Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
318/12.0TBCNT-V.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
GRAU DE SATISFAÇÃO DOS CRÉDITOS
Data do Acordão: 10/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 23.º, N.º 7 DO ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
Sumário: I – Para determinação da remuneração variável a que tem direito o administrador da insolvência, ao abrigo do disposto no art. 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26-2 e alterado pela Lei n.º 9/2022, de 11-1, deve atender-se ao grau de satisfação dos créditos.

II – Assim, no cálculo da majoração importa ter em conta a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
Adjuntos: Catarina Gonçalves
Maria João Areias


Processo n.º 318/12.0TBCNT.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA, administradora da insolvência de BB, requereu lhe fosse fixada a remuneração variável no montante de € 15 863,35.

Para o efeito alegou:
1. Que pagas as custas e todas as demais dívidas da massa insolvente o resultado da liquidação ascendia a € 133.062,28 [€160.895,02 - €23.901,24 - €3.931,50];
2. Que a remuneração nos termos do artigo 23.º n.º 4 alínea b) do EAJ era de € 6.653,11, a que acrescia IVA no valor de € 1.530,22 num total de € 8.183,33;
3. Que estava para distribuir pelos credores a quantia de € 124.878,95 pelo que a remuneração devia ser majorada em função desse valor de a satisfação dos credores no valor de € 6.243,95 a qua acrescia IVA à taxa legal no valor de € 1.436,10, totalizando € 7.680,05.

O Instituto de Segurança Social, credor do insolvente, alegou que a remuneração variável não fora calculada correctamente pela administradora, por o montante correcto ser o de € 8 069,10, conforma folha de cálculo que anexou.

A Meritíssima juíza do tribunal a quo fixou a remuneração variável à administradora da insolvência em € 8 824,91 (oito mil oitocentos e vinte e quatro euros e noventa e um cêntimos), a que acresceria o respectivo IVA, de € 1.895,87 (mil oitocentos e noventa e cinco euros e oitenta e sete cêntimos), num total de € 10.138,77 (dez mil cento e trinta e oito euros e setenta e sete cêntimos). 

A administradora da insolvência não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da decisão recorrida por outra que fixasse a remuneração variável no valor de € 16 005,37, já com IVA incluído.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Os cálculos apresentados pela MMa juíza a quo resultam de uma errada interpretação e aplicação do disposto no n.º 7 do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, doravante abreviadamente EAJ, aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela lei 9/2022 de 11 de Janeiro;
2. Para determinar a majoração da remuneração variável, prevista no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, teremos que deduzir ao resultado da liquidação (receita – despesas) o valor a que se chegou por aplicação do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ pois será esse o montante disponível para pagamento aos credores, e que no caso destes autos ascendeu a € 124.727,66;
3. A majoração a que a ora recorrente tem direito corresponde por isso a 5% daquele valor, isto é, a € 6.236,38 a que acrescerá IVA à taxa legal no valor de €1.434,37 num total de € 7.670,75;
4. No despacho de que ora se recorre a MMa juíza a quo chega a um valor de majoração totalmente diverso, porquanto, ao invés de fazer corresponder o valor da mencionada majoração a 5% dos créditos satisfeitos, como resulta do disposto no artigo 23.º n.º 7 do EAJ, multiplica os 5% pelo valor de €29.335,95, montante a que chegou multiplicando o valor a distribuir pelos credores por uma percentagem apurada em função da relação entre o valor a distribuir e o valor total dos créditos reclamados no processo, operação que, salvo o devido respeito, não tem qualquer apoio na letra do artigo 23.º n.º 7 do EAJ;
5. Dispões o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ que o valor alcançado por aplicação das regras referidas n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles»;
6. Entendeu a MMa juíza que o grau de satisfação corresponde à percentagem dos créditos que será possível satisfazer por confronto com o valor dos créditos totais, multiplicando tal percentagem pelo valor a distribuir pelos credores e ao resultado aplica então a percentagem de 5%. No entanto o valor que apura não corresponde a 5% dos créditos satisfeitos como impõe o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ mas a menos de ¼ desse valor;
7. A interpretação do disposto no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ não é compatível nem como o elemento literal nem com o elemento teleológico da norma;
8. Lida a norma, verificamos que a referência ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se encontra entre virgulas pelo que se trata de uma referência lateral que não entra nos elementos a ter em conta no cálculo;
9. A remuneração alcançada nos termos do n.º 5 e 6 é majorada em 5% dos créditos satisfeitos e os créditos satisfeitos são aqueles que é possível pagar com a quantia que resta após pagamento das custas, despesas aprovadas e remuneração variável apurada nos termos dos n.ºs 5 e 6, e esse valor é, no caso dos autos, €124.727,66 e não €29.335,95 como erradamente se considera no despacho de que ora se recorre;
10. Nada na lei suporta o entendimento - defendido no despacho de que se recorre - de que há que apurar a percentagem de créditos satisfeitos e aplicar a esta os 5% previstos na norma;
11. Compulsados diversos dicionários da língua portuguesa em nenhum deles encontramos o termo percentagem como sinónimo de grau, palavra que se refere, com mais propriedade, a volume e grandeza do que percentagem;
12. A alteração à forma de cálculo da remuneração variável introduzida pela Lei 9/2022 teve em vista, naturalmente, constituir um estímulo à actividade do administrador judicial, levando-o a diligenciar pela obtenção da maior receita possível, não parecendo nem justo nem conforme à teleologia da norma penalizar o AJ por algo que não está nas suas mãos, isto é, penaliza-lo pelo elevado volume dos créditos admitidos;
13. O entendimento plasmado no despacho de que ora se recorre pode conduzir, em tese, a que um AJ que obteve uma parca receita possa ver a sua remuneração majorada em maior valor do que um outro que tenha “valorizado”, pela sua acção os ativos mas tenha reconhecido um grande volume de créditos;
14. Salvo o devido respeito, parece-nos óbvio que, não estando o valor dos créditos admitidos na dependência do AJ nem dependendo da respectiva acção, não deverá tal elemento ter qualquer relevância para o cálculo da respectiva remuneração… sendo esse (total irrelevância) o único entendimento conforme à letra da lei como já deixamos dito;
15. 16. A Mma juíza a quo fez uma errada interpretação do disposto no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, considerando como valor sobre o qual deve incidir a percentagem de 5% um percentual de créditos satisfeitos e não, efectivamente, o valor dos créditos satisfeitos como impõe a norma legal;
16. A decisão de que ora se recorre viola assim o disposto no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que faça multiplicar os 5% sobre o valor líquido para distribuição pelos credores que corresponde ao valor das receitas ao qual são subtraídas todas as despesas e o valor da remuneração variável alcançado nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ, fixando a remuneração variável no valor de €16.005,37 (iva incluído).

Não houve resposta ao recurso


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Questões suscitadas pelo recurso
· Saber se a decisão recorrida violou o n.º 7 do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial;
· Em caso de resposta afirmativa, saber se a decisão recorrida é de revogar e de substituir por decisão que fixe a remuneração variável no valor de € 16 005,37, já com IVA incluído.

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Apesar de a decisão recorrida não ter discriminado os factos que serviram de base à decisão, laborou com base na seguinte realidade que não foi impugnada pela recorrente:
1. As receitas da liquidação ascenderam a € 160 895,02.
2. As despesas da massa aprovadas no apenso de prestação de contas foram de € 23 901,24.
3. As custas do processo de insolvência foram de € 3 931,50.
4. O total dos créditos reconhecidos foi de € 530 339,03.
5. O resultado da liquidação foi de € 135 522,28.

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Descritos os factos, passemos à resolução das questões acima enunciadas.

A primeira questão é a de saber se a decisão recorrida violou o n.º 7 do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, cujos termos são os seguintes: “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respectivo valor pago previamente à satisfação dos credores”.

A resposta a esta questão passa necessariamente pela interpretação do citado preceito.

Antes de nos pronunciarmos sobre tal interpretação, importa contextualizar a norma no âmbito da disciplina relativa à remuneração do administrador.

O n.º 1 do artigo 60.º do CIRE afirma que o administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.

O estatuto do administrador que releva para o caso é o aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, alterado pela Lei n.º 17/2017, de 16 de Maio, pelo Decreto-Lei n.º 52/2019, de 17 de Abril e pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.

Prevê o seguinte em matéria de remuneração do administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz:
· O administrador tem direito a uma remuneração fixa de 2 000 € pelos actos praticados [n.º 1 do artigo 23.º];
· Tem direito a uma remuneração variável correspondente a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente [alínea b) do n.º 4 do artigo 23.º];
· Tem direito a uma majoração da remuneração variável, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos [n.º 7 do artigo 23.º].

A parte da remuneração que está em questão no recurso é apenas a majoração da remuneração variável. 

O despacho recorrido entendeu que a majoração implicava a realização das seguintes operações:
· Em primeiro lugar, havia que calcular o grau de satisfação dos créditos, o que se conseguia dividindo o saldo líquido da liquidação (produto da liquidação deduzido das despesas, custas, remuneração fixa e remuneração variável apurada nos termos do n.º 4 do artigo 23.º) pelos créditos reconhecidos e aprovados;
· Em segundo lugar, o valor percentual assim obtido, que correspondia ao grau de satisfação dos créditos, aplica-se ao valor líquido da remuneração, e ao valor assim obtido aplica-se a taxa de 5%.

A recorrente contrapõe que a determinação da majoração implica:
· Em primeiro lugar a dedução ao resultado da liquidação (receita – despesas) da remuneração variável prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 23.º do estatuto, pois seria esse o montante disponível para pagamento aos credores;
· Em segundo lugar, a aplicação a tal montante a taxa de 5%.

Apreciação do tribunal:

Como se vê a diferença substancial – que motiva o recurso - entre as duas interpretações é a seguinte: enquanto a decisão recorrida entrou em linha de conta no cálculo da majoração com a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos, a recorrente desconsidera essa percentagem.

E desconsidera-a com a justificação de que a referência, no n.º 7 do artigo 23.º do estatuto, ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se encontra entre vírgulas, pelo que se trata de uma referência lateral que não entra nos elementos a ter em conta no cálculo da majoração.

Pese embora o respeito que nos merece a interpretação da recorrente, entendemos que ela não tem amparo nos critérios de interpretação da lei enunciados no artigo 9.º do Código Civil.

Vejamos.

A interpretação da lei tem como base e como limite a respectiva letra. A letra é a base à interpretação pois é por ela que deve começar a interpretação. Funciona como limite, pois segundo o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil a lei não poderá valer com um sentido que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Sobre a importância da letra na interpretação, importa dizer, socorremo-nos das seguintes palavras de Manuel de Andrade, que “… a letra da lei não servirá apenas para traçar o quadro dos sentidos legais possíveis. Compete-lhe ainda propor uma graduação entre eles. É que uns terão no texto uma expressão bastante natural, desafogada e perfeita; outros, pelo contrário, só uma expressão mais ou menos constrangida, desairosa, inapropriada. Daí uma certa razão de preferência a favor dos sentidos com melhor qualificação literal, mesmo não sendo eles, simultaneamente, os portadores das soluções mais justas” [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 26].

Guiados por estas palavras, há que reconhecer que nenhum dos sentidos em confronto é excluído pela letra do n.º 7 do artigo 23.º do estatuto. Com efeito, a letra da lei tanto relaciona a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos como a associa ao montante créditos satisfeitos. Ao dizer que “o valor alcançado … é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitido” relaciona a majoração com o grau de satisfação dos créditos reclamados. Ao afirmar que o “valor alcançado é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos” associa a majoração com o montante dos créditos satisfeitos.

Mas se nenhum dos sentidos é excluído pela letra, aquele que tem nela a melhor expressão é o que lhe foi dada pela decisão recorrida. Com efeito, enquanto este dá conteúdo útil a tudo que se afirma no preceito, o sentido que lhe é dado pela recorrente despreza um dos segmentos do preceito, concretamente aquele que afirma que o valor da remuneração variável é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.

Como já se escreveu acima, a recorrente justifica esta desconsideração, dizendo que a referência ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se encontra entre vírgulas, pelo que se trata de uma referência lateral que não entrava nos elementos a ter em conta no cálculo. De acordo com esta lógica argumentativa o n.º 7 do artigo 23.º devia ser interpretado como se os termos dele fossem os seguintes: “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos”.

Esta leitura do preceito tem contra si o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, na parte em que dispõe que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Com efeito, por força dela é de presumir que o legislador, ao estabelecer que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Ora, o pensamento que está compreendido no referido segmento é o de que a majoração depende também do grau de satisfação dos créditos. Na verdade, quando se diz que um valor é calculado em função de um certo elemento quer-se dizer que o valor depende desse elemento.

Segue-se do exposto que a letra do preceito aponta no sentido da interpretação feita pela decisão recorrida.

Depõe igualmente neste sentido os respectivos antecedentes legislativos. Vejamos.

 O artigo 23.º do estatuto do administrador da insolvência que está sob interpretação tem como antecedentes o artigo 20.º da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho (estatuto do administrador da insolvência revogado pela Lei n.º 22/2013)) e a Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro.

O artigo 20.º do anterior estatuto, à semelhança do que sucede com o actual, previa uma remuneração fixa, uma remuneração variável e uma majoração desta última, mas remetia para portaria conjunta dos Ministros da Finanças e da Justiça o montante da remuneração fixa e o cálculo da variável e da majoração.

No que dizia respeito à remuneração variável, dispunha que o administrador auferia tal remuneração em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor era o fixado na tabela constante da portaria (n.º 2 do artigo 20.º).

No que tocava à majoração da remuneração variável, dispunha que o valor alcançado por aplicação da tabela constante da portaria era majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria (n.º 4 do artigo 20.º).

Ao abrigo da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, o Governo aprovou a Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, que compreendia o montante fixo de remuneração do administrador da insolvência nomeado pelo juiz e as tabelas relativas ao montante variável de tal remuneração.

A tabela relativa à majoração da remuneração variável era composta por duas colunas, em conformidade com o que previa o n.º 4 do artigo 20.º: uma relativa à percentagem dos créditos admitidos que fora satisfeita e outra com a indicação dos factores de majoração.

A conjugação do n.º 4 do artigo 20.º com a tabela não deixava dúvidas quanto ao seguinte:
· A majoração dependia da percentagem dos créditos admitidos que fora satisfeita;
· Quanto maior fosse a percentagem maior seria o factor de majoração da remuneração variável.

Esta solução estava em linha com a razão de ser da remuneração variável, concretamente: incentivar os administradores a desenvolver esforços no sentido de alcançar o melhor resultado possível para a satisfação dos credores. Quanto maior fosse a percentagem de créditos satisfeitos maior seria a remuneração variável.

 O estatuto aprovado pela Lei n.º 32/2004 foi revogado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que aprovou novo estatuto do administrador judicial, ainda em vigor, embora com as alterações que lhe foram introduzidas pelos seguintes diplomas: Lei n.º 17/2017, de 16 de Maio, Decreto-lei n.º 52/2019, de 17 de Abril, lei n.º 79/21, de 24-11 e Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.

No novo estatuto a remuneração do administrador passou a estar prevista no artigo 23.º.

As disposições deste preceito sobre a remuneração variável e respectiva majoração (números 2 e 5) não diferiam das disposições do anterior estatuto sobre igual matéria.

Em 2019, a redacção dos números 2 e 3 do artigo 23.º foi alterada pelo Lei n.º 52/2019, de 17 de Abril. As alterações consistiram no seguinte:
1. Enquanto na redacção original se dispunha que o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz auferia uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor era o fixado nas tabelas constantes da portaria referida no número anterior, na nova redacção passava a dispor-se que o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz auferia ainda uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor era o fixado portaria referida no número anterior. Isto é, fazia-se referência “à portaria” e não “às tabelas constantes da portaria”.
2. No que diz respeito à majoração da remuneração variável, enquanto na redacção original se dispunha que “o valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.ºs 2 e 3 era majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1”, na nova redacção passou a dispor-se que “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 3 e 4 é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1”. Isto é, em vez de se falar “em valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.ºs 2 e 3” passa a falar-se “em valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 3 e 4”.

A redacção do artigo 23.º volta a ser alterada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, redacção que é a relevante para o caso.

Comparando a redacção anterior com a actual, a primeira diferença que importa assinalar entre elas é a de que esta deixou de remeter a fixação dos valores da remuneração do administrador para diploma regulamentar (portaria). A regulamentação da remuneração passou a ser feita no estatuto (artigo 23.º). Este passou a ser auto-suficiente em matéria de fixação dos valores da remuneração do administrador. A regulamentação passou a ser a seguinte:
· No que diz respeito à remuneração variável, estabeleceu-se na alínea b) do n.º 4 que tal remuneração era função do resultado da liquidação da massa insolvente e correspondia a 5% desse resultado, apurado nos termos do n.º 6 do mesmo preceito;
· Quanto à majoração da remuneração variável, estabeleceu-se no n.º 7 que ela seria majorada, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos.

Comparando as redacções dos preceitos relativos à majoração da remuneração variável, vemos que a nova redacção manteve a afirmação de que majoração é feita em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e satisfeitos. A alteração residiu apenas no semento final do preceito: onde antes se dizia, “pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1” diz-se agora “em 5% do montante dos créditos satisfeitos”. O sentido da alteração é apenas o seguinte: na versão actual, em vez de se aplicarem os factores referidos na Portaria (Anexo II), aplica-se a taxa de 5%. E, assim, qualquer que seja o grau de satisfação dos créditos aplica-se sempre a mesma taxa (5%).

A ilação a tirar desta evolução legislativa é a de que o grau (percentagem) de satisfação dos créditos reclamados e admitidos mantém-se como um dos factores determinantes da majoração da remuneração variável.

Se assim não fosse, seria de esperar que a proposta de Lei que esteve na origem da alteração do artigo 23.º do actual estatuto do administrador da insolvência fizesse menção a tal alteração, o que não sucedeu. Na verdade, a proposta de lei em questão, que foi apresentada pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata, como proposta de alteração à proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª que deu origem ao processo legislativo que culminou com a aprovação a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, é completamente omissa quanto às razões da alteração do artigo 23.º do estatuto.

Por último cabe dizer que não vale contra a decisão a alegação de que a interpretação da decisão não era compatível com o elemento teleológico. Vejamos.

Socorrendo-nos mais uma vez das palavras de Manuel Andrade, “na indagação do sentido mais justo deve tomar-se em conta a razão da lei (ratio legis – a valoração dos interesses que lhe está subjacente a finalidade que a inspirou …” (obra supracitada página 27).

Sabe-se qual é o objectivo da remuneração variável. Eles foram expostos na exposição de motivos da proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 32/2004 [Proposta de lei n.º 112/IX/2] nos seguintes termos: “No que respeita à remuneração, estabeleceu-se um regime misto constituído por uma parte fixa e outra variável. Assim, a par de um montante fixo suportado pela massa insolvente, cria-se um sistema de prémios cujo montante varia em função da efectiva satisfação dos créditos. Este sistema garante, quer uma maior certeza no que respeita ao montante da remuneração, em virtude da existência de critérios objectivos, quer um incentivo que premeia o bom exercício da actividade”.

A interpretação da decisão recorrida, ao relacionar a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos, está em inteira conformidade com o propósito de a remuneração variar “em função da efectiva satisfação dos créditos”.

Diga-se, por fim, que na interpretação afirmada nesta decisão foram tidos em consideração os seguintes acórdãos proferidos nesta 1.ª secção cível sobre casos análogos: o proferido, em 28 de Setembro de 2022, na apelação n.º 2495/20.78ACB [cuja relatora foi a ora 1.ª juíza-adjunta e cuja primeira juíza-adjunta foi a ora 2.ª juíza-adjunta] e o proferido, em 11 de Outubro de 2022, na apelação n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1 [no qual o ora relator interveio como 1.º juiz-adjunto e a ora 1.ª juíza-adjunta interveio como 2.ª juíza-adjunta].   

Por todo o exposto, improcede a alegação de que a decisão violou o n.º 7 do artigo 23.º do estatuto do administrador judicial.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Coimbra, 25 de Outubro de 2022