Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
102/10.5TBSRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARVALHO MARTINS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
DIREITO À PROVA
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1279 CC, 393, 394, 395, 475 CPC
Sumário: 1. A redacção do art. 393.° do Cód. Proc. Civil ajusta-se à interpretação de que a violência requerida pelo preceito tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas, não havendo o legislador feito qualquer distinção e nenhuma outra regra justifica que o intérprete a faça: nem a história da norma, nem a sua redacção, nem o objectivo que ela se propõe prosseguir.

2. Se a coacção e, portanto, a violência, como requisito da restituição provisória de posse tanto pode respeitar às pessoas como às coisas, neste caso, só quando exercida directamente sobre elas, tem, de algum modo, de atingir a pessoa do possuidor ou daquele que defende a posse dessas coisas, criando nele um estado psicológico de insegurança ou de receio.

3. O direito à prova pode ser definido como o direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspectos: o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exactidão ou inexactidão desses factos, através de qualquer meio de prova; o direito de participação na produção das provas.

4. Uma consequência lógica do reconhecimento do direito à prova é, naturalmente, o direito das partes à aquisição das provas admitidas e consequente dever do juiz de as admitir, como se pode deduzir do art. 515.°(provas atendíveis) do CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

G (…), J (…), H (…), M (…) e E (…) propuseram contra M O (…) M A (…) e P D (…), a presente providência cautelar de restituição provisória de posse, porquanto a 1ª requerida colocou na entrada da sua propriedade, sita no Lugar (…), Soure, inscrita na matriz sob o artigo 438, um portão de ferro com fechadura que não permite a passagem dos requerentes para as suas propriedades; e a 2 requerida, na zona do enfiamento da retaguarda da sua habitação, colocou posteriormente obstáculos à passagem dos requerentes.

Para tanto, e no que importa, alegam os requerentes que:

1. Da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito de (…), fazem parte os seguintes prédios:

A) CASA DE HABITAÇÃO DE RÉS-DO-CHÃO E 1° ANDAR, com dependência e logradouro, sita no lugar de Casa Velha, da freguesia de concelho de Soure, inscrito na matriz urbana sob o art. 6288 e descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n° 11.670, a favor do 1° requerente;

B) TERRA DE CULTURA com oliveiras, laranjeiras e mato, no sitio do Quintal, da dita freguesia e concelho de Soure, inscrito na matriz respectiva sob o art. 610 e descrita sob o no 11.673, a favor do 1° requerente.

2. Por seu turno, também; a 1ª requerida: (…), é dona e legitima possuidora, de uma outra CASA DE HABITAÇÃO, com pátio e logradouro no mesmo sitio da Casa Velha, da mesma freguesia e concelho, inscrita na matriz, sob o art. 438.

3. Enquanto, a requerida; (…) é dona de uma terceira casa, inicialmente destinada a celeiro e; posteriormente, afecta a habitação, situada no mesmo e, dito lugar de Vala Nova -Casa Velha, freguesia e concelho de Soure, inscrito sob o art. 3.223.

4.Tais bens, advieram à posse e titularidade dos requerentes e requeridos por doação dos ascendentes pais, que por si e durante mais de 30 a 40 anos consecutivos e ininterruptos, em suas vidas, sempre habitaram as casas com os filhos, utilizaram o recheio das mesmas e os quintais.

5. Os ascendentes, para acederem da via pública à retaguarda das casas, ao antigo celeiro e aos quintais, e destes para a via pública passavam tanto a pé, como com carro de tracção animal, animais, através do portão existente e, a confrontar com a via pública. Após, introduziam-se no pátio da casa de habitação - hoje propriedade da requerida (…) - percorriam urna faixa de terreno, com a direcção, extensão e largura de cerca de 3 metros de largura, até atingirem os diversos pontos e zonas das casas, seus anexos e quintais.

6. Em consequência, adquiriram os ascendentes dos requerentes, e depois de si estes, uma servidão de passagem e de escoamento (dado existirem tubagens subterrâneas para esgotos) sobre os prédios dos requeridos — uma vez que os prédios dos requerentes não têm outra forma de acesso à via pública — adquirida não só por destinação de pai de família, como também por usucapião.

7. Mesmo tendo a porta de entrada da habitação dos requerentes a deitar para a via pública, o acesso às traseiras da mesma, assim como ao terreno do quintal, com veículos, máquinas ou tractores, sempre foi feito pelo alegado portão e trajecto.

8. A determinada altura, a 1ª requerida decidiu mandar retirar o portão de acesso às propriedades, que desde os ascendentes lá se encontrava, tendo como dispositivo de fecho uma simples tramela, e substituiu-o por outro com fechadura.

9. No final de Março de 2009, quando o 1ºrequerente necessitou de aceder à parte de trás do seu prédio e quintal de tractor, a 1ª requerida deixou-o entrar, mas de seguida trancou o portão à chave, impedindo a saída para o exterior, tendo-o injuriado de seguida.

10. Também, a 2ª requerida na zona do enfiamento da retaguarda da sua habitação, posteriormente, colocou — intencionalmente — ramagens de árvores, nomeadamente, de óleo, constituindo obstáculos à passagem dos requerentes.

11. Tais condutas acarretam prejuízos para os requerentes que, em consequência, não podem fazer o transporte de bens, mercadorias, sementes, adubos, nem o trânsito de máquinas da via pública, à parte de trás da casa ou do quintal.

Nada foi alegado quanto ao 3º requerido.

Apreciou-se que

“uma vez que a providência cautelar em causa é proferida sem audição prévia dos requeridos, nos termos do artigo 394° do Código de Processo Civil, e dispondo o artigo 386°/1 do Código de Processo Civil que só há lugar à produção de prova quando necessário — o que não é, manifestamente o caso — passa-se a proferir decisão”.

Oportunamente, foi, então, proferida decisão onde se consagrou que

Face ao exposto, indefiro o procedimento cautelar de restituição provisória da posse requerido (…), contra (…)

Custas pelos requerentes.

G (…) e outros, requerentes nos autos à margem supra referenciados, não se conformando com a sentença, vieram dela interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, alegando e concluindo que:

1. Os requerentes alegaram factos e circunstâncias, como ofereceram e remeteram a produção dos meios de prova que, permitiram sustentar e demonstrar que, são possuidores do direito de servidão da passagem e, dela ficaram privados, por meio de esbulho violento e, cuja situação lhes causa e ameaça causar prejuízos graves e de difícil reparação.

2. Os actos materiais alegados, quanto à violência, foram exercidos e praticados contra a pessoa do requerente possuidor e, indirectamente, contra as coisas; veículo tractor e caixa retida, sob coacção e constrangedora da pessoa, imobilizada do requerente.

3. A violência comum exercida, era actual e a preencher o segmento substancial e processual previstos nos arts. 1279° do CC e 393° do CPC.

4. Ainda que, assim, se não entendesse, o Juiz após, o exame das provas e; se, o mesmo concluísse que, não ocorressem as circunstâncias previstas no art. 393° do CPC, poderia apreciar o procedimento cautelar comum.

5. Ao indeferir liminarmente a providência, o Tribunal a quo, por erro de interpretação e/ou aplicação; não deu observância aos princípios gerais cíveis e, processuais atinentes; mostrando-se violados os arts. 1279° do CC; 393°; 394° e 395° do CPC.

6. Deve, o recurso merecer provimento, revogando-se o douto despacho e, determinando-se o prosseguimento dos autos.

Não foram produzidas contra-alegações.

II. Os Fundamentos:

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais com interesse para a decisão da causa:

- haver-se concluído - sem produção de prova -, no circunstancialismo narrado, “não estar verificado o pressuposto da violência do esbulho de decretamento da providência de restituição provisória da posse, pelo que deve ser a mesma indeferida”;

- os requerentes alegaram factos e circunstâncias, indicando testemunhas, por forma a integrarem produção dos meios de prova que, confirmados, permitiram demonstrar que são possuidores do direito de servidão da passagem e que dela ficaram privados, por meio de esbulho violento, originando situação que lhes causa e ameaça causar prejuízos graves e de difícil reparação;

- invocaram também que os actos materiais alegados, quanto à violência, foram exercidos e praticados contra a pessoa do requerente possuidor e, indirectamente, contra as coisas, veículo tractor e caixa retida, sob coacção constrangedora da pessoa imobilizada do requerente;

- que a violência comum exercida, era actual e a preencher o segmento substancial e processual previstos nos arts. 1279° do CC e 393° do CPC.

- o que imporia ao Sr. Juiz, só após o exame das provas, apreciar do ocorrência das circunstâncias previstas no art. 393° do CPC, então podendo apreciar o procedimento cautelar comum.

Nos termos do art. 684°, n°3, e 690°,n°1, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n°2, do art. 660°, do mesmo Código.

Das conclusões, ressalta a seguinte questão:

1. Ao indeferir liminarmente a providência, o Tribunal a quo, por erro de interpretação e/ou aplicação; não deu observância aos princípios gerais cíveis e, processuais atinentes, mostrando-se violados os arts. 1279° do CC e 393°; 394° e 395° do CPC.

Apreciando, dir-se-á, sem hesitação ou dúvida, que se imporia - concedendo - ao Sr. Juiz, só após o exame das provas, apreciar da ocorrência das circunstâncias previstas no art. 393° do CPC, então podendo apreciar o procedimento cautelar comum.

E isso, desde logo, porque na providência cautelar de restituição provisória de posse a regra geral prevista no n.° 2 do art. 475.° do Cód. Proc. Civil e o princípio do contraditório que lhe está subjacente cedem perante a regra especial prevista no art. 394º do mesmo diploma (Ac. RE, de 10.12.1992: BMJ, 422.°- 453). Exactamente quando enuncia que (termos em que a restituição é ordenada) “se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”.

Circunstancialismo que é reafirmado pelo art. 1279º CC quando dispõe no art. 1279.º (esbulho violento) que “sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador”. Partindo, sempre, do pressuposto que a violência, para caracterizar o esbulho violento, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse ou sobre coisas que constituem obstáculo ao esbulho e não sobre quaisquer outras (Ac. RL, 22-6-1982: CJ, 1982, 3.º- 122). Do mesmo modo, que a restituição provisória da posse tem lugar quando: a) haja posse: b) seguida de esbulho: c) com violência. Entendendo-se que a lei consagra a teoria objectiva da posse, o juiz poderá decidir a restituição provisória desde que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção (A. Menezes Cordeiro, Direi Reais, 1979, 833).

Incontornavelmente, a redacção do art. 393.° do Cód. Proc. Civil ajusta-se à interpretação de que a violência requerida pelo preceito tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas, não havendo o legislador feito qualquer distinção e nenhuma outra regra justifica que o intérprete a faça: nem a história da norma, nem a sua redacção, nem o objectivo que ela se propõe prosseguir (Ac. RE, de 27.1.2000: BMJ, 493,°-431).

Neste condicionalismo, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse através da providência cautelar prevista no art. 393.° do CPC, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência. E o certo é que a caracterização do esbulho como violento não se limita, conforme já se referiu, ao uso da força física contra as pessoas, sendo ainda de considerar violento o esbulho quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios ou à natureza dos meios usados pelo esbulhador (Ac. RE, de 12.6.1997: BMJ, 468.°-499).

Os requisitos da restituição provisória da posse são a posse, o esbulho e a violência, cujos factos constitutivos o requerente tem de alegar e demonstrar (arts. 393.° do CPC e 342.°, n.° 1, do CC). «Violência» relevante para o preenchimento do requisito é tanto a dirigida contra as pessoas que defendem a posse como contra as coisas, sendo mister que, neste caso, a violência se repercuta nas pessoas em termos de intimidá-las ou coagi-las. Para o decretamento da providência basta que as provas indiciem sumariamente que o requerente é, muito provavelmente, o titular do direito que invoca. (Ac. RE, de 12.6.1997:Col. Jur.., 1997, 3.°- 272).

É que se a coacção e, portanto, a violência, como requisito da restituição provisória de posse tanto pode respeitar às pessoas como às coisas, neste caso, só quando exercida directamente sobre elas, tem, de algum modo, de atingir a pessoa do possuidor ou daquele que defende a posse dessas coisas, criando nele um estado psicológico de insegurança ou de receio (Ac. RE, de 7.12.1994: BMJ, 442.°-281). E é isso que, precipuamente, se impõe apreciar, não podendo ficar, não obstante um conjunto pertinente de considerações de logística legal sobre o problema jurídico subjacente, com o acervo factual condicionador de decisão invocado pelos requerentes, dependente de apreciação subjectiva, válida, por certo, do julgador, mas sem o suporte condicionador e de efectividade judiciária que só a produção de prova poderá fornecer. Daí se considerar imprescindível a sua produção, para completa adequação legal de suporte à decisão.

Nestes termos, pois que o direito à prova pode ser definido como o direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspectos, referidos por G. WALTER (Il diritto alia prova in Svizzera», in Riv. trim. di dir. e proc. civ., 1991, p. 1198): o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exactidão ou inexactidão desses factos, através de qualquer meio de prova (o que implica, segundo o autor, a proibição de um elenco taxativo de meios de prova); o direito de participação na produção das provas.

Uma consequência lógica do reconhecimento do direito à prova é, naturalmente, o direito das partes à aquisição das provas admitidas (e consequente dever do juiz de as admitir, como se pode deduzir do art. 515.° do CPC). O direito de apresentar provas seria, de facto, inútil e ilusório se a ele não se ligasse o direito à aquisição das mesmas, uma vez consideradas admissíveis e relevantes.

Nestas condições, todas as proposições contidas nos enunciados a considerar são apofânticas. Com efeito, são enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos, pois têm por objectos circunstâncias que, apesar de poderem ter implicações valorativas, «construídas» em diferentes graus sociais e culturais, podem ter-se verificado, ou não, no mundo da experiência concreta.

Este o esquisso já apresentado por MICHELE TARUFFO («Consideraciones sobre prueba e verdades», in Derechos e Libertades, Revista dei Instituto Bartolomé de las Casas, Ano VII, Jan./Dez. 2002, n.° 11, p. 99 Impondo-se levar em consideração que «mediando a relação entre a norma e o caso, numa função conectiva», opera o «elemento funcional determinante do justo», que se chama equidade. A equidade é mesmo a unidade de medida na relação entre a realidade normativa e a realidade concreta.

Estão, assim, reunidos os elementos constitutivos do fenómeno jurídico e através dos quais, diz LANGHANS, se realiza a justiça, a saber: o fenómeno normativo, o fenómeno do caso concreto (ou fenómeno social) e o fenómeno da equidade. O fenómeno jurídico é a tendência necessária para obter o grau de equilíbrio, isto é, o justo, recorrendo, para o efeito, à publicação, à força e à arbitragem.

Uma vez em movimento, sublinha-se, os dados fenomenológicos do jurídico consequenciam: a integração da norma na ordem jurídica, o que lhe confere especial eficácia no conhecimento solene e público da sua força coactiva; a existência de um facto capaz de provocar a actuação da norma; a natureza do facto determina a natureza da norma; postos assim em função um do outro, o facto e a integração da norma, produzem-se variadíssimos efeitos.

Importante é ter presente que esta disposição frente a frente da norma e do facto visa sempre atingir um objectivo ético — a realização da justiça. Realizada a justiça, realiza-se o equilíbrio necessário à harmonia universal. A essência pura do fenómeno jurídico reside neste equilíbrio: equilíbrio das condições de existência, das prerrogativas e das inibições do homem. Nesta essência pura do fenómeno jurídico estará o fundamento do direito (HERMENEGILDO BORGES, Vida, Razão e Justiça, Racionalidade Argumentativa na Motivação Judiciária, Minerva, Coimbra, 2005, pp.95-96)

Uma vez apreciada pelo julgador a fiabilidade que lhe merece a pessoa que lhe comunica os factos que são objecto da prova, ou que lhe merece o documento que contém tais factos, há-de entrar no estudo do significado do manifestado por tal meio probatório. Trata-se de determinar que é o exactamente expresso e que é o que se pretende dizer pela pessoa ou pelo documento que comunica algo ao julgador, como passo iniludivelmente prévio à valoração de tal manifestação.

Fala-se, assim, de interpretação da prova, como operação prévia à sua valoração, o que se engloba na genérica apreciação das provas.

A determinação do significado dos factos carreados (verbais ou escritos) por cada meio probatório efectua-se também através dos correspondentes raciocínios dedutivos ou silogismos, cuja premissa maior se encontra integrada pela denominada «máxima da experiência sobre o uso da linguagem», quer se trate de linguagem geral, ou de linguagens correspondentes a ambientes mais específicos.

Uma vez determinado o significado dos factos trazidos por cada um dos meios probatórios, feitos valer pelas partes, o julgador há-de proceder ao exame desses mesmos factos: a determinação do grau de veracidade dos factos afirmados por uma testemunha, ou de factos recolhidos em documento, é uma tarefa tão dificultosa como a que trata de apreciar o grau de veracidade ou de mendacidade da testemunha, ou de autenticidade do documento.

Diz L. RECASENS SICHES (Nueva Filosofia, cit., pp. 23 8:239) que é um problema grave e difícil «o de apreciar o grau de verdade das próprias declarações feitas com plena boa fé por parte de testemunhas indubitavelmente honradas». Precisando que «o grave problema é colocado pelas testemunhas honesta de boa fé, mas com excesso de imaginação — a maioria costuma fazer uso, por vezes, de abundante fantasia — ainda que, honestamente, acreditem que as suas declarações relatam o que, efectivamente, viram e ouviram. Mas que, na realidade, o que oferecem é uma reconstrução ou reconfiguração de uma parte do que viram e ouviram, de mistura com a sua própria imaginação. Ao juiz cumpre apreciar com rigor, com fundamento, com perspicácia, com sagacidade, com prudência, com claro discernimento, aquilo que no depoimento da testemunha constitui um factor probatório, rejeitando o que mais não é que uma deformação, por fantasia. Assinala, por sua vez, F. STEIN (O Conhecimento Privado do Juiz, tradução de A. de La Oliva Santos, Ed. Universidade de Navarra, Pamplona, 1973, p. 5), que a «capacidade de uma testemunha depende das suas peculiaridades individuais, do rigor dos sentidos e da inteligência, bem como de conseguir conservar inalterável na memória a impressão recebida, e ser capaz de comunicar fielmente».

É isso, exactamente, que o Senhor juiz, no tribunal a quo não pode deixar de fazer. Não é razoável, pois, tendo em conta as alegações formuladas, sem produção de prova, designadamente ouvindo as testemunhas arroladas, apreciar que:

“Já a existência de violência tem de ser melhor equacionada. A mudança do portão, pelo que resulta da p.i., não foi alvo de contestação. Contudo, foi a partir desse momento que os requerentes deixaram de ter livre acesso ao espaço, passando a estar condicionados à vontade da 1ª requerida. Portanto, foi nessa altura que houve desapossamento, esbulho. Apenas quando, posteriormente, a lª requerida fechou o portão à chave, que em si é um acto objectivamente pacífico, é que surgiu a contestação em torno da sua actuação.

Para além disso o acto de violência deve ser actual, ou seja, praticado no momento do esbulho, não se compatibilizando com a prática posterior pelo esbulhador de actos de violência sobre a pessoa ou coisas do esbulhado. Mas os requerentes alegam a colocação do portão com fechadura, sem que a tal tivesse havido oposição, e só posteriormente é que foi o mesmo fechado à chave.”

Nem tão pouco que

“Não há, relativamente ao esbulho da posse dos requerentes, propriamente uma situação de violência (refira-se que a descrita pelos requerentes no artigo 64 da p.i. não tem propriamente a ver com a violência do esbulho, mas sim com factos injuriosos dirigidos pessoalmente pela 1ª requerida ao lº requerente) nem a mesma, se existisse, seria actual”

Muito menos - nestas circunstâncias - concluir que:

“Assim, nem houve violência aquando do esbulho, nem em consequência, aquela foi actual”.

Isto porque - como mesmo se aprecia no próprio Acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Janeiro de 1984, in CJ, tomo 1, pág. 117, convocado na decisão proferida - “a verificação da violência reporta-se ao momento do desapossamento. Havendo violência sempre que os actos do esbuIhador foram de coacção da vontade do possuidor, na previsão do momento em que este manifestaria a sua vontade, independentemente de estar ou não imediatamente presente à conduta do esbulhador.

Só, pois, em concreto, ponderando os interesses da causa, a forma de conduta do esbuIhador, os fins visados por este, a sua previsão quanto à reacção do possuidor na relacionação com a sua conduta, se pode efectivamente determinar se houve ou não esbulho violento”.

É exactamente isso que, circunstancialmente, cumpre apreciar, mas só após a produção de prova, pois, para tal concluir, torna-se necessário e imprescindível possibilitar ao requerente a demonstração, que o mesmo é dizer, a prova, das alegações de facto feitas, de modo a que se possa avaliar da sua possível integração constitutiva quanto aos elementos e requisitos nas invocadas normas legais condicionadoras (arts. 1279° do CC e 393°; 394° e 395° do CPC).

Colhe, por isso, resposta afirmativa a questão formulada.

Podendo, assim, concluir-se que:

1. A redacção do art. 393.° do Cód. Proc. Civil ajusta-se à interpretação de que a violência requerida pelo preceito tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas, não havendo o legislador feito qualquer distinção e nenhuma outra regra justifica que o intérprete a faça: nem a história da norma, nem a sua redacção, nem o objectivo que ela se propõe prosseguir.

2. Se a coacção e, portanto, a violência, como requisito da restituição provisória de posse tanto pode respeitar às pessoas como às coisas, neste caso, só quando exercida directamente sobre elas, tem, de algum modo, de atingir a pessoa do possuidor ou daquele que defende a posse dessas coisas, criando nele um estado psicológico de insegurança ou de receio. E é isso que, precipuamente, se impõe apreciar, não podendo ficar dependente de apreciação subjectiva, válida, por certo, do julgador, mas sem o suporte condicionador e de efectividade judiciária que só a produção de prova poderá fornecer. Daí se considerar imprescindível a sua produção, para completa adequação legal de suporte à decisão.

3. O direito à prova pode ser definido como o direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspectos: o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exactidão ou inexactidão desses factos, através de qualquer meio de prova; o direito de participação na produção das provas.

4. Uma consequência lógica do reconhecimento do direito à prova é, naturalmente, o direito das partes à aquisição das provas admitidas e consequente dever do juiz de as admitir, como se pode deduzir do art. 515.°(provas atendíveis) do CPC. O direito de apresentar provas seria, de facto, inútil e ilusório se a ele não se ligasse o direito à aquisição das mesmas, uma vez consideradas admissíveis e relevantes.

5. É exactamente isso que cumpre apreciar, mas só após a produção de prova, pois, para tal concluir, torna-se necessário e imprescindível possibilitar ao requerente a demonstração, que o mesmo é dizer, a prova, das alegações de facto feitas, de modo a que se possa avaliar da sua possível integração constitutiva quanto aos elementos e requisitos nas invocadas normas legais condicionadoras (arts. 1279° do CC e 393°; 394° e 395° do CPC).

6. Ao juiz cumpre apreciar com rigor, com fundamento, com perspicácia, com sagacidade, com prudência, com claro discernimento, aquilo que no depoimento da testemunha constitui um factor probatório.

III. A Decisão:

Pelas razões expostas, concede-se provimento ao recurso interposto, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento dos Autos para a produção da prova requerida (documental, inspecção ao local, testemunhal), designadamente para inquirição das testemunhas arroladas, e, após, apreciação da prova plural apresentada e produzida.

Sem custas.


António Carvalho Martins (Relator)
Carlos Moreira
Moreira do Carmo