Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
888/20.9T8ACB-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CASAMENTO
PATRIMÓNIO COMUM
DIVÓRCIO
MEAÇÃO
SEPARAÇÃO NOS BENS COMUNS
PARTILHA
DÍVIDAS DA RESPONSABILIDADE DE AMBOS OS CÔNJUGES
PENHORA
Data do Acordão: 06/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1691.º, N.º 1, ALÍNEA A), 1695.º, N.º 1, 1730.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 740.º, N.º 1, DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
ARTIGO 141.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: I) Apesar da dissolução do casamento por divórcio o património comum subsiste até à partilha, não passando os bens comuns a pertencer aos cônjuges em compropriedade.

II) Dissolvido o casamento, o direito reconhecido ao titular do património comum a dele retirar a sua meação não é um direito a metade de cada um dos bens que integram o património comum do casal ou, sequer, a dele retirar, sem mais, bens que preencham metade do respectivo valor

III) O direito à meação referido em II) tem de ser concretizado mediante a liquidação e partilha do património comum.

IV) O direito do cônjuge ou ex-cônjuge a separar a sua “meação nos bens comuns”, por via do procedimento previsto no artigo 141.º, n.º 1, alínea b) do CIRE, consiste no direito atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge de fazer separar a sua meação do património comum, com a consequente suspensão da liquidação relativamente aos bens comuns apreendidos, separação essa que será exercitada posteriormente mediante o procedimento de inventário previsto no n.º 1 do artigo 1135.º do CPC.

V) Não é possível a penhora ou apreensão da meação de cada um dos concretos bens que fazem parte do património comum.

VI) Tratando-se de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, o credor pode accionar qualquer um deles pela sua totalidade, respondendo pela mesma, em primeiro lugar, os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência destes, solidariamente, os bens próprios de qualquer um deles.

VII) O credor de uma dívida da responsabilidade comum dos ex-cônjuges, com garantia real sobre um bem comum apreendido para a massa insolvente, pode reclamá-la na sua totalidade, ainda que a insolvência respeite unicamente a um deles.

Decisão Texto Integral:





                                                                                                

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

No presente processo especial de insolvência relativo a M…, declarada a sua insolvência e apreendido um imóvel para a massa, e após notificação do administrador da insolvência para, querendo, deduzir reclamação visando a separação de bens nos termos do artigo 141º, nº1, al. b) do CIRE,

veio o seu ex-cônjuge, B…, alegando ser comproprietária do prédio urbano apreendido na sua totalidade para a massa, requerer:

i) a separação da parte (meação) da Requerente sobre tal prédio,

ii) comprometendo-se a continuar a pagar a parte da sua respetiva meação sobre o prédio em causa.

O Insolvente, alegando ser, juntamente com o seu ex-cônjuge, comproprietário do prédio apreendido e que, pelo facto de ter sido apreendido na sua totalidade, a Caixa …. veio reclamar a quantia total do empréstimo da aquisição da habitação, no valor de 115.770,36 € – crédito garantido por hipoteca constante da lista de créditos reconhecidos –, veio pronunciar-se favoravelmente à requerida separação de meações.

Pelo juiz a quo foi proferido Despacho a incidir sobre tal requerimento, de que agora se recorre:

“R. de 2-10-2020.

Face ao alegado e ao documentado, determino a separação da meação de B… no que respeita ao imóvel apreendido nos autos de insolvência (auto de apreensão datado de 4-7-2020 – apenso B: prédio urbano descrito na CRP de Peniche sob o n.º 762/Ferrel), com e para todos os efeitos e atendendo ao disposto no artigo 1730.º, n.º 1, do Código Civil – ao abrigo do previsto no artigo 141.º, n.º 2 do CIRE.

Notifique.


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Inconformado com tal decisão, o Credor Caixa …., dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
(…)
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de revogar a decisão que deferiu o pedido formulado pelo ex-cônjuge de separação da sua parte (meação) no prédio urbano apreendido para a massa.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Na decisão da questão aqui em apreço, teremos em consideração o seguinte circunstancialismo de facto:
1. Por auto de Apreensão de Bens de 04 de Julho de 2020 (Apreensão de Bens), foi apreendido pelo Sr. Administrador de Insolvência o prédio urbano, sito em Quinta …., descrito na Conservatória do Registo Predial de …. com o n.º 199 e inscrito na respetiva matriz predial sob o Artigo 275, com o valor patrimonial de €41.020,00.
2.  Tal prédio foi adquirido pelo insolvente no estado de casado com a Requerente no regime de comunhão de adquiridos, tendo sido adquirido mediante empréstimo para aquisição de casa própria contraído por ambos os cônjuges.
3. Encontrando-se o casal divorciado, a presente insolvência foi requerida e declarada e unicamente quanto ao ex-cônjuge marido.
4. O credor Apelante reclamou nos autos o valor total em dívida relativamente a tal empréstimo que se encontra garantido por hipoteca sobre o imóvel apreendido para a massa.   
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De tal factualidade resulta, desde logo, que, ao contrário do alegado pela Requerente e pelo insolvente, o imóvel apreendido para a massa não lhes pertence em compropriedade: tendo sido adquirido na constância do matrimónio de ambos, casados no regime de comunhão de adquiridos, fará parte integrante do património comum do casal, de que ambos são titulares.
E, a tal não obsta o facto de, entretanto, ter ocorrido a dissolução de tal casamento por divórcio, uma vez que, embora o regime de comunhão de bens termine com a dissolução, o património comum subsistirá até à respetiva partilha[1].
Não queremos com isto afirmar que o seu regime se mantenha inalterado. Com a dissolução do casamento, adquirem os ex-cônjuges o direito irrenunciável à partilha e a poder dispor da sua meação, que pode agora ser alienada ou objeto de penhora.
“Mas não quer dizer que os bens comuns deixem de ser um património comum e passem a pertencer aos cônjuges em compropriedade. Não podem, de facto, os cônjuges dispor de metade de cada um dos bens em concreto, pois antes da partilha não se sabe com que bens será preenchida a meação de cada um dos cônjuges[2]”.
Como afirma Esperança Pereira Mealha[3], tal como a herança, compõe-se a indivisão da pós-comunhão de situações jurídicas ativas e passivas, tendo um certo grau de autonomia patrimonial, na medida em que corresponde prioritariamente por um certo tipo de dívidas: o direito dos ex-cônjuges altera-se – passa a estar individualizado e quantificado, cada qual dispõe da sua meação, mas continua a incidir sobre um todo (com ativo e passivo) e não sobre bens concretos (diferenciando-se da compropriedade).
E é à liquidação[4] desta situação de ativo e passivo comum que se destina o direito reconhecido ao titular de um património comum a dela retirar a sua meação a que se reporta a al. b), do nº1 do artigo 141º do CIRE  (não significando ter o direito a metade do valor dos bens, mas, tão só, ao resultado da liquidação do património comum, ou seja, a metade do valor que sobrar após dedução do passivo comum).
Ou seja, dissolvido o casamento, o direito de cada um dos cônjuges à sua meação não é um mero direito a metade de cada um dos bens que integram o património comum do casal ou sequer a, dele retirar, sem mais, bens que preencham metade do respetivo valor, tendo o mesmo de ser concretizado mediante a liquidação e partilha do património comum.
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No caso em apreço, apreendido para a massa um imóvel que faz parte do património comum do ex-casal, citado o ex-cônjuge para requerer a separação ao abrigo do disposto no artigo 141º do CIRE, e vindo este requerer “a separação da parte (meação) da Requerente sobre tal prédio”, foi proferido Despacho a “determinar a separação da meação de  B… no que respeita ao imóvel apreendido nos autos de insolvência (…), com e para todos os efeitos e atendendo ao disposto no art. 1730, nº1 do CC – ao abrigo do disposto no art. 141º, nº2 do CIRE”.
Insurge-se o credor hipotecário/Apelante contra o decidido, sustentando que deve ser mantida a apreensão, na sua totalidade, do id. prédio, com os seguintes fundamentos:
-  embora após a dissolução do casamento, deva ser apreendida, tão só, a meação no património comum, quando há concretos bens do património comum dados por ambos os ex-cônjuges para garantir dividas da responsabilidade dos dois, devem ser esses os bens apreendidos na insolvência de apenas um deles;
- efetuada a apreensão de um bem em concreto que garanta dívida comum, tem o ex-cônjuge que ser citado para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida, assim como a hipoteca, nos termos do art. 741º CC, e não, ser citado para requerer a separação de bens.
Por sua vez, a Apelada/ex-cônjuge, sustenta a manutenção da decisão, alegando que, após a dissolução do casamento por divórcio, nos encontraríamos perante uma situação de compropriedade, ficando cada um deles responsável unicamente por 50% do valor da dívida, pelo que só deveria ter sido apreendida a metade do prédio que pertence ao insolvente.
A decisão recorrida ao determinar a “separação da meação” do ex-cônjuge “sobre o imóvel apreendido”, aponta no sentido de que, deferindo o tribunal a pretensão do ex-cônjuge, apenas permanecerá apreendida para massa a “meação” do ex-cônjuge no imóvel apreendido – é o sentido literal e foi, também esse, o sentido que foi entendido pelas partes.
As dúvidas quanto ao real sentido da decisão poderão resultar de, por um lado, se invocar o disposto no artigo 1730º do CC (que se refere à participação de metade no património comum), e, por outro, se remeter para o disposto no artigo 141º, nº1, al. b), do CIRE, que prevê a reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e “a sua meação nos bens comuns”, situação em que, o se encontrará em causa é a extinção e liquidação do património comum nos termos em que similarmente se encontra prevista no artigo 740º nº1 do CPC: “1. Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do cônjuge, é o cônjuge citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendencia de ação em que a separação tenha sido requerida, sob pena de a ação prosseguir nos bens comuns.”
O direito do cônjuge ou ex-cônjuge a separar a sua “meação nos bens comuns”, pela via do procedimento previsto no artigo 141º, nº1, al. b) do CIRE, significa o reconhecimento do direito atribuído, ao cônjuge ou ex-cônjuge, de fazer separar a sua meação do património comum, com a consequente suspensão da liquidação relativamente a tais bens, separação esta que será exercitada posteriormente mediante o procedimento de inventário previsto no nº1 do artigo 1135º do CPC.
Não é este, contudo, o direito que o cônjuge veio exercitar com o requerimento em apreço, solicitando, antes, “a separação da parte (meação)” que detém sobre o imóvel apreendido para a massa.
Vejamos, então, se deve ser mantida a apreensão do imóvel comum efetuada mos autos ou se é sustentável a decisão de reduzir ou restringir a apreensão à “meação” do insolvente em tal bem.
Na ação executiva, com a reforma introduzida pelo Dec. Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, e apesar de o artigo 1696º, nº1, do CC, se continuar a referir à responsabilidade da “meação nos bens comuns”, deixou de se referir à penhora do “direito à meação nos bens comuns”, passando a prever-se a penhora dos próprios “bens comuns”, seguida da citação do cônjuge para, querendo, requerer a separação de meações (artigo 825º do CPC, atual artigo 741º)[5].
Sendo esta penhora dos bens individuais que fazem parte do património comum do casal, seguida a citação do cônjuge para requerer a separação de bens de casal, a solução prevista no Código de Processo Civil –, quer para o caso de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, quer para as dívidas da exclusiva responsabilidade de um deles (no primeiro caso, a título principal e, no segundo caso, a título subsidiário) –[6], por maioria de razão se imporá a sua adoção no processo de insolvência.

De qualquer modo, dissolvida a sociedade conjugal por divórcio, e passando os ex-cônjuges a poder dispor da quota ideal de participação no património comum, vêm alguns tribunais[7] entendendo, que sobre a meação em tal património comum poderá incidir qualquer diligencia de cariz executivo por parte do tribunal – penhora, arresto ou apreensão em processo de insolvência.

Contudo, mais uma vez, se chama atenção de que, o que o ex-cônjuge requereu e lhe foi deferido, não é o direito à sua meação nos bens comuns, mas o direito à meação no concreto imóvel apreendido para a massa (sendo indiferente que se trate do único bem apreendido, pois a meação do cônjuge no património comum não corresponderá a metade daquele imóvel, mas, ao resultado da partilha, ao saldo da liquidação do património comum, do qual faz parte o ativo e o passivo comum, ou seja, concretizando-se, tão só, a metade do que restar do património comum após pagamento do passivo comum).

Ora, a penhora ou apreensão da meação de cada um dos concretos bens que fazem parte do património comum nunca se encontrou prevista na nossa lei processual ou substantiva[8]. O que o anterior 825º (na redação anterior ao DL nº 329º-A/95, de 12 de dezembro) permitia era, tão só, a penhora do direito à meação nos bens comuns, e não a penhora da meação num concreto bem do casal.

Os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois titulares de “um único direito sobre ela[9].

O direito a metade no património comum, que o artigo 1730º, nº1, CC atribui a cada cônjuge aquando da dissolução daquele, não confere a cada cônjuge o direito a metade de cada bem concreto do património comum, mas, tão só, o direito ao valor de metade desse património[10].

Não possuindo cada um dos cônjuges uma quota-parte sobre cada um dos bens que fazem parte do património comum, sendo titulares de um único direito, que não suporta divisão, nem mesmo ideal, não será admissível a penhora ou a apreensão do “direito à meação” em cada um desses bens, por tal direito não existir, enquanto tal, no património de cada um dos cônjuges.

Teríamos, assim, por correta, a apreensão efetuada nos autos da totalidade do imóvel para a massa, com a consequente revogação da decisão que determinou a separação da meação no imóvel apreendido.


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Quanto ao argumento, invocado pela Apelada/ex-cônjuge nas suas alegações de recurso a favor da manutenção da decisão recorrida, de que a credora reclamante só poderia reclamar metade da dívida, razão pela qual também só deveria ter sido apreendido metade do imóvel, não tem qualquer apoio no regime de dívidas dos cônjuges nos regimes de comunhão.
Tratando-se de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, o credor pode acionar qualquer um deles pela sua totalidade: existindo aqui uma responsabilidade pessoal de cada um dos cônjuges, com dois devedores únicos[11], pela mesma respondem, em primeiro lugar, os bens comuns do casal e na falta destes, solidariamente, os bens próprios de qualquer um deles (artigo 1695º, nº1, CC), falando-se aqui de solidariedade patrimonial[12].
O nº1 do artigo 46º do CIRE – segundo o qual a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo[13] –, terá de ser interpretado no sentido de que a esta massa pertencerão aqueles bens que, por determinação substantiva, possam ser chamados a responder pelas suas dívidas (artigo 601º do CC)[14].
Sendo o insolvente casado num dos regimes de comunhão, ou, sendo divorciado, não tenha havido lugar à partilha, a par dos seus bens próprios existe uma massa de bens comuns afeta ao cumprimento de determinadas obrigações.
E se, no processo foi declarada unicamente a declaração de um dos cônjuges, tratando-se de um processo concursal, a declaração de insolvência chamará ao processo todos os seus credores – não só detentores de garantia real, mas também os credores comuns, e não só por créditos da exclusiva responsabilidade do insolvente, mas igualmente por créditos de responsabilidade comum do casal.
A massa ativa deverá, assim, incluir os bens comuns, uma vez que estes responderão sempre pelos créditos reclamados: na sua totalidade tratando-se de dívidas comuns, ou até ao valor da sua meação, no caso de dívidas da responsabilidade pessoal do insolvente[15].
A insolvência de um dos cônjuges casado num dos regimes de comunhão (ou, sendo divorciado, não tenha sido ainda efetuada a partilha dos bens comuns do casal[16]) envolverá, assim, a apreensão de todos os bens do insolvente, neles se incluindo não só os bens próprios do cônjuge/insolvente, mas também os próprios bens comuns do casal[17].
Quanto ao passivo, serão reclamáveis, não só, todos os créditos da responsabilidade do insolvente como, ainda, os créditos garantidos por bens integrantes da massa insolvente, nos termos do artigo 47º do CIRE[18].
Ou seja, dúvidas não restarão de que o crédito da Caixa …, sempre seria reclamável na sua totalidade, quer por se tratar de crédito da responsabilidade do insolvente, quer por se tratar de crédito garantido por bem integrante da massa.
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Quanto à questão colocada pelo Apelante, de que, efetuada a apreensão do bem em concreto que garante a dívida comum, o cônjuge tem de ser citado, não para requerer a separação de meações, mas para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida nos termos do artigo 741º do CPC, não faz qualquer sentido.
Tendo o empréstimo em questão, garantido por hipoteca sobre bem comum do então casal, sido contraído por ambos os cônjuges, a dívida é comum (artigo 1961º, nº1, al. a), CC), possuindo, além do mais, o credor reclamante de título executivo contra ambos.
 A citação do cônjuge para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida justifica-se na ação executiva pelo facto de o exequente se encontrar munido de título executivo subscrito somente pelo executado e não, quando, como, no caso em apreço, a responsabilidade de ambos se encontra já definida, dispondo o reclamante de título executivo contra ambos.
A questão que aqui se coloca relativamente ao prosseguimento, ou não, da insolvência contra um bem comum, tem antes que ver com a circunstância de, respeitando o presente processo de insolvência unicamente contra um dos membros do ex-casal e, apesar de divorciados, não tendo ainda procedido à partilha do património comum, o imóvel apreendido fazer parte de um património autónomo do qual o insolvente não é o único titular.

Assim sendo, fará todo o sentido a citação do cônjuge para separação de bens, desde logo, naquelas situações em que se encontrem reclamados créditos da exclusiva responsabilidade do insolvente, sendo que, se o cônjuge não exercer tal direito, corre o risco de o bem comum vir a responder por dívidas próprias do insolvente.

Concluindo, a apreensão do concreto bem imóvel, bem comum do casal, não só se mostra conforme o direito vigente, como não é reconhecido o direito ao ex-cônjuge a dele fazer separar a sua “meação”, isto sem prejuízo ao seu eventual direito a requerer a separação de meações ao abrigo do artigo 141º, nº2 do CIRE (pedido que não foi por si formulado objeto de apreciação por parte do tribunal).

A apelação é de proceder sem outras considerações, com a consequente revogação do despacho recorrido.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida com o consequente indeferimento do requerido pelo ex-cônjuge.

Custas a suportar pela Apelada         

                                                                  Coimbra, 29 de junho de 2021

(…)


[1] Rita Lobo Xavier, “O Divórcio, O Regime de Bens e a Partilha do Património Conjugal”, p. 41, disponível in III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, diálogo teórico –prático”, https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Rita-Lobo-Xavier.pdf , e, em igual sentido, Cristina M. Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges”, Coimbra Editora, p. 919.
[2] Cristina Araújo Dias, obra citada, p. 922-923.
[3] “Acordos Conjugais Para Partilha de Bens Comuns”, Almedina 2005, pp.77 e 78.
[4] Como salienta Adriano Miguel Ramos de Paiva, a partilha dos bens do casal em sentido lato, a que se reporta o artigo 1689º CC, compreende três operações diferenciadas: i) em primeiro lugar, tem lugar a separação e entrega dos bens próprios, de modo a excluí-los das operações subsequentes, respeitantes apenas ao ativo e passivo comuns; ii) numa segunda operação, cujo objetivo é o de alcançar o valor líquido do ativo comum, procede-se ao relacionamento dos elementos pertencentes ao património comum, ao cálculo das compensações, ao pagamento das dívidas a terceiros e à satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro; iii) feita a liquidação do crédito comum tem lugar, finalmente, a partilha da massa comum propriamente dita, na qual cada um dos titulares receberá a sua meação – “A Comunhão de Adquiridos, Das Insuficiências do Regime no Quadro da Regulação das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges”, FDUC – Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, pp. 301-302.
[5]Atualmente, todas as dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges podem levar à penhora (subsidiária) dos bens comuns, sem esperar pela dissolução, anulação ou declaração de nulidade do casamento ou pela separação judicial de pessoas e bem ou só de bens. Já em caso de penhora da “meação nos bens comuns” a execução sempre teria de ficar suspensa até que se dissolvesse o matrimónio ou fosse decretada judicialmente a separação de bens comuns.
[6] Assim sendo, e como é referido por Remédio Marques, o disposto no artigo 826º nº1 do CPC (artigo 743º, nº1 do NCPC) relativo à “penhora em caso de comunhão ou compropriedade” – que prevê que na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso –, já não abarca ou, pelo menos, mostra-se desprovido de interesse prático, a penhora do direito à meação do executado nos bens comuns do casal, atenta a alteração efetuada, na reforma processual de 1995/1996, nos artigos 1696, nº1, do CC, e 825º, do CPC - “Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto”, Almedina, 2000, p. 215, nota 592.
[7] Acórdão do TRC de 18-05-2020, relatado por Barateiro Martins, disponível in www.dgsi.
[8] Ao contrário do que acontece na compropriedade, em se permite a alienação separada da respetiva quota bem como a sua penhora ou hipoteca.
[9] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito de Família”, Vol. I, Direito Matrimonial, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 507.
[10] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito de Família”, Vol. I, págs. 510 e 511.
[11] Catarina Serra, “Falências Derivadas e Âmbito Subjectivo da Falência”, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, p.171.
[12] Cristina M. Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, Coimbra Editora, FDUC, Centro de Direito da Família, pp.20-21.
[13] Com o esclarecimento de que não atinge a totalidade dos bens do devedor suscetível de avaliação pecuniária, mas, tão só, e em regra, os bens e rendimentos que forem penhoráveis. Quanto aos bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta (nº2 do artigo 46º).
[14] Neste sentido, Paula Costa e Silva, “A Liquidação da massa insolvente”, ROA, Ano 65, Vol. III – Dezembro de 2005.
[15] Implicando a declaração de insolvência o reconhecimento da insuficiência do ativo para satisfação do passivo existente, a meação dos bens comuns responderá aqui ao mesmo tempo (ou conjuntamente) com os seus bens próprios, sem necessidade de liquidação prévia destes.
[16] Embora a dissolução, a declaração de nulidade ou anulação do casamento ou a separação de pessoas e bens impliquem o fim das relações patrimoniais entre os cônjuges, a comunhão no património comum mantém-se até à partilha – cfr., entre outros, Cristina Manuela Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, FDUC – Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, p. 886 e 922-923.
[17] No sentido de que o que é objeto de apreensão são os bens comuns do casal e não a meação do insolvente nos bens comuns, cfr., José Lebre de Freitas, “Apreensão, separação, restituição em venda”, pág. 237. Em sentido contrário, Luís Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 91 e 92, e Jorge Duarte Pinheiro, “Efeitos Pessoais da Declaração de Insolvência”, Estudos em Memória do Prof. Dr. José Dias Marques, Almedina, pág. 219.
[18][18] Cfr., Maria João Areias, Insolvência de Pessoa Casada num dos Regimes de Comunhão – Sua Articulação com o Regime da Responsabilidade por Dívidas dos cônjuges”, Revista de Direito da Insolvência, Nº1 – 2017, Almedina, pp.113-114.