Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/19.8GAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL DIÁRIO
Data do Acordão: 11/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE, J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 40.º, N.º 2, E 71.º, N.º 1, AL. C), AMBOS DO DECRETO-LEI N.º 15/93, DE 11 DE JANEIRO; ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) N.º 8/2008, DE 25 DE JUNHO DE 2008, PUBLICADO NO DR I.ª SÉRIE, DE 5 DE AGOSTO DE 2008
Sumário: I - Perante o quadro legal introduzido pela Lei 30/2000, a questão da punição da detenção para consumo de produto estupefaciente em quantidade superior ao consumo médio por mais de 10 dias, transformou-se numa vexata questio.

II – Questão esta entretanto ultrapassada através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº 8/2008, de 25/6/2008, publicado no DR IS de 05.08.2008, que a decidiu nos seguintes termos: «Não obstante a derrogação operada pelo art. 28º da Lei n.º 30/2000, de 29/11, o art. 40º/n.º 2 D.L. n.º 15/93, de 22/1, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”

III – De acordo como art.º 71.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 11 de Janeiro, a aferição das quantidades máximas diárias normais de consumo encontra-se definida pela Portaria n.º 94/96, de 26/03.

Através do Acórdão n.º 534/98, o Tribunal Constitucional julgou já conforme à Constituição a interpretação daquela norma no sentido de que, ao remeter para tal portaria a definição dos limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente, anexas ao mesmo diploma, o faz com valor de prova pericial.

Decisão Texto Integral:










Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Nos autos, após realização da audiência pública de discussão e julgamento com exercício amplo do contraditório, foi proferida sentença, gravada, ficando registado em ata DISPOSITIVO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente, decide:

– Condenar o arguido AR pela prática de um crime de consumo de produtos estupefacientes p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de seis meses de prisão.


*

Recorre o arguido da aludida sentença, formulando na motivação apresentada as seguintes CONCLUSÕES:

(...)

11- O presente recurso versa apenas sobre matéria de direito.

12- Assim dispõe o artº 40º do Dec.Lei nº15/93, de 22/01 que «quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas I a IV é punido com a pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias», mas «se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias».

13- Por sua vez, dispõe a Lei nº30/2000, de 29/11 no seu artº 1º (objeto):

1.A presente lei tem como objeto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a proteção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.

2.As plantas, substâncias e preparações sujeitas ao regime previsto neste diploma são as constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.°15/93, de 22 de Janeiro.

E no seu artº 2º (consumo):

1.O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.

2. Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

E no seu artº 26º (do direito subsidiário):

Na falta de disposição específica da presente lei, é subsidiariamente aplicável o regime geral das contra-ordenações.

Finalmente, no seu artº28º (normas revogadas):

São revogados o artigo 40º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41° do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime.

13 - Da conjugada interpretação e aplicação de todo o transcrito normativo resulta que não só foi expressamente revogada, com a específica ressalva do “cultivo”, a norma incriminadora e punitiva do consumo, aquisição ou detenção para o consumo, independentemente da respectiva quantidade, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV do Dec. Lei nº15/93, de 22/01, como os elencados factos, ou seja, o consumo, a aquisição e detenção para consumo próprio das referidas plantas, substâncias e preparações passaram a constituir contra-ordenação punível com coima.

14 - Por todo o supra exposto deverá o Arguido ser punido com uma contra-ordenação nos termos dos artigos 15º e 16º da Lei 30/2000 de 29/11.

NESTES TERMOS, E nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta ou seja a aplicação ao arguido de uma contra-ordenação.


*

(...)

Corridos vistos, cumpre decidir.


***

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Síntese das questões a decidir

Vistas as conclusões, que delimitam o objecto do recurso, está em causa apenas matéria de direito: - qualificação jurídica da matéria provada como crime ou como mera contra-ordenação; e – subsidiariamente, (...)

Questões a apreciar em função da matéria provada, não impugnada.

2. A matéria de facto provada é a seguinte:

1 – O arguido AR, no dia 7 de janeiro de 2019, cerca das 18h25, encontrava-se na Estrada (...) , na (...) , no interior do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (...).

2 – Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido trazia, num compartimento do tablier do veículo situado junto do rádio, um produto que, depois de testado, revelou tratar-se de canabis (resina), com o peso líquido global de 8,885g, permitindo fazer 52 doses.

3 – O arguido detinha na sua posse o referido produto estupefaciente sem que para tal tivesse sido autorizado e em quantidade superior à legalmente permitida.

4 – O arguido detinha o dito produto com o intuito de o consumir.

5 – O arguido conhecia a natureza do produto que detinha e destinava ao seu consumo e sabia que não o podia ter na sua posse, como efetivamente fazia.

6 – Não obstante, o arguido não se absteve de agir da forma descrita, o que quis e conseguiu.

7 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(...)


***

3. Apreciação

3.1. Qualificação jurídica – crime ou mera contra-ordenação

A questão da qualificação jurídica foi objecto de discussão em audiência, coincidindo a qualificação operada pela sentença recorrida com aquela que vinha efectuada na acusação – cfr. fls. 63. Constituiu assim objecto de apreciação pela decisão recorrida, como tal passível de reexame em via de recurso.

Até à entrada em vigor da Lei 30/2000 de 29.11, o consumo de produtos estupefacientes encontrava-se previsto, com toda a clareza, no art. 40º, n.º 2 do DL 15/93 de 22.01.

Dispunha o mencionado art. 40º, sob a epígrafe “Consumo”:

1. Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena e multa até 30 dias.

2. Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações, cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.     

Este quadro legal foi alterado pela já referida a Lei 30/2000 de 29/11, que, tal como enuncia no seu artigo 1º, “tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes”.

Avultando, como novidade em relação ao regime até então em vigor, a intenção de descriminalizar o consumo de produtos estupefacientes, transformando-o em mera contra-ordenação. Com efeito, sob a epígrafe “Consumo”, postula a citada Lei no seu art. 2º:

1 - O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.

2 - Para efeito da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não exceder a quantidade -necessária rara o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Ainda como preceito relevante para a questão em apreço, estabelece a citada Lei 30/2000, no seu art. 28º:

São revogados o artigo 40º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 4lº do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”.

Perante o descrito quadro legal, introduzido pela Lei 30/2000, a questão da punição da detenção para consumo em quantidade superior ao consumo médio por mais de 10 dias, transformou-se numa vexata questio.

A questão foi objecto de 4 entendimentos diferentes:

- continuaria a ser punida pelo art. 40º, n.º2 do DL 15/93 que se manteria em vigor, numa interpretação restritiva do art. 28º da Lei 30/2000;

- passava a constituir crime p e p pelo art. 25º com referência ao art. 21º do DL 15/93 – apesar de se tratar de preceitos que não foram alterados pela nova lei;

- deixava de ser sancionável, uma vez que não está prevista no art. 2º, n.º2 da Lei 30/2000, embora o n.º1 continue a sancionar conduta, menos grave, da detenção de quantidade inferior ao consumo médio de 10 dias;

- passava a constituir mera contra-ordenação p e p pelo art. 2º, n.º1 da Lei 30/2000. Apesar de o n.º2 do mesmo preceito referir expressamente que “Para efeito da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não exceder a quantidade -necessária rara o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

Daí que o Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a uniformizar a jurisprudência.

Assim através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº 8/2008, de 25/6/2008, publicado no DR IS de 05.08.2008, decidiu a questão nos seguintes termos: «Não obstante a derrogação operada pelo art. 28º da Lei n.º 30/2000, de 29/11, o art. 40º/n.º 2 D.L. n.º 15/93, de 22/1, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias» (www.dgsi.pt).

Uniformizando assim a jurisprudência no sentido do 1º dos entendimentos referidos no sentido de que a detenção para consumo em quantidade superior ao consumo médio por mais de 10 dias continua a ser punida pelo art. 40º, n.º 2 do DL 15/93 que se manteria em vigor, numa interpretação restritiva do art. 28º da Lei 30/2000. Entendimento este al qual, vista a força uniformizadora do AUJ, se adere.  

A aferição das quantidades máximas diárias normais de consumo encontra-se definida pela Portaria n.º 94/96, de 26/03. Sendo que o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 534/98 julgou conforme à Constituição a aplicação da Portaria em questão “no sentido de que, ao remeter para a Portaria o faz com valor de prova pericial”. Interpretação que repousa numa mera interpretação declarativa do nº3 do art. 71º do Decreto-Lei nº 15/93 que estabelece que “o valor probatório dos limites referidos no nº1 é apreciado nos termos do artigo 163º do CPP” – cfr. neste sentido Rui Pereira, in a descriminação do consumo de droga, Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, p. 1177.

Ora, no caso, está em causa a detenção de cannabis (resina) com o peso líquido global de 8,885g, suficiente para 52 doses individuais (cfr. nº 2 da matéria provada), superior ao necessário para o consumo médio individual durante 10 dias – como consignado no auto de fls. 2, verso, em conformidade com o resultado da prova pericial, conforme relatório do exame do laboratório de polícia científica junto a fls. 61 e a fls. 110.

Pelo que, aplicando a doutrina do citado AUJ, temos como correta a qualificação operada na decisão recorrida.

(...)


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III – Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção integral da decisão recorrida. ---

Custas pelo arguido/recorrente (artigo 513º do CPP, nº1 do CPP), fixando-se a taxa de justiça, nos termos da Tabela III anexa ao RCP, em 3 (três) UC.


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 Coimbra, 6 de Novembro de 2016

Belmiro Andrade (relator)

Luís Ramos (ajunto)