Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3179/22.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: ERRO NA FORMA DE PROCESSO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À SAÚDE E AO REPOUSO
RISCO DE LESÃO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 362.º, N.º 1, E 878.º E SEGS. DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O processo (especial) previsto nos arts. 878.º e segs. do CPCiv – que não é um procedimento cautelar – é aplicável quando o requerente alega ameaças ilícitas e diretas à sua personalidade física ou moral e pede o decretamento de providências adequadas a fazer cessar a ameaça ou os efeitos de ofensa já cometida, mas já não quando pede o decretamento de tais providências a título cautelar, ou seja, enquanto não houver decisão definitiva sobre a violação dos seus direitos.

II – Tendo os requerentes pedido as providências a título cautelar – para acautelarem o risco de lesão de direitos de personalidade, num quadro em que (para além de aludirem à lesão do direito de uso das suas frações autónomas) invocam a lesão do direito à saúde e ao repouso, em resultado de fumos, cheiros e ruídos saídos de um estabelecimento de restauração –, tal pedido tem cobertura no n.º 1 do art. 362.º do CPCiv., inexistindo erro na forma de processo, visto que aquele preceito abrange esse risco de lesão de direitos de personalidade.

III – O pedido de inversão do contencioso não converte o procedimento cautelar em ação principal nem faz com que a decisão a proferir seja decisão final, definitiva.

IV – A lesão que se receia é de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa.

V – No caso, o risco de lesão é grave por respeitar ao direito de usar ou de usar plenamente frações autónomas como habitação própria e ao direito à saúde e ao repouso.

VI – E é dificilmente reparável por, se não for decretada a providência, o estabelecimento continuar a emitir fumos, ruídos e cheiros, impedindo os primeiros requerentes de usar a sua fração e limitando os demais no uso das suas frações, bem como prejudicando-os no seu direito ao repouso e à saúde.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
Adjuntos: Catarina Gonçalves
Maria João Areias

Processo n.º 3179/22.7T8VIS.C1

Acordam na 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA e sua mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., ..., ..., ... ..., CC e sua mulher, DD, residentes na Quinta ..., Avenida ..., ... ..., e EE e sua mulher, FF, residentes na Quinta ..., Avenida ..., ... ..., requereram contra T... SA, com na sede na Rua ..., ..., ... ..., e contra A... Unipessoal, Lda, com sede na Rua ..., Loja ..., ... ..., as seguintes providências cautelares:
1. Se ordenasse o imediato encerramento do estabelecimento de restauração instalado na fracção autónoma designada pela letra ... melhor identificada no artigo 5.º do requerimento inicial, denominado “C...F...”;
2. Caso assim não se entendesse, se ordenasse a imediata proibição, à segunda requerida, de qualquer actividade desenvolvida por ela no mesmo estabelecimento de restauração de produção de cozinhados ou de refeições, nomeadamente de frituras, de assados, de grelhados ou de qualquer outra actividade que seja susceptível de gerar cheiros, fumos ou gases;
3. Se ordenasse imediatamente, à primeira requerida, a reposição do telhado ou cobertura e da chaminé que serve o sistema de extracção do fumos, cheiros e gases proveniente da fracção autónoma designada pela letra ... melhor identificada no artigo 5.º do requerimento inicial, onde labora a “C...F...”, por forma que ficasse igual à constante do projecto de arquitectura e como se encontrava aquando da venda das fracções aos aqui requerentes.

Requereram ainda a inversão do contencioso, nos termos do disposto nos artigos 369º, nº.1 e 376º, n.º 4 do C.P.C.

Para o efeito alegaram em síntese:
· Os primeiros requerentes são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma, designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao ... andar do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., freguesia da União das Freguesias de ..., concelho e distrito ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...69º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...98..., da freguesia ... (...);
· Os segundos requerentes são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao ... andar do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., freguesia da União das Freguesias de ..., concelho e distrito ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...69º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...98..., da freguesia ... (...);
· Os terceiros requerentes são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao ... andar do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., freguesia da União das Freguesias de ..., concelho e distrito ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...69º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...98..., da freguesia ... (...);
· Por sua vez, a primeira requerida é dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio e serviços, correspondente ao ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., freguesia da União das Freguesias de ..., concelho e distrito ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...69º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...98..., da freguesia ... (...);
· No âmbito dessa sua actividade, 1 1.ª requerida deu de arrendamento à 2.ª a fracção autónoma designada pela letra ..., para nela instalar e fazer funcionar um estabelecimento de restauração no qual produz e fabrica refeições para consumo no local e para venda para fora, sendo a sua principal actividade a de “churrascaria”, ali assando frangos e outras carnes na brasa (ou em churrasqueira a carvão), fritando outros produtos e cozinhando outros pratos quentes, desenvolvendo principalmente a actividade industrial de produção de comida e transformação dos produtos para venda a clientes no local ou para fora;
· A segunda requerida, para desenvolver a sua actividade normal e diária de produção/fabrico de refeições e transformação de alimentos em refeições para venda a clientes, tem no interior da fracção ... (destinada a comércio e serviços) uma cozinha completa, com uma churrasqueira industrial, composta de todos os equipamentos necessários a produzir grelhados, assados e fritos, o que faz diariamente no seu horário normal de funcionamento, de terça a domingo entre as 10h30 e as 15h00 e entre as 18h30 e as 23h00, com encerramento às 15h00 no domingo;
· Nessa sua actividade, a segunda requerida produz ruídos, fumos e cheiros que são retirados do interior da fracção em que funciona o estabelecimento de restauração por uma conduta que circula pelo interior do edifício, passando nas partes comuns do mesmo e pelo interior de algumas das fracções;
· As fracções em que a tubagem ou condutas de fumos e de cheiros passa são as designadas pelas letras ..., ... e ...;
· Como resultado directo e necessário dos factos acabados de descrever, sempre que a segunda requerida acende os fogões e os braseiros ou liga as fritadeiras, bem como o sistema de exaustão/extracção, as fracções autónomas dos requerentes e as partes comuns (por exemplo, vãos de escadas, elevadores, halls de entrada) recebem do sistema de exaustão/extracção os cheiros a comida (grelhados, assados e fritos), bem como fumos resultantes da actividade de cozinha e ruídos das máquinas de extracção e tubos;
· Os requerentes temem, aliás, que possa haver fuga de gases nocivos para a sua saúde e dos seus familiares ou de outras pessoas que usem as suas fracções,
· Podendo mesmo haver risco de vida se se acumularem gases mortais que são gerados pela queima de oxigénio pelo fogo e sobretudo pelos braseiros;
· No caso dos primeiros requerentes, proprietários da fracção ..., dá-se o caso de os mesmos não conseguirem sequer tirar proveito da sua utilização;
· Esta fracção foi adquirida e transformada ainda em construção para habitação própria e permanente dos primeiros requerentes;
· Encontra-se totalmente equipada e mobilada, com todas as comodidades que se pode ter num imóvel de semelhante natureza, distribuindo-se por dois pisos (no de baixo com cozinha e sala, quarto de dormir, closet e casa de banho e no de cima por quarto e casa de banho, lavandaria, arrumos e terraços);
· Mas os requerentes não têm condições de a utilizar em consequência dos ruídos, cheiros e fumos que, como acima se descreveu, invadem o seu interior, em todas as suas divisões;
· Nesta fracção existe ainda um terraço exterior que circunda toda a fracção destinado a actividades de lazer, como sejam a leitura, descanso, banhos de sol, recepções de amigos, tomada de refeições;
· Nesta parte da fracção, os efeitos produzidos pelos ruídos, cheiros e fumos que saem do sistema de extracção da churrascaria é ainda mais grave e empolado, uma vez que a chaminé por onde são expelidos tais resíduos se encontra sobre a cobertura da sua fracção e a cerca de um metro da porta de acesso e das janelas da casa de banho existente nesse piso;
· De facto, sempre que o sistema de exaustão da churrascaria se encontra ligado (e sempre que tal estabelecimento está aberto ao público), o ruído produzido à saída da chaminé é ensurdecedor, não permitindo a utilização dessa parte da fracção essencialmente destinada a descanso e lazer;
· Sendo que, quando a churrascaria produz fumos e cheiros, não é suportável a utilização do espaço exterior do terraço;
· O mesmo se diga relativamente às janelas da fracção para o exterior que, sempre que são abertas, em vez do arejamento do interior da fracção ... que se destinam, permitem a entrada dos ruídos, fumos e cheiros;
· Em suma, nesta fracção, não é possível aos seus donos viverem, motivo pelo qual tiveram de suspender a venda da sua outra casa onde ainda habitam (fracção autónoma designada pela letra ... do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sita em Rua ..., ..., ..., ..., freguesia ... inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...98º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...47...) e de revogar o contrato de mediação imobiliária que já haviam celebrado para esse efeito;
· Encontrando-se, assim, impedidos de realizar os fundos necessários ao investimento que fizeram na fracção ... aqui em causa, além de terem de suportar gastos de manutenção, contribuições e impostos com o imóvel;
· Mas o mais grave é que já tiveram manifestações de interesse na aquisição daquele imóvel, sendo certo que não se permitiram avançar com o negócio sem antes terem as condições mínimas de habitabilidade na fracção que adquiriram para esse efeito na ..., em ....
· Os segundos e terceiros requerentes, proprietários das fracções ... e ..., respectivamente, que destinam a habitação própria e permanente, para além dos incómodos descritos para a anterior fracção, vêm ainda todas as suas roupas e utensílios em tecido (sofás, roupas de cama, atoalhados, etc.) terem um permanente cheiro a fritos e a grelhados, o que afecta a sua qualidade mínima de vida no interior da sua fracção;
· Acresce que o agregado familiar dos segundos requerentes é composto, além de si, pelo filho menor de idade, com poucos meses de vida, sendo este perturbado pelos ruídos, cheiros e fumos gerados pelo sistema de extracção que se fazem sentir no interior da fracção, acordando amiúde nas horas de sono em que o mesmo deveria estar a dormir e não consegue;
· Os segundos requerentes temem que a inalação permanente dos fumos pelo seu filho bebé possa gerar-lhe doenças graves, nomeadamente do foro pulmonar e que possa haver saturação de gases nocivos para a saúde dos requerentes (por exemplo, dióxido de carbono) no interior das suas casas com origem na churrascaria que possam conduzir a um desfecho trágico;
· De igual modo, os segundos e terceiros requerentes não podem abrir as janelas das suas fracções que dão para o exterior quando o sistema de extracção de fumos do restaurante/churrascaria se encontra em plena laboração, porquanto, em vez de arejarem o espaço interior, vêem entrar fumos e cheiros em maior quantidade do que as janelas estiverem fechadas;
· Sendo que estes requerentes já não suportam a vida com as perturbações descritas e já colocam a hipótese de se mudarem para outro local para poderem viver com o mínimo de sossego, se a actividade da churrascaria se mantiver em funcionamento;
· O estabelecimento de restauração não tem licença para funcionar;
· O regulamento do condomínio aprovado pela 1.ª requerida é nulo.

A requeria A... Unipessoal, Lda opôs-se à concessão das providências com a alegação, em síntese, e que não se verificavam os requisitos necessários ao respectivo decretamento e que o prejuízo resultante delas resultante era muito superior ao que se queria evitar com o seu decretamento.       

A requerida T... SA, também se opôs, com a alegação em síntese que o procedimento era nulo por erro na forma do processo e que, caso assim se não entendesse, que não se verificavam os pressupostos de que dependia o seu decretamento e que era desproporcionado e abusivo o exercício do direito por parte dos requerentes.

Findos os articulados, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo notificou as partes para se pronunciarem sobre “a correcção do meio processual escolhido e sobre a possibilidade de conversão de tal meio processual” e “sobre a existência de factos susceptíveis de integrar a noção de periculum in mora”.

Respondendo à notificação, os requerentes pronunciaram-se alegando em síntese:
· Que o procedimento cautelar era o meio adequado a obter uma providência cautelar, que, in casu, reunia todos os pressupostos conducentes ao respectivo decretamento;
· Que o que estava em causa nos autos não era qualquer direito de personalidade, mas o direito de os requerentes usufruírem plenamente das fracções que adquiriram e destinaram à habitação, designadamente permitindo o usufruto de todas as utilidades das mesmas, entre as quais o bem-estar das suas famílias ali instaladas, a saúde, o direito ao descanso, agravado, no caso concreto, por ali habitarem crianças recém-nascidas que poderiam vir a sofrer no futuro de graves perturbações respiratórias;
· Que a permanência da situação existente não só gerará danos graves na saúde respiratória dos requerentes e das suas famílias, como igualmente acarretará a manutenção de circunstâncias que os impedem de descansar nas suas casas, com danos irreversíveis na sua saúde e, por isso, irreparáveis.

De seguida, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo proferiu decisão, indeferindo as providências requeridas.

O recurso

Os requerentes não se conformaram com a decisão e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo:
1. Se revogasse e substituísse o despacho recorrido por decisão que admitisse o procedimento cautelar proposto pelos recorrentes;
2. Em alternativa, se revogasse e substituísse o despacho recorrido por outro que determinasse a providência cautelar requerida.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O despacho recorrido padece de vícios que o invalidam, designadamente erro na interpretação dos factos alegados e na aplicação da lei, bem como a contradição entre a fundamentação e a decisão que indefere o liminarmente o procedimento cautelar em causa.
2. O tribunal recorrido indeferiu liminarmente o presente procedimento cautelar depois de o ter apreciado (e admitido) e de, inclusivamente, ter decidido o pedido de dispensa de audição prévia das requeridas.
3. Os recorrentes instauraram o presente procedimento cautelar, requerendo a dispensa de audição prévia das requeridas.
4. Por douto despacho proferido em 19.07.2022, o tribunal recorrido apreciou o requerimento dos recorrentes e decidiu pelo indeferimento do pedido de dispensa de audição prévia das requeridas e ordenou a citação destas para, querendo, deduzirem oposição.
5. Ao apreciar o requerimento inicial dos recorrentes e ao decidir pelo indeferimento do pedido de dispensa de audição prévia das requeridas, o tribunal recorrido apreciou liminarmente o requerimento apresentado pelo recorrentes e admitiu-o.
6. Por despacho proferido em 05.09.2022 – isto é, depois da apresentação das oposições das requeridas - o juiz “a quo” convidou os recorrentes para se pronunciarem sobre questões suscitadas pelas requeridas em sede de oposição: “a correção do meio processual escolhido e a existência de factos suscetíveis de integrar a noção do periculum in mora”;
7. Tendo – depois de os recorrentes se terem pronunciado sobre tais questões - indeferido liminarmente o procedimento cautelar.
8. In casu, o tribunal recorrido indeferiu liminarmente o procedimento cautelar aqui em causa depois de o ter apreciado (e admitido liminarmente), pelo que o despacho (de indeferimento liminar) aqui em apreço não é admissível.
9. Ainda que existisse fundamento para o indeferimento liminar do presente procedimento cautelar – o que não se admite, nem se aceita – sempre tal despacho deveria ter sido proferido após o primeiro contacto do tribunal recorrido com o requerimento em causa (porquanto se trata de despacho liminar) e nunca depois de o tribunal “a quo” ter apreciado o pedido de dispensa de citação prévia das requeridas, ordenado a sua citação e convidado os recorrentes a pronunciar-se sobre questões suscitadas nas oposições deduzidas.
10. Quando apreciou (liminarmente) o requerimento inicial dos recorrentes e decidiu sobre o pedido de dispensa de audição prévia das requeridas, o tribunal recorrido não suscitou qualquer óbice ao cabal prosseguimento dos autos (pelo que ordenou a citação das requeridas), nem se pronunciou sobre a manifesta improcedência do requerimento em causa ou a existência de excepções dilatórias insupríveis.
11. O despacho recorrido é exíguo na fundamentação dada ao sentido da decisão, bastando-se com a mera conclusão de que “os requerentes estão, efectivamente, a fazer valer direitos de personalidade, violando, assim, o disposto no artigo 154º do CPC.
12. Compulsada a fundamentação do despacho recorrido, verifica-se que a mesma é contraditória em si mesmo porquanto, se, por um lado, não visiona “qualquer disposição legal avançada pelos requerentes, que possa elucidar o julgador sobre, na opinião dos requerentes, qual o direito que, no caso, se pretende acautelar”, por outro, conclui que os recorrentes “estão, efetivamente a fazer valer direitos de personalidade”.
13. Se do requerimento inicial não se extraísse qual o direito que os recorrentes pretendem acautelar, como conclui o despacho recorrido, não seria possível ao tribunal recorrido extrair a conclusão que os requerentes pretendem “fazer valer direitos de personalidade”.
14. Do requerimento inicial decorre que o que está em causa nos autos não é qualquer direito de personalidade, mas o direito de os recorrentes usufruírem plenamente das fracções que adquiriram e destinaram à habitação, designadamente permitindo o usufruto de todas as utilidades das mesmas, entre as quais o bem estar das suas famílias ali instaladas, a saúde, o direito ao descanso, agravado no caso concreto por ali habitarem crianças recém-nascidas que poderão vir a sofrer no futuro de graves perturbações respiratórias.
15. Do procedimento cautelar em causa decorre também que qualquer dos utilizadores das fracções destinadas a habitação do edifício onde se encontra instalada a churrascaria (e dos edifícios vizinhos) estão impedidos de abrir janelas ou portas para o exterior quando se encontram em funções os assadores da segunda requerida, porquanto vêem os seus bens completamente inundados de fumos e cheiros nauseabundos estando obrigados a viver fechados nas suas células com utilização intensiva de aparelhos eléctricos de ar condicionado e natural acréscimo dos seus consumos.
16. Para além da violação de direitos de personalidade, os recorrentes alegam a violação de bens jurídicos e outros danos que resultam directa e necessariamente da actuação das requeridas, como seja o impedimento da concretização de negócio imobiliário por inexistência de condições de habitabilidade nas fracções em causa.
17. No procedimento cautelar está alegada também a nulidade de uma acta e do Regulamento do Condomínio (no qual as requeridas alegam ter convencionado a exploração do estabelecimento em causa), bem como a alta probabilidade de perda de investimento efectuado pelos restantes condóminos que, por falta de condições de habitabilidade, se verão empurrados para um negócio de venda forçada dos seus imóveis, que naturalmente diminuirá o valor de mercado dos mesmos.
18. Os recorrentes alegam ainda o facto de a actividade instalada na fracção ... ser ilegal por violar o âmbito do licenciamento para comércio e serviços, por se tratar de uma indústria (como, aliás, a segunda requerida confessa em 1º da sua oposição, ao aceitar com verdadeiro, entre outros, o facto alegado pelos recorrentes em 11º do requerimento inicial).
19. Para além da protecção dos direitos de personalidade, foram alegadas outras matérias no requerimento inicial apresentado pelos recorrentes, pelo que não estamos perante uma situação de exclusiva tutela dos direitos de personalidade regulada no artigo 70º do CC – aplicando-se, o regime dos procedimentos cautelares inominados, como conformado no requerimento inicial.
20. Caberia ao tribunal o poder de alterar a qualificação jurídica dos factos e de decidir por outra providência cautelar que entendesse mais adequada, na medida em que, nos termos do disposto no artigo 376º, nº 3 do CPC, “O tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida”.
21. Ao decidir como decidiu, o M. Juiz “a quo”, além do citado artigo, violou também o princípio da cooperação e do aproveitamento processual (artigos 7.º, 5.º, n.º 3 e 193.º, nº 3, do CPC).
22. Ao sustentar que “os requerentes não trazem (…) um conjunto de factos que permitam concluir por uma premência que não existiu ao longo de todo o período de meses em que a presente situação se iniciou. Nada que entenda a absoluta urgência que levou à instauração desta providência exactamente no primeiro dos 45 dias de férias judiciais (…), o despacho recorrida enferma de erro na interpretação dos factos alegados e na aplicação da lei.
23. O procedimento cautelar comum configura uma verdadeira acção cautelar geral para tutela provisória de quaisquer situações não especialmente previstas e disciplinadas, comportando o seu decretamento a remoção do "periculum in mora" concretamente verificado e visando assegurar a efectividade do direito ameaçado.
24. O periculum in mora traduz-se no prejuízo que poderá advir para os requerentes em consequência da demora na tutela efectiva dos seus direitos.
25. Resulta da factualidade exposta no requerimento inicial que a actividade da segunda requerida produz ruídos, fumos e cheiros que são retirados do interior da fracção em que funciona o estabelecimento de restauração por uma conduta que circula pelo interior do edifício, passando nas partes comuns do mesmo e pelo interior das fracções dos recorrentes – factos aceites pelas requeridas.
26. Sempre que a segunda requerida acende os fogões e os braseiros ou liga as fritadeiras e o sistema de exaustão/extracção – o que corre diariamente, com excepção à segunda-feira – as fracções dos recorrentes (bem como as partes comuns) recebem os cheiros a comida, os fumos e os ruídos das máquinas de extracção e tubos - no que resulta, para os recorrentes, na impossibilidade de abrir janelas ou portas para o exterior quando se encontram em funções os assadores da segunda requerida, porquanto vêem os seus bens completamente inundados de fumos e cheiros nauseabundos, susceptíveis de gerar danos graves e irreversíveis na saúde respiratória dos requerentes e das suas famílias;
27. A que acrescem os danos de natureza patrimonial resultantes da degradação natural, por falta de arejamento, das suas fracções e do entranhamento de cheiros e fumos no interior das mesmas, por consequência directa e necessária dos cheiros e fumos provenientes dos cozinhados efectuados pela segunda requerida.
28. Os danos que se fazem sentir na esfera dos requerentes são contínuos e acumuláveis, impedem o pleno gozo e fruição de todas as utilidades dos imóveis que adquiriram para aí estabelecerem a sua habitação e das suas famílias e agravar-se-ão de forma efectiva com a demora normal de um pleito judicial.
29. Não existe outra forma de pôr cobro aos danos que se vêm reflectindo na esfera dos recorrentes que não seja a suspensão imediata de produção de fumos, cheiros e ruídos.
30. Decorre do requerimento inicial e da documentação que o instrui que os recorrentes solicitaram reiteradamente às requeridas que encontrassem soluções para eliminar definitivamente a produção de odores, fumos e ruídos provenientes da actividade desenvolvida pela segunda requerida na fracção propriedade da primeira requerida - o que têm vindo a fazer desde o início de laboração do estabelecimento da segunda requerida – tendo-lhes concedido, no exercício da boa fé e paciência possíveis, um prazo até ao dia 30.06.2022 para que encontrassem um solução que evitasse a solução mais drástica de encerramento do estabelecimento - o que não ocorreu.
31. A obtenção de uma decisão definitiva que ordene o encerramento definitivo do estabelecimento da segunda requerida demandará, seguramente, alguns anos, com o consequente contínuo e agravamento dos danos que se fazem sentir na esfera dos recorrentes.
32. Os recorrentes lançaram do procedimento cautelar em causa logo que terminou o prazo concedido aos requeridos para a alienação definitiva dos odores, fumos e ruídos provenientes da actividade da segunda requerida, no exercício legítimo de um direito que a lei lhes confere.
33. O despacho recorrido padece de vício de violação da lei - artigos 154.º, 5.º, n.º 3, 7.º, 193.º, n.º 3 e 376.º, n.º 3 do CPC – e de erro na aplicação da lei e do direito, sendo nulo e sem qualquer efeito.

A requerida T... SA respondeu, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Para o efeito alegou em síntese:

(…).


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:
1. Saber se o despacho recorrido é de revogar e substituir por decisão que admita o procedimento cautelar proposto pelos recorrentes;
2. Em alternativa, saber se é de revogar e substituir o despacho recorrido por outro que determine a providência cautelar requerida.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelas alegações de facto narrados no requerimento inicial.

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Resolução das questões

O despacho sob impugnação indeferiu o decretamento das providências requeridas com a seguinte fundamentação:
· Que os requerentes estavam a fazer valer direitos de personalidade, conforme estava previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 70.º do Código Civil;
· Que existe um procedimento específico para a defesa de tais direitos, que está regulado nos artigos 878.º e seguintes do CPC;
· Que tinha sentido invocar erro na forma do processo por parte da requerida;
· Que o alcance do erro na forma do processo não era, no entanto, o que lhe era dado pela requerida – nulidade do procedimento;
· Que havia que fazer funcionar o n.º 3 do artigo 376.º do CPC, ou seja, mandar seguir o procedimento adequado;
· Que o n.º 5 do artigo 879.º do CPC exigia para o decretamento da providência que o julgador pudesse reconhecer a possibilidade de lesão grave e irreversível da personalidade física ou moral do requerente;
· Que, mesmo no âmbito dos procedimentos cautelares não especificados, era necessária, para a procedência dela, a ocorrência de fundado receio de que outrem causasse lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito;
· Que a situação descrita no requerimento inicial caracterizava-se mais pela duração e persistência do que propriamente pela acuidade e gravidade;
· Que o requerimento inicial não continha factos que mostrassem que os requerentes careciam de um procedimento expedito para acautelar o efeito útil da acção.

Como se vê pela exposição acabada de fazer, a razão principal do indeferimento das providências pedidas contra os requeridos, que o despacho sob recurso designou de liminar, foi a falta de alegação, no requerimento inicial, de factos que justificassem a premência, a urgência, da tutela cautelar dos direitos de personalidade invocados pelos requerentes.

Os recorrentes pedem a revogação da decisão recorrida com uma pluralidade de argumentos que se podem sintetizar nos seguintes termos:
· Era inadmissível o indeferimento liminar do procedimento;
· O despacho violou o artigo 154.º do CPC;
· A fundamentação do despacho recorrido é contraditória;
· O procedimento usado era apropriado para defesa cautelar dos direitos invocados pelos requerentes;
· O requerimento contém factos relativos ao periculum in mora.

Apreciemo-los pela ordem acabada de expor, por ter sido por ela foram expostos nas conclusões.

Inadmissibilidade do indeferimento liminar do procedimento

Sob as conclusões II a X, os recorrentes alegaram que estava vedado ao tribunal indeferir liminarmente a providência requerida, pois havia-a admitido, quando, ao apreciar o pedido dos requerentes, ora recorrentes, no sentido de o procedimento ser decretado sem audiência prévia dos requeridos, ter indeferido tal pretensão e ordenado a citação dos requeridos.

Os recorrentes têm razão no seguinte aspecto: se, na realidade, houvesse fundamento para não decretar as providências, o indeferimento não podia taxar-se de liminar. Com efeito, decorre do n.º 1 do artigo 590.º do CPC, que o indeferimento é liminar quando é proferido imediatamente a seguir à apresentação da petição a despacho e, no caso, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo indeferiu as providências depois os requeridos deduzirem oposição à pretensão dos requerentes. A petição passou, pois, no crivo do despacho liminar. Despacho liminar que se impunha considerando o disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 226.º do CPC e o facto de se estar não só perante um procedimento cautelar, mas também perante um caso em que era pedida a dispensa da audiência prévia dos requeridos.    

A razão dos recorrentes fica-se pela questão da qualificação do indeferimento como liminar, visto que quanto à questão do indeferimento, ele podia ter lugar, no momento em que foi decretado, não obstante o Meritíssimo juiz ter ordenado a citação dos requeridos para deduzirem oposição. Com efeito, decorre do n.º 5 do artigo 266.º do CPC que o despacho que mande citar os réus ou os requeridos não preclude as questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar, ou seja, socorrendo-nos as palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a propósito do º 3 do artigo 479.º do CPC de 1961, cujo conteúdo é idêntico ao do n.º 5 do artigo 226.º do CPC em vigor, ”O facto de o juiz ter ordenado a citação do réu significa apenas que ele não considerou manifesta a ineptidão da petição, a falta de pressupostos processuais…mas nada obsta  que um exame mais atento ou melhor instruído, no despacho saneador, leve o juiz a decretar absolvição da instância ou do pedido, com base em qualquer das excepções que podiam ter determinado o indeferimento liminar” [Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, página 84].

Segue-se do exposto que o facto de o indeferimento das providências requeridas não poder qualificar-se de liminar, não obstava a que o Meritíssimo juiz do tribunal a quo indeferisse o decretamento das providências no momento em que o fez.


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Violação do artigo 154.º do CPC

Sob a conclusão XI, os recorrentes imputam ao despacho recorrido a violação do disposto no artigo 154.º do CPC. Alegaram, para o efeito, que ele era exíguo na fundamentação dada ao sentido da decisão, bastando-se com a mera conclusão de que “os requerentes estão efectivamente a fazer valer direitos de personalidade”.

Esta alegação não vale contra a decisão recorrida, apesar de decorrer do n.º 1 do artigo 154.º do CPC o dever de o juiz fundamentar a decisão de indeferimento da providência. Com efeito, ao contrário do que está implícito na alegação dos recorrentes, a fundamentação do despacho recorrido não se limitou à afirmação de que os requerentes estavam a fazer valer direitos de personalidade. A mencionada afirmação constitui apenas uma parte da fundamentação.  


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Contradição da fundamentação da decisão recorrida

Sob as conclusões XII e XIII, os requerentes acusam a fundamentação da decisão recorrida de ser contraditória. Segundo eles, a afirmação “não se visiona qualquer disposição legal avançada pelos requerentes que possa elucidar o julgador sobre, na opinião dos requerentes, qual o direito que, no caso, se pretende acautelar” estava em contradição com afirmação “estão efectivamente a fazer valer direitos de personalidade”. A contradição - ainda segundo os recorrentes – residia no seguinte:   se do requerimento inicial não se extraía qual o direito que os recorrentes pretendiam acautelar, não seria possível ao tribunal recorrido extrair a conclusão de que eles pretendem fazer valer direitos de personalidade.

O argumento não procede.

Antes de mais importa dizer que o despacho sob recurso não afirmou singelamente que os recorrentes estão efectivamente a fazer valer direitos de personalidade. O que nele se afirmou foi o seguinte: “Do cotejo do teor do requerimento inicial, ouso poder afirmar que entendo que os requerentes – sem prejuízo dos danos de que estão, alegadamente, a ser vítimas – estão, efectivamente, a fazer valer direitos de personalidade, conforme os mesmos se prevêem, ademais, nos art.ºs 26º da Constituição da República Portuguesa e 70º do código civil”. Logo, é toda esta afirmação que deve ser posta em confronto com a outra acima transcrita.

Fazendo este exercício, a conclusão a que se chega é a de que não há contradição. Com efeito, duas afirmações são contraditórias entre si quando uma delas exclui necessariamente a outra, ou, por outras palavras, quando elas não podem ser feitas em simultâneo, o que não se passa com as afirmações em causa. Pode afirmar-se que o autor não invocou na petição qualquer disposição legal que esclareça o tribunal sobre os direitos que pretende acautelar e dizer-se ao mesmo tempo que, do exame de tal petição, decorria, no entanto, que os direitos que se queriam fazer valer eram direitos de personalidade.     


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Propriedade do procedimento para defesa cautelar dos direitos invocados pelos requerentes

Sob as conclusões XIV a XXI, os recorrentes insurgem-se contra o entendimento do tribunal a quo de que eles, recorrentes, estão a fazer valer direitos de personalidade e também contra o entendimento de que o procedimento para alcançar os efeitos por eles pretendidos era o previsto no artigo 878.º e seguintes do CPC.

Sobre a questão dos direitos que os requerentes visam tutelar com o procedimento por si instaurado, importa começar por dizer, como bem assinalou a recorrida na resposta ao recurso, que os recorrentes produziram sobre ela alegações contraditórias, pois na mesma conclusão (XIV) tanto alegaram que nos autos não estava em causa qualquer direito de personalidade como afirmaram que estavam em causa o bem-estar das suas famílias, a saúde e o direito ao descanso, que são direitos de personalidade.

A resposta à questão de saber que direitos é que estão em causa no procedimento instaurado pelos requerentes passa pela interpretação do requerimento inicial. E fazendo esta interpretação, a conclusão a que se chega é a seguinte.

Os primeiros requerentes visam a tutela do seu direito de propriedade sobre a fracção ..., que inclui um terraço que a circunda, mais concretamente o direito de a usarem como habitação própria e permanente. Com efeito, segundo a sua alegação, adquiriram a fracção para nela instalarem a sua habitação, mas ainda o não fizeram devido aos cheiros, ruídos e fumos emitidos pela churrasqueira explorada pela segunda requerida. Emissões, que segundo eles, os impossibilitam de habitar a fracção (artigos 28 a 43 do requerimento inicial). Deste modo, as providências que requereram destinam-se a assegurar-lhes o uso da fracção como habitação.

Os segundos requerentes também pretendem a tutela do seu direito de propriedade sobre as fracções (respectivamente H) e E)], não já como os primeiros, para exercerem o direito de as usar, uma vez que já as habitam, mas para as usarem plenamente. É que, segundo eles, não podem dar uso pleno às suas fracções, visto que não podem abrir as janelas que dão para o exterior quando o sistema de extracção de fumos do restaurante/churrascaria se encontra em plena laboração, porquanto, em vez de arejarem o espaço interior, vêem entrar fumos e cheiros em maior quantidade do que as janelas estiverem fechadas.

Além do direito de usarem plenamente as fracções como sua habitação, pretendem defender também o direito ao bem-estar e à saúde deles. Quanto ao bem-estar, alegaram que todas as suas roupas e utensílios em tecido (sofás, roupas de cama, atoalhados, etc.) têm um permanente cheiro a fritos e a grelhados, o que afecta a sua qualidade mínima de vida no interior da sua fracção. Em relação à saúde, alegaram que temem que possa haver saturação de gases nocivos para a saúde deles (por exemplo, dióxido de carbono) no interior das suas casas com origem na churrascaria.

Os segundos requerentes visam ainda a tutela do direito ao repouso e à saúde de um seu filho menor de idade. Alegaram a este propósito que o seu agregado familiar é composto por si e por um filho, com poucos meses de vida, que é perturbado pelos ruídos, cheiros e fumos gerados pelo sistema de extracção que se fazem sentir no interior da fracção, acordando amiúde nas horas de sono em que o mesmo deveria estar a dormir e não consegue. Temem – segundo eles - que a inalação permanente dos fumos pelo seu filho bebé possa gerar-lhe doenças graves, nomeadamente do foro pulmonar.

Apreciemos, de seguida, a questão de saber se o procedimento seguido pelos requerentes era, segundo a lei, o próprio para tutelar os direitos invocados por eles.

Como se escreveu acima, a decisão sob recurso, laborando no pressuposto de que os requerentes pretendiam fazer valer direitos de personalidade, entendeu que o processo próprio para tanto era o previsto nos artigos 878.º e seguintes do Código Civil. Considerou, no entanto, que a consequência do erro em que incorreram os requerentes não era a nulidade do processo – como havia sustentado a requerida T... SA na oposição ao procedimento -, mas tão só a de seguir-se o procedimento adequado. Invocou, em abono deste entendimento, o n.º 3 do artigo 376.º do CPC.

Os recorrentes sustentam a propriedade do processo de que lançaram mão, com a alegação de que, para além da protecção dos direitos de personalidade, foram alegadas outras matérias [nulidade do regulamento do condomínio e ilegalidade da actividade desenvolvida na fracção ...)] pelo que não se estava perante uma situação de exclusiva tutela dos direitos de personalidade regulados no artigo 70.º do Código Civil e que se aplicava o regime dos procedimentos cautelares nominados. Mais alegaram que cabia ao tribunal o poder de alterar a qualificação jurídica dos factos e aplicar a providência que entendesse mais adequada, como era permitido pelo n.º 3 do artigo 376.º do CPC.

Pelas razões a seguir expostas, é de afirmar que os recorrentes, ao lançaram mão do procedimento cautelar comum para tutelar os direitos por eles invocados, não incorreram em erro na forma do processo.

Vejamos.

Há erro na forma do processo quando o autor indica na petição com que propõe a acção uma forma de processo que não é a que a lei prevê para o conhecimento da sua pretensão.

A propriedade da forma de processo escolhida pelo autor afere-se em função da pretensão ou pretensões por ele deduzidas e dos respectivos fundamentos.

Tendo presentes estas considerações, a razão estaria do lado da decisão recorrida se o processo que a lei mandasse aplicar para conhecer das pretensões dos requerentes fosse o processo (especial) previsto nos artigos 878.º e seguintes do CPC, o que não acontece.

Na verdade, se este processo se aplica, como sucede em parte no caso dos autos, quando o requerente alega ameaças ilícitas e directas à sua personalidade física ou moral e pede o decretamento de providências adequadas a fazer cessar a ameaça ou os efeitos de ofensa já cometida, já não é o próprio quando o requerente pede o decretamento de tais providências, a título cautelar, ou seja, enquanto não houver decisão definitiva sobre a violação dos seus direitos.

E não se aplica porque o processo especial previsto nos artigos 878.º e seguintes do CPC, apesar de ter uma tramitação expedita para tutela da personalidade, como o atesta o artigo 879.º do CPC, não é um procedimento cautelar. Não é, pois, dependência de qualquer outra causa, que tenha por fundamento direitos de personalidade. Daí que a sentença nele proferida constitua decisão final sobre a questão da tutela da personalidade (n.º 3 do artigo 879.º do CPC). E apesar de admitir uma decisão provisória sujeita a posterior alteração ou confirmação no próprio processo, (n.º 5 do artigo 879.º), tal decisão provisória não o converte num processo cautelar.

Sucede que os requerentes pediram as providências a título cautelar, ou seja, enquanto não houvesse uma decisão definitiva sobre a questão da violação dos respectivos direitos. Tal pedido tinha cobertura no n.º 1 do artigo 362.º do CPC, visto que a fórmula do preceito, designadamente na parte em que refere o “…receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito…” abrange claramente o risco de lesão dos direitos de personalidade. Cita-se em abono deste entendimento Rabindranath Capelo De Sousa, que a propósito da aplicação dos procedimentos cautelares à tutela da personalidade, escreveu: “Pode verificar-se o perigo e que a inevitável demora (periculum quod est in mora) de obtenção de execução de providências jurisdicionais definitivas tuteladoras dos direitos de personalidade, quer nas acções de responsabilidade civil quer nas acções especiais de tutela da personalidade, possibilite lesões graves desses mesmos direitos. Justifica-se, então, nos termos gerais, uma apreciação provisória da relação litigiosa através de procedimentos cautelares referidos nos artigos 381.º e segts.do Código de Processo Civil, de modo a acautelar o efeito útil daquelas acções” [O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, página 485].

Não se ignora que os requerentes solicitaram a inversão do contencioso, ou seja, pediram a dispensa do ónus de propositura da acção principal, e segundo o n.º 1 do artigo 369.º do CPC o juiz pode conceder tal dispensa se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar a convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

Tal pedido não converte, no entanto, o procedimento em acção principal nem faz com que a decisão a proferir seja decisão final, definitiva. Na verdade, após o trânsito em julgado da decisão que haja decretado a providência cautelar e invertido o contencioso, o requerido tem a faculdade de intentar acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado (n.º 1 do artigo 371.º do CPC) e, no caso de ela proceder, a providência decretada caduca (n.º 3 do artigo 371.º do CPC).

Em síntese: ao socorrerem-se das providências cautelares não especificadas para acautelarem o risco de lesão de direitos de personalidade, os requerentes não incorreram em erro quanto à forma do processo.

 Por fim – contra a tese do erro na forma do processo – cabe dizer que o processo previsto no artigo 878.º do CPC nãos seria o apropriado para prevenir a lesão do direito ao uso ou ao uso pleno das fracções dos requerentes.


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Apreciemos, por último, a questão de saber se os requerentes alegaram no requerimento factos que demonstrassem a necessidade da tutela cautelar.

Sob as conclusões XXII a XXXII, os recorrentes impugnam a decisão recorrida na parte em que ela afirmou que os requerentes não alegaram factos que justificassem a tutela cautelar.

A resposta à questão de saber se os requerentes alegaram factos que justificassem a tutela cautelar passa, por um lado, por se definir o que é que se deve entender por tutela cautelar ao abrigo do n.º 1 do artigo 362.º do CPC e, por outro, pela interpretação do requerimento inicial.

A questão da tutela cautelar ao abrigo do n.º 1 do artigo 362.º do CPC, é a de saber se a demora - inevitável - na definição dos direitos dos requerentes comporta perigo para esses direitos e, em caso de resposta afirmativa, saber se esse perigo, a concretizar-se, é de caracterizar como lesão grave e de difícil reparação.

Sobre o que se deve entender por lesão grave e de difícil reparação cabe dizer o seguinte.

A razão de ser dos procedimentos cautelares é a de “acautelar o efeito útil da acção”, como se diz na parte final do n.º 2 do artigo 2.º do CPC, ou “assegurar a efectividade do direito ameaçado”, como se diz na parte final do n.º 1 do artigo 362.º do CPC. Deste modo, se os procedimentos cautelares servem para dar utilidade ao que for decidido na acção a favor do requerente, se servem para assegurar a efectividade do direito que lhe for reconhecido, então a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da acção será de considerar como grave e de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efectividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva. Por outras palavras, a lesão que se receia há-se ser considerada de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa.

A favor desta interpretação cita-se Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2015, Almedina, páginas 214 e 215 que, a propósito desta questão, escreve: “… o juiz deve fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deva beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua tutela jurídica”.

E cita-se ainda o que se escreveu na Revista de legislação e Jurisprudência ano 80, páginas 297, sobre este mesmo requisito previsto no artigo 405.º do CPC de 1939, correspondente ao artigo 362.º n.º 1 do CPC actual: “Este segundo requisito traduz-se no periculum in mora: perigo de insatisfação do direito, proveniente da demora em se obter a decisão definitiva da causa. Receia-se que durante a pendência da acção principal e antes de se alcançar sentença definitiva, se produzam factos que impeçam a satisfação do direito”.

Na posse deste sentido do n.º 1 do artigo 362.º do CPC, na parte referente à “lesão grave e dificilmente reparável”, vejamos se os requerentes alegaram factos que, a provarem-se, mostram que é fundado o receio de lesão grave e dificilmente reparável dos seus direitos.

No nosso entender, a resposta é afirmativa.

Como se escreveu mais acima, com as providências requeridas, os primeiros requerentes querem evitar a lesão do direito de uso das suas fracções, e os segundos querem evitar a lesão de tal uso e ainda a lesão do direito à saúde e ao repouso.

Ao alegarem que os fumos, os cheiros e os ruídos saídos do estabelecimento os impedem de usar a sua fracção como habitação, os primeiros requerentes estão a descrever uma situação que lesa o seu direito de usar a habitação e que o continuará a lesar se não lhe for posto termo. Isto é, a lesão já consumada do seu direito, deixa ver que outras se seguirão se não forem tomadas as providências requeridas.

Por sua vez, ao alegarem que não podem abrir as janelas das suas fracções que dão para o exterior quando o sistema de extracção de fumos do restaurante/churrascaria se encontra em plena laboração, porquanto, em vez de arejarem o espaço interior, vêem entrar fumos e cheiros em maior quantidade do que as janelas estiverem fechadas, os segundos requerentes estão a descrever uma situação que também lesa o seu direito de usar a habitação e que o continuará a lesar se não lhe for posto termo.

Por sua vez, os segundos e terceiros requerentes, ao alegarem que temem que possa haver saturação de gases nocivos para a saúde deles (por exemplo, dióxido de carbono) no interior das suas casas com origem no estabelecimento que possam conduzir a um desfecho trágico, estão a descrever uma situação que, a concretizar-se, lesará o seu direito à saúde.

 Por último, os segundos requerentes, ao alegarem que o seu agregado familiar é composto por eles e por um filho com poucos meses de vida, que é perturbado pelos ruídos, cheiros e fumos gerados pelo sistema de extracção que se fazem sentir no interior da fracção, acordando amiúde nas horas de sono em que o mesmo deveria estar a dormir e ao alegarem que temem que a inalação permanente dos fumos pelo seu filho bebé possa gerar-lhe doenças graves, nomeadamente do foro pulmonar, estão a descrever uma situação que lesa o direito à saúde e ao repouso do seu filho e que o continuará a lesar se não foram tomadas as providências requeridas.

Pode afirmar-se, assim, que os requerentes alegaram factos que, caso se provem, mostram que é fundado o receio de lesão dos seus direitos.

O risco de lesão é grave, pois diz respeito ao direito de usar ou de usar plenamente fracções autónomas como habitação própria, e ao direito à saúde e ao repouso.

E é dificilmente reparável. Com efeito, segundo a alegação constante do requerimento inicial, se não for decretada uma das duas primeiras providências requeridas, o estabelecimento continuará a emitir fumos, ruídos e cheiros e os primeiros requerentes continuarão a ficar impossibilitados de usar a sua fracção, os segundos e terceiros continuarão limitados no uso das suas fracções e a ver prejudicados o seu direito ao repouso e à saúde.

E, assim, quando for proferida a decisão final na acção, na hipótese de ela ser favorável aos requerentes, estes alcançarão a cessação da emissão de ruídos, dos cheiros e dos fumos, mas não obterão a eliminação do prejuízo causado ao direito de usar a habitação e ao direito à saúde e ao repouso. O mais a que os requerentes, ora recorrentes, podem aspirar, é a uma indemnização do ou dos prejuízos causados pela actividade do estabelecimento. Sucede que a indemnização reparará ou compensará os prejuízos causados por tal acção, mas não tornará efectivo o direito dos requerentes que era o de usarem as fracções, ou usá-las plenamente, num ambiente saudável e isento de ruídos, fumos e cheiros.

Pelo exposto, entende-se que foram alegados no requerimento inicial os factos que, no caso de serem julgados provados, mostram que é fundado o receio dos requerentes de verem lesados os seus direitos.

Em consequência, não pode subsistir a decisão que decretou o indeferimento da providência. A mesma é de revogar e substituir por decisão a determinar o prosseguimento do procedimento. 


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que se substitui por decisão a ordenar o prosseguimento dos autos.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de as requeridas terem ficado vencidas no recurso, condenam-se as mesmas nas custas do recurso.

Coimbra, 13 de Dezembro de 2022