Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7026/04.3TJLSB. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE
COMPRA E VENDA
CONVERSÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.3 Nº3, 664 CPC, 220, 286, 293, 875 CC
Sumário: 1- A decisão surpresa apenas emerge quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado no processo, e/ou, no mínimo  quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito.

2- Assim, não há decisão surpresa quando o tribunal, na sequência de alegação do próprio recorrente de que celebrou um contrato de compra e venda atinente a imóvel, declara a nulidade deste por falta de forma legal.

3- Face aos requisitos do artº 293º do CC – formais e substanciais: interesses das partes e sua vontade hipotética -, não pode ser convertido em contrato promessa bilateral o contrato de compra e venda nulo por falta de forma, se não se prova a existência de documento escrito assinados por ambos os promitentes e se indicia suficientemente que era exigível a estes que não desconhecessem tal nulidade.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

H (…) e outros contra Junta de Freguesia de M (...)e outros ação declarativa condenatória para prestação de facto.

Pediram:

Fossem solidariamente condenados a cumprirem com o que haviam acordado por negócio particular, construindo os aproximadamente 600 metros de cerca de malha estreita e forte, de arame, com suporte e pilares de cimento, à distancia acordada, após integração dos terrenos sobrantes nos dos autores, bem como a reconstruírem as valetas e os acessos à propriedade com passagens tubulares, e ainda pelos graves danos morais e materiais que lhes causaram com o seu condenável comportamento, a apurar em audiência de discussão e julgamento;

ou,

a condenarem-se solidariamente os réus a reporem a via no seu traçado inicial, reconstruindo os terrenos e os muros, repondo as oliveiras, com reconstrução integral das valetas, tudo conforme se encontrava antes da invasão e da sua destruição, bem como a indemnizarem os autores pelos elevados danos morais e materiais que com a sua conduta reprovável e ilegal lhes causaram, no montante que se vier a liquidar em execução de sentença.

Alegaram, nuclearmente:

Que por acordo particular não formalizado os autores encetaram negociações, que corresponsabilizam os réus, para que a Junta de Freguesia alterasse o traçado de via publica, no sentido de eliminar uma curva, o que implicava a cedência de parte de terreno de sua pertença.

Que, porém, a Junta de Freguesia, antes de terminadas as negociações e formalizado o acordo, invadiu-lhes e esventrou-lhes os prédios rústicos identificados, derrubou-lhes os muros de proteção e arrasou-lhes as valetas.

Contestaram os réus.

Para além do mais, impugnaram os factos aduzidos pelos autores dizendo que com eles acordaram a venda de 500m2 de terreno, pelo preço de mil euros e que nunca foi acordado a construção de qualquer valeta.

 E deduziram  pedido reconvencional pedindo que o tribunal declare vendida à Junta de Freguesia uma parcela de 500m2 do prédio rústico melhor identificado  bem como a condenação dos autores como litigantes de má-fé.

2.

Prosseguiram os autos os seus legais termos, tendo, a final, sido proferida sentença que:

Julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e ao abrigo dos artºs 661º, nº 1 do Código de Processo Civil e artºs 204º, nº 1, alª a), 217º e ss., 220º, 286º, 289º, nº 1, 292º (a contrario), 405º, 874º e 875º, todos do Código Civil declarou nulo o contrato de compra e venda celebrado entre autores e ré Junta de Freguesia de M (...)e em apreço nos presentes autos e, consequentemente, absolveu a ré Junta de Freguesia de M (...), dos pedidos formulados pelos autores.

Julgou o pedido reconvencional totalmente improcedente, por não provado, e ao abrigo do artº 456º (a contrario) do Código de Processo Civil e artº 220º do Código Civil, absolveu os autores/reconvindos dos pedidos reconvencionais formulados pela ré Junta de Freguesia.

3.

Inconformadas recorreram ambas as partes, sendo que os autores desistiram do recurso.

Conclusões da ré Junta de Freguesia.

1- Não se conformando com a sentença do Tribunal de 1.ª Instância na parte em que declarou a nulidade do contrato e improcedente o pedido reconvencional, interpôs a R. Junta de Freguesia, ora Recorrente, o presente recurso.

2- A presente acção foi configurada como uma acção declarativa condenatória para cumprimento de um contrato alegadamente incumprido, pelo que, logicamente, nenhuma das partes equacionou ou pediu, com o recurso às vias judiciais, a nulidade ou invalidade do contrato, antes tinham a convicção de que o contrato celebrado entre elas era válido.

3- Ora, o Tribunal a quo declarou nulo o contrato de compra e venda celebrado entre os AA. e a Recorrente, sem que estas a tivessem suscitado e sem ter dado cumprimento ao princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, do qual decorre a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

4- O princípio do contraditório está integrado no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da CRP, dominado por uma ideia de igualdade perante os tribunais, que impõe que as partes devem dispor de idênticos meios processuais para litigar e de idênticos direitos processuais.

5- Declarando a nulidade do contrato de compra e venda sem conhecimento prévio das partes, o Tribunal de 1.ª Instância omitiu um acto que influi no exame e na decisão da causa, pelo que, nos termos do disposto no artigo 201.º do CPC, deve ser anulada a sentença recorrida por constituir uma decisão-surpresa com violação do princípio do contraditório.

6- Ao decidir conforme decidiu o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC e o disposto no artigo 20.º da CRP.

7- Não indagou o Tribunal a quo pela conversão do negócio declarado nulo, instituto que ora se invoca e não antes, uma vez que foi tomada uma decisão-surpresa.

8- O contrato de compra e venda declarado nulo pelo Tribunal a quo pode, claramente, ser convertido num contrato-promessa de compra e venda, mediante a observância dos requisitos previstos no artigo 293.º do C. Civil.

9- Da matéria de facto provada resulta que: as partes celebraram um negócio bilateral; que tinham capacidade jurídica para o efeito; que queriam celebrar um contrato, conforme celebraram; que os AA. queriam transmitir – tal como estavam convictos que tinham transmitido antes da declaração oficiosa de nulidade – a propriedade de uma parte dos seus terrenos mediante um preço e a Recorrente queria comprar e pagar esse preço; que as partes reduziram a escrito as cláusulas do contrato celebrado através da troca de faxes, cartas e declaração de quitação por recebimento do preço, que assinaram (cfr. documentos 5 a 9, juntos com a petição inicial e documento junto com requerimento da Recorrente a 30-11-2009).

10- Pelo que, o negócio declarado nulo pelo Tribunal a quo contem os requisitos essenciais de forma e substância, necessários à validade do contrato-promessa de compra e venda.

11- Está demonstrado também nos presentes autos que as partes teriam querido realizar um contrato-promessa de compra e venda, caso tivessem previsto a invalidade do contrato de compra e venda por falta de escritura pública, pois, nenhuma das partes nos seus articulados peticionou a invalidade do contrato e da matéria de facto provada evidencia-se a vontade dos AA. em transmitir a propriedade de parte dos seus terrenos e a vontade da Recorrente em comprar, razão pela qual se pode concluir que se em algum momento ambas as partes tivessem previsto que o contrato de compra e venda que celebraram seria declarado nulo por falta de escritura pública, teriam, celebrado, então, um contrato-promessa de compra e venda.

12- Tendo decidido declarar a nulidade do contrato conforme decidiu, o Tribunal de 1.ª Instância interpretou erroneamente o disposto no artigo 293.º do C. Civil.

Contra-alegaram os autores, terminando com as seguintes conclusões:

A. Não se mostra violado o princípio do contraditório.

B. O Tribunal conheceu das questões que lhe foram suscitadas pelas partes, nomeadamente da nulidade do acordo.

C. Somente cabem no âmbito das decisões-surpresa aquelas que, embora, juridicamente, possíveis, não foram peticionadas, e que as partes não tinham o dever de prognosticar, antes estabelecem uma relação colateral com o pedido formulado para a concreta decisão da causa. E este não é, manifestamente, o caso em questão.

D. É intempestiva a arguição da nulidade processual decorrente da inobservância do princípio do contraditório antes da prolação da sentença, considerada como decisão-surpresa, que apenas foi deduzida, nas alegações da apelação, que tiveram lugar muito para além do prazo estipulado.

E. Para se poder verificar a conversão não basta que o negócio nulo ou anulado contenha os requisitos essenciais de substância e de forma do negócio que vai substituí-lo, sendo ainda necessário, de acordo com a parte final do art. 293º do CC, que a conversão se harmonize com a vontade hipotética ou conjectural das partes.

F. E a conversão dum negócio nulo ou anulável em negócio válido envolve matéria que não é do conhecimento oficioso do tribunal, posto ter a ver com interesses de ordem particular - que não de ordem pública.

G. Além disso, não foi sequer celebrado qualquer contrato entre os AA e  R, e daí dever manter-se a decisão proferida na acção.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª- Decisão surpresa do tribunal com violação do contraditório.

2ª- Conversão do contrato de compra e venda em contrato promessa de compra e venda.

5.

Os factos dados como provados e que importa considerar são os seguintes:

A) Os autores são proprietários e legítimos possuidores das parcelas de terreno rústico, sitas na Corcheira, em M (...), a que correspondem os artigos matriciais nºs 02, 03 e 04, da respectiva freguesia, descritos na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco a fichas nºs 0650, 0651 e 0652.

B) Tais terrenos confinam, numa extensão de quinhentos metros, com a via pública que vai de M (...)à Nossa Senhora das Neves.

C) A Junta de Freguesia de M (...)(doravante designada por Junta) propôs-se repavimentar e alterar parte do traçado da via pública que confina com esses terrenos dos autores.

D) Com esse objetivo, e para reduzir um ângulo acentuado de uma das suas curvas que bordejava os terrenos dos autores, o presidente da Junta, (…) em 18 de Fevereiro de 2004, propôs ao marido da primeira autora, H (…), que lhes adquiriria parte desse terreno para eliminar a referida curva e, naquela zona, dar lugar a novo traçado daquela via.

E) Os autores, por intermédio do seu advogado, iniciaram e desenvolveram com o (…) uma negociação particular que conduziu a um acordo não formalizado.

F) Perante a proposta referida em D), o marido da H (…) consultou os proprietários dos terrenos sobre as pretensões do presidente da Junta.

G) Tendo todos decidido enviar um fax ao presidente daquela Junta a pedir-lhe esclarecimentos sobre o alcance e condições da possível negociação, fax esse enviado a 19 de Fevereiro de 2004, àquela Junta.

H) A esse fax da Junta, o marido da H (…), em nome dos proprietários dos terrenos, por fax datado de 20 de Fevereiro de 2004, ao presidente da Junta, a proposta de aceitar o pagamento de € 1.000,00 e a construção dum novo muro de tijolo ao longo de toda a propriedade, ficando para os autores o remanescente de terreno libertos da velha estrada e competindo aos réus atualizar o cadastro dos terrenos dos autores, devendo estes fornecer os elementos e documentos necessários em ordem a poder proceder-se a tal atualização.

I) Ao fax referido na alª H) respondeu a Junta, pelo seu presidente, aceitando todos os pontos, com exceção da construção do muro ao longo dos 500 metros da propriedade que bordejava a via a restaurar.

J) Ao fax que antecede, e após telefonema do presidente da Junta, a que se seguiu consulta do marido da autora H (…) com os proprietários, aqui autores, foi enviado fax resposta àquela Junta a aceitar que, em substituição do muro de tijolo fosse construída uma vedação em arame resistente, de malha estreita, assente em pilaretes de cimento, próprios, com intervalos de aproximadamente 3 metros, ao longo de toda a propriedade, bordejando a estrada, tendo tal vedação sigo feita pela Junta.

K) O presidente da Junta mandou derrubar o muro de adobe ali existente, arrancar as oliveiras e entrar no terreno com as máquinas para proceder ao atravessamento do mesmo pelo novo traçado da via.

L) Em 16 de Março de 2004, foi enviado ao presidente da Junta um fax a informá-lo de que a 24 desse mês se iria à “Corcheira” inteirar do estado das obras tendo-se solicitado a presença do presidente da Junta para se acertarem detalhes.

M) As águas sempre circularam pela valeta que bordejava e protegia o terreno e que servia para a condução das águas pluviais, tendo havido, por via das obras realizadas pela Junta, um aumento de águas, sem expressão, por referência às que lá anteriormente circulavam.

N) A autora exigiu ao F (…) que a valeta fosse reconstruída com acessos à propriedade a construir por cima de passagem de águas pluviais tubulares.

O) A 27 de Abril de 2004, foi enviado pelos autores novo fax ao presidente da Junta a solicitar-lhe informações sobre tal obra tendo, a 7 de Maio de 2004, sido enviado pelos autores novo fax.

P) A 17 de Maio de 2004, os autores receberam da Junta um cheque de € 1.000,00 o qual se destinava ao pagamento da faixa de terreno que lhe haviam cedido tendo tal cheque sido pago aos autores, a solicitação destes.

Q) Os autores notificaram a Junta para repor toda a situação, opondo-se ao atravessamento dos seus prédios pelo novo traçado de estrada de M (...)-Nossa Senhora das Neves, até que fosse encontrada uma solução para o caso tendo tornado a notificar a Junta, no mesmo sentido, a 18 de Outubro de 2004.

R) A secretária da Junta, (…), informou que a Junta já estava a tratar do caso e que ia sobre o mesmo tomar em breve decisão, que comunicaria aos autores, por fax, com prontidão.

S) Em 09 de Novembro de 2004 os autores ainda não tinham recebido o prometido fax.

T) Em Novembro de 2004, os terrenos estavam esburacados, com as chuvas da ocasião, sendo que tal situação era a comum ainda antes da realização das obras.

U) Em toda a atuação do réu (…) ficou explícito que a entidade adquirente da parcela do prédio era a Junta.

V) O acordo acima descrito, que não foi reduzido a escritura pública, para aquisição de uma parcela com 500m2 de área do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica com os nºs 02, 03 e 04 da freguesia de M (...), descrito na Conservatória do Registo Predial com os nºs 650, 651 e 652, sitos na “Crocheira”, ocupada pela curva da estrada que liga M (...)a Nossa Senhora das Neves, quando atravessa esses prédios, com cerca de 6 metros de largura e 85 de comprimento, alcatroada, identificada no mapa de fls. 19 e na planta de fls. 25, foi celebrado entre os autores e a ré Junta de Freguesia de M (...).

X) Nunca existiu qualquer valeta a ladear o prédio dos autores junto à estrada.

Y) Não foi acordado entre os autores e a ré Junta a construção de qualquer valeta, sendo que o escoamento que lá existe sempre existiu e resulta, sazonalmente, da ação das águas pluviais.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, e, na estrita perspectiva das partes, quiçá o mais relevante.

Na verdade: «o processo civil reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars)…esta estruturação dialéctica ou polémica do processo tira partido do contraste de interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões…para o esclarecimento da verdade» - Manuel de Andrade, Noções Elementares, 1979, p.379.

A  sua consagração legal  mais evidente está plasmada no artº 3º nº3 do CPC:

 «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

Este princípio assume-se como corolário ou consequência do princípio do dispositivo, emergente, para além de outras disposições, do nº1 deste preceito, destinando-se a proteger o exercício do direito de ação e de defesa.

Na verdade: «quer o direito de ação, quer de defesa, assentam numa determinada qualificação jurídica dos factos carreados para o processo, que as partes tiveram por pertinente e adequada quando procederam à respetiva articulação. Deste modo qualquer alteração do módulo jurídico perfilhado, designadamente quando assuma um grau particularmente relevante, é suscetível de comprometer a posição das partes…e daí a proibição imposta pelo nº3» - Abílio Neto in Breves Notas ao CPC, 2005, p.10.

Não obstante importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspectivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, vg. em situações de atendível urgência ou, nos próprios dizeres da lei, de manifesta desnecessidade.  

Por outro lado certo é que: «os patronos das partes devem conhecer o direito, e, consequentemente, uma vez na posse dos factos, devem, de igual modo, prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são suscetíveis» -  Ob. Aut. e Loc. cits.

Verifica-se assim que o cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes.

Na verdade importa atentar no disposto no artº 664º do CPC, sob  a epigrafe: relação entre a actividade das partes e a do juiz:

«O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264º».

A interpretação deste preceito é doutrinal e jurisprudencialmente pacífica, no sentido propugnado na clara síntese efetivada por Abílio Neto,  ob. Cit. p.193:

«Em matéria de direito o tribunal pode e deve substituir-se à parte (artºs 664º, 713º nº2 e 726º), dando por violadas normas que na realidade tenham sido, explícita ou implicitamente invocadas, ou nem tal sequer, desde que efectivamente cogentes para resolução das questões submetidas à sua apreciação, não se encontrando, assim, adstrito à qualificação dos factos efectuada pelas partes…desde que se mantenha dentro da causa de pedir invocada pelas partes e observe o artº 3º nº 3».(realce nosso).

Nesta conformidade, e de uma razoável interpretação concatenada destes preceitos, importa concluir que a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.

A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas.

O que importa é que os termos da decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspetivado como sendo possível.

Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo e concedendo,  quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito  – cfr. Acs do STJ de 29.09.1998 e de 14.05.2002, dgsi.pt, p. 98A801 e 02A1353, respetivamente e Ac. da Relação de Lisboa de  04.11.2010, p. 260/10.9YRLSB-8.

Na verdade o artº 3º nº3 do CPC não retira ao tribunal a liberdade de dizer o direito, o que constitui uma das essentialia da função jurisdicional. E sendo verdade que os advogados das partes devem conhecer o direito, uma vez na posse dos factos, devem prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são suscetíveis, pelo que só a alteração particularmente relevante do módulo jurídico perfilhado pode ter a virtualidade de se subsumir em tal segmento normativo - Abílio Neto, ob. Cit. p.10: 

In casu, não se verificam aqueles requisitos.

É que, desde logo na pi, os autores invocaram um acordo particular não formalizado.

E que: antes de terminadas as negociações e formalizado o acordo,  a Junta  invadiu-lhes e esventrou-lhes os prédios rústicos.

E  se pela versão dos autores se inculcava já que se tratava de um negócio atinente à venda, ou, no mínimo, à cedência, a qualquer título, de direito sobre a área de certo prédio rústico, acordo esse que, assim, teria, em princípio,  de ser vertido em escritura publica, ou, pelo menos, reduzido a escrito, os próprios réus, na sua contestação, foram inequívocos ao alegarem que, efetivamente, o acordo se consubstanciou na «venda de 500m2 de terreno, pelo preço de mil euros».

Ora pugnando a própria recorrente pela efetiva e definitiva outorga de contrato de compra e venda atinente a bem imóvel, e estando a validade do mesmo dependente de escritura pública, sendo que a inexistência desta acarreta a nulidade do ato, a qual pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal  – artºs 875º, 220º e 286º do CC – é evidente, mais a mais estando assessorada juridicamente por ilustre advogado, que sobre ela impendia o dever de perspetivar ou congeminar a possibilidade de o tribunal poder despoletar o conhecimento de tal vício, como efetivamente o veio a fazer.

Não pode, destarte, concluir-se que ela foi colhida de surpresa pela posição do tribunal, quer porque, bem vistas as coisas, este fundamento decisório não se situa fora do módulo  ou do plano jurídico perfilhado pelas partes, quer porque, mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e  como supra se disse, o acervo factual fundamentador da posição do julgador foi por ela inequivocamente introduzido em juízo, sendo a decisão mero corolário, lógico e necessário, da aplicação de normas legais, algumas de cariz imperativo.

6.2.

Segunda questão.

6.2.1.

Estatui o artº 293º do CC:

O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade.

A conversão opera para satisfazer a confiança das partes na proteção jurídica, tendo em vista as finalidades práticas visadas pelos interessados, pelo que não pode converter-se um negócio inválido contra a vontade e os interesses das partes.

Destarte, versus o que acontece na nulidade, a qual é de conhecimento oficioso por encontrar os seus fundamentos em razões de interesse público, já a conversão de um negócio nulo ou anulado tem de ser requerida pelos respetivos interessados, pois que apenas contende com direitos e interesses de ordem particular, que são os daquele a quem a invalidade do negócio não interessa.

A alegação de tal factualidade tem de ocorrer na própria ação, pelo que não tendo esta sido alegada e não tendo sido requerida a conversão, opera o princípio da preclusão.

Acresce que a possibilidade de conversão fica também sempre dependente da verificação no negócio inválido dos requisitos de forma e de substância necessários para a validação do negócio sucedâneo.

Finalmente importa para que seja decretada a conversão, que o tribunal se convença, perante os factos alegados e provados, sobre a verificação ou existência  da vontade hipotética ou conjetural das partes nesse sentido.

O que só é de concluir «quando seja de admitir que as partes teriam querido o negócio sucedâneo, caso se tivessem apercebido da deficiência do negócio principal e não o pudessem realizar com observância dos requisitos infringidos.  Caso nada disto resulte da factualidade dada como provada … soçobra qualquer pretensão de ver convertido  (o) negócio…»- Ac. do STJ de 17.06.2010, p. 118/03.8TBPST.L1.S1 com sublinhado nosso.

E sendo que tal vontade deve ser aferida segundo a boa fé e os demais elementos atendíveis, por referência às circunstâncias da celebração do contrato  – Ac. do STJ de 27.01.2010, p. 4221/06.4TBALM.S1 e vasta jurisprudência nele citada.

6.2.2.

No caso vertente pretende a ré a conversão do contrato de compra e venda nulo, em contrato promessa de compra e venda.

Tal como ela expende, artigo 410.º, n.º 1, do C. Civil denomina contrato-promessa à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato.

 Sendo que o n.º 2 do mesmo preceito legal estatui:

«… a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato promessa seja unilateral ou bilateral.»

 Temos assim que, no que concerne à promessa bilateral, versus o que sucedia no domínio do Código de 1867 - na doutrina fixada pelo Assento de 15.11.1963, nos termos do qual, para a promessa recíproca de compra e venda de imobiliários, era suficiente o escrito assinado só pelo promitente vendedor com designação da pessoa a quem prometeu vender, determinação do preço e especificação da coisa -, presentemente exigem-se as assinaturas dos dois promitentes.

Ora vista a factualidade apurada da mesma não emerge que tenha sido elaborado documento escrito atinente ao negócio em causa.

Na verdade para tal não bastam os faxes trocados pelas partes os quais se limitam a consubstanciar propostas de negociações, que nem sequer se demonstram terminadas, pois que não se provou a anuência e aceitação definitiva dos elementos essenciais do negócio, já que para o fax mencionado na al.j) dos factos assentes não se provou que tivesse havido resposta da Junta a aceitar os termos propostos quanto à vedação.

 Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, muito menos se provou a existência de documento escrito assinado pelas duas partes,  o que deveria ter-se verificado para que ele pudesse ser validado como contrato promessa, pois que este, in casu, assume o jaez de recíproco ou bilateral.

Temos assim que, desde logo, falece o primeiro requisito da conversão.

Acresce que os factos apurados não permitem, de todo, ou, no mínimo, com a plausibilidade em direito exigível, concluir no sentido de que as partes, teriam querido a celebração de contrato promessa, se tivessem previsto a invalidade do contrato definitivo.

Primeiro porque conhecendo as partes tal invalidade, ou sendo-lhes exigível que conhecessem – até porque nas negociações e na formação do contrato interveio, pelo menos, um ilustre advogado - a inexistência da escritura publica foi voluntária e assumidamente querida e deveu-se, certamente ou muito provavelmente (que é o quanto basta), a comodismo e/ou facilitismo.

 Pois que, se assim não fosse, certamente que com tal conhecimento, e não tendo elas alegado a impossibilidade de cumprir os requisitos de forma do contrato definitivo de compra e venda, certamente que logo então enveredariam pela celebração do atinente contrato promessa.

Ora, como se viu, apenas perante desconhecimento da invalidade da compra e venda e face à impossibilidade de puderem realizar tal negócio com observância dos requisitos legais de forma infringidos é que a conversão é admissível.

Segundo considerando o fim por elas prosseguido. Bem vistas as coisas, e perante os factos provados, tem de concluir-se que as partes se quiseram obrigar  desde logo em termos definitivos, celebrando um contrato de compra e venda, não querendo, porque não lhes interessando, o contrato promessa, o qual, como é consabido, tem apenas como objeto imediato a celebração do contrato prometido e não a efetiva consecução das finalidades materiais deste, que se afiguram como simples objeto mediato daquela promessa.

Improcede o recurso.

7.

Sumariando:

I- A decisão surpresa apenas emerge quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado no processo, e/ou, no mínimo  quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito.

II- Assim, não há decisão surpresa quando o tribunal, na sequência de alegação do próprio recorrente de que celebrou um contrato de compra e venda atinente a imóvel, declara a nulidade deste por falta de forma legal.

III- Face aos requisitos do artº 293º do CC – formais e substanciais: interesses das partes e sua vontade hipotética -, não pode ser convertido em contrato promessa bilateral o contrato de compra e venda nulo por falta de forma, se não se prova a existência de documento escrito assinados por ambos os promitentes e se indicia suficientemente que era exigível a estes que não desconhecessem tal nulidade.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Carlos Marinho