Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | ERRO NA FORMA DE PROCESSO PROCEDIMENTO CAUTELAR DIREITOS DE PERSONALIDADE DIREITO À SAÚDE E AO REPOUSO RISCO DE LESÃO | ||
Data do Acordão: | 12/13/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 362.º, N.º 1, E 878.º E SEGS. DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
Sumário: | I – O processo (especial) previsto nos arts. 878.º e segs. do CPCiv – que não é um procedimento cautelar – é aplicável quando o requerente alega ameaças ilícitas e diretas à sua personalidade física ou moral e pede o decretamento de providências adequadas a fazer cessar a ameaça ou os efeitos de ofensa já cometida, mas já não quando pede o decretamento de tais providências a título cautelar, ou seja, enquanto não houver decisão definitiva sobre a violação dos seus direitos.
II – Tendo os requerentes pedido as providências a título cautelar – para acautelarem o risco de lesão de direitos de personalidade, num quadro em que (para além de aludirem à lesão do direito de uso das suas frações autónomas) invocam a lesão do direito à saúde e ao repouso, em resultado de fumos, cheiros e ruídos saídos de um estabelecimento de restauração –, tal pedido tem cobertura no n.º 1 do art. 362.º do CPCiv., inexistindo erro na forma de processo, visto que aquele preceito abrange esse risco de lesão de direitos de personalidade. III – O pedido de inversão do contencioso não converte o procedimento cautelar em ação principal nem faz com que a decisão a proferir seja decisão final, definitiva. IV – A lesão que se receia é de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa. V – No caso, o risco de lesão é grave por respeitar ao direito de usar ou de usar plenamente frações autónomas como habitação própria e ao direito à saúde e ao repouso. VI – E é dificilmente reparável por, se não for decretada a providência, o estabelecimento continuar a emitir fumos, ruídos e cheiros, impedindo os primeiros requerentes de usar a sua fração e limitando os demais no uso das suas frações, bem como prejudicando-os no seu direito ao repouso e à saúde. | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Emídio Francisco Santos Adjuntos: Catarina Gonçalves Maria João Areias Processo n.º 3179/22.7T8VIS.C1
Acordam na 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
AA e sua mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., ..., ..., ... ..., CC e sua mulher, DD, residentes na Quinta ..., Avenida ..., ... ..., e EE e sua mulher, FF, residentes na Quinta ..., Avenida ..., ... ..., requereram contra T... SA, com na sede na Rua ..., ..., ... ..., e contra A... Unipessoal, Lda, com sede na Rua ..., Loja ..., ... ..., as seguintes providências cautelares: Requereram ainda a inversão do contencioso, nos termos do disposto nos artigos 369º, nº.1 e 376º, n.º 4 do C.P.C. Para o efeito alegaram em síntese: A requeria A... Unipessoal, Lda opôs-se à concessão das providências com a alegação, em síntese, e que não se verificavam os requisitos necessários ao respectivo decretamento e que o prejuízo resultante delas resultante era muito superior ao que se queria evitar com o seu decretamento. A requerida T... SA, também se opôs, com a alegação em síntese que o procedimento era nulo por erro na forma do processo e que, caso assim se não entendesse, que não se verificavam os pressupostos de que dependia o seu decretamento e que era desproporcionado e abusivo o exercício do direito por parte dos requerentes. Findos os articulados, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo notificou as partes para se pronunciarem sobre “a correcção do meio processual escolhido e sobre a possibilidade de conversão de tal meio processual” e “sobre a existência de factos susceptíveis de integrar a noção de periculum in mora”. Respondendo à notificação, os requerentes pronunciaram-se alegando em síntese: De seguida, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo proferiu decisão, indeferindo as providências requeridas. O recurso Os requerentes não se conformaram com a decisão e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo: Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: A requerida T... SA respondeu, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Para o efeito alegou em síntese: (…). * Síntese das questões suscitadas pelo recurso: 1. Saber se o despacho recorrido é de revogar e substituir por decisão que admita o procedimento cautelar proposto pelos recorrentes; 2. Em alternativa, saber se é de revogar e substituir o despacho recorrido por outro que determine a providência cautelar requerida. * Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelas alegações de facto narrados no requerimento inicial. * Resolução das questões O despacho sob impugnação indeferiu o decretamento das providências requeridas com a seguinte fundamentação: Como se vê pela exposição acabada de fazer, a razão principal do indeferimento das providências pedidas contra os requeridos, que o despacho sob recurso designou de liminar, foi a falta de alegação, no requerimento inicial, de factos que justificassem a premência, a urgência, da tutela cautelar dos direitos de personalidade invocados pelos requerentes. Os recorrentes pedem a revogação da decisão recorrida com uma pluralidade de argumentos que se podem sintetizar nos seguintes termos: Apreciemo-los pela ordem acabada de expor, por ter sido por ela foram expostos nas conclusões. Inadmissibilidade do indeferimento liminar do procedimento Sob as conclusões II a X, os recorrentes alegaram que estava vedado ao tribunal indeferir liminarmente a providência requerida, pois havia-a admitido, quando, ao apreciar o pedido dos requerentes, ora recorrentes, no sentido de o procedimento ser decretado sem audiência prévia dos requeridos, ter indeferido tal pretensão e ordenado a citação dos requeridos. Os recorrentes têm razão no seguinte aspecto: se, na realidade, houvesse fundamento para não decretar as providências, o indeferimento não podia taxar-se de liminar. Com efeito, decorre do n.º 1 do artigo 590.º do CPC, que o indeferimento é liminar quando é proferido imediatamente a seguir à apresentação da petição a despacho e, no caso, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo indeferiu as providências depois os requeridos deduzirem oposição à pretensão dos requerentes. A petição passou, pois, no crivo do despacho liminar. Despacho liminar que se impunha considerando o disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 226.º do CPC e o facto de se estar não só perante um procedimento cautelar, mas também perante um caso em que era pedida a dispensa da audiência prévia dos requeridos. A razão dos recorrentes fica-se pela questão da qualificação do indeferimento como liminar, visto que quanto à questão do indeferimento, ele podia ter lugar, no momento em que foi decretado, não obstante o Meritíssimo juiz ter ordenado a citação dos requeridos para deduzirem oposição. Com efeito, decorre do n.º 5 do artigo 266.º do CPC que o despacho que mande citar os réus ou os requeridos não preclude as questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar, ou seja, socorrendo-nos as palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a propósito do º 3 do artigo 479.º do CPC de 1961, cujo conteúdo é idêntico ao do n.º 5 do artigo 226.º do CPC em vigor, ”O facto de o juiz ter ordenado a citação do réu significa apenas que ele não considerou manifesta a ineptidão da petição, a falta de pressupostos processuais…mas nada obsta que um exame mais atento ou melhor instruído, no despacho saneador, leve o juiz a decretar absolvição da instância ou do pedido, com base em qualquer das excepções que podiam ter determinado o indeferimento liminar” [Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, página 84]. Segue-se do exposto que o facto de o indeferimento das providências requeridas não poder qualificar-se de liminar, não obstava a que o Meritíssimo juiz do tribunal a quo indeferisse o decretamento das providências no momento em que o fez. * Violação do artigo 154.º do CPC Sob a conclusão XI, os recorrentes imputam ao despacho recorrido a violação do disposto no artigo 154.º do CPC. Alegaram, para o efeito, que ele era exíguo na fundamentação dada ao sentido da decisão, bastando-se com a mera conclusão de que “os requerentes estão efectivamente a fazer valer direitos de personalidade”. Esta alegação não vale contra a decisão recorrida, apesar de decorrer do n.º 1 do artigo 154.º do CPC o dever de o juiz fundamentar a decisão de indeferimento da providência. Com efeito, ao contrário do que está implícito na alegação dos recorrentes, a fundamentação do despacho recorrido não se limitou à afirmação de que os requerentes estavam a fazer valer direitos de personalidade. A mencionada afirmação constitui apenas uma parte da fundamentação. * Contradição da fundamentação da decisão recorrida Sob as conclusões XII e XIII, os requerentes acusam a fundamentação da decisão recorrida de ser contraditória. Segundo eles, a afirmação “não se visiona qualquer disposição legal avançada pelos requerentes que possa elucidar o julgador sobre, na opinião dos requerentes, qual o direito que, no caso, se pretende acautelar” estava em contradição com afirmação “estão efectivamente a fazer valer direitos de personalidade”. A contradição - ainda segundo os recorrentes – residia no seguinte: se do requerimento inicial não se extraía qual o direito que os recorrentes pretendiam acautelar, não seria possível ao tribunal recorrido extrair a conclusão de que eles pretendem fazer valer direitos de personalidade. O argumento não procede. Antes de mais importa dizer que o despacho sob recurso não afirmou singelamente que os recorrentes estão efectivamente a fazer valer direitos de personalidade. O que nele se afirmou foi o seguinte: “Do cotejo do teor do requerimento inicial, ouso poder afirmar que entendo que os requerentes – sem prejuízo dos danos de que estão, alegadamente, a ser vítimas – estão, efectivamente, a fazer valer direitos de personalidade, conforme os mesmos se prevêem, ademais, nos art.ºs 26º da Constituição da República Portuguesa e 70º do código civil”. Logo, é toda esta afirmação que deve ser posta em confronto com a outra acima transcrita. Fazendo este exercício, a conclusão a que se chega é a de que não há contradição. Com efeito, duas afirmações são contraditórias entre si quando uma delas exclui necessariamente a outra, ou, por outras palavras, quando elas não podem ser feitas em simultâneo, o que não se passa com as afirmações em causa. Pode afirmar-se que o autor não invocou na petição qualquer disposição legal que esclareça o tribunal sobre os direitos que pretende acautelar e dizer-se ao mesmo tempo que, do exame de tal petição, decorria, no entanto, que os direitos que se queriam fazer valer eram direitos de personalidade. * Propriedade do procedimento para defesa cautelar dos direitos invocados pelos requerentes Sob as conclusões XIV a XXI, os recorrentes insurgem-se contra o entendimento do tribunal a quo de que eles, recorrentes, estão a fazer valer direitos de personalidade e também contra o entendimento de que o procedimento para alcançar os efeitos por eles pretendidos era o previsto no artigo 878.º e seguintes do CPC. Sobre a questão dos direitos que os requerentes visam tutelar com o procedimento por si instaurado, importa começar por dizer, como bem assinalou a recorrida na resposta ao recurso, que os recorrentes produziram sobre ela alegações contraditórias, pois na mesma conclusão (XIV) tanto alegaram que nos autos não estava em causa qualquer direito de personalidade como afirmaram que estavam em causa o bem-estar das suas famílias, a saúde e o direito ao descanso, que são direitos de personalidade. A resposta à questão de saber que direitos é que estão em causa no procedimento instaurado pelos requerentes passa pela interpretação do requerimento inicial. E fazendo esta interpretação, a conclusão a que se chega é a seguinte. Os primeiros requerentes visam a tutela do seu direito de propriedade sobre a fracção ..., que inclui um terraço que a circunda, mais concretamente o direito de a usarem como habitação própria e permanente. Com efeito, segundo a sua alegação, adquiriram a fracção para nela instalarem a sua habitação, mas ainda o não fizeram devido aos cheiros, ruídos e fumos emitidos pela churrasqueira explorada pela segunda requerida. Emissões, que segundo eles, os impossibilitam de habitar a fracção (artigos 28 a 43 do requerimento inicial). Deste modo, as providências que requereram destinam-se a assegurar-lhes o uso da fracção como habitação. Os segundos requerentes também pretendem a tutela do seu direito de propriedade sobre as fracções (respectivamente H) e E)], não já como os primeiros, para exercerem o direito de as usar, uma vez que já as habitam, mas para as usarem plenamente. É que, segundo eles, não podem dar uso pleno às suas fracções, visto que não podem abrir as janelas que dão para o exterior quando o sistema de extracção de fumos do restaurante/churrascaria se encontra em plena laboração, porquanto, em vez de arejarem o espaço interior, vêem entrar fumos e cheiros em maior quantidade do que as janelas estiverem fechadas. Além do direito de usarem plenamente as fracções como sua habitação, pretendem defender também o direito ao bem-estar e à saúde deles. Quanto ao bem-estar, alegaram que todas as suas roupas e utensílios em tecido (sofás, roupas de cama, atoalhados, etc.) têm um permanente cheiro a fritos e a grelhados, o que afecta a sua qualidade mínima de vida no interior da sua fracção. Em relação à saúde, alegaram que temem que possa haver saturação de gases nocivos para a saúde deles (por exemplo, dióxido de carbono) no interior das suas casas com origem na churrascaria. Os segundos requerentes visam ainda a tutela do direito ao repouso e à saúde de um seu filho menor de idade. Alegaram a este propósito que o seu agregado familiar é composto por si e por um filho, com poucos meses de vida, que é perturbado pelos ruídos, cheiros e fumos gerados pelo sistema de extracção que se fazem sentir no interior da fracção, acordando amiúde nas horas de sono em que o mesmo deveria estar a dormir e não consegue. Temem – segundo eles - que a inalação permanente dos fumos pelo seu filho bebé possa gerar-lhe doenças graves, nomeadamente do foro pulmonar. Apreciemos, de seguida, a questão de saber se o procedimento seguido pelos requerentes era, segundo a lei, o próprio para tutelar os direitos invocados por eles. Como se escreveu acima, a decisão sob recurso, laborando no pressuposto de que os requerentes pretendiam fazer valer direitos de personalidade, entendeu que o processo próprio para tanto era o previsto nos artigos 878.º e seguintes do Código Civil. Considerou, no entanto, que a consequência do erro em que incorreram os requerentes não era a nulidade do processo – como havia sustentado a requerida T... SA na oposição ao procedimento -, mas tão só a de seguir-se o procedimento adequado. Invocou, em abono deste entendimento, o n.º 3 do artigo 376.º do CPC. Os recorrentes sustentam a propriedade do processo de que lançaram mão, com a alegação de que, para além da protecção dos direitos de personalidade, foram alegadas outras matérias [nulidade do regulamento do condomínio e ilegalidade da actividade desenvolvida na fracção ...)] pelo que não se estava perante uma situação de exclusiva tutela dos direitos de personalidade regulados no artigo 70.º do Código Civil e que se aplicava o regime dos procedimentos cautelares nominados. Mais alegaram que cabia ao tribunal o poder de alterar a qualificação jurídica dos factos e aplicar a providência que entendesse mais adequada, como era permitido pelo n.º 3 do artigo 376.º do CPC. Pelas razões a seguir expostas, é de afirmar que os recorrentes, ao lançaram mão do procedimento cautelar comum para tutelar os direitos por eles invocados, não incorreram em erro na forma do processo. Vejamos. Há erro na forma do processo quando o autor indica na petição com que propõe a acção uma forma de processo que não é a que a lei prevê para o conhecimento da sua pretensão. A propriedade da forma de processo escolhida pelo autor afere-se em função da pretensão ou pretensões por ele deduzidas e dos respectivos fundamentos. Tendo presentes estas considerações, a razão estaria do lado da decisão recorrida se o processo que a lei mandasse aplicar para conhecer das pretensões dos requerentes fosse o processo (especial) previsto nos artigos 878.º e seguintes do CPC, o que não acontece. Na verdade, se este processo se aplica, como sucede em parte no caso dos autos, quando o requerente alega ameaças ilícitas e directas à sua personalidade física ou moral e pede o decretamento de providências adequadas a fazer cessar a ameaça ou os efeitos de ofensa já cometida, já não é o próprio quando o requerente pede o decretamento de tais providências, a título cautelar, ou seja, enquanto não houver decisão definitiva sobre a violação dos seus direitos. E não se aplica porque o processo especial previsto nos artigos 878.º e seguintes do CPC, apesar de ter uma tramitação expedita para tutela da personalidade, como o atesta o artigo 879.º do CPC, não é um procedimento cautelar. Não é, pois, dependência de qualquer outra causa, que tenha por fundamento direitos de personalidade. Daí que a sentença nele proferida constitua decisão final sobre a questão da tutela da personalidade (n.º 3 do artigo 879.º do CPC). E apesar de admitir uma decisão provisória sujeita a posterior alteração ou confirmação no próprio processo, (n.º 5 do artigo 879.º), tal decisão provisória não o converte num processo cautelar. Sucede que os requerentes pediram as providências a título cautelar, ou seja, enquanto não houvesse uma decisão definitiva sobre a questão da violação dos respectivos direitos. Tal pedido tinha cobertura no n.º 1 do artigo 362.º do CPC, visto que a fórmula do preceito, designadamente na parte em que refere o “…receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito…” abrange claramente o risco de lesão dos direitos de personalidade. Cita-se em abono deste entendimento Rabindranath Capelo De Sousa, que a propósito da aplicação dos procedimentos cautelares à tutela da personalidade, escreveu: “Pode verificar-se o perigo e que a inevitável demora (periculum quod est in mora) de obtenção de execução de providências jurisdicionais definitivas tuteladoras dos direitos de personalidade, quer nas acções de responsabilidade civil quer nas acções especiais de tutela da personalidade, possibilite lesões graves desses mesmos direitos. Justifica-se, então, nos termos gerais, uma apreciação provisória da relação litigiosa através de procedimentos cautelares referidos nos artigos 381.º e segts.do Código de Processo Civil, de modo a acautelar o efeito útil daquelas acções” [O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, página 485]. Não se ignora que os requerentes solicitaram a inversão do contencioso, ou seja, pediram a dispensa do ónus de propositura da acção principal, e segundo o n.º 1 do artigo 369.º do CPC o juiz pode conceder tal dispensa se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar a convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Tal pedido não converte, no entanto, o procedimento em acção principal nem faz com que a decisão a proferir seja decisão final, definitiva. Na verdade, após o trânsito em julgado da decisão que haja decretado a providência cautelar e invertido o contencioso, o requerido tem a faculdade de intentar acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado (n.º 1 do artigo 371.º do CPC) e, no caso de ela proceder, a providência decretada caduca (n.º 3 do artigo 371.º do CPC). Em síntese: ao socorrerem-se das providências cautelares não especificadas para acautelarem o risco de lesão de direitos de personalidade, os requerentes não incorreram em erro quanto à forma do processo. Por fim – contra a tese do erro na forma do processo – cabe dizer que o processo previsto no artigo 878.º do CPC nãos seria o apropriado para prevenir a lesão do direito ao uso ou ao uso pleno das fracções dos requerentes. * Apreciemos, por último, a questão de saber se os requerentes alegaram no requerimento factos que demonstrassem a necessidade da tutela cautelar. Sob as conclusões XXII a XXXII, os recorrentes impugnam a decisão recorrida na parte em que ela afirmou que os requerentes não alegaram factos que justificassem a tutela cautelar. A resposta à questão de saber se os requerentes alegaram factos que justificassem a tutela cautelar passa, por um lado, por se definir o que é que se deve entender por tutela cautelar ao abrigo do n.º 1 do artigo 362.º do CPC e, por outro, pela interpretação do requerimento inicial. A questão da tutela cautelar ao abrigo do n.º 1 do artigo 362.º do CPC, é a de saber se a demora - inevitável - na definição dos direitos dos requerentes comporta perigo para esses direitos e, em caso de resposta afirmativa, saber se esse perigo, a concretizar-se, é de caracterizar como lesão grave e de difícil reparação. Sobre o que se deve entender por lesão grave e de difícil reparação cabe dizer o seguinte. A razão de ser dos procedimentos cautelares é a de “acautelar o efeito útil da acção”, como se diz na parte final do n.º 2 do artigo 2.º do CPC, ou “assegurar a efectividade do direito ameaçado”, como se diz na parte final do n.º 1 do artigo 362.º do CPC. Deste modo, se os procedimentos cautelares servem para dar utilidade ao que for decidido na acção a favor do requerente, se servem para assegurar a efectividade do direito que lhe for reconhecido, então a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da acção será de considerar como grave e de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efectividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva. Por outras palavras, a lesão que se receia há-se ser considerada de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa. A favor desta interpretação cita-se Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2015, Almedina, páginas 214 e 215 que, a propósito desta questão, escreve: “… o juiz deve fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deva beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua tutela jurídica”. E cita-se ainda o que se escreveu na Revista de legislação e Jurisprudência ano 80, páginas 297, sobre este mesmo requisito previsto no artigo 405.º do CPC de 1939, correspondente ao artigo 362.º n.º 1 do CPC actual: “Este segundo requisito traduz-se no periculum in mora: perigo de insatisfação do direito, proveniente da demora em se obter a decisão definitiva da causa. Receia-se que durante a pendência da acção principal e antes de se alcançar sentença definitiva, se produzam factos que impeçam a satisfação do direito”. Na posse deste sentido do n.º 1 do artigo 362.º do CPC, na parte referente à “lesão grave e dificilmente reparável”, vejamos se os requerentes alegaram factos que, a provarem-se, mostram que é fundado o receio de lesão grave e dificilmente reparável dos seus direitos. No nosso entender, a resposta é afirmativa. Como se escreveu mais acima, com as providências requeridas, os primeiros requerentes querem evitar a lesão do direito de uso das suas fracções, e os segundos querem evitar a lesão de tal uso e ainda a lesão do direito à saúde e ao repouso. Ao alegarem que os fumos, os cheiros e os ruídos saídos do estabelecimento os impedem de usar a sua fracção como habitação, os primeiros requerentes estão a descrever uma situação que lesa o seu direito de usar a habitação e que o continuará a lesar se não lhe for posto termo. Isto é, a lesão já consumada do seu direito, deixa ver que outras se seguirão se não forem tomadas as providências requeridas. Por sua vez, ao alegarem que não podem abrir as janelas das suas fracções que dão para o exterior quando o sistema de extracção de fumos do restaurante/churrascaria se encontra em plena laboração, porquanto, em vez de arejarem o espaço interior, vêem entrar fumos e cheiros em maior quantidade do que as janelas estiverem fechadas, os segundos requerentes estão a descrever uma situação que também lesa o seu direito de usar a habitação e que o continuará a lesar se não lhe for posto termo. Por sua vez, os segundos e terceiros requerentes, ao alegarem que temem que possa haver saturação de gases nocivos para a saúde deles (por exemplo, dióxido de carbono) no interior das suas casas com origem no estabelecimento que possam conduzir a um desfecho trágico, estão a descrever uma situação que, a concretizar-se, lesará o seu direito à saúde. Por último, os segundos requerentes, ao alegarem que o seu agregado familiar é composto por eles e por um filho com poucos meses de vida, que é perturbado pelos ruídos, cheiros e fumos gerados pelo sistema de extracção que se fazem sentir no interior da fracção, acordando amiúde nas horas de sono em que o mesmo deveria estar a dormir e ao alegarem que temem que a inalação permanente dos fumos pelo seu filho bebé possa gerar-lhe doenças graves, nomeadamente do foro pulmonar, estão a descrever uma situação que lesa o direito à saúde e ao repouso do seu filho e que o continuará a lesar se não foram tomadas as providências requeridas. Pode afirmar-se, assim, que os requerentes alegaram factos que, caso se provem, mostram que é fundado o receio de lesão dos seus direitos. O risco de lesão é grave, pois diz respeito ao direito de usar ou de usar plenamente fracções autónomas como habitação própria, e ao direito à saúde e ao repouso. E é dificilmente reparável. Com efeito, segundo a alegação constante do requerimento inicial, se não for decretada uma das duas primeiras providências requeridas, o estabelecimento continuará a emitir fumos, ruídos e cheiros e os primeiros requerentes continuarão a ficar impossibilitados de usar a sua fracção, os segundos e terceiros continuarão limitados no uso das suas fracções e a ver prejudicados o seu direito ao repouso e à saúde. E, assim, quando for proferida a decisão final na acção, na hipótese de ela ser favorável aos requerentes, estes alcançarão a cessação da emissão de ruídos, dos cheiros e dos fumos, mas não obterão a eliminação do prejuízo causado ao direito de usar a habitação e ao direito à saúde e ao repouso. O mais a que os requerentes, ora recorrentes, podem aspirar, é a uma indemnização do ou dos prejuízos causados pela actividade do estabelecimento. Sucede que a indemnização reparará ou compensará os prejuízos causados por tal acção, mas não tornará efectivo o direito dos requerentes que era o de usarem as fracções, ou usá-las plenamente, num ambiente saudável e isento de ruídos, fumos e cheiros. Pelo exposto, entende-se que foram alegados no requerimento inicial os factos que, no caso de serem julgados provados, mostram que é fundado o receio dos requerentes de verem lesados os seus direitos. Em consequência, não pode subsistir a decisão que decretou o indeferimento da providência. A mesma é de revogar e substituir por decisão a determinar o prosseguimento do procedimento. * Decisão: Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que se substitui por decisão a ordenar o prosseguimento dos autos. Responsabilidade quanto a custas: Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de as requeridas terem ficado vencidas no recurso, condenam-se as mesmas nas custas do recurso. Coimbra, 13 de Dezembro de 2022
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