Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/10.4JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: BURLA INFORMÁTICA
OBTENÇÃO DE PROVA
TELECOMUNICAÇÕES
DEVER DE SIGILO
VIOLAÇÃO
Data do Acordão: 04/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: INDEFERIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 187º, 189º CPP; ARTº 17º DA LEI N.º 67/98, DE 26 DE OUTUBRO, ARTºS 2º E 9º DA LEI N.º 32/2008, DE 17 DE JULHO, ARTº 27º DA LEI N.º 5/2004, DE 10 DE FEVEREIRO, ARTºS 2º, 4º E 6º DA LEI N.º 41/2004, DE 18 DE AGOSTO, LEI N.º 67/98, DE 26 DE OUTUBRO, ARTIGOS 11.º, N.º1 , AL.B) E 14.º, DA LEI N.º 109/2009, DE 15 DE SETEMBRO
Sumário: 1. Os artigos 187.º e 189.º, do Código de Processo Penal, bem como o art.2.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 32/2008 (definindo os crimes que integram o conceito de “crime grave”), são normas excepcionais, dado o seu carácter taxativo.

2. Considerando a danosidade social que implica o acesso a dados de conteúdo e de tráfego das telecomunicações, o legislador foi muito rigoroso no estabelecimento de um catálogo de crimes em relação aos quais é admissível a obtenção de prova através de telecomunicações.

3. Se o crime que se investiga não faz parte desse catálogo, e não é punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos ( art.187.º, n.º1, al. a) do C.P.P.), a solução é indeferir o meio de obtenção de prova.

Decisão Texto Integral: …/…
O art. 182.º do Código de Processo Penal estabelece que as pessoas indicadas nos art.s 135.º a 137.º - ministros de religião ou confissão religiosa, advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito, e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo, como funcionários ou testemunhas de factos que constituem segredo de Estado - apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado.
Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos art.s 135.º, n.º2 e 3 e 136.º, n.º2 , do mesmo diploma.
Estando a recusa de fornecimento de elementos a coberto do sigilo profissional, poderá o Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no art.135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal ordenar que a pessoa, com quebra do mesmo sigilo, preste as informações pretendidas pela autoridade judiciária “ sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao principio da prevalência do interesse preponderante”.
Não havendo uma referência directa nestes preceitos ao segredo profissional no âmbito das telecomunicações ou de tratamento de danos electrónicos, importa procurar a respectiva legislação.
A Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro (Lei das Comunicações Electrónicas), estatui, no seu art.27.º, n.º1, que, sem prejuízo de outras condições previstas na lei geral, as empresas que oferecem redes e serviços de comunicações electrónicas podem estar sujeitas, na sua actividade, à seguinte condição:
« g) Protecção dos dados pessoais e da privacidade no domínio específico das comunicações electrónicas, em conformidade com a legislação aplicável à protecção de dados pessoais e da privacidade» ( al.g).
A Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro , diploma de protecção de dados pessoais, que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 95/46/Código da Estrada, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre circulação desses dados, estatui no seu art.17.º, n.º1, que « Os responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções.».
O n.º 3 deste art.17.º, esclarece que, o disposto no n.º 1, não exclui o dever de fornecimento das informações obrigatórias, nos termos legais.
Ainda no campo das preocupações com o tratamento de dados pessoais gerados pelas telecomunicações, a Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto - que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas -, estabeleceu, no seu art.4.º. n.º1, que « As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público.».
Os dados de tráfego, são «… quaisquer dados tratados para efeitos de envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações electrónicas ou para efeitos da facturação da mesma» ( art.2.º, n.º1, alínea d) da Lei n.º 41/2004). Trata-se, pois, dos elementos inerentes à própria comunicação, que possibilitam, designadamente, a localização do utilizador, a localização do destinatário, a duração de utilização, a data e hora e a frequência das ligações.
O art.1.º, n.º 4, da Lei n.º 41/2004, esclarece que, este diploma, não prejudica a possibilidade de existência de legislação especial que restrinja a sua aplicação no que respeita à inviolabilidade das comunicações, nomeadamente para efeito de investigação e repressão de infracções penais.
Ainda, neste sentido, e tendo em vista os dados de tráfego, o art.6.º, n.º1 da Lei n.º41/2004, estabelece que disposto nesse preceito não prejudica o direito de os tribunais obterem informações sobre estes dados « nos termos da legislação aplicável.».
A Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho – que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março , relativa á conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações –, atribui ao juiz de instrução , no seu art.9.º, a competência para autorizar a transmissão de dados, incluindo de tráfego, «…se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves”.
“Crimes graves” são, para efeitos da Lei n.º 32/2008, os «… crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.».
Do conjunto de elementos legislativos mencionado pode afirmar-se, em termos sintéticos, que o sigilo das telecomunicações pode envolver uma acepção de segredo profissional, incidindo sobre os trabalhadores que no exercício das suas funções vêm a ter conhecimentos de informações relativas aos utilizadores e uma acepção de confidencialidade por inviolabilidade das comunicações, designadamente dos respectivos dados de tráfego, salvaguardada “nos termos da legislação aplicável.”.
Nesta dimensão, o art.34.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, que sob a epigrafe de inviolabilidade do domicílio e da correspondência, estabece que « é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.».
Em matéria de restrições à inviolabilidade das telecomunicações previstas no processo criminal, o art.189.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, estatui o seguinte:
«1. O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.
2. A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º4 do mesmo artigo
O registo da realização de “comunicações”, a que se alude neste art.189.º do Código de Processo Penal, e que fica submetido às regras de admissibilidade das escutas telefónicas, previstas nos artigos 187.º e 188.º do mesmo Código, é o registo que respeita aos dados de tráfego das comunicações electrónicas, isto é, às ligações do computador a um fornecedor de serviço de acesso à internet. - neste sentido, também o Prof. Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, pág. 518.

Equiparam-se, assim, no art.189.º do C.P.P., para efeitos de obtenção e junção aos autos, os dados de tráfego aos dados de conteúdo, que constituem o núcleo mais fundamental das telecomunicações.
Por força do disposto no art.269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a « intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 189.º.».
O disposto nos artigos 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, está em consonância com o art.9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, sobre a entidade competente e os termos em que se podem obter dos operadores de telecomunicações informações sobre dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas.
Também o art.18.º, n.º 4 da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, que aprovou a Lei do Cibercrime, estabelece que « Em tudo o que não for contrariado pelo presente artigo, à intercepção e registo de transmissões de dados informáticos é aplicável o regime da intercepção e gravação de conversas ou comunicações telefónicas constantes dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal.».
Já antes das alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e da publicação das Leis n.º 32/2008 e 109/2009, se defendeu no Parecer da PGR n.º 212000, que na fase de inquérito, os elementos de informação sujeitos ao sigilo das telecomunicações “… quando atinentes a dados de tráfego ou a dados de conteúdo, apenas poderão ser fornecidos às autoridades judiciárias, pelos operadores de telecomunicações, nos termos e modos em que a lei de processo penal permite a intercepção das comunicações, dependendo de ordem ou autorização do juiz de instrução ( artigos 187.º, 190.º e 269.º, n.º1, al. c), do Código de Processo Penal) www.dgsi.pt/pgrp .
No caso em apreciação, encontra-se em investigação a prática de um eventual crime de burla informática, p. e p. pelo art.221.º, n.º1 do Código Penal, punível com pena de prisão até 3 anos.
Os elementos solicitados pelo Ministério Público à C..., SA ( T..., SA) integram o conceito de dados de tráfego, pois permitem identificar o utilizador, bem como a localização e duração da comunicação.
Deste modo, o caminho a seguir para obtenção e recolha dos elementos de prova pretendidos pela investigação é o do regime restritivo subjacente às escutas telefónicas, que resulta da “extensão” a que alude o art. 189.º do C.P.P. e não o da quebra do sigilo profissional dos funcionários da C..., SA ( T..., SA) a que aludem os artigos 135.º e 182.º do mesmo Código.
Resulta evidente do despacho do Ex.mo Juiz de Instrução criminal, que só após verificar que o crime de burla informática, p. e p. pelo art.221.º, n.º1 do Código Penal, não faz parte do elenco do art.187.º do C.P.P., aplicável por força do art.189.º, do mesmo Código, nem constitui “crime grave” para efeitos da Lei n.º 32/2008, e concluir que não existe norma que permita ao juiz de instrução obter as informações que pretende da operadora de telecomunicações, é que decidiu ordenar o processamento destes autos de quebra de sigilo, ao abrigo dos artigos 135.º, n.º2 e 182.º, n.º1 e 2 do C.P.P., “ por analogia com a questão em causa nos autos”.
Os artigos 187.º e 189.º, do Código de Processo Penal, bem como o art.2.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 32/2008 (definindo os crimes que integram o conceito de “crime grave”), são normas excepcionais, dado o seu carácter taxativo.
Considerando a danosidade social que implica o acesso a dados de conteúdo e de tráfego das telecomunicações, o legislador foi muito rigoroso no estabelecimento de um catálogo de crimes em relação aos quais é admissível a obtenção de prova através de telecomunicações.
Se o crime que se investiga não faz parte desse catálogo, e não é punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos ( art.187.º, n.º1, al. a) do C.P.P.), a solução é indeferir o meio de obtenção de prova.
A obtenção das informações pedidas à C..., SA ( T..., SA) através da alegada aplicação analógica do disposto nos artigos 135.º, n.º2 e 182.º, n.º1 e 2 do C.P.P., cremos que defraudaria a lei e violaria o princípio da legalidade.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos indefere-se a quebra do sigilo profissional da C..., SA ( T..., SA), solicitada ao abrigo do disposto nos artigos 135.º, n.ºs 2 e 3 e 182.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P..
Sem tributação.
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Orlando Gonçalves (Relator)
Alice Santos