susceptível de justificar a utilidade da tutela processual pedida.

Diz, porém, a apelante – reiterando, aliás, um ponto de vista que expôs na audiência prévia - que a tutela jurisdicional que pede tem utilidade por a municiar com a de prova da referida não gerência de facto, podendo dela se servir para eventuais acções atentatórias do bom nome, imagem, património e registo criminal, da mesma, como, por exemplo, execuções fiscais por reversão.

Não cremos, todavia, que esta finalidade, assegure à apelante a utilidade da tutela jurisdicional que pede.

Tome-se, por exemplo, ad argumentam, a reversão fiscal.

A responsabilidade tributária caracteriza-se pela possibilidade de vincular, subjectiva e adicionalmente, sujeitos distintos do devedor originário (art.º 22.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, na sua redacção actual). Sendo claro que a responsabilidade de terceiro pela dívida fiscal tem natureza subsidiária, aquela responsabilidade concretiza-se através da reversão do processo de execução fiscal, que se resolve numa modificação subjectiva da instância pelo chamamento, a fim de ocupar a posição passiva na acção, de um sujeito que não é o devedor que figura no título (art.º 23.º, n.º 1, da LG Tributária).

Uma doutrina e jurisprudência fiscais maioritárias sustenta que apenas constituem sujeitos da responsabilidade tributária subsidiária os gestores que exerceram efectivamente as funções de administração ou gestão, independentemente de terem sido para tal designados, exercício efectivo de funções que se extrai de indícios, como, por exemplo, a contratação de pessoal, a assinatura de cheques e documentos fiscalmente relevantes. À luz deste entendimento do problema considera-se, de modo repetido, que o gerente meramente de direito – nominal e não efectivo – não é responsável pelas dívidas tributárias[10]. De resto, o não exercício efectivo da gerência constitui o argumento comummente alegado pelos revertidos como fundamento da sua exoneração da responsabilidade patrimonial por dívidas tributárias da sociedade comercial.

Esta orientação assenta na literalidade da lei, no passo em que se refere os administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração (art.º 24.º, n.º 1, da LG Tributária). A inadmissibilidade da responsabilidade tributária dos administradores ou gerentes nominais – não efectivos – decorreria da proibição analógica em matéria de incidência, de taxa, de benefícios fiscais e de garantia dos contribuintes (art.º 103.º. n.º 2, da Constituição e 11.º, n.º 4, da LG Tributária). Mas o ponto é controvertido, dado que não falta quem entenda que a lei alargou a responsabilidade tributária aos administradores meramente nominais ou de direito, já que a referência a quem exerça, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão, visa abranger a mera gerência de facto e não a exclusão da gerência de direito[11].

A economia do recurso não reclama, porém, que se opte por qualquer dos pontos de vista ou orientações em confronto ou sequer que melhor se detalhe os termos em que, na doutrina e jurisprudências fiscais, a controvérsia se desenvolve.

Desde logo, porque se tem por axiomático que o interesse processual se afere relativamente às partes presentes em juízo, pela posição destas mesmas partes perante a utilidade da concessão da tutela jurisdicional, averiguando-se se esta tutela alguma vantagem traz para o autor e alguma correlativa desvantagem acarreta para o réu – e não para terceiro, i.e., para quem não tem, no processo pendente em que se procede a essa aferição, a qualidade de parte. Portanto, para o preenchimento do interesse processual é irrelevante que a concessão da tutela seja, eventualmente, desvantajosa para terceiro; desde que o não seja para o demandado – e, consequentemente, dada correspectividade dos interesses, não seja vantajosa para o demandante – ao autor não pode ser reconhecido qualquer interesse na obtenção daquela tutela.

Por razões que se compreendem por si, o interesse processual não pode ser afirmado em abstracto: apenas comparando a situação em que a parte, activa ou passiva, se encontra antes da propositura da acção com aquela em que existirá se a tutela jurisdicional for concedida, se pode saber se essa concessão representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu; se a situação relativa entre as partes se não alterar com a concessão daquela tutela judiciária, falta o interesse em agir[12].

Admita-se, ad argumentam, que à apelante era concedida a tutela judicial pedida e que a decisão correspondente transitou em julgado. Nesta hipótese, haveria, irrecusavelmente, que entrar em linha de conta com os limites subjectivos da coisa julgada.

Na verdade, o caso julgado está submetido a limites subjectivos, i.e., a limites respeitantes aos sujeitos. E quanto aos limites subjectivos da coisa julgada, a regra é a da eficácia meramente relativa do caso julgado: este apenas vincula, em princípio, as partes da acção não podendo, também em princípio, afectar terceiros. Regra que é um simples reflexo ou consequência do princípio do contraditório, de harmonia com o qual quem não pôde defender os seus interesses num processo pendente, não pode, evidentemente, ser afectado pela decisão nele proferida (art.º 3.º, n.ºs 1 e 3, do CPC).

Assim, os terceiros não podem ser prejudicados pelo caso julgado de uma decisão proferida numa acção em que não participaram, nem foram chamados a intervir. Mas também não podem ser beneficiados – aliis non prodest[13]. Regra de que decorre esta consequência: só aqueles contra foi proposta a acção ou nela tenham intervindo ficam abrangidos pelo caso julgado que se formou sobre a decisão transitada nela proferida e, por isso, só essas partes podem ser prejudicadas ou beneficiadas com o resultado da aplicação, por aquela decisão, do direito ao caso que constituía objecto dessa mesma acção.

Portanto, na espécie sujeita, o caso julgado que eventualmente se formasse sobre a decisão que concedesse à apelante a tutela jurisdicional que solicita – a declaração de que é gerente meramente nominal da sociedade e que jamais exerceu, efectivamente, essa gerência - não seria oponível a quaisquer terceiros, designadamente à autoridade ou administração tributária.

 Assim, relativamente a terceiros a situação jurídica da autora antes e depois da concessão da tutela jurisdicional pedida é absolutamente homótropa. Ergo, sempre faltaria, mesmo neste caso, o interesse processual, uma vez que a concessão da tutela judicial pedida nenhuma vantagem traria para a apelante que, apesar dessa concessão, sempre ficaria na mesma posição jurídica relativamente, v.g., à administração fiscal, a quem não poderia opor a decisão que lhe concedeu a tutela pedida.

O resultado do teste de comparação, mostra inequivocamente, a inutilidade, também relativamente a terceiros, da concessão da tutela pedida e, consequentemente, a ausência do interesse processual nessa concessão. Pode até universalizar-se esta conclusão: por força dos limites subjectivos do caso julgado, a concessão da tutela judicial não tem qualquer utilidade se se visa, com essa tutela, produzir efeitos, não na situação jurídica das partes na acção, mas na situação jurídica de terceiros.

O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento. Essa falta de bondade impõe, irremissivelmente, a sua improcedência.

A motivação exposta cristaliza-se nestas proposições:

- O interesse processual ou interesse em agir em nada se confunde com a legitimidade processual ou ad causam – embora a pressuponha, pelo que a análise do interesse processual apenas se justifica se as partes na acção forem, de harmonia com o respectivo critério específico de aferição, partes legítimas, devendo, metodologicamente, a apreciação da legitimidade das partes deva preceder a análise do interesse processual;

- A legitimidade processual visa assegurar que estão em juízo as partes que têm interesse em obter a tutela jurisdicional, evitando que estejam em juízo estranhos ao objecto da acção; o interesse processual, visa assegurar a utilidade da tutela jurisdicional e, portanto, a obviar que entre as partes legítimas existam acções inúteis, pelo que pressupõe que as partes são legítimas, limitando-se a avaliar se a tutela jurisdicional pedida tem alguma vantagem para o autor e, correlativamente, uma qualquer desvantagem para o réu;

- O interesse processual pode definir-se como o interesse da parte activa em obter a tutela jurisdicional e constitui um pressuposto processual respeitante a ambas as partes – dada correlatividade dos respectivos interesses, necessariamente contrapostos – e é aferido, objectiva e exclusivamente - como qualquer outro pressuposto processual - perante o objecto definido pelo autor, pela posição daquelas mesmas partes, no momento da propositura da acção, pela utilidade da concessão da tutela jurisdicional;

- Na acção de simples apreciação negativa o interesse processual preenche-se se o demandado invocar a titularidade de um direito contra o autor ou alegar a existência de um facto, que é negado por esta parte, não sendo, por isso, admissível uma acção proposta com o fito de declarar a inexistência de um facto se o demandado jamais alegou contra o autor a existência dele;

- Por força dos limites subjectivos do caso julgado, a concessão da tutela judicial não tem qualquer utilidade se se visa, com essa tutela, produzir efeitos, não na situação jurídica dos demandados, mas na de terceiros.

A apelante sucumbe no recurso. Deverá, por virtude dessa sucumbência, ser responsabilizada pelo pagamento das custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

                                                                                                                                     2022.12.13





[1] Daniel Bessa de Melo, O interesse em agir em processo cível. Em especial nas acções de simples apreciação, Revista Julgar, Online, Dezembro de 2020, pág. 12
[2] Ac. da RG de 23.02.10, www.dgsi.pt., José Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades, (Estrutura e Organização Jurídicas de Empresas Plurisocietárias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 79, Ricardo Costa, Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 646 e ss., e Pedro Alexandre Azevedo do Nascimento, A Responsabilidade dos Gerentes e Administradores de Facto no CIRE, Dissertação de Mestrado, UCP, Porto 2012, disponível em repositório.ucp.pt:10400.14/9727, págs. 7 a 14.
[3] Ricardo Costa, “Responsabilidade civil societária dos administradores de facto, in, IDET/Almedina, Coimbra, 2006 pág. 29.
[4] Ricardo Costa, Responsabilidade Civil, cit., pág. 29.
[5] É realmente, comum o distinguo entre administradores de facto aparentes, administradores de facto ocultos sobre outro título e administradores de facto na sombra (shadow directors): Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 99 e 100.
[6] João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AADFL, 2022, págs. 366 e ss., Miguel Teixeira de Sousa, O Interesse Processual na Acção Declarativa, AAFDL, 1989, pág. 38, e As Partes, o Objecto, e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, pág. 98 e ss. – no tocante ao recurso – Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 487. Para outras formulações e nomenclaturas, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 79, Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 179 e ss., Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 229 e Gil Moreira dos Santos, Legitimidade e Interesse em Agir, CJ/STJ, Ano IV, Tomo II, págs. 9 e ss; Ac. da RL de 26.09.2019 (1712/17.5T8BRR-B.L1.6).
[7] Diferentemente, Daniel Bessa de Melo, ops. locs. cit., pág. 8.
[8] Diferentemente, negando a qualificação do interesse processual como pressuposto processual – com fundamento no disposto no art.º 535.º, n.º 1, do CPC, que estabelece que quando o réu não tenha dado causa à acção e a não conteste as custas são pagas pelo autor – Lebre de Freitas/I. Alexandre, CPC Anot., II, 2017, pág. 441, e Rui Pinto, O Recurso Civil, 2017, pág. 193 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, AAFDL, 1980, págs. 180 e 190. A jurisprudência orienta-se, porém, esmagadoramente no sentido da qualificação do interesse processual como pressuposto processual: assim, v.g., o Ac. da RL de 26.09.2019, cit., do STJ de 05.02.3013 (684/10.1YXL.SB.L1.S1). 11.03.2013 (403/09.5TJL.SB.L1.S1), 29.06.2017 (5043/16.0T8STB.S1) e de 19.12.2018 (742/16.9T8PFR.P1.S1).
[9] Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 118.
[10] Assim, v.g. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento Tributário, Vol. III, 6.ª edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, pág. 473, Sofia de Vasconcelos Casimiro, A Responsabilidade os Gerentes, Administradores e Directores pelas Dívidas Tributárias das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2000, pág. 100, e João Santos Cabral, in A Responsabilidade Tributária Subsidiária do Administrador de Facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutro Manuel Henrique Mesquita, Vol. I, Coimbra, 2010, pág. 255.
[11] João Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2.ª edição, Coimbra, 2003, pág. 269, José António Costa Alves, in a Responsabilidade tributária dos titulares de corpos sociais e dos responsáveis técnicos, RFDUP, Ano III, Coimbra Editora, 2006, pág. 397 e Paulo Marques, A (ir)responsabilidade dos gerentes de direito pelas dívidas tributárias, disponível em revistadedireitodassociedades.pt.
[12] Miguel Teixeira de Sousa, O Interesse Processual na Acção Declarativa, cit., pág. 5; Ac. da RC de 14.05.2013 (778/11.6TBTNV.C1).
[13] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, Lisboa, Associação Académica, Lisboa, 1980, pág. 287 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, cit., pág. 588.